lundi 18 mars 2013

A opção evangélica -- para entender o passado

A opção evangélica
Fonte: Jorge Pinheiro, Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006, pp. 181-184.

Em seu artigo “A Bíblia cativa, Cristo no céu e a igreja ausente”, de 1989, Mendonça cita o teólogo presbiteriano norte-americano Richard Shaull, ao falar da efetividade do sacerdócio universal dos crentes na oportunidade que os ativistas das Comunidades Eclesiais de Base tinham no exercício de seus dons:

(...) "os católicos romanos revivesceram uma das maiores ênfases da Reforma Protestante do século XVI e a estão agora pondo em prática de uma maneira que os protestantes nunca foram capazes de fazê-lo". [1]

Partindo da afirmação de Shaull, Mendonça explicava as causas da perda de espaço por parte das igrejas protestantes históricas para a Igreja católica e para as pentecostais como fruto de uma crise eclesiológica. Esta crise estaria decorrendo do vazio cristológico, do desajuste entre a história da salvação e o momento histórico, e da pressão ideológica oriunda do primeiro mundo e que realimentava essa defasagem histórica. E Mendonça afirmava:

"O grande debate que se processa nas igrejas girando em torno das teses fundamentalistas contra o comunismo, (...) embora em linguagem teológica, não passa de teses ideológicas que se esforçam por desviar a atenção das igrejas das grandes massas desvalidas. A grande crise eclesiológica reside no fato de que as igrejas não estão se dando conta disso". [2] 

Em nosso estudo, verificamos que a situação descrita por Mendonça remonta a processos históricos que tiveram origem nas próprias contradições do transplante do protestantismo para o Brasil. E que no correr do século XX, essas contradições se aprofundaram, consolidando tendências. Optamos, então, por analisar as raízes de uma das denominações protestantes, a batista brasileira,[3] por acreditar que a partir dela, respeitados os diferentes modelos missionários, podemos entender melhor a opção do cristianismo protestante durante os anos do bonapartismo militar. 

A primeira igreja batista brasileira foi fundada em 1882 em Salvador, embora nessa época já existissem duas outras organizadas por sulistas norte-americanos, residentes na região de Santa Bárbara do D'Oeste e Americana, em São Paulo. Foram os casais de missionários norte-americanos Willian Buck Bagby e Anne Luther Bagby, e Zacharias Clay Taylor e Kate Stevens Crawford Taylor, que deram início ao movimento batista no Brasil. Iniciaram sua missão em Salvador, na Bahia. Chegaram ali no dia 31 de agosto de 1882 e no dia 15 de outubro, fundaram a primeira igreja batista brasileira com cinco membros: os dois casais de missionários norte-americanos e o ex-padre Antônio Teixeira. Essa origem, no entanto, remonta ao escravismo norte-americano, conforme analisa Elizete da Silva [4]:

A denominação [5] Batista também foi atingida pelo divisionismo ocasionado pelas atitudes frente à escravidão. Em 1845, os batistas norte-americanos separaram-se conforme o posicionamento contra a escravidão. Organizou-se a Convenção Batista do sul para abrigar as igrejas que admitiam o trabalho escravo, representando delegações de oito estados do sul escravista. [6] Foi a Convenção Batista do Sul dos EUA que estabeleceu a denominação Batista em solo brasileiro. (...) A guerra de Secessão, na década de 1860, concretamente demonstrou a divisão vigente na sociedade e no protestantismo norte-americano. "Nos Estados Livres, a ascensão dos evangélicos de mentalidade reformista tinha dado um novo sentido de direção e de propósito moral a uma classe média ascendente tentando se adaptar a uma nova economia de mercado. O Sul com seus degredados trabalhadores cativos e seus brancos pobres e preguiçosos - parecia estar, para a maioria dos nortistas, num processo de violação flagrante da ética trabalhista protestante e do ideal da concorrência aberta". [7] 

Após a derrota do sul, muitos confederados, inclusive ex-combatentes, vieram tentar a sorte no Brasil, especialmente em São Paulo. A relação entre a religião e a vida política, para os agentes da imigração norte-americana para o Brasil era olhada de forma maneira bastante estreita, já que parte deles, pastores protestantes, a exemplo do Rev. B. Dunn, via o país como uma nova Canaã, a terra prometida onde os confederados derrotados poderiam reconstruir suas vidas, seus lares e suas propriedades, incluindo a mão-de-obra escrava. Em seu livro Brazil, The Home for Southieners, Dunn apresentou o país dessa maneira, o que ajudou os sulistas olharem o Brasil como uma alternativa segura. O médico M. F. Gaston, por exemplo, veterano do Exército Confederado e originário da Carolina do Sul, que escreveu Hunting a Home in Brazil, faz no livro um relato minucioso das vantagens que os sulistas encontrariam aqui. O sudeste brasileiro, com terras quase virgens, era apresentado como possibilidade para bons empreendimentos. Ele disse, após ter visitado as terras da região de Campinas, que “as vantagens para o cultivo do algodão nessa região dão-lhe primazia sobre a parte meridional dos Estados Unidos. O elemento adicional do trabalho escravo está aqui apto a trazer resultados que não podem ser assegurados pelo trabalho assalariado nos Estados Sulistas; e tão logo os negros se tenham familiarizado com o modo adequado de trabalhar o algodão, poderemos antecipar uma produção excedendo a qualquer uma que já tenha sido realizada nos Estados Unidos”.[8] 

A propaganda desses agentes da imigração surtiu efeito: cerca de dois mil e quinhentos sulistas se deslocaram para São Paulo. A esperança de encontrar terras em abundância com mão-de-obra escrava mobilizou famílias inteiras. E assim chegaram as primeiras famílias batistas à colônia de Santa Bárbara D’Oeste. Porém, nem todos os batistas aqui chegados eram favoráveis à escravidão. Na verdade, os batistas tiveram duas atitudes frente à ela: os primeiros colonos eram favoráveis e foram proprietários de escravos. Já os missionários e os batistas brasileiros em geral, após a abolição, em 1888, condenaram o escravismo como incompatível com a fé cristã. Essas diferentes atitudes demonstram as dificuldades que tinham para tratar do assunto. Em Santa Bárbara D’Oeste, primeiro núcleo batista, o trabalho escravo existiu como mão-de-obra usada na agricultura e em tarefas domésticas. Os colonos batistas eram senhores de escravos, a exemplo da senhora Ellis, dona de um sítio e que providenciara hospedagem nos primeiros meses ao casal de missionários W. Bagby, fundador da Primeira Igreja Batista do Brasil. Conforme o diário da senhora Bagby, “depois de dormir uma noite na capital paulista, os missionários tomaram o trem para Santa Bárbara, onde chegaram sob forte aguaceiro. Na estação os aguardavam os enviados da senhora Ellis, com dois cavalos e um escravo, para carregar a bagagem. A estrada até o sítio estava bem lamacenta mas ao chegar, foram carinhosamente recebidos”. [9]

Conforme conta Crabtree, a Junta de Richmond, nos EUA, ao avaliar, em 1859, as possibilidades de envio de missionários para o Brasil, admitiu que havia similaridades entre os dois países e uma vantagem que deixaria os missionários norte-americanos bem aclimatados em terras brasileiras, o fato de, em ambos os países, haver escravidão: “o Brasil era como os Estados Unidos, tem escravos e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país”. [10] E o missiólogo batista Donaldo Price confirma as razões de tal escolha:

"Os primeiros batistas que aqui chegaram, chegaram como imigrantes, não como missionários. Chegaram depois da derrota sulista na guerra entre os estados, ou a guerra civil norte americana. E queriam vir para uma nação que ainda tivesse escravatura, assim escolheram o Brasil". [11]

Mas, se a Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos trouxe para o Brasil uma tradição conservadora, há uma outra matriz, liberal, no pensamento batista que remonta às suas origens inglesas.

