jeudi 30 janvier 2014

Estudos Interreligiosos -- 1o. semestre 2014

Leitura obrigatória para meus alunos de Estudos Interreligiosos -- 1o. semestre 2014

Religião e Política na Fronteira:
desinstitucionalização e deslocamento numa relação historicamente polêmica[1]

Joanildo A. Burity[2] [joanildo@fundaj.gov.br]

A religião está de volta? Esta é uma pergunta que desde os anos 1990 não se parou de fazer. Se a teoria da modernização dos anos 1950/60 prescrevia a lenta erosão do sentimento e das instituições religiosas como efeito inexorável do avanço da industrialização, da urbanização e da individualização, os discursos críticos e pós-modernos dos anos 1970 e 80, apesar de porem em questão a caracterização sociológico-política da modernização, mantiveram silêncio sobre ou corroboraram a tese da secularização. Da sociologia à política, a verificação empírica e conceitual da referida tese foi posta em segundo plano, como se se tratasse de um datum. Outras coisas eram mais importantes. Por exemplo, a crise econômica dos países periféricos, os autoritarismos, os desafios da construção democrática, a pobreza e as desigualdades sociais.[3]

Em todo o período reinou soberana uma episteme liberal, fundada num dualismo entre espaço público e vida privada, política e religião, profano e sagrado, objetivo e subjetivo. Mesmo entre correntes de pensamento críticas do liberalismo, este dualismo se colocava com força: estava reservado à religião um papel subordinado na configuração da sociedade contemporânea. Em matéria de especificação deste papel no campo político, a episteme liberal definia três grandes linhas normativas: (i) primeiramente, a de que os assuntos e convicções religiosas (ou a expressão de valores últimos) dizem respeito à esfera privada dos grupos e indivíduos, mantendo aí sua legitimidade ainda quando envolvendo práticas exóticas ou repulsivas a uma mentalidade moderna e letrada. Em seguida, sendo a religião um assunto privado, e em vista de assegurar a liberdade necessária para que decisões e ações de caráter público sejam implementadas visando a justiça ou o bem estar do maior número, duas outras linhas normativas são requeridas: (ii) a neutralidade do estado (tomado como sinônimo do espaço público) diante das disputas pela verdade das questões religiosas e das demandas por proteção ou favorecimento feitos por grupos e instituições religiosas ao estado; e (iii) a separação entre igreja e estado, no sentido da autonomia institucional de um domínio em relação ao outro, sob o amparo de algumas garantias constitucionais como liberdade de consciência e culto, e independência das autoridades civis e políticas em relação à autoridade eclesiástica.

Este quadro se reproduziu amplamente onde quer que o modelo ocidental de democracia e economia liberal seduziu elites nacionais ciosas de alcançar a independência ou o desenvolvimento. Com ele parecia estar tudo em seu devido lugar. Mas, aos poucos foi-se acumulando uma evidência contrária às expectativas e à eficiência do marco conceitual e institucional liberal. Da politização do catolicismo e do protestantismo histórico latino-americanos nos anos 1970 e 80 ao crescimento vertiginoso dos pentecostais e carismáticos e à explosão de particularismos étinico-religiosos nos anos 1990, passando pela revolução iraniana; a resistência da Igreja Católica na Polônia e de outros movimentos religiosos nos países do leste europeu; e a disseminação de um misticismo cosmocêntrico oriental entre inúmeros segmentos das camadas médias escolarizadas - tudo aponta para uma configuração do religioso que opera segundo uma lógica de deslocamento de fronteiras e ressignificação ou redescrição de práticas. O efeito contraditório mais marcante destes dois processos é o de que o aprofundamento da experiência religiosa como algo pessoal, individual, íntimo se dá ao par com uma desprivatização ou publicização do religioso.

Esta conjunção de aprofundamento da religião como prática pessoal e desprivatização da religião como força social e política é, a meu ver, muito mais frutífera como agenda para investigação do que a discussão sobre o “retorno do sagrado” ou as querelas sobre a secularização, notadamente se estamos pensando na questão da relação entre religião e política. Se há alguma volta aqui, para efeito de nossa discussão, é a da religião à esfera pública, uma penetração ou reabertura dos espaços públicos - institucionalizados ou não - à ação organizada de grupos e organizações religiosas, e não tanto um reavivamento da adesão religiosa, que teria quase desaparecido e regressaria à esfera da cultura.

É com base nesta caracterização que proponho enfocar tal relação no cenário contemporâneo. E isto será feito, de forma breve, em cinco movimentos: primeiro, partindo-se do princípio de que não estamos falando de uma deontologia da relação religião/política, mas uma construção histórica de longa data da qual a solução liberal é apenas um capítulo - ainda que de profundas consequências. Segundo, diremos que mudanças históricas, ocorridas particularmente a partir dos anos 80, contribuíram para redefinir a fronteira público/privado de modo a alterar ou provocar um realinhamento na relação entre religião e política. Terceiro, a redefinição das fronteiras dissolveu ou deslocou o sentido do político e do religioso - fundamentalmente desterritorializando-os e, em parte, desinstitucionalizando-os. Quarto, o avanço dos processos de democratização, se levou, por um lado, à disseminação das instituições da democracia liberal, provocou, por outro, a progressiva e conflitiva difusão de uma lógica pluralista, cujo efeito mais importante é abrir espaço para que a construção da diferença se dê através da afirmação de identidades (restando ver como estas se relacionam entre si e com o espaço público da política). Por fim, estes processos recolocam o problema - ou a possibilidade - do discurso político da religião e seu lugar numa ordem social pós-tradicional, pós-secular e pós-moderna.

I
Comecemos a detalhar estes cinco pontos do argumento. Nossa colocação inicial é a de que não se trata de discutir se há ou deve haver um vínculo entre religião e política. Simplesmente, ele está historicamente construído e expressa-se seja na massiva imbricação entre religião e cultura, da antigüidade à idade média, englobando com o manto da religião a linguagem da vida cotidiana e das instituições garantidoras da ordem social (cf. Moyser, 1991:12-13; Daniel e Durham, 1999:120) - o estado, a família/tribo/etnia -; seja na ordenação teológico-política do estado absolutista; seja nas disputas, sob a égide do iluminismo e do liberalismo, pela fixação das fronteiras entre os dois domínios. Trata-se, então, de partir da construção histórica desta relação. O que não resolve o problema, porém, pois a única consequência imediata que podemos derivar desta postulação é que o vínculo entre religião e política nunca se rompeu, mas foi construído de diferentes maneiras, sem obedecer a uma lógica linear ou ao ditame de leis irresistíveis do desenvolvimento histórico.[4]

Se o vínculo entre religião e política é um dado histórico, pode-se acrescentar que a questão colocada hoje é se o padrão vigente no ocidente, marcado pelas três linhas normativas mencionadas anteriormente - religião privada, neutralidade do estado e separação igreja/estado -, consegue dar conta do deslocamento e da ressignificação da fronteira religiosa.

Como observa Ferrari, num trabalho recente sobre as implicações legais da “volta do sagrado”, “o processo de ‘desprivatização’ mais uma vez questiona a posição do secularismo como conteúdo exclusivo, ou pelo menos predominante, do estado e das estruturas sociais. A idéia de que o espaço público deve estar totalmente destituído de conotações religiosas (a ‘praça pública desnuda’, evocada por Neuhaus), como pré-requisito para a igualdade e liberdade de seus cidadãos, parece mais frágil hoje do que há alguns anos atrás” (1999:14).

A advertência aqui é que não é a necessidade de certo tipo de relação ou vínculo ou a possibilidade de qualquer vínculo que estão em discussão. É certo que a cena contemporânea tanto enseja casos em que o enfraquecimento do modelo liberal leva a uma abertura do político pela penetração de distintas lógicas do religioso, como tem permitido a recolonização do político pelo religioso, notadamente onde a religião cumpriu um papel de foco da resistência cultural e política a regimes ocidentalizantes. Para complicar ainda mais, esses dois processos estão permanentemente em vias de se transformarem um no outro. Há diferentes maneiras de reconfigurar o vínculo, e poucas são realmente inovadoras. Mas o importante aqui é demarcar: 1) a obsolescência do modelo europeu - liberal, secular e “neutro” - para dar conta dos desenvolvimentos recentes; 2) a impropriedade de inverter a linha de força dominante da política à religião. No novo contexto, mesmo que esta seja a situação inicial, a inserção dos atores políticos e religiosos numa ordem em acelerado processo de pluralização – como nos casos europeu-ocidental, norte-americano e brasileiro – tem impedido uma mera reocupação. Não é mais a mesma religião de volta, não há mais uma só religião de massas em disputa, e a religião não é o único espaço de produção simbólica no domínio social e político. Uma deontologia da relação entre religião e política, portanto, somente recolocaria a curto e longo prazo os impasses da fusão pré-moderna entre religião e ordem socio-política ou da repartição moderna deste vínculo.

II
Meu segundo ponto procura dar substância ao argumento desenvolvido até aqui, destacando que a retomada do vínculo - falsificando a idéia de desaparecimento, perda de plausibilidade ou privatização do religioso - está ancorada em mudanças históricas que vêm desconstruindo a fronteira público/privado de forma a redefinir a relação entre religião e política. Desconstrução entendida aqui em seus termos derridianos: como uma interrupção da lógica binária, polarizadora, que implica numa condição de indecidibilidade entre os dois campos ou conceitos em discussão, o que não impede que um ou outro venham a predominar eventualmente, mas significa que toda oscilação será resultado de decisões ético-políticas, tomadas num terreno em que não há mais o fundamento inapelável de um significado último, transcendental - seja ele a vontade divina, a natureza, a história, a ciência ou o sujeito – e, portanto, questionáveis desde diversas perspectivas e com diferentes consequências.

A desconstrução da fronteira público/privado é o resultado de processos que em muitos casos não estavam previstos e nem mesmo tinham como objetivo alcançá-la. Processos onde a resistência, a insatisfação ou a frustração/desilusão face às formas concretas assumidas pela modernização encontraram no espaço e na linguagem da religião uma de suas superfícies de inscrição,[5] embora aqui seja preciso especificar contextualmente qual (definição ou forma institucional de) religião. Não há nem apagamento da fronteira nem uma mera inversão da posição hegemônica. Há um deslocamento da mesma, que se expressa numa série de indicadores. Apontemos três deles:

1) a crescente atividade reguladora do estado passou a envolver áreas antes consideradas privadas, ou mesmo íntimas, na tentativa de aprofundar a racionalização da provisão social ou de resolver impasses que a ideologia do desenvolvimento identificava em sociedades em vias de modernização. Do controle da natalidade à garantia de oportunidades iguais para as mulheres, sem falar da intervenção em disputas étnicas ou das questões éticas envolvidas na manipulação genética, o ativismo estatal, ao mesmo tempo requerido e auto-justificado, implicou na penetração em áreas onde valores e práticas privadas perderam sua invisibilidade e auto-referencialidade, passando a ser alvo de legislação e políticas públicas, mas também introduzindo sua lógica própria no espaço político;

2) a ampliação da oferta religiosa e a competição entre as diferentes religiões - notadamente nos casos em que uma religião estabelecida oficialmente ou de fato, mantinha um quase-monopólio da adesão e procurava falar em nome da sociedade como um todo - gerou uma busca por assegurar espaços de representação política por parte dos grupos religiosos emergentes, traduzida quer em disputas eleitorais, quer no investimento de recursos públicos em iniciativas educacionais, filantrópicas ou mesmo em demandas internas das organizações religiosas (como, por exemplo, cessão de terrenos para construção de templos). Outro aspecto deste processo foi a escalada dos conflitos inter-religiosos, demandando do estado e dos outros atores políticos tomadas de posição na arbitragem ou resolução dos mesmos;

3) os movimentos culturais e sociais do pós-68 colocaram em xeque uma série de representações da política como espaço estatal, neutro e alheio a questões particulares, reconstruindo posições sociais e culturais antes ocultas na órbita do indivíduo, do pequeno grupo ou dos valores, como posições de sujeito políticas - questões como gênero, raça, meio ambiente, cultura e subjetividade assumiram, então, um caráter de problema político e mobilizaram formas de ação coletiva em defesa de reconhecimento, justiça e participação.

Esses indicadores apontam para uma crescente oscilação e indecidibilidade da fronteira público/privado, que deixa à iniciativa política de atores mobilizados em torno das questões mencionadas - ou seja, regulação estatal da vida privada; demanda por representação ou por resolução de conflitos de base religiosa; e politização de demandas particulares - o traçado da linha divisória. Nas condições em que tais lutas ou mudanças têm se dado, trata-se quase sempre de processos inconclusos, reversíveis e sujeitos a polêmicas que se arrastam por anos a fio, mobilizando freqüentemente o sistema judiciário.

Igrejas ou organizações representativas daquelas vão a público, mantêm interlocução com as autoridades civis e políticas, publicam manifestos, apóiam abertamente candidatos a cargos eletivos, organizam manifestações de rua. O Poder Executivo conclama organismos religiosos a atuarem diretamente, de forma subsidiária ou substitutiva, na implementação de programas sociais em áreas como educação, saúde, violência ou geração de emprego e renda (em moldes que vão das parcerias às políticas de desinvestimento estatal na área social, que transfere a organismos privados a oferta e gestão de serviços de interesse público). Organizações da sociedade civil crescentemente se auto-definem como um “terceiro setor”, público e não-estatal, com pretensões de interferir diretamente nas decisões políticas e nas práticas de mercado, e contam os organismos religiosos entre os que compõem este setor.

Enfim, a linguagem religiosa reforça ou exprime demandas por direitos humanos ou por identidade nacional em contextos nos quais a linguagem da política ou da cultura secular são ainda muito frágeis ou tornaram-se suspeitas de autoritarismo e indiferença à sorte de milhares de pessoas. Em tudo isso, o que é público ou privado, propriamente político ou propriamente religioso, já não pode ser definido de forma categórica e estável.[6]

III
Terceiro ponto, apenas uma advertência e uma especificação do que acabamos de dizer. O vínculo entre religião e política, de um lado, e o deslocamento da fronteira público/privado, de outro, não significam necessariamente um “passo à frente”, algo que devemos acolher como inequivocamente positivo. Em alguns casos, o processo tem dado lugar a retrocessos, com o acirramento da intolerância e do que Freud chamou de narcisismo das pequenas diferenças (cf. Freud, 1976:127-31; Birman, 1994:132-35), bem como a perda ou estreitamento da liberdade de indivíduos e grupos dissidentes ou marginais em relação à representação dominante da comunidade cultural ou da tradição religiosa que ascendem politicamente. Em outros casos, há visível cooptação e instrumentalização de organizações e movimentos religiosos para políticas de governo. Mas um ponto a registrar é que mesmo nestas situações, há um maior “pragmatismo” dos atores religiosos e políticos no manejo de suas diferenças, que aponta para os limites da intransigência num contexto pluralista. Voltaremos a isto mais adiante.