(...) "desde os primórdios do protestantismo no Brasil, seus seguidores estiveram associados a movimentos liberais, os quais favoreceram sua radicação. Há, portanto, entre o liberalismo brasileiro e o protestantismo uma afinidade de propósitos em muitos pontos". [12] 

As pressões conservadoras, no entanto, tornaram-se permanentes no pensamento batista do sul dos Estados Unidos, no correr do século XIX, com a adesão à doutrina da exclusividade batista em termos de fidelidade neotestamentária, que ficou conhecida como landmarquismo. [13] Assim, apesar de sua origem liberal e de seu passado de lutas em favor das liberdades civis, democráticas e do cidadão na Inglaterra e nas colônias norte-americanas nos séculos XVII e XVIII, as igrejas batistas do sul dos Estados Unidos, no século XIX, acabaram cedendo às pressões do landmarquismo, fundamentando o pensamento conservador dentro das igrejas ligadas à Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos. E foi a existência e permanência desse paradoxo, pensamento landmarquista, conservador e fundamentalista e pensamento democrático e liberal que possibilitou o diálogo entre a igreja batista brasileira e o bonapartismo militar. E essa convergência aconteceu a partir da postura e ações dos batistas brasileiros em relação à presença dos Estados Unidos. [14] 

Pelas páginas do Jornal Batista evidencia-se que aquele país foi apresentado como um modelo político e religioso para a América Latina. A outra América era tratada como um novo Israel, com papel especial no plano de Deus para a história global, em função de sua formação protestante. A partir daí as relações entre os dois países devem ser incrementadas. [15] Assim, o pensamento batista brasileiro, expresso em órgãos como O Jornal Batista, não traduziu apenas o liberalismo inglês do século XVII. Ao receber uma influência direta dos batistas do sul dos Estados Unidos, miscigenou-se e gerou o que chamamos de pensamento liberal-conservador. Mesquida [16] explica esta dialética que uniu a educação protestante de origem missionária à sociedade brasileira no final do século XIX e no correr da primeira metade do século XX, a partir de quatro hipóteses: (1) do desejo das elites liberais do sudeste brasileiro de se aproximarem dos Estados Unidos e de imitarem seu modelo político, econômico e cultural; (2) do interesse norte-americano de exercer hegemonia cultural, econômica e política no Brasil; (3) do fato de que a maçonaria contribuiu para a implantação dos protestantes no Brasil; (4) devido à desestruturação da sociedade brasileira nos últimos trinta anos do século XIX, fato que ofereceu oportunidade a atores sociais internos e externos de minar a ordem econômica, política e social. Estas contradições, que construíram o pensamento liberal de viés conservador do protestantismo batista, são analisadas por Martins [17] Segundo a pesquisadora,

"a inter-relação entre o social e o religioso, durante os anos 70 e 80, nas igrejas batistas de Ribeirão Preto mostra que a população pesquisada percebe, de modo geral, a ausência de alterações no aspecto doutrinário (estritamente religioso), poucas e superficiais alterações adaptativas no aspecto estrutural e orgânico, e muitas decorrentes de alterações sócio-culturais observadas na membresia. (...) A percepção da secularização se evidencia pela disponibilidade entre liderança religiosa e membresia. Esta disparidade decorre da postura individualista da membresia na busca do atendimento de suas necessidades religiosas e materiais, rejeitando a ação política como forma de atendimento dessas necessidades. A liderança religiosa, por outro lado, vê no atendimento das necessidades materiais e/ou religiosas da membresia a possibilidade de ação política independentemente do momento de crise que deve ser o responsável pela rejeição sócio-política encontrada na membresia". [18]

A pesquisa realizada em Ribeirão Preto oferece elementos para entender o perfil do pensamento batista brasileiro nos anos 70 e 80. Nada muda em relação à eclesiologia e à doutrina, mas no nível das relações sócio-políticas, ao mesmo tempo em que à membresia é oferecido um discurso de afastamento da ação política, os dirigentes da igreja batista mantêm um estrito vínculo com o poder bonapartista. Assim, os batistas brasileiros, a partir das contradições inerentes ao seu próprio pensamento político, de matriz liberal-conservadora, caminharam para a realização de uma aliança não explicita com o bonapartismo militar, a partir de suas relações históricas e ideais com os Estados Unidos. [19] Mas este não foi um processo linear. Antes do golpe militar de 1964, setores da igreja batista traduziam seu liberalismo a partir de uma leitura do evangelho social, proposto por pensadores batistas norte-americanos como Rauschenbusch. Afirma Burity:

"'A despeito de serem os batistas historicamente arredios aos posicionamentos político-ideológicos, foi dentre eles que surgiu uma das mais concretas demonstrações de como os protestantes liam a realidade brasileira. Trata-se do Manifesto dos Ministros (MM), apresentado à nação brasileira e à denominação Batista em particular, em setembro de 1963, publicado no jornal denominacional, O Jornal Batista, e na revista da mocidade, Juventude Batista, assinado pela Ordem dos Ministros Batistas do Brasil (OMBB)". [20] 

No Manifesto publicado pelo O Jornal Batista em 14 de setembro de 1963, a Ordem dos Ministros Batistas do Brasil, entidade que congregava os pastores que serviam às igrejas da Convenção Batista Brasileira, em assembléia geral, realizada em Vitória, apresentou uma proposta que traduzia anseios diante do imperativo social vivido pela nação. É certo que tal Manifesto não refletiu o conjunto dos batistas brasileiros, pois, conforme analisa Burity,

"para a estrutura organizacional dos batistas, rigorosamente falando, não há nenhuma fala representativa do conjunto dos membros das igrejas, pelo fato de não haver o peso de um colegiado superior, como ocorre em denominações como a Metodista, a Presbiteriana, a Luterana, etc. Teoricamente, cada congregação é autônoma e vincula-se à Convenção Batista Brasileira sem ser a ela submetida. Trata-se de uma federação de igrejas. Um pronunciamento em nome da denominação só é possível por delegação explícita de poder para tal através da Convenção, reunida em assembléia". [21]

Mas, sem dúvida, expressou sentimentos de parte de sua liderança. Por sua importância para o estudo das contradições internas do pensamento batista brasileiro diante do bonapartismo militar, consideramos importante apresentar aqui trechos do documento.

"Reconhecemos ser um privilégio dos batistas brasileiros a infindável responsabilidade de contribuir não somente para a solução dos problemas que no momento assoberbam o nosso povo, como também para a determinação do seu destino histórico. Não o afirmamos apenas porque sejamos uma parcela apreciável desse mesmo povo, mas porque entendemos ser essa participação inerente à missão de 'sal da terra e luz do mundo', que o Senhor mesmo nos outorgou. (...) Entenderam-no assim também Guilherme Carey, o pai das missões modernas e corajoso batalhador contra o sistema das castas na Índia, Roger Williams, o pioneiro da liberdade religiosa em nosso continente, Walter Rauschenbusch, o arauto das implicações sociais do Evangelho, Martin Luther King Jr., o campeão da luta pelos direitos da minoria negra oprimida, e tantos outros batistas ilustres através dos tempos". [22]

No Manifesto, os pastores batistas, embora dissessem reconhecer a importância e o significado das instituições, afirmavam que a legitimidade de qualquer regime, sistema ou instituição, está condicionada às possibilidades que criam para a plena realização da pessoa e de sua humanidade. Dessa maneira, se apresentaram como defensores da liberdade em todas as suas formas de expressão: liberdade de consciência, de religião, de imprensa, de associação, de locomoção, bem como da autodeterminação dos povos desde que livremente manifesta. Para eles, tais concepções de direitos e deveres da pessoa humana estavam presentes na Constituição Federal de 1946, na carta das Nações Unidas e na Declaração dos Direitos do Homem, e deveriam ser universalmente aplicados, de maneira “a banir da face da terra a exploração do homem pelo homem ou pelo Estado, em qualquer das suas formas, e os totalitarismos de toda espécie, assegurando-se a prática da verdadeira democracia”. [23] 

Os pastores signatários do Manifesto alertaram a denominação Batista e, por extensão, à nação, para a inadequação da estrutura social, política e econômica do país e sugeriram a necessidade de um exame objetivo da realidade brasileira, com a finalidade de reestruturação da sociedade em moldes que possibilitassem o atendimento das aspirações e necessidades do povo. 

Essa necessidade ressalta da verificação (...) da irracional aplicação dos recursos públicos, que deveriam antes se destinar, mais liberalmente, aos ministérios da Saúde, Educação e Agricultura, para a solução de problemas sociais angustiantes; da sobrevivência de regimes feudais de propriedade e exploração da terra; da generalizada pobreza das populações carecentes do alimento indispensável à sobrevivência; da injustiça na distribuição das riquezas e da utilização destas para o cerceamento das liberdades essenciais; da inadequada exploração das nossas riquezas naturais, cujo aproveitamento não só deveríamos intensificar, como fazer revestir-se de significação social; do crescente empobrecimento do patrimônio nacional pela remessa para o exterior dos lucros extraordinários auferidos em nosso país; da corrupção que tem campeado nos pleitos eleitorais, na prática policial (quer preventiva, quer corretiva), na previdência social, no preenchimento de cargos públicos, na aplicação dos recursos sindicais, etc. [24]

Condenaram, ainda, a repressão policial aos movimentos populares da cidade e do campo, que devriam antes que nada ser “carinhosamente estudados para que viessem a ser orientados construtivamente para o bem geral, através do atendimento das suas justas reivindicações”, como também aos “movimentos de greve, que se constituem em instrumento legítimo de reivindicação social e de preservação dos direitos dos trabalhadores”. E, traduzindo um anseio de parte do povo brasileiro, defenderam a realização de reformas de base, que foram assim nominadas: “a) reforma agrária, que venha atender às reivindicações do homem do campo explorado; b) reforma eleitoral, que venha liquidar as circunstâncias que possibilitam e estimulam os nossos maus costumes políticos; c) reforma administrativa, que ponha termo ao nepotismo, ao filhotismo e à ineficiência tão generalizada quanto onerosa dos serviços públicos; d) reforma da previdência social, que venha pôr em funcionamento as nossas leis sociais com o pleno reconhecimento e o efetivo atendimento dos direitos dos que trabalham”. [25]

Mas as pressões contra o pensamento liberal de esquerda expresso no Manifesto dos Ministros batistas, tanto externas como internas, foram fortes e cresceram dentro da denominação os setores que faziam a leitura conservadora do liberalismo batista. E assim, os batistas foram girando à direita e lançaram uma Campanha Nacional de Evangelização que teve claros argumentos políticos para sua organização:

"a urgência dessa hora requer uma cruzada nessas proporções. As crises na atual conjuntura nacional e mundial exigem uma mobilização total e apressada de todas nossas forças". [26]
A discussão política tornou-se acalorada dentro do Jornal Batista. Os setores conservadores, alinhados com a oposição ao governo de João Goulart, ganharam espaço e expressão. Assim, discutiu-se até se Jesus foi revolucionário ou reacionário:

"Se temos o Novo Testamento por regra de fé e prática e a Jesus como nosso exemplo, por que, como ele, não nos colocamos acima das paixões políticas? Estamos como igrejas tentando diretamente influenciar na política e isto Jesus não fez! Na suposição de estarmos sendo influenciados pelo Velho Testamento, cabe então dizer que até agora a nossa mensagem não está sendo dirigida nem ouvida pelos opressores, mas pelos oprimidos. Estamos colocando em suas bocas termos de reivindicações sociais, protestos pelas injustiças, semeando ódio e discórdias. Falamos aos crentes que se assentam nos toscos bancos de nossas igrejas, na sua quase totalidade paupérrimos e sem qualquer influência na administração pública. Isto Amós não fez; nem Paulo! Onde então a fonte de nossa inspiração revolucionária?" [27]

E o jornal lançou um apelo ao povo brasileiro, afirmando que sombras se estendiam sobre a vida política brasileira e que a hora era incerta. E diante disso, perguntava “como pode Deus nos abençoar enquanto falamos de revolução sangrenta e nos preparamos para matar nosso vizinho, amigo, e colega, e até o nosso irmão se for necessário, para estabelecer a só chamada justiça social?” [28] E o pensamento batista foi-se atrelando à pregação feita pelos teóricos da Guerra Fria. Num artigo sobre o comunismo, Natanael Rangel, um dos mais expressivos articulistas de O Jornal Batista na época, dizia:

"Em 1903 Lenine fundou o movimento conhecido como bolchevismo com o apoio de dezessete companheiros. No ano de 1917, o mesmo Lenine conquistou a Rússia com um partido de aproximadamente 40 mil membros. Por volta de 1959 o partido de Lenine havia conquistado um bilhão de pessoas. Em uma geração o comunismo ateu arrebanhou para a esfera sob seu controle mais de um terço da população do mundo. Há hoje no mundo cinco crianças aprendendo nas escolas pormenores sobre o comunismo ateu, para cada criança recebendo quaisquer ensinamentos, seja onde for, a respeito de Cristo. Tais fatos são atemorizantes, mas inelutavelmente verdadeiros, é o que revela o Dr. Fred Schwarz em “Você pode confiar nos comunistas”, livro que a crítica vem consagrando como um dos mais completos e mais perfeitos sobre o comunismo. Para o Dr. Schwarz, batista de convicção, o comunismo não é apenas um sistema político e um sistema econômico mas também uma filosofia de vida que se opõe a todo e qualquer sistema religioso. Vale a pena ler “Você pode confiar nos comunistas”, à venda na Casa Publicadora Batista por apenas Cr$330,00". [29]

E aqueles que defendiam o Evangelho social, principalmente os estudantes universitários, passaram a ser tachados de comunistas. 

"Dou logo nome aos bois. Trata-se dos agentes internos e externos da União Cristã de Estudantes do Brasil, particularmente de suas células acadêmicas – as associações cristãs acadêmicas. Aquilo que em 1927 era uma União de Estudantes para o trabalho de Cristo, hoje não passa de mais um órgão bem disfarçado do Comunismo Internacional. (...) Aí começa o chavão comunista. Condena-se a manutenção do estado atual e mobiliza-se a juventude para a luta contra a exploração e a miséria. Ninguém poderá ser neutro e ficar do lado da democracia e da livre iniciativa. A mocidade deve levantar-se contra os esquemas estruturais importados, isto é: contra os Estados Unidos da América do Norte. O que se pretende é retirar os jovens de nossas igrejas locais, para lança-los nas mãos dos agitadores comunistas. E a isto se dá o nome de ´testemunho cristão´. Uma obra perniciosa. Lobo sob manto de ovelha. Já é tempo de desmascarar o embuste comunista da UCEB". [30]

Mas da mesma maneira que inimigos externos foram atacados, inimigos internos eram descobertos e denunciados. O que obrigou até mesmo à Comissão de Ação Social da Convenção Batista ter de explicar que não apoiava a revolução. Na reunião de seu quorum local, realizada a 14 de dezembro de 1963, tomou a Comissão de Ação Social da Convenção Batista Brasileira conhecimento das considerações feitas pelo pastor Delcyr de Souza Lima em artigo intitulado “Rabo de Foguete” (O Jornal Batista, 14.12.1963):

"Como bem se poderá verificar pelo texto gravado (e que será proximamente impresso), nunca falou o pastor Dr. Lauro Bretones de evangelho importado, ou usou qualquer expressão que honestamente pudesse justificar a idéia de que se pretende atrelar a Igreja à Revolução. (...) pela sua grosseria e pelo seu absurdo deixamos de comentar, embora a repilamos com veemência, a insinuação de que atuamos no seio da Denominação com o mesmo espírito, métodos e propósitos dos agitadores comunistas. Confiamos na nobreza e na inteligência de nossos irmãos. E prosseguimos, olhos postos na gloriosa visão do Reino de deus! Pela Comissão de ação Social, Hélcio da Silva Lessa, relator". [31]

Veio o golpe e os batistas brasileiros construíram um profícuo relacionamento com o bonapartismo militar. E o Manifesto dos Ministros batistas passou a ser visto como demonstração de não ortodoxia, pois se articulara com o pensamento liberal de esquerda. Uma demonstração de como o texto foi percebido pela corrente crescentemente hegemônica entre os batistas brasileiros foi o editorial de O Jornal Batista do dia cinco, assim como o do dia 12 de abril de 1964, em que o presidente da Ordem dos Ministros batistas, José dos Reis Pereira, procura desmontar a argumentação do Manifesto, ele que tinha sido um de seus signatários. [32]

Segundo o reverendo Jaime Wright tal postura de alinhamento com os militares tinha uma lógica, a de que os evangélicos, de um modo geral, sempre aspiraram a uma rápida ascensão econômica e social. [33] E com o golpe militar deram-se as condições para esta ascensão social. E, por isso, em 1964, os evangélicos foram os primeiros a apoiar o golpe. 