Uma especificação que a discussão anterior pede se refere ao status do político e do religioso. Pois é notório que para além das reafirmações permitidas pela linguagem da “volta da religião” ou da “ampliação da esfera pública ou política”, o que se passa é uma mudança na definição do que seja política ou religião. De um lado, os limites do político extrapolam o estado, o que atesta a insuficiência do neutralismo e da separação entre igreja e estado para disciplinar a relação religião/política. De outro lado, há uma visível desinstitucionalização da religião, que se traduz na proliferação de igrejas, movimentos e grupos informais, que não mais se prendem aos protocolos de autorização ou sanção eclesiástica, bem como na difusão/disseminação do religioso para além das fronteiras reguladas pelas instituições religiosas. Mais e menos do que política e do que religião está implicado em suas múltiplas aparições[7] no mundo contemporâneo. Isto porque o religioso emerge na esteira de um cansaço com a política e a religião institucionalizadas, como vemos na utilização de uma religiosidade mística ou difusa como terapia anti-stress nas empresas, ou quando militantes políticos/sociais buscam o amparo ou consolo da religiosidade para renovarem suas energias utópicas ou mesmo em substituição à atuação política. Quanto ao político, este emerge como antagonismo em meio às mais cândidas expressões de apoliticismo ou misticismo - como vemos nos choques de rua entre monges budistas na Coréia do Sul pelo controle de seu órgão máximo de representação, em 1999, ou na oposição entre evangélicos de centro e evangélicos de direita no caso, respectivamente, da Associação Evangélica Brasileira e do Conselho Nacional de Pastores do Brasil, pela legitimidade de falar em nome dos evangélicos.

O religioso e o político se desterritorializam - multiplicando-se suas instâncias e “flutuando” através das fronteiras culturais, políticas e mesmo econômicas das muitas sociedades contemporâneas. Não quer dizer que estejam em toda parte, nem que possam investir igualmente qualquer espaço social.[8] Antes, a desterritorizalização é relativa à definição que herdamos, tradicionalmente, do modelo estatal e eclesiástico de política e de religião. Há migrações, transversalidade e superposições parciais dos dois terrenos pelos espaços e tempos das sociedades concretas em que vivemos.

IV
Apesar das enormes diferenças de escala que guardam entre si as sociedades latino-americanas e as norte-americanas e européias, todas elas experimentaram nos últimos trinta a quarenta anos processos de construção ou aprofundamento da democratização que disseminaram a forma liberal de democracia e provocaram um incremento da lógica pluralista (cf. Costa, 2000; Sorj, 2000; Burity, 1998; Baquero, 1994; Baquero, 1999; Arditti, 2000; Diamond, 1999; Scholsberg, 1998; Mouffe, 1996:11-19). Como dissemos no início, o efeito mais importante disso para nossa discussão é a afirmação de identidades religiosas a partir de reações, respostas ou diálogos frente à cultura e a política seculares. Identidades religiosas afirmadas como refúgio contra o abandono, a solidão, a incerteza ou os efeitos das crises e reestruturações econômicas, das mudanças tecnológicas e de globalização (cf. Touraine, 1997; Beyer, 1994; Martin, 1998; Haynes, 1998). Identidades religiosas em discussão após décadas de repressão ou controle estatal da prática religiosa, nos países do antigo bloco comunista (cf. Daniel e Durham, 1999). Identidades religiosas dialogando assertivamente com os poderes estabelecidos em defesa de valores comunitários e individuais - muitos dos quais antigos e mesmo incompatíveis com a modernidade (cf. Kymlicka, 1996; Modood, 1999; Bartolomei, 1995).

A conexão entre democracia, pluralismo e identidade que propomos aqui segue de perto a formulação proposta por Chantal Mouffe (1999), para quem a democracia moderna, como articulação entre o liberalismo político (domínio da lei, separação de poderes e direitos individuais) e a tradição democrática da soberania popular, distingue-se das democracias liberais realmente existentes ou da democracia dos antigos pela aceitação que faz do pluralismo. Não da mera existência de uma pluralidade de concepções do que a boa sociedade, de uma mera diversidade de grupos. Mas de uma mudança no plano simbólico, pela qual se dá a legitimação da divisão e do conflito, permitindo “a emergência da liberdade individual e a asserção da liberdade igual pra todos” (Mouffe, 1999:30).

Por meio do pluralismo emerge, assim, uma tensão entre a lógica democrática da identidade e da equivalência, e a lógica do pluralismo, que se baseia na diferença e na multiplicidade de visões do bem. A rigor, e isoladamente, cada uma dessas lógicas tende a anular a outra, o que leva à necessidade de uma constante rearticulação e renegociação, sem um ponto de equilíbrio ou harmonia final. Isto significa, continua Mouffe, que não é possível depender apenas de um acordo quanto a procedimentos. Tais acordos sempre envolvem julgamentos quanto ao que é justo, razoável, aceitável, etc, os quais por sua vez pressupõem “formas de vida” (Wittgenstein) e os embates entre elas. Num contexto pluralista a diferença é que tais “formas de vida”, expressas em paixões, valores, crenças e práticas conflitantes, têm acesso à esfera pública, devendo ser aí “domadas”, isto é, transformadas de identidades antagonísticas em identidades agonísticas.

O estado, neste caso, não pode ser neutro, mas precisa definir os limites de sua tolerância - fundamentalmente em termos da “gramática de conduta” que prescreve liberdade e igualdade para todos (Idem:34 e 36). E a separação entre igreja e estado, fundamental para assegurar o caráter político do pluralismo, “não requer que a religião seja relegada à esfera privada e que os símbolos religiosos devam ser excluídos da esfera pública. Como argumentou recentemente Michael Walzer, o que está realmente em questão na separação entre igreja e estado é a separação entre religião e poder estatal (Idem:36-37). E Mouffe arremata, “na medida em que atuem nos limites constitucionais, não há nenhuma razão por que os grupos religiosos não devam poder intervir na arena política para debaterem a favor de ou contra certas causas” (Idem:37). E ainda: “certamente, em países onde a religião é central na constituição das identidades pessoais, seria anti-democrático proibir certas questões que são importantes para os crentes de entrarem na agenda democrática” (Idem:38).

Naturalmente, a formulação de Mouffe não resolve todos os problemas. A visibilidade pública da questão da identidade - no nosso caso, das identidades religiosas - num contexto pluralista traz consigo uma série de dificuldades a equacionar. Embora concordemos com ela que a solução será política e, portanto, pressuporá o conflito e manterá a divisão (isto é, a não-totalização das soluções alcançadas em relação ao conjunto das demandas ou das formas de identificação existentes na sociedade), os desafios concretos podem representar enormes obstáculos para o avanço do pluralismo.

Menciono aqui, de passagem, alguns destes desafios:

1) o avanço do estado na regulação de assuntos privados e a desprivatização da religião, lançando demandas à esfera política torna impossível definir áreas de competência exclusiva de cada um ou definir, à parte de uma tomada de posição normativa (portanto, somente sustentável em termos hegemônicos), quanto espaço será permitido à expressão da religião na esfera pública e ao estado na esfera privada ou na emergente esfera da sociedade civil;

2) os conflitos interreligiosos contemporâneos podem se manter no nível da violência simbólica ou transbordarem para a violência física; em ambos os casos, a maior presença estatal, chamada a decidir entre partes litigantes com os instrumentos do monopólio da violência legítima ou o poder regulatório da lei e das políticas públicas, nem sempre se dá de forma satisfatória – por desconhecimento da lógica própria de funcionamento das identidades em disputa; pela distância cultural possível entre as elites estatais e certas comunidades religiosas; pela incongruência entre os instrumentos de controle político e as práticas vigentes nas comunidades implicadas;[9]

3) o problema do multiculturalismo, que tem colocado uma série de desafios notadamente às esferas legal e governamental, no que se refere à questão da tolerância e à do equilíbrio entre isonomia no tratamento das diferenças e reconhecimento da especificidade delas (cf. Kymlicka, 1996; Semprini, 1999; Touraine, 1997). O principal limite do multiculturalismo está na tendência ao dogmatismo e ao essencialismo por parte das identidades religiosas em disputa (entre si ou no caso de fusão entre identidade religiosa e identidade política de um grupo ou etnia);

4) o pluralismo facilita o acesso à esfera política e isto, em circunstâncias de forte peso da religião na vida cotidiana, se expressa em termos de aumento na participação política (representação e presença na tomada de decisões) por parte de indivíduos e grupos/movimentos religiosos; tal participação, contudo, na medida em que incorpora atores com pequena ou nenhuma experiência prévia de exposição à esfera política, corre sempre o risco de importar para o campo político formas de intransigência e imposição muito difundidas no campo religioso, ou de se perder no labirinto das redes clientelistas ou corporativistas da política contemporânea.

V
Finalmente, o que dissemos a respeito das dificuldades do pluralismo precisa ser complementado com uma referência à configuração do discurso religioso como discurso político. Parte do tema é captada nas discussões sobre a desprivatização da religião. Dissemos no início que a reconfiguração do religioso opera de acordo com uma lógica do deslocamento de fronteiras e de ressignificação de práticas. Rosenfeld aponta duas consequências da desprivatização,[10] citando o estudo de Casanova (1994) sobre as religiões públicas na política mundial: “repolitização das esferas religiosa e moral privadas” e “renormativização das esferas econômica e política públicas” (Rosenfeld, 1999:41). Ao que Rosenfeld exemplifica: no primeiro caso, os esforços religiosos para criminalizar o aborto e a homossexualidade; no segundo caso, a tentativa de coibir os excessos da economia de mercado pelo recurso a uma concepção religiosa de responsabilidade ou solidariedade social (Ibidem). E no final de seu artigo, mencionando especificamente o Solidariedade polonês e a Igreja Popular brasileira, o autor afirma que “se... a referência à moralidade religiosa serve para avançar preocupações morais, sociais ou políticas amplas, que atravessam um grande número de concepções do bem, englobando tanto perspectivas religiosas como não-religiosas, então o pluralismo compreensivo pode muito bem aconselhar aceitação e, possivelmente, mesmo apoio integral” (1999:64).[11]

Neste caso, podemos acrescentar, a relação entre religião e política se torna indissociável, e implica dois processos articulados. De um lado, uma redescrição da tradição religiosa que põe em andamento o jogo das significações entre as versões oficiais (ortodoxas) e marginais (heterodoxas) da tradição. Conflito interno ao campo religioso. Cada tentativa de politizar o discurso religioso envolve uma revisita à tradição, para reforçar o senso de pertencimento e para melhor confrontar a ortodoxia – quer apontando desvios em relação à pureza das origens, quer ressemantizando a atualidade de dissidentes e mártires no interior da tradição, tomando-os como exemplos de antecipação visionária, independência e compromisso.

É preciso acrescentar, porém, que esta volta ao passado para reavivar sua atualidade e força ético-política precisa ser duplamente qualificada: primeiro, os sentidos não estavam lá, meramente esperando para serem recuperados pelos atores politizantes. Eles só cobram força à luz de um acontecimento, de um desafio ou deslocamento postos pelo presente e que são respondidos por uma visita à tradição. Segundo, o caráter desta leitura heterodoxa pode ser conservadora ou progressista, dependendo do contexto em que é articulada. A heterodoxia é uma posição relacional, que só se define face a uma posição ortodoxa hegemônica, bem como face a um campo de forças externo à religião. Na repolitização do discurso religioso podemos encontrar do integrismo mais reacionário ao pluralismo mais radical, passando por posições centristas e pragmáticas: da política dos aiatolás e da nova direita religiosa norte-americana, à teologia da prosperidade e o projeto político dos neopentecostais brasileiros[12] ou mexicanos, passando pela teologia da libertação, o evangelicalismo latino-americano e as políticas de promoção dos direitos humanos das igrejas européias (notadamente através do movimento ecumênico).

O importante a destacar é que, no cenário contemporâneo, há uma dissseminação/circulação do religioso em busca de eficácia política, que gera condensações em discursos político-religiosos em contextos nacionais. O rebaixamento das barreiras que o modelo iluminista de oposição entre religião e política impunha, encontrou-se com um ativismo religioso crescentemente mobilizado contra o secularismo ou as injustiças e desigualdades, e isto tem permitido uma configuração múltipla das relações entre religião e política. Não se trata de um retorno de algo que havia morrido, nem de um reencantamento do mundo. Onde há retorno ou reencantamento, nunca houve total desencantamento, razão pela qual a religião foi suficientemente forte para se tornar uma força política – ou apenas se trata da ascensão de uma diferente religião ou corrente religiosa dentre as existentes. Tampouco a totalidade do arcabouço liberal cede lugar a algo inusitado. Antes, é sobre as ruínas do liberalismo dos séculos XVII a XIX, mas usando seus cacos ou restaurando seus “monumentos” institucionais meio abandonados, que se reconstrói a relação entre religião e política. É certo que os novos arranjos nem sempre guardam coerência com o liberalismo. Há elementos arcaicos, pré-liberais, que voltam; há novos desenvolvimentos pós-liberais. Por exemplo, a velha idéia da religião como “social glue”, preservando uma identidade nacional da desintegração e fragmentação, se junta à sua idealização como fonte de capital social para o incremento da cidadania, ou antigas formas de retirada do mundo buscam justificar-se como crítica da corrupção e da falsidade na política institucional.

Há, contudo, uma exuberância de casos e tendências a analisar e comparar. O cientista social da religião está hoje numa posição invejável para renovar o conhecimento do vínculo entre religião e política, assim como, no início da era moderna o fizeram Hobbes, Maquiavel, Locke ou Spinoza. Não fazê-lo é injustificável tanto quanto fazê-lo é desafiador.

 
 