"No centro de São Paulo, vi constrangido do meu escritório um grupo de estudantes do Mackenzie saindo às ruas no dia dois de abril dando vivas à revolução". [34]

"Em todos os setores da repressão que visitei sempre encontrei evangélicos (...). O chefe do SNI (extinto Serviço Nacional de Informações) em São Paulo era um presbítero. O chefe do CIE (Centro de Informações, hoje Centro de Inteligência do Exército) era um presbiteriano. (...) Certa vez, o diretor do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), em São Paulo, me disse que a repressão não estava preocupada com protestantes de modo geral, mas com os católicos. ´Os protestantes trazem seus probleminhas e ficamos sabendo de tudo´, disse-me o diretor". [35] 

Azevedo afirma que a celebração do indivíduo, no pensamento protestante em geral e do protestantismo batista em particular, é uma resposta moderna ao problema do lugar do ser humano na sociedade. 

No entanto, esta resposta convive com valores pré-modernos. Entre os batistas, a autonomia (rejeição a qualquer axiologia de origem exterior e transcendente) convive com a teonomia e mesmo com a eclesiologia. [36] 

Esses valores facilitaram o alinhamento da igreja batista brasileira ao pensamento bonapartista militar. Tal alinhamento consolidou-se a partir de duas matrizes presentes na formação dos batistas brasileiros: uma de origem liberal e outra conservadora, a ideologia salvacionista, expressão teológica do landmarquismo, que se fortaleceu diante das pressões do imperialismo e da Guerra Fria. Tal realidade levou parte expressiva dos pastores batistas e por extensão da denominação a reafirmarem esses conteúdos conservadores e optarem por uma práxis solidária com o regime bonapartista. Esse posicionamento foi reforçado por contradições internas da denominação, não resolvidas nas décadas anteriores, que são as do permanente choque entre a ideologia salvacionista e a teologia do evangelho social. 

Apesar da aparente neutralidade e omissão diante da repressão, torturas e arbitrariedades do regime, seria um erro uniformizar a atuação de batistas e protestantes. [37] Sem negar o apoio dado ao regime militar bonapartista, é necessário ver que tal fenômeno não era monolítico e isento de contradições. Ou como explica Freston:

"O protestantismo como baluarte da ditadura. Nessa fase, a sociologia do protestantismo é dominada por brasileiros de origem protestante, mas rompidos com suas igrejas. Escrevendo durante o regime militar, sua produção salientava a alienação protestante. (...) Enquanto a Igreja Católica no Brasil se transformou em defensora da democracia, as igrejas protestantes passaram a ser vistas como baluartes do regime. No título de uma obra do período, a associação já não era protestantismo e democracia, mas Protestantismo e Repressão". [38]

Dessa maneira, como afirmou Mendonça, [39] os católicos durante o governo militar, não sem contradições internas, reviveram uma das ênfases da Reforma Protestante do século XVI, o sacerdócio universal dos crentes através da ação militante e evangelizadora das Comunidades Eclesiais de Base, opondo-se ao autoritarismo do regime militar bonapartista. Em contrapartida, os protestantes históricos, com exceções, conforme nota Freston, [40] perderam-se na heteronomia, o que os levou à perda de espaço diante da Igreja católica e das igrejas pentecostais. Esta crise foi vivida pela igreja batista brasileira. Mas, depois de 1985, com a queda do regime militar, as igrejas históricas, e a Batista em particular, procuraram posicionar-se diante da democratização do país. 

“O trabalho de nossas igrejas e de nossa denominação precisa de frequente avaliação, a fim de evitar a esterilidade do tradicionalismo. Isso especialmente se torna necessário na área de métodos, mas também se aplica aos princípios e práticas históricas em sua relação à contemporânea”.[41] 

Dessa maneira, nessa era de revolução e transformações sociais, a Igreja católica construiu uma doutrina social que partiu do princípio da vida. Seu critério de justiça de qualquer política passou a ser, então, o grau de defesa que ela faz da vida humana, se favorece a dignidade e respeita os direitos humanos. Este princípio norteia o catolicismo social com respeito à guerra, à paz e à vida social. Outro princípio é o da solidariedade, visto como normativo da possibilidade de um mundo novo, já que é expressão moral de interdependência, não importa quais sejam as diferenças de raça, nacionalidade, ou poder econômico. E um terceiro é o da opção preferencial pelos pobres, no sentido de que os excluídos têm o primeiro direito de reivindicação perante as práticas humanas. 

À essa leitura do catolicismo social juntou-se o Evangelho social dos protestantes europeus e norte-americanos, a partir da leitura bíblica da responsabilidade social e do socialismo utópico. A ação combinada, mas desigual em ações e tempos, dessas duas visões levaram ao cristianismo social, que se expressou enquanto Teologia da Libertação na América Latina e, no Brasil, também através de movimentos organizados pela base, que vieram a influenciar o pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores. É importante ressaltar que os protestantes históricos no correr do regime militar, com exceções, perderam-se na heteronomia, mas que, depois de 1985, essas igrejas, e a Batista em particular, posicionaram-se diante da democratização do país, levantando o princípio protestante da autonomia e o princípio democrático da liberdade política, afirmando que as igrejas têm que aceitar a responsabilidade da autocrítica, pois é prejudicial negar às pessoas o direito de discordar, ou considerar que os métodos das igrejas são perfeitos.

Assim, a teologia e sua ação fizeram parte das discussões da esquerda brasileira, que viu nas Comunidades Eclesiais de Base aquilo que lhes faltava, meios de chegar às massas. Ao mesmo tempo, as esquerdas descobriram que os trabalhadores sindicalizados eram católicos e tinham ligações com as CEBs. Tais realidades possibilitaram um diálogo entre católicos, setores protestantes, os sindicatos e as esquerdas, mas também ações e mobilizações conjuntas que levaram na direção da criação de um partido de classe.