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NOTAS
[1] Versão revisada de trabalho originalmente apresentado em workshop sobre religião e política, por ocasião do VIII Congresso Latino-americano de Religião e Etnicidade, promovido pela Associação Latino-americana para o Estudo das Religiões, em Pádua, Itália, de 27/06 a 05/07/2000.
[2] Pesquisador do Instituto de Pesquisas Sociais, Fundação Joaquim Nabuco; professor das pós-graduações em Ciência Política e Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco. Agradeço aos colegas presentes preciosos comentários, que procurei integrar a esta versão do texto. As lacunas que persistam são de minha responsabilidade.
[3] Há hoje um grande corpo de literatura crítica da teoria da secularização ou revisionista. Para alguns exemplos mais recentes, cf. Beckford, 1989; Haynes, 1998: 214-20; Berger, 1999; Vattimo, 1999; Taylor, 1998:1-6; Hervieu-Léger, 1997; Milbank, 1993; Riesenbrodt, 2000. Entre os argumentos que chamo de “revisionistas” estão aqueles favoráveis à tese da secularização, mas que a compreendem como processo descontínuo e mesmo combinado de “secularização-com-intensificada-mobilização-religiosa” ou mesmo como elemento desencadeador da explosão de formas não-tradicionais de religiosidade, “como busca e, a um só tempo, garantia de liberdade religiosa para todos” (Pierucci, 1997:112 e 115; cf. tb. 1998; Wilson, Beckford e Dobbelaere, 1993).
[4] Para análises do caso americano, cf. Jelen, 1995; Chandler, 1999; Carter, 1993. Interpretações mais globais podem ser encontradas em Moyser, 1991; Haynes, 1998 e Lincoln, 1998; Swatos Jr., 1989; Roof, 1991.
[5] Por “superfície de inscrição” entendemos, com base em Laclau (cf. 1990:63, 168-69), uma formação discursiva ou fragmento dela que se torna, sob determinadas condições, “representante” de demandas ou interpretações do social que lhes eram originalmente estranhas ou que não faziam parte de suas formas predominantes. Subjacente a tal entendimento está a idéia de que isto é possível porque as estruturas (discursivas) do social não estão inteiramente fixadas, nem conseguem se manter impermeáveis a tentativas de “recrutá-las” ou mobilizá-las para fins distintos dos que convencionalmente as caracteriza. Se o sentido de um discurso - e este não pode ser entendido apenas num sentido linguístico, mas como um sistema de relações que tanto são linguísticas como extra-linguísticas - é dado por sua relação com outros, mais do que um sistema fechado, aquele pode vir a ser investido (hegemonizado) de diferentes maneiras, podendo tornar-se um espaço em que outros processos de significação vêm a operar.
[6] Para outros tratamentos das implicações constitucionais e políticas do deslocamento da fronteira entre público/estatal e privado/religioso, cf. Rosenfeld (1999); Casanova (1994), Moyser (1991). Ver também o parágrafo IV a seguir.
[7] Gostaríamos de reter deste termo sua dupla referência a “aparecimento” e a manifestações de fantasmas (daquilo que se julgava morto e enterrado, mas que retorna como “assombração”). No primeiro caso, salienta-se o elemento de novidade, enquanto no segundo a insuficiência de uma concepção etapista, linear, de evolução histórica, que veria na presença da religião ou determinadas formas de manifestação política na sociedade contemporânea resquícios de irracionalidade associados à ausência ou deficiências da modernização. Entretanto, parte do que é novo na verdade é muito antigo, e parte do que se julgava morto na verdade ronda como espectro ou se movimenta com vivacidade na cena social.
[8] Alguns autores tem procurado explorar, por exemplo, a questão da busca por espaços ao abrigo da política, isto é, da exposição ao escrutínio público e da mobilização coletiva em função de direitos ou contra sua violação (cf. Melucci, 1996; Maffesoli, 1997; Cochran, 1990).
[9] Este é o caso dos grupos ou instituições que reivindicam a atualidade de tradições culturais e políticas pré-modernas, de base religiosa, para o enfrentamento autônomo de seus problemas de ordem e desenvolvimento, contra os princípios do pluralismo democrático - cf. Kymlicka e Norman, 1996; Kymlicka, 1996; Laclau, 1997.
[10] Segundo Haynes (1998:2), tal processo de desprivatização da religião alcança mesmo sociedades altamente secularizadas, como a Inglaterra.
[11] Para uma interpretação abrangente, global da desprivatização, cf. Haynes, 1998:12-19.
[12] Uma interpretação extremamente original vem sendo proposta, a propósito do movimento pentecostal na América Latina (particularmente no Brasil), por André Corten (1996; 2000). Segundo ele, a despeito do conservadorismo político deste movimento, sua emergência tem colocado desafios para a “língua política” - sistema de autorização do que é aceitável como discurso sobre o social e o político, num dado momento - seja no campo da religião propriamente dito, seja no da cultura e da política.


mardi 28 janvier 2014

Agostinho e Pelágio: afinal, onde mora o pecado?



Agostinho e Pelágio: afinal, onde mora o pecado?


Jorge Pinheiro

Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; se desejo explicar a quem o pergunta, não o sei, afirmou Agostinho, um ser humano entre um tempo romano que desmoronava e o tempo medieval em formação. O jeito romano de olhar o mundo dava lugar a um novo olhar. E para olhar o mundo e entendê-lo era necessário saber de onde vinha o mal e a existência do pecado.

De Pelágio (c. 360-420) sabemos pouco. Saiu da Grã-Bretanha, onde tinha jogado um papel importante na formação do cristianismo céltico. Como Agostinho também era monge, e muito respeitado na Grã-Bretanha tanto entre o clero como entre os líderes celtas não religiosos. Nunca foi visto como herege ou alguém que não merecesse a confiança de seus colegas. Foi um precursor do humanismo, pois acreditava nas possibilidades da pessoa e via o mal como um produto social.



O pecado mora ao lado

O ser humano destrói uma civilização, mas constrói outra usando os tijolos da anterior, afirmou o cineasta polonês Andrew Wajda. Dos escombros de Roma os cristãos construiriam uma nova sociedade.

Em 410, Roma, fragilizada, foi saqueada pelos godos. Os pagãos, nome com que a Igreja designava os não-cristãos, atribuíram a invasão ao fato de os romanos terem abandonado os deuses antigos. De acordo com eles, enquanto fora adorado, Júpiter protegera a cidade; ao ser trocado pelo cristianismo, deixara de fazê-lo.

Assim entre 412 e 427, Agostinho escreveu A Cidade de Deus, um livro cuja base era o pensamento neoplatônico e que exerceria forte influência nos tempos medievais. Nele respondeu a tais acusações, argumentando que coisas piores haviam ocorrido em tempos pré-cristãos. Que os deuses pagãos eram perversos. Ele não negava a existência de entidades como Baco, Netuno e Júpiter, mas os considerava demônios.

Demônios que ordenavam aos homens, por exemplo, que criassem peças teatrais, definidas por Santo Agostinho como “espetáculos da imundície”. Em razão desses deuses, Roma sempre fora perversa e pecaminosa.

Com o cristianismo, Roma se salvaria. E, se a cidade dos homens fora invadida, pouco importava, já que o objetivo maior era a salvação por meio do amor para atingir a cidade de Deus, a sociedade dos eleitos. A busca central não era a cidadania na sociedade dos homens, mas a salvação no reino de Deus.

E assim questões do dia-a-dia, políticas, levarão Agostinho a discutir a questão do mal. Nas suas Confissões conta a história de sua descoberta de Deus, ainda na infância. Para ele, o mal habitava a natureza de todos os seres humanos. Fazia parte da essência do ser, depois do pecado de Adão. E, se os bebês são inocentes, não é porque lhes falte o desejo de fazerem o mal, mas por carecerem de força.

Agostinho, como sua geração, estava preocupado com o problema do mal. E vai procurar a solução para esta questão na construção de uma teologia que combinaria os textos da revelação bíblica com uma leitura hermenêutica neoplatônica. Assim, a partir da questão da essência em Platão, rompe com o pensamento cristão oriental, que norteava entre outros o monge britânico Pelágio e a igreja cristã celta.



O que produz a santidade?

As idéias de Pelágio e da igreja oriental não combinavam com o determinismo essencialista da nascente igreja romana. Nessa época, Roma combatia teologicamente os donatistas da África do Norte. Para os donatistas a eficácia dos sacramentos dependia do estado espiritual dos sacerdotes que os ministravam. Essa idéia trouxe um problema para a Igreja. Se ela concordasse com tal visão, poria abaixo o edifício cerimonial e litúrgico da Igreja, pois se o edifício cerimonial da Igreja dependesse do caráter moral dos clérigos, ninguém poderia ter certeza se as ordenanças e os rituais teriam ou não eficácia espiritual.

Mas, se a declaração dos donatistas fosse declarada falsa, então os sacramentos poderiam ser administrados eficazmente mesmo por um pecador. A acusação de heresia conservou, desta forma, a estrutura da Igreja. Naquela época, muitos homens da Igreja, inclusive Agostinho, defendiam que a igreja era uma instituição cuja santidade vinha dos sacramentos e não da fé das pessoas. Para Agostinho e para a Igreja de Roma os sacramentos produziam santificação e não era a vida pia que produzia homens santos.

Tal discussão levou Agostinho a negar a realidade metafísica do mal. O mal não é um ser, uma pessoa, mas privação de ser, como a escuridão é a ausência de luz. Tal falta estaria presente em todo ser que não seja Deus, enquanto criado e limitado.