Citações

[1] Richard Shaull, “Heralds of a new reformation”, 1984, p. 125, in Antonio G. Mendonça, “A Bíblia cativa, Cristo no céu e a Igreja ausente”, São Bernardo do Campo, Estudos de Religião, Ano VI, no. 6, 04.1989, p. 178.
[2] Antonio G. Mendonça, “A Bíblia cativa, Cristo no céu e a Igreja ausente”, op. cit., p. 181.
[3] Segundo o censo nacional do IBGE (2000), os batistas são a segunda maior população evangélica do país, com 3.162.700 pessoas, perfazendo 12,07% do total, logo depois da Igreja Assembléia de Deus, com 8.418.154 pessoas e 32,12% do total. Atlas da Filiação Religiosa e indicadores sociais, Petrópolis, Rio de Janeiro, Edições Loyola e Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2003.
[4] Elizete da Silva, “Visões Protestantes Sobre a Escravidão”, São Paulo, Rever, ISSN 1677-1222, PUC, 2003. Site: www.pucsp.br/rever/rv1_2003/t_silva (Acesso em 12.12.2003).
[5] “Denominação é uma estrutura administrativa, composta de igrejas locais, submetidas a um conselho superior ou confederadas, caracterizada por um corpo de doutrinas e uma forma de governo peculiares e que se distingue das demais. Assim, fala-se de denominação batista, presbiteriana, metodista, etc”. Joanildo A. Burity, “A redenção total: a construção protestante da realidade brasileira”, p. 30.
[6] Kenneth Scott Latourette, História del Cristianismo, s/l, Casa Bautista de Publicaciones,1977, t.2 , p.677.
[7] Robert Divine it alli, América Passado e Presente, Rio de Janeiro, Nórdica.1992, p.328.
[8] Bárbara Stein, “O Brasil Visto de Selma”, Alabama, in Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 03 USP. p. 49.
[9] Rute F. Mathews, Ana Bagby a Pioneira, Rio de Janeiro. Casa Publicadora Batista, 1972, p.24.
[10] A.R. Crabtree, História dos Batistas do Brasil até 1906, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1962, p. 58.
[11] Donaldo Price, “A implantação das Assembléias de Deus no Brasil e dos Batistas Brasileiros: um contraste entre dois modelos missionários”, São Paulo, Teológica, Ano 3, no. 4, 2o. semestre 2001, p. 39.
[12] Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, Piracicaba, Editora Unimep, 1996, p. 302.
[13] Em 1838, o pastor inglês G. H. Orchard publicou Uma História Concisa dos Batistas Estrangeiros, em dois tomos. Com seu trabalho, Orchard pretendeu mostrar que a Igreja Batista existe desde o Pentecostes. Em 1855, a edição americana foi publicada por J. R. Graves, um dos expoentes do movimento landmarquista. O trabalho de Orchard transformou-se então em base teórica do movimento. Por esta razão, o livro teve mais influência na América do Norte do que na Inglaterra. Orchard ficou conhecido como o pai dos sucessionistas. É verdade, que Thomas Crosby e Joseph Ivimey, assim como David Benedict, prepararam o terreno para o landmarquismo, mas foi Orchard quem elaborou a teoria. Vinculou elementos isolados e sem preocupar-se com as normas e padrões da investigação histórica montou a cadeia da sucessão batista. 
[14] Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, op. cit., p. 302. 
[15] Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, op. cit., p. 302. 
[16] Peri Mesquida, Hegemonia norte-americana e educação protestante no Brasil, Juiz de Fora/São Bernardo do Campo, Editora da UFJF e Editeo, 1994.
[17] Miriam Ferreira Martins, Relações entre o social e o religioso: um estudo da inserção das Igrejas Batistas de Ribeirão Preto (SP) no processo de secularização, dissertação de Mestrado, Serviço Social, PUC-SP, 1992.
[18] Miriam Ferreira Martins, Relações entre o social e o religioso: um estudo da inserção das Igrejas Batistas de Ribeirão Preto (SP) no processo de secularização, op. cit., p. IV.
[19] Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, op. cit., p. 299.
[20] Joanildo A. Burity, “A redenção total: a construção protestante da realidade brasileira”, op. cit., p. 27.
[21] Joanildo A. Burity, “A redenção total: a construção protestante da realidade brasileira”, op. cit., p. 33.
[22] “Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil”, O Jornal Batista, Ano LXIII, Rio de Janeiro, 14.09.1963, no. 37, primeira página.
[23] “Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil”, artigo citado.
[24] “Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil”, artigo citado.
[25] Pela Ordem dos Ministros Batistas do Brasil assinou sua diretoria: Presidente José dos Reis Pereira; 1o Vice-Presidente José Lins de Albuquerque; 2o Vice-Presidente Hélcio da Silva Lessa; Secretário-Geral Tiago Nunes Lima; 1o Secretário Irland Pereira de Azevedo; 2o Secretário José dos Santos Filho; Tesoureiro Otávio Felipe Rosa; Bibliotecário Tércio Gomes Cunha; Procurador David Malta Nascimento. “Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil”, artigo citado.
[26] Lester Carl Bell, “Uma Campanha Nacional, por que?”, O Jornal Batista, Ano LXIII, Rio de Janeiro, 28.09.1963, No. 38.
[27] Natanael Rangel, “É Jesus, revolucionário ou reacionário?”, O Jornal Batista, Ano LXIII, Rio de Janeiro, 16.11.1963, no. 46, p. 8.
[28] Aurélio Gianneta, “Apelo do povo brasileiro”, O Jornal Batista, Ano LXIII, Rio de Janeiro, 16.11.1963, no. 46, p. 8.
[29] Natanael Rangel, “E o comunismo vai progredindo”, O Jornal Batista, Ano LXIII, Rio de Janeiro, 16.11.1963, no. 46, p. 8.
[30] Delcyr de Souza Lima, “Trincheira, Na defesa da doutrina”, O Jornal Batista, Ano LXIV, Rio de Janeiro, 18.01.1964, no. 4, p. 4.
[31] O Jornal Batista, Ano LXIV, Rio de Janeiro, 18.01.1964, no. 4, p. 4.
[32] Duncan A Reily, História documental do protestantismo no Brasil, São Paulo, ASTE, 1984, pp. 324-329.
[33] Em 1970, os evangélicos eram 5,17%, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE,.2000. Site: www.ibge.gov.br. (Acesso em 12.12.2004)
[34] “A tortura é uma doença”, entrevista de Jaime Wright a Jorge Antonio Barros, Vinde, republicado em Enciclopédia Digital Direitos Humanos. Site: www.dhnet.org.br/denunciar/tortura/textos/barros. (Acesso em 12.12.2004). 
[35] Jaime Wright, “A tortura é uma doença”, entrevista citada. 
[36] Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, op. cit., p. 309.
[37] “O mundo evangélico é dividido. Não há uma unidade institucional sobrepondo-se às divergências, como no catolicismo. Há uma imensa diversidade organizacional, teológica, litúrgica e política. Se alguém não gosta de algum aspecto de sua igreja, pode ir para outra, ou mesmo fundar uma nova, sem sair do mundo evangélico. É o princípio da auto-gestão e do livre-mercado. De certa forma, ‘evangélico’ (ou ‘protestante’) é uma categoria residual, é o que sobrou do campo cristão depois da Igreja Católica e das Igrejas Ortodoxas, um tipo de Terceiro Mundo”. Paul Freston, Fé Bíblica e Crise Brasileira, São Paulo, ABU Editora, 1992, p. 78.
[38] Paul Freston, “Dilemas Políticos do Protestantismo Latino-Americano”, Universidade Federal de São Carlos, VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, São Paulo, 22-25.09.1998. Para a referência “Protestantismo e Represão” ver Rubem Alves, Religião e repressão, São Paulo, Teológica, Loyola, 2005.
[39] Antonio G. Mendonça, “A Bíblia cativa, Cristo no céu e a Igreja ausente”, op. cit., p. 178.
[40] Paul Freston, “Dilemas Políticos do Protestantismo Latino-Americano”, texto citado.
[41] “A autocrítica”, Rumo e prumo, São Paulo, Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, secção do Estado de São Paulo, Convenção Batista do Estado de São Paulo, 2004-2005, p. 20.

samedi 16 mars 2013

A pensar a ditadura brasileira: para entender o passado


O bonapartismo militar
Fonte: Jorge Pinheiro. Teologia e Política, Paul Tillich. Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006, pp. 170-180.


O estilo personalista de ditadores, de regimes e governos militares, foi chamado por Karl Marx de bonapartismo, em sua análise do golpe de estado de Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão. No 18 Brumário de Luís Bonaparte,[1] Marx analisa as intenções e razões do golpe, mostrando como diante da crise de direção da burguesia, do acirramento das contradições sociais, e da crescente força do movimento de massas, a única saída para a burguesia era um governo forte, com base no aparelho militar, que se colocasse acima dos interesses imediatos de sua própria classe. Ou seja, surgia o governo de arbítrio, acima do Legislativo e do Judiciário.[2]

O conceito, enriquecido posteriormente por dois teóricos preocupados com a tendência ao surgimento de governos fortes no século vinte, Antonio Gramsci e León Trotski, passou a fazer parte da terminologia da sociologia política. Gramsci para o mesmo conceito utilizará um sinônimo, cesarismo. Trotski arriscou uma previsão: a de que a tendência nos países dependentes e semicoloniais era a do surgimento de governos de tipo bonapartista, devido à própria fraqueza estrutural do capitalismo nesses países.

Um bonapartismo não é igual a outro. Não há dois governos bonapartistas inteiramente iguais, mas sempre terão características centrais semelhantes; a sua própria razão de existência será sempre uma aguda contradição e choque de classes e o debilitamento político da burguesia. Daí o papel das forças armadas, as restrições às liberdades e o surgimento de um Executivo que exerce o papel de juiz, de árbitro.[3] Nesse sentido, a partir de 1964, os governos militares brasileiros foram bonapartistas. Mas o bonapartismo de Geisel, possivelmente como o de Castelo Branco, foi o mais típico dos quatro, já que não somente arbitrou, mas equilibrou-se entre interesses distintos, às vezes fazendo acordos, às vezes golpeando. Por isso, nos deteremos em seu governo e estilo por considerá-lo modelo do bonapartismo militar brasileiro e por nos dar condições de analisar o processo de conjunto do período militar. Assim, entendendo o estilo de Geisel como uma conseqüência, ao menos em parte, do momento histórico em que governou, podemos traçar um perfil do “estilo político” do bonapartismo militar brasileiro, sem perder de vista algo importante: desde o início seu governo tinha como meta criar as condições para uma abertura política no Brasil, sem, no entanto, desestabilizar o poder burguês. O presidente Ernesto Geisel foi o primeiro presidente do movimento de 1964 que exonerou um ministro do Exército. Também foi o primeiro a punir ostensivamente um general do Exército, Ednardo D´Ávila Mello,[4] em janeiro de 1976. E mandou prender em 1978, um general, Hugo Abreu, que poucos meses antes tinha sido um de seus assessores mais chegados. Estes gestos sem precedentes indicavam um estilo de governar, que tem desnorteado analistas. Seu estilo é considerado, em geral, agressivo e personalista, e muitos militares sempre temeram que esses gestos pudessem colocar em risco a unidade corporativa das Forças Armadas, ou mesmo o regime de poder vigente no país. Mas essa interpretação era uma simplificação, já que não levava em conta as condições do momento, e o amplo leque de significações que cada gesto presidencial contém e produz. Em primeiro lugar, o general – dentro de sua meta de governo, desenvolvimento com segurança – sempre agiu em nome da hierarquia e da disciplina militar. Assim, combinando sua diretriz política de governo (a chamada distenção), as pressões sociais do momento e a estrutura hierárquica das Forças Armadas, podemos dizer que os generais Frota e d´Ávila Mello foram punidos por não adotarem a diretriz política do governo e por não cumprirem à risca, em suas áreas de responsabilidade, as ordens presidenciais.[5]

Como estamos falando de um governo bonapartista e de um estilo bonapartista, aqui diretriz política de governo e diretriz presidencial se combinam. Aliás, esta é uma das chaves para entender o bonapartismo: ele destrói as estruturas da democracia burguesa substituindo-as pelo princípio do chefe, que norteia a conduta no interior das Forças Armadas. Assim, hierarquizada militarmente a sociedade civil, chega o momento em que governo e executivo, propriamente, se confundem. Do ponto de vista estritamente político, os gestos do presidente ao punir homens da própria revolução tinha uma significação mais ampla, pois pretendiam justamente mostrar que Geisel podia e devia transcender o regime, estar acima dele, e colocá-lo sob o controle de princípios que supunha desvirtuado na prática. Nesse sentido, o general Geisel é o primeiro presidente pós-64, desde Castelo Branco, que pretendeu falar não em nome do regime, apenas, mas da nação como um todo. Evidentemente, os generais presidentes anteriores também supunham falar em nome da nação. Mas devido à própria situação histórica, o momento os levou a esbarrar no jogo pendular entre direita e esquerda. Tinham limites estritos determinados, surgidos dos compromissos com setores específicos burgueses e dos acordos com a linha dura, o núcleo não castelista que se pretendia portador da legitimidade e intérprete da pureza revolucionária. Mas, se o bonapartismo desde os primeiros anos da ditadura “assumira o controle das chaves dos cárceres e dos cofres, os partidos políticos estavam inertes, a atividade parlamentar resumira-se ao exercício de investigação dos limites do Congresso, e os empresários faziam seus negócios no varejo enquanto seus órgãos de classe banqueteavam o regime no atacado. Concluíra-se o processo de desmobilização da sociedade brasileira. De todos as instituições de âmbito nacional e tradição política só uma não coubera inteira no acerto: a Igreja”.[6] É bem verdade que até 1967 ela marchou ao lado do regime, mas em nenhum momento entregou sua independência aos novos donos do poder.

“Como instituição a Igreja podia fazer muitas coisas, menos uma: dar a César sua própria desmobilização. Ao contrário do empresariado, do funcionalismo público civil e militar, dos partidos políticos e do Congresso, ela não precisava de remuneração terrena ou licença do governo para existir. Essa independência decorria de um patrimônio espiritual amarrado a conceitos de civilização que estavam sendo revogados no Brasil”.[7]

Por isso, o desejo de aliança com o bonapartismo não traduzia a realidade do conjunto da Igreja católica no Brasil. Uma mudança tivera início ainda na década de 1950. A doutrina social da igreja católica, que teve como ponto de partida Leão XIII, começou a tomar corpo no Brasil nos anos 1950. É dessa época a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB (1952), que teve dom Hélder Câmara como seu primeiro secretário-geral; a reestruturação da Ação Católica, que englobava a Juventude Operária Católica (JOC), Juventude Estudantil Católica (JEC) e a Juventude Universitária Católica (JUC), sob uma ênfase espiritual e evangelizadora.

“Mas nos anos 60, a JUC engaja-se no processo político, rebela-se contra os bispos diocesanos e alia-se a organizações de esquerda não-católicas. Betinho, Herbert José de Souza, homem preocupado com a fome e a miséria no Brasil, por exemplo, em 1962 era líder da JUC, e no correr dos anos 60 transformou-se num dos expoentes da Ação Popular, um dos partidos políticos mais ativos de toda a esquerda, oriundo da JUC e da JOC. É interessante notar que em abril de 1962, a 5a Assembléia do Episcopado apoiou as reformas de base de João Goulart e, no ano seguinte, com base na encíclica Pacem in terris (1963), exigiu a participação das ‘massas populares’ no processo de desenvolvimento. Nos anos 63/64, três encíclicas eram discutidas dentro e fora da Igreja, e amplamente analisadas pela imprensa brasileira: Rerum novarum, de Leão XIII, Mater et magistra e Pacem in terris, as duas últimas de João XXIII. E foram elas que formaram a primeira base teórica da moderna esquerda cristã brasileira”.[8]

Desde 1961, o clero católico estava dividido em três tendências: conservadora, reformista e revolucionária. A ala conservadora era liderada pelo cardeal dom Jaime Câmara, arcebispo do Rio de Janeiro, por dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, e por dom Eugênio Sigaud, autor de Reforma Agrária, Questão de Consciência.[9]

“A ala reformista estava sob a direção do cardeal dom Carlos Carmelo Mota, arcebispo de São Paulo, de dom Hélder Câmara, bispo auxiliar do Rio de Janeiro e depois arcebispo de Olinda e Recife, de dom José Távora, arcebispo de Aracaju, e de dom Serafim, arcebispo de Natal. Aliados aos reformistas estavam os dominicanos e uma grande parte do clero secular, que procurava uma ligação maior com as organizações de classe e os sindicatos. Junto a eles, atuava a Ação Católica, que englobava a JEC/JUC e a Juventude Operária Católica. (...) O setor revolucionário era liderado por dom Jorge Marcos, bispo de Santo André, e por vários padres, entre os quais podemos citar Francisco Lage, de Belo Horizonte, Ruas, de Manaus, Almery e Senna, do Recife, Alípio de Freitas, que junto com Julião, dirigiu as Ligas Camponesas, Aloísio Guerra, autor de A Igreja está ao lado do povo?, frei Josaphat, diretor do jornal Brasil Urgente e dom Padim, assistente da Ação Católica. (...) Em 1961, quando esteve no Brasil, frei Cardonnel, intelectual dominicano francês, lançou as bases para a organização da esquerda católica. (...) Depois de oito meses no Brasil (afirmou Cordonnel), penso que o primeiro problema, o mais urgente, é a luta contra a miséria (...). Impugnar esta luta em nome do perigo comunista representa a pior das hipocrisias”.[10]

Por causa de seu pronunciamento foi mandado de volta à França, mas sua pregação deu origem à Ação Popular.[11] Em 1964, o golpe contra João Goulart se deu num momento em que ainda eram pequenas e frágeis as áreas da hierarquia católica sensibilizadas com as mobilizações populares.

“É consenso entre os historiadores que a hierarquia da Igreja desempenhou um papel fundamental na criação do clima ideológico favorável à intervenção militar, engajando-se na campanha anticomunista sustentada pelas elites conservadoras: contra a Reforma Agrária, contra os movimentos grevistas, contra as reivindicações dos sargentos, cabos e soldados das Forças Armadas, contra a aliança de cristãos e marxistas que começava a ocorrer nas entidades sindicais e estudantis”.[12]

Mas, sem dúvida, esta não era uma postura monolítica da Igreja católica, pois antes do golpe militar, bispos, sacerdotes e leigos apoiaram as Reformas de Base. E logo depois, ainda em 1964, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, num pronunciamento ambíguo, publicado pelo jornal carioca Correio da Manhã,[13] procurou definir um certo distanciamento do novo regime.