Quanto ao mal físico, que atinge os seres humanos, Agostinho justificou-o através de um argumento estético: o contraste dos seres contribui para a harmonia do conjunto.

E em relação ao mal moral, Agostinho disse que existe a vontade má que livremente faz o mal. Ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do ser humano, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser.

Assim Agostinho, através do neoplatonismo, explica que o mal moral entrou no mundo humano pelo pecado original. Por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além perder dons que Deus havia dado a Adão.

Como se vê, para Agostinho, o mal físico teria origem na culpa do próprio ser humano Mas este mal foi remediado pela redenção em Cristo, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral. Mas deixou o sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação.

E a explicação última de tudo isso estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Assim, a teologia agostiniana considera que o mal é a privação do bem e não o contrário. E que essa privação do bem não tem origem no mal metafísico ou no mal moral e físico. O bem nunca é consequência, porque se fosse consequência nasceria do mal. Então, para Agostinho, a solução do problema para o mal -- físico e moral (pecado original versus redenção) -- é estético: o contraste entre os seres leva a harmonia do conjunto. Por isso, para ele, na Igreja está a salvação.



O pecado está no mundo

A Igreja celta, porém, não viu a discussão dessa maneira. Para Pelágio e seu discípulo Caelestius, a questão girava ao redor da teologia do livre arbítrio. Não concordava, com a idéia essencialista defendida por Agostinho, que até aquele momento não era majoritária, de um pecado original que degenerou a natureza da humanidade. Numa leitura existencial-fenomenológica do problema do mal, simplesmente revolucionária para sua época, defendeu que eram as ações e os atos que levavam o ser humano a herdar a danação. E discordou de Agostinho, quando este afirmou que o ser humano só poderia ganhar a salvação através da igreja.

Considerou a doutrina do pecado original sem base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem o mal moral e que diante dos delitos e pecados são salvos pela graça de Deus, que não merecemos, que nos é entregue através de Jesus Cristo.

Até aquele momento, a visão de Pelágio e seus seguidores traduziam a doutrina histórica do livre arbítrio humano e a da maldade socialmente presente no mundo. Tal visão levou Pelágio a entrar em choque com seu maior opositor, Agostinho de Tagasta.

Mas, as posições de Pelágio não eram a única fonte de seus problemas com a igreja. Quando ele visitou Roma, em torno de 380, o que viu e ouviu estava em oposição com o rigoroso asceticismo praticado por ele e pelos monges britânicos. Ficou chocado com a pompa e o luxo da hierarquia da igreja romana. Responsabilizou a lassidão moral do Papado, mas obteve como resposta a partir de citação das Confissões de Agostinho, que Deus em sua vontade determina uns para o luxo e outros para a abstinência. Pelágio atacou este ensino, afirmando que a lei moral impera sobre toda a terra.

Pelágio manteve sua vida de asceta. Pregou a natureza moral boa do ser humano e sua responsabilidade para escolher o asceticismo cristão como forma de avançar espiritualmente. Apesar de viver na Irlanda, ganhou inimigos e ficou sob os ataques de Agostinho.

Ao redor de 412, Pelágio foi para a Palestina, onde em 415 compareceu diante do Sínodo de Jerusalém acusado de heresia. Para defender-se dos ataques de Agostinho e de Jerônimo, escreveu Arbitrio de libero (Na vontade livre), em 416, que ao invés de melhorar a situação, levou-o a ser condenado em dois conselhos africanos.

Ele e Caelestius foram propostos à condenação e excomunhão pelo papa Inocente. Mas o sucessor de Inocente, Zosimus declarou Pelágio inocente em sua Fidei de libellus (Indicação breve da fé), mas depois reconsiderou, quando nova investigação foi proposta pelo concílio de Cartago (397-419). Zosimus confirmou as acusações e Pelágio foi condenado. A partir dessa data, mas nada se sabe dele.

No entanto, Pelágio é lembrado como aquele que teologicamente tentou livrar a humanidade da culpa de Adão. Seus seguidores fazem questão de mostrar que ele foi um dos primeiros dissidentes da igreja católica romana em construção.

O individualismo áspero do monge celta, sua convicção de que cada pessoa está livre para escolher entre o bem e o mal, e sua insistência de que a fé deve ser prática (ora et labora), marcaram a imaginação teológica do final do século 20. E não somente a imaginação da Teologia, mas também da Pedagogia e da Psicologia.

Mas, afinal, que mal?

Epicuro foi quem levantou a questão da teodicéia: se existe um Deus bom, e Ele criou o mundo, como é possível o mal no mundo? Platão defendeu uma despotenciação ontológica do mal. Ou seja: o mal, a rigor, não existe. O mal nada mais é do que a não existência de algo, a ausência do ser. É uma teoria que teve muita influência posterior. Na Antiguidade, o maniqueísmo e a gnose defenderam que o mal é um princípio tão poderoso e eterno quanto o bem.

O mal, fruto da alienação humana, é uma das questões clássicas da teologia. Deve ser visto como momento anterior ao pecado e diferente do pecado. E, por isso, teologicamente podemos ver, a partir da alienação, diferentes formas da presença do mal no mundo.

O malum physicum, a dor, a tristeza e o sofrimento; o malum morale, que leva a errar os alvos existenciais; e o malum metaphysicum, que traduz a finitude humana, tanto temporal, como a mortalidade, quanto cognitiva, por exemplo, a ignorância. Porém, a ignorância, que também podemos chamar de mal epistemológico, não é hoje, teologicamente, tratada como mal, assim como a finitude também não é.

Leibniz disse que o mal é necessário por causa do princípio da possibilidade lógica. Este é o melhor mundo possível, mas mesmo no melhor mundo possível é necessário que algumas partes sejam imperfeitas. Num mundo perfeito não poderia haver mudanças, porque significaria acabar com a perfeição. Por isso, é melhor um mundo não tão perfeito, mas que nos dê a possibilidade de trabalhar no seu aperfeiçoamento.

E o pecado está à porta

Segundo Agostinho, o peccatu, no seu sentido original, o caminho errado, é ato, desejo ou palavra contrários à lei de Deus, que ofende a Ele e seu amor. A lei de Deus está expressa na lei natural, nos mandamentos do amor e da lei. O peccatu é abuso da liberdade e um mal ato, que fere a natureza humana. E Cristo, através da cruz, revelou a gravidade do pecado e o venceu com a sua misericórdia. Para Agostinho e os católicos, há diferentes tipos de caminhos errados, conforme seus objetos, quando ferem diferentes mandamentos e virtudes. Podem ser contra Deus, contra o próximo e contra a própria pessoa. Podem ser gerados por ações, omissões, palavras ou pensamentos.

A repetição de pecados gera hábitos que pervertem a consciência e transformam o mal em opressão. Tais vícios podem estar ligados aos pecados capitais: avareza, gula, inveja, ira, luxúria, preguiça e soberba. A Igreja católica ensina que o ser humano tem responsabilidade pelos pecados cometidos por outros, quando cooperam com a sua realização. A doutrina católica trabalha com três categorias de pecados:

O caminho errado, original, está para Agostinho presente em todos, sem culpa própria, devido à unidade de origem em Adão e Eva. Eles desobedeceram no início, originando este pecado, que é perdoado pelo sacramento do batismo. Este pecado de origem torna a natureza humana submissa à ignorância, ao sofrimento, ao poder da morte, e inclinada a toda diversidade de pecados.

O pecado mortal, cometido com plena consciência e deliberado consentimento, mata o amor, priva o ser humano da graça e conduz à morte eterna, caso não haja arrependimento.

O pecado venial difere do pecado mortal porque se trata de matéria leve, ou mesmo grave, mas sem conhecimento ou sem consentimento. Não quebra a aliança com Deus, mas debilita o amor. Traduz um afeto por bens criados, impede o crescimento espiritual no exercício das virtudes e na prática do bem moral. Merece penas purificatórias temporais.

Ao contrário de Agostinho e do catolicismo, o judaísmo considera a violação de um mandamento, lehatati, um tiro errado. Diz que lehatati é uma ação do coração e não um estado do ser. A humanidade encontra-se num estado de alienação, de distanciamento do Eterno, e por isso se inclina para o mal (Gn 8.21). No uso da liberdade tem dificuldade de realizar o bem (Sl 37.27). Assim, lehatati é a violação lei, o que não necessariamente é uma falta moral. O ser humano nasce sem tiros errados, embora alienado, e a culpa de Adão não recai sobre o conjunto da humanidade, mas todo ser humano é responsável por seu lehatati porque foi dotado de vontade livre. E, por ter uma natureza fragilizada pela alienação, tende para o mal. Ou conforme diz o livro das Origens, a imaginação do coração humano é má desde a sua meninice (Gn 8.21), ou seja, desde quando tem consciência para discernir bem e mal. Por isso, o Eterno na sua misericórdia entregou ao ser humano a provisão do arrependimento e do perdão.

A partir da tradição judaica, não classificamos os pecados como venial, mortal ou capital, mas entendemos que hamartia é a violação da vontade de Deus, expressa em seus mandamentos. Ou conforme I Jo 3.4, todo aquele que erra o lvo existencial também transgride a lei, porque a hamartia é a transgressão da lei. Errar o alvo existencial é um ato, pois cada pessoa é tentada quando atraída e enganada pelo seu próprio desejo. Depois, gestando o desejo, dá à luz o pecado, e vivendo alvos errados caminha para a morte. (Tg 1.14-15). Há na descrição de Tiago um processo que gera alvos errados. Ou seja, é sempre uma ação humana, e não uma herança maldita da qual não podemos nos livrar (Gn 4.7). E assim, a partir da alienação, que é estado da existência, inclinadas ao mal, as pessoas pecam (Rm 3.23). Para vencer alvos errados e suas consequências, há uma provisão: Ef 2.8, I Jo 1.9.

Leia: Jorge Pinheiro, Teologia biblica e sistemática, o ultimato de praxis protestante, São Paulo, Fonte editorial, 2012, pp. 249-289.

vendredi 17 janvier 2014

Lutero e seu prefácio à carta aos romanos

PREFÁCIO À EPÍSTOLA DE SÃO PAULO AOS ROMANOS (1522)
Por Martinho Lutero

Essa epístola é a parte verdadeiramente principal do Novo Testamento e o mais puro de todos os Evangelhos. É digna e merecedora de que o cristão não só a saiba de cor, palavra por palavra, mas que se ocupe com ela diariamente como se fosse o pão diário da alma, pois ela jamais poderá ser lida ou contemplada em demasia e devidamente bem. E quanto mais é praticada, mais se torna agradável e saborosa. Por isso, quero dar também a minha contribuição por meio de meu prefácio, proporcionado-lhes, com a permissão de Deus, um acesso para que ela seja compreendida o melhor possível por todos. Porque, até agora, ela tem sido lamentavelmente obscurecida com comentários maldosos e todo tipo de falatório, ela que em si mesma é uma luz clara quase o suficiente para clarear toda a Escritura.

A LEI

Primeiramente, temos de conhecer a linguagem e saber o que São Paulo quer dizer com estas palavras: lei, pecado, graça, fé, justiça, carne, espírito e coisas semelhantes, caso contrário a leitura de nada adiantará. Neste caso, tu não deves entender a palavrinha “Lei” de maneira humana, como se fosse uma doutrina referente às obras que precisam ser feitas ou não, como ocorre com as leis humanas, quando a lei é cumprida por meio de obras, apesar de o coração não estar presente. Deus julga considerando o fundo do coração; por isso, a Sua Lei exige também o fundo do coração e não se dá por satisfeita com obras, mas pune, ao contrário, aquelas obras que não vêm do fundo do coração, por serem hipocrisia e mentira. Por essa razão, todas as pessoas são chamadas de mentirosas em Sl 115 [116, 11], pois ninguém cumpre, nem consegue cumprir a Lei de Deus do fundo do coração e porque todos encontram dentro de si mesmos a indisposição para o bem e a disposição para o mal. Onde não houver uma livre disposição para o bem, o fundo do coração não estará com a Lei de Deus; ali com certeza também haverá pecado e a merecida ira de Deus, embora exteriormente pareçam existir muitas boas obras e uma vida honrada.

Por essa razão, São Paulo conclui no segundo capítulo que os judeus são todos pecadores, e diz que apenas os cumpridores da Lei são justificados perante Deus. Ele quer dizer com isso que ninguém cumpre a Lei com obras, mas, ao contrário, lhes diz o seguinte: tu ensinas que não se deve cometer adultério e és adúltero. Do mesmo modo, aquilo que julgas num outro, tu condenas em ti mesmo porque fazes exatamente aquilo que estás julgando. Como se ele quisesse dizer: exteriormente, tu vives perfeitamente nas obras da Lei e julgas aqueles que não vivem do mesmo modo, e sabes ensinar a todos; tu vê o cisco no olho dos outros, mas não vês a trave diante do teu. Já que mesmo cumprindo exteriormente a Lei por meio de obras, por temor à punição ou por amor à recompensa, tu fazes isso tudo sem uma livre disposição e sem amor à Lei, mas indisposto e coagido, preferindo agir de outro modo se não fosse a Lei. Resulta daí que, no fundo do coração, tu te opões à Lei. O que significa então ensinar aos outros a não roubar se, no coração, tu próprio és um ladrão e exteriormente gostarias de sê-lo se pudesses? Se bem que a obra exterior não dura muito nesses hipócritas. Portanto, tu ensinas aos outros, mas não a ti mesmo; também não sabes o que estás ensinando e jamais entendeste a Lei corretamente. Ora, além disso, a lei aumenta o pecado, segundo ele diz no capítulo 5 [20], já que o ser humano acaba se opondo ainda mais a ela, quanto mais for exigido a fazer o que não é capaz.

Por isso, ele afirma no capítulo 7 [14] que a Lei é espiritual. O que significa isso? Se a Lei fosse carnal, as obras lhe bastariam. Sendo, porém, espiritual, ninguém a satisfaz, a não ser que tudo o que tu faças venha do fundo do coração. Mas ninguém dá um coração assim, a não ser o Espírito de Deus; é Ele que iguala a pessoa à Lei incutindo-lhe no coração a disposição para a Lei e levando-o a agir doravante não por temor ou coação, mas de coração livre. Portanto, é espiritual a Lei que quer ser amada e cumprida com um tal coração espiritual e que exige semelhante espírito. Quando ele não estiver no coração, neste permanecem o pecado, a indisposição, a hostilidade à Lei que afinal é boa, justa e sagrada.

Portanto, acostuma-te às seguintes palavras: são coisas bem diferentes fazer a obra da Lei e cumprir a Lei. A obra da Lei é tudo o que a pessoa faz e pode fazer no âmbito da Lei, de livre e espontânea vontade e por suas próprias forças. Mas como, sob e ao lado de tais obras, permanece no coração a indisposição e a coação no tocante à Lei, todas essas obras são perdidas e inúteis. É isso que São Paulo quer dizer no capítulo 3 [20] ao afirmar que ninguém será justificado perante Deus pelas obras da Lei. Por isso, tu vês agora que os rivais acadêmicos e os sofistas não passam de sedutores ao ensinarem a preparação para a graça por meio de obras. Como alguém consegue se preparar para o bem por meio de obras, se não faz uma boa obra sem indisposição e má vontade no coração? Como irá agradar a Deus a obra oriunda de um coração indisposto e contrariado?