“Não há dúvida que a ação militar deve consolidar a vitória mediante o expurgo das causas da desordem. Entretanto, o critério da correção e os métodos a serem empregados na busca e no trato dos culpados, as medidas saneadoras e as penalidades não são atribuição da força como tal, mas de outros valores, sem os quais a força não passaria de arbitrariedade, de violência e tirania. Que os acusados tenham o sagrado direito de defesa e não se transformem em objeto de ódio ou de vindita. (...) Cumpre-nos declarar que não podemos concordar com a atitude de certos elementos que têm promovido mesquinhas hostilidades à Igreja, na pessoa de bispos, sacerdotes, militantes leigos e fiéis”.[14]

Mas é em 1968 que a Igreja vive o marco de sua virada contra o arbítrio, a repressão militar e as torturas. Esse foi o ano das grandes mobilizações contra o regime e de feroz repressão militar. Foi o ano da decretação do Ato Institucional-5, mas ao mesmo tempo o ano em que tiveram início as primeiras experiências das Comunidades Eclesiais de Base. E, em fevereiro de 1969, através do documento Presença da Igreja, escrito por D. Jaime Câmara e aprovado pela CNBB, definitivamente a Igreja católica colocou-se na oposição ao bonapartismo.

“A situação institucionalizada no mês de dezembro último [refere-se ao AI-5] possibilita arbitrariedades, entre as quais a violação de direitos fundamentais, como o de defesa, de legítima expressão do pensamento e de informação: ameaça à dignidade da pessoa humana, de maneira física ou moral; institui poder que, em princípio, torna muito difícil o diálogo autêntico entre governantes e governados, e poderá levar muitos a uma perigosa clandestinidade”.[15]

No correr do regime bonapartista, dezenas de padres e leigos católicos atuaram na oposição, quer através de entidades das sociedades civil e religiosas, quer integrados às organizações e partidos clandestinos de esquerda. Na contra-ofensiva, o regime sentiu-se livre para prender e torturar padres e leigos católicos.

“Dos dois fenômenos, um era acessório e transitivo, pois nem todos os terroristas eram padres, muito menos se podia dizer que todos os padres simpatizassem com a esquerda, quanto mais com a esquerda armada. O segundo fenômeno era essencial e permanente: o regime fazia da tortura de presos um instrumento primordial de investigação e não pretendia mudar de posição”.[16]

Situação esta que formatou nos anos de chumbo a solidariedade militante entre os cristãos e a esquerda brasileira. Ou, como mais tarde dirá Philip Potter, ex-Secretário-Geral do Conselho Mundial de Igrejas no prefácio do livro Brasil: Nunca Mais: “Foi este Jesus que falou aos seus discípulos, assim como a nós: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. E aquela verdade é conhecida e praticada quando se é justo e se afirma a dignidade de cada ser humano”.[17]

Podemos dizer, comparando o governo Geisel com o de Médici, que embora mantendo seu profundo conteúdo de classe burguês, o estilo bonapartista de Geisel não foi tão ideológico no sentido imediato do termo, já que não representou o setor militar comprometido com prescrições estritas, nem com grupos específicos da sociedade civil, mas com a estrutura capitalista da sociedade como um todo. Por isso seu governo foi mais complexo e contraditório e menos definido ideologicamente. Os gestos autoritários de Geisel não foram aleatórios, nem produto de um temperamento contraditório. Tudo indica que Geisel, e a inteligência técnico-militar que o rodeou, tinha metas a cumprir nos cinco anos de governo, e de acordo a cada momento foi elaborando as táticas aparentemente mais viáveis a cada situação. Podemos dizer também que Geisel (e Golbery, logicamente) tinha uma noção aguda do momento de transição vivido no país. E tentou levar a cabo a reabilitação de um programa político. Implementando-o à maneira bonapartista: acima dos partidos, das classes sociais e dos próprios grupos funcionais, militares e tecnocratas, que estiveram na gestão do Estado até aquele momento. Como toda estratégia bonapartista, a de Geisel visava à unidade nacional sob a hegemonia não contestada da burguesia. Esta estratégia durante o seu governo teve uma formulação política mais precisa, que era a de preparar o país para uma conciliação nacional. Conciliação esta supervisionada por seu sucessor – o general Figueiredo – e logicamente pelas Forças Armadas. A esta estratégia, Geisel foi acrescentando em momentos precisos uma tática bastante utilizada pelo bonapartismo: aquela que consiste em dar a todos a nítida impressão de que é vítima constante de fortes pressões vindas do interior da sociedade, às quais precisa antecipar-se ou enfrentar. São os shows bonapartistas montados especialmente e que permitem ao executivo manter o autoritarismo. Geisel, o mais político dos presidentes do movimento de 64, obteve certos êxitos com esta tática bonapartista. E a utilizou intensamente. Podemos citar alguns exemplos: o show montado ao redor da descoberta da gráfica do Partido Comunista, logo no início de seu governo (antes de completar um ano); o massacre da direção do Partido Comunista do Brasil; as cassações de parlamentares do MDB; o caso do general Sílvio Frota e outros militares e a repressão ao Movimento de Convergência Socialista.[18] Mas já no final de seu governo, quando uma nova etapa da história do Brasil se abria, principalmente a partir das mobilizações operárias e sindicais de 1978, esta tática começou a desgastar-se. Ela, ao contrário, causava um efeito inverso na sociedade. Já não atemorizava, mas incentivava. Isto porque o governo Geisel viveu dois períodos distintos: o antes e o depois de maio de 1978. E nem tudo que valia para março/abril de 1978 podia, por exemplo, ser aplicado em junho/julho do mesmo ano. Exemplo, a lei antigreve.

Assim, o bonapartismo de Geisel foi mais rico porque teve que dar respostas a um número de problemas sociais maiores do que seus antecessores e porque conseguiu fazê-lo sem ocasionar grandes e bruscas rupturas na estrutura autoritária do regime.

Por ser bonapartista o regime, os militares e o governo que se sucederam a partir de 1964 formaram um todo. E nesse sentido, excluindo o governo de Vargas no período que vai de 1932 a 1943, eles foram os únicos que tentaram elaborar uma doutrina de conjunto, e para ser cumprida num longo período, para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Antes de pensar sobre a viabilidade desse projeto integrado de desenvolvimento, é importante analisar as bases sobre as quais se apoiou. A partir do material publicado pelos teóricos da Escola Superior de Guerra, conforme analisamos no jornal Versus,[19] é possível tirar algumas conclusões:

• Os militares consideraram que o movimento de 31 de março teve um caráter de revolução, que implicou num processo tríplice: a formação uma nova camada dirigente que teria como meta a destruição do pensamento tradicional, tanto ao nível político, como econômico.[20]

• Tendo em vista a crise anterior a 1964, dos anos 1961-63, e levando em conta que para derrubar o governo de Goulart necessitaram do apoio dos setores tradicionais, que em termos estratégicos não mereciam nenhuma confiança, os militares passaram a se considerar reserva moral da nação e única alternativa de governo. Tomando sua aliança com os setores tradicionais ou oligárquicos como tática, tentaram excluí-los do processo político, sempre que estes se mostravam ousados ou como fator de aglutinação do descontentamento ou da oposição.

• É um reducionismo afirmar que o movimento de 31 de março foi a expressão da penetração do capital estrangeiro no Brasil. Embora o movimento tenha desde o primeiro momento se considerado como parte da geopolítica ocidental, ele considerou também que era possível o desenvolvimento a partir de uma acumulação da riqueza. Daí que a visão que teve foi exatamente inversa à defendida pelas correntes nacionalistas radicais de “que a dependência aumenta na proporção direta da entrada de divisas e investimentos transnacionais”.[21] Aclarando. Uma das teses econômicas defendidas pelos teóricos da Escola Superior de Guerra-ESG, ao nível da economia, foi que a entrada de capital estrangeiro pode gerar uma acumulação de riqueza, que se num primeiro momento apresenta-se como problemática, tende a produzir uma decolagem, ou seja, um processo gradual de desenvolvimento, a partir de um certo grau de acumulação. Daí consideraram de secundária importância no processo geral da economia a questão da dívida externa.

• Levando em conta a impossibilidade de fazer crescer a economia em todos os seus itens, a política econômica da inteligência militar procurou criar o que eles chamaram de pólos de desenvolvimento, começando pelos setores de ponta, já que estes por realizar mais rápido a mais-valia atraíriam mais investimentos estrangeiros. Já ao nível do Estado começaram, ou continuaram, esta seria a expressão correta, a dar importância ao setor de bens de capital, mas desde que estivesse relacionado diretamente com o resto do parque industrial brasileiro. Ou seja, a política de substituição de importações nesse setor só passa a ser prioritária quando seus custos são menores ou iguais aos do competidor estrangeiro. O que pode parecer uma contradição com um plano geral de desenvolvimento, mas surgiu de um fenômeno concreto, a descapitalização da economia. Aqui também deve ser levada em consideração a política de construção de grandes obras, que junto à questão militar levou alguns economistas a verem características do modo de produção asiático no projeto militar, que esteve mais ligado à rápida realização da mais-valia do que à intenção de diminuir as tensões sociais geradas pelo desemprego, embora seja importante notar que algumas dessas grandes obras tiveram claro fim estratégico.

• A teoria política desenvolvida pela ESG e sintetizada na Lei de Segurança Nacional mais do que expressar um fenômeno conjuntural de repressão mostrou que os militares acreditavam estar enfrentando de fato uma revolução.[22]

Mas, devido à internacionalização do capital e à interdependência da economia a nível mundial, é impossível um processo de desenvolvimento sem desequilíbrio, sem romper a relação estratificada entre os países industrializados e os países periféricos, ainda que esse desequilíbrio se dê dentro das margens do capitalismo. Ou seja, a acumulação do capital e de riqueza terá sempre um limite, caso se mantenha a sangria que representa o déficit do balanço de pagamentos e da dívida externa. E mesmo que se dê importância secundária a este fenômeno, o certo é que a sangria existe e é ela que funciona como um dos fatores de dependência e que torna impossível o desenvolvimento como meta integrada. A verdade é que o equilíbrio fracionado da situação mundial favoreceu naquele momento o projeto hegemônico brasileiro. De forma conjuntural, mas favoreceu. Em termos mais gerais e históricos, o pensamento militar, desenvolvido como teoria da ESG a partir principalmente de 1964, considerou que a liberdade deve estar condicionada aos ditames da razão segurança.

Esta é a lição dada por um dos teóricos da ESG, general Meira Matos, em palestra proferida em 1978 na Câmara Americana de Comércio para o Brasil, em Washington. Segundo o general, o Brasil tinha condições geopolíticas para emergir entre as grandes nações do mundo e se tornar um dos países mais importantes, uma potência em condições de influir nas decisões de ordem mundial.

Nestas poucas palavras estava sintetizado o projeto político-militar brasileiro. E uma leitura mais atenta delas nos conduz à certeza de que o projeto de poder brasileiro incluía a construção de arsenal nuclear.[23] A noção de potência capaz de “influir nas decisões de ordem mundial” estava vinculada à posse de armas nucleares e à capacidade de dispará-las. Poder mundial sem poder nuclear era visto como ficção num mundo dominado pelo conceito de soberania. Em decorrência, o general Meira Matos e toda a inteligência militar consideraram que a busca de status de potência conduz a mudanças e a conflitos nas relações tradicionais.

Mas tudo tem o seu preço. E se no plano sul-americano o projeto do Brasil potência despertaria receios e reações, corridas ao poder militar pelos regimes militares, no plano interno o preço era a supressão da liberdade, pré-condição implícita na predominância da doutrina de segurança, tal como se depreende do pensamento do general Meira Matos. Ele próprio disse que a segurança é o ônus que o Brasil tem que pagar para “emergir entre as grandes nações do mundo”.

Diante do bonapartismo militar, uma parte representativa do protestantismo histórico[24] não se colocou na oposição ao regime, nem mesmo optou pela neutralidade, ao contrário, fez-se solidário.



[1] A primeira edição foi publicada na revista Die Revolution, Nova York, EUA, 1852, sob o título Der Achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte. Fonte: K. Marx y F. Engels, Obras escogidas en tres tomos, Editorial Progreso, Moscou, 1981: Tomo I, pp. 404 a 498.
[2] Jorge Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, São Paulo, Versus no 29, 02.1979, pp. 4-7.
[3] Jorge Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, artigo citado.
[4] “Geisel, que possuía agudo sentido de autoridade, demitiu o comandante em São Paulo, general Ednardo D'Ávila Mello, quando da morte sob tortura, em dependência do Exército, do operário Manuel Fiel Filho”. Roberto Pompeu de Toledo, “Figueiredo e o cabaré de Aldir Blanc”, Veja, 12.01.2000. Linha dura, o general já tinha se posicionado outras vezes contra uma possível abertura, conforme conta o jornalista Cláudio Marques (Coluna Um, Shopping News, 03.08.1975): “Dos meus arquivos implacáveis: General Ednardo D’Ávila Mello deixando escapar comentário: ‘Afinal, se o pessoal de comunicação defende a liberdade de opinião e de expressão, há evidente paradoxo na condenação do jornalista que usou desta mestria liberdade dias atrás’ (referência ao caso Fausto Rocha)”.
[5] Jorge Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, artigo citado.
[6] Elio Gaspari, A ditadura escancarada, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p.236.
[7] Elio Gaspari, A ditadura escancarada, op. cit., p. 236.
[8] Jorge Pinheiro, Somos a imagem de Deus, São Paulo, Ágape, 2001, p. 127.
[9] Dom Geraldo de Proença Sigaud, Reforma agrária: questão de consciência, Editora Vera Cruz, 1962.
[10] Paulo Schilling, “Como se coloca a direita no poder”, São Paulo, Global, 1979, Vol. 1, pp. 92, 94, 99.
[11] Jorge Pinheiro, Somos a imagem de Deus, op. cit., p. 126.
[12] Um relato para a história, Brasil: nunca mais, prefácio de D. Paulo Evaristo, Cardeal Arns, Petrópolis, Vozes, 1985, 7a. edição, p. 147.
[13] Correio da Manhã, 3 de junho de 1964.
[14] Elio Gaspari, A ditadura escancarada, op. cit, p. 237.
[15] Fernando Prandini, Victor A. Petrucci, frei Romeu Dale, O. P. (orgs.), As relações Igreja-Estado no Brasil, vol. 2, p. 120 in Elio Gaspari, A ditadura escancarada, op. cit, p. 257.
[16] Elio Gaspari, A ditadura escancarada, op. cit., p. 267.
[17] Brasil: Nunca Mais, op. cit., p. 19.
[18] Jorge Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, artigo citado.
[19] Jorge Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, São Paulo, Versus no 30, 03.1979, pp.4-8.
[20] Jorge Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, artigo citado.
[21] Jorge Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, artigo citado.
[22] Jorge Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, artigo citado.
[23] “O Projeto Aramar estava perseguindo a idéia da Bomba Atômica impetuosamente. Conforme publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, ‘a arma nuclear estratégica principal do Brasil seria um artefato de 20 a 30 quilotons (quatro a seis vezes mais poderoso do que o usado em Hiroshima), feito com plutônio e lançado por um imenso míssil de 16 metros de altura, 40 toneladas de peso, classe MRBM (Medium Range Ballistic Missile), capaz de cobrir cerca de 3 mil quilômetros transportando uma ogiva de guerra de mais de uma tonelada. É a versão militar do VLS/Veículo Lançador de Satélite, que o Instituto de Atividades Espaciais, de São José dos Campos, prepara’”. “O Submarino Nuclear e a Bomba Brasileirain Nuclear Tecnologia e Consultoria. Site: www.nuctec.com.br/educacional/submarino (Acesso em 30.12.2005).
[24] Protestantismo histórico é o ramo das igrejas cristãs que surgiram como resultado da Reforma religiosa do século XVI na Europa e que se estabeleceram no Brasil a partir do século XIX. Diferencia-se do pentecostalismo, que enfatiza a dimensão extática e a idéia da revelação contínua e direta de Deus aos crentes, conofrme expõe Joanildo Albuquerque Burity, “A redenção total: a construção protestante da realidade brasileira”, in Teresa Halliday (ed./org.), Atos retóricos, mensagens estratégicas de políticos e igrejas, São Paulo, 1988, p. 30.