Cumprir a Lei, contudo, significa realizar a sua obra com disposição e amor, e viver bem, livre e divinamente sem a coação da Lei, como se não houvesse Lei ou castigo. Mas quem dá ao coração essa disposição a um amor desinteressado é o Espírito Santo, conforme ele diz no capítulo 5 [5]. O Espírito, porém, não é dado a não ser em, com e por meio da fé em Jesus Cristo, como ele afirma no prefácio [1, 17]. Desse modo, a fé não aparece, a não ser por meio da palavra de Deus ou do Evangelho que Cristo prega enquanto filho de Deus e homem que morreu e ressuscitou por nós, segundo ele afirma nos capítulos 3 [21 -25], 4 [24-25] e 10 [9-17].

Disso decorre que apenas a fé justifica e cumpre a Lei, pois traz o Espírito oriundo do mérito de Cristo; o Espírito, porém, torna o coração disposto e livre, tal como exige a Lei; portanto, as boas obras advém da própria fé. É o que ele quer dizer no capítulo 3 [31], depois de ter rejeitado a obra da Lei dando a impressão de querer abolir a Lei por meio da fé. Não (diz ele), nós estabelecemos a Lei por meio da fé, isto é, nós a cumprimos por meio da fé.

O PECADO

Na Escritura, “pecado” significa não somente a obra exterior do corpo, mas todo movimento e agitação feitos para produzir a obra exterior, ou seja, do fundo do coração com todas as forças; desse modo, essa palavrinha é sinônimo de “fazer”, uma vez que assim a pessoa cai e penetra inteiramente no pecado. Já que também não acontece nenhuma obra exterior do pecado sem que a pessoa se entregue inteiramente, de corpo e alma. E a Escritura lança o olhar sobretudo para o coração e para a raiz e a fonte principal de todos os pecados, que é a falta de fé no fundo do coração. Portanto, do mesmo modo que apenas a fé justifica e suscita o espírito e a disposição para as boas obras exteriores, é apenas a falta de fé que peca, induz a carne e a dispõe a más obras exteriores, tal como aconteceu a Adão e Eva no paraíso, Gn 3.

Por isso, Cristo não apenas chama a falta de fé de pecado, mas declara em Jo 16 [8-9]: o Espírito castigará o mundo por cometer o pecado de não acreditar em mim. Por isso também, antes que aconteçam obras boas ou más, na qualidade de frutos bons ou maus, é preciso existir no coração fé ou falta de fé, na qualidade de raiz, seiva e força principal de todo pecado, o que também por isso é chamado na Escritura de cabeça da serpente e o velho dragão, os quais a descendência da mulher, Cristo, terá de esmagar, tal como foi prometido a Adão.

“Graça” e “dádiva” são diferentes porque graça significa na realidade a benevolência e o favor que Deus traz em si mesmo para nós, levando-O a verter em nós Cristo, o Espírito com suas dádivas, como fica evidente no capítulo 5 [15], em que ele afirma: a graça e a dádiva em Cristo etc. Se as dádivas e o Espírito em nós aumentarem diariamente e ainda assim não se tornarem perfeitos por ainda restarem em nós desejos maus e pecados que combatem o Espírito conforme afirma no capítulo 7 [14-23], em Gl 5 [17] e segundo a promessa feita em Gn 3 [15] sobre a disputa entre a descendência da mulher e a da serpente, ainda assim a graça será tanta que perante Deus seremos inteira e plenamente justificados; pois sua graça, diferentemente das dádivas, não se divide, nem se fragmenta, mas nos acolhe por inteiro na benevolência, por causa de Cristo, nosso intercessor e mediador, e porque as dádivas foram iniciadas em nós.

Portanto, tu entenderás o sétimo capítulo no qual São Paulo chama a si mesmo de pecador, para depois dizer no oitavo que nada há de condenável naqueles que estão em Cristo, em função das dádivas imperfeitas e do Espírito. Em virtude da carne ainda não estar morta, somos todos pecadores. Mas, por crermos em Cristo e termos começado no Espírito, Deus nos é tão propício e misericordioso, que não leva em conta, nem julga tal pecado; ao contrário, Ele procede conosco segundo a fé em Cristo, até que o pecado esteja morto.

A FÉ

“Fé” não é a ilusão e o sonho humanos que muitos tomam por fé; e quando veem que não ocorre nenhuma melhora na vida, nem boas obras, mesmo ouvindo e falando muito da fé, as pessoas caem no erro de dizer que a fé não basta e seria preciso fazer obras caso queiram tornar-se devotas e bem-aventuradas. Isso faz que, ao ouvirem o Evangelho, elas se lancem a produzir por seus próprios meios um pensamento no coração que diz: eu creio. E tomam isso como uma verdadeira fé, mas como isso não passa de um pensamento e de uma criação humana que jamais tocará o fundo do coração, elas então nada fazem e consequentemente nenhuma melhora acontece.

Mas a fé é uma obra divina em nós que nos modifica e nos faz renascer de Deus, Jo 1 [12], e mata o velho Adão tornando-nos pessoas diferentes de coração, temperamento, mentalidade e todas as forças, além de trazer consigo o Espírito Santo. Há algo vivo, ativo, atuante e poderoso na fé impossibilitando que ela cesse de praticar o bem. Ela também não pergunta se deve fazer boas obras, mas as faz antes que perguntem e está sempre em ação. Quem, porém, não realiza tais obras é uma pessoa sem fé que anda tateando à procura da fé e de boas obras, e não sabe o que é fé, nem o que são boas obras, e ainda fica tagarelando e conversando fiado sobre elas.

“Fé” é uma confiança viva e ousada na graça de Deus, com tanta certeza que morreria mil vezes por ela. E uma tal confiança e conhecimento da graça divina dá alegria, coragem e disposição perante Deus e todas as criaturas; é o que o Espírito Santo faz por meio da fé. Por isso, sem coação, todos se tornam voluntariosos e dispostos a fazer o bem, a servir a todos, a sofrer todo tipo de coisa por amor e em louvor a Deus, que manifestou semelhante graça; desse modo, é impossível separar a obra da fé; é tão impossível quanto separar a luz do fogo. Portanto, acautela-te contra teus próprios pensamentos equivocados e contra tagarelas inúteis que se fazem de inteligentes ao julgarem a fé e as boas obras, e são os maiores tolos. Peço a Deus que produza a fé em ti, caso contrário, tu talvez permaneças eternamente sem fé mesmo que cries e faças o que quiseres ou puderes.

A JUSTIÇA

“Justiça”, portanto, é essa fé e significa justiça de Deus, ou que vale perante Deus, já que é uma dádiva de Deus que leva o homem a dar a todos o que lhes é devido. Já que, por meio da fé, a pessoa se torna sem pecado e ganha disposição para cumprir os mandamentos de Deus; desse modo, ela honra a Deus e lhe paga o que Lhe é devido. Mas de bom grado, ela serve aos homens como puder, pagando assim a todos. Uma tal justiça, nem a natureza, nem o livre arbítrio, nem nossas forças podem produzir, pois, do mesmo modo que ninguém pode dar a fé a si mesmo, também não se pode eliminar a falta de fé. Como pretender afinal eliminar um único e minúsculo pecado? Por isso, está tudo errado, e não passa de hipocrisia e pecado o que acontece fora da fé ou em meio à falta de fé Rm 14 [23], por maior que seja o seu brilho.

CARNE E ESPÍRITO

Portanto, tu não deves entender aqui “carne” e “espírito” como se carne fosse apenas aquilo que se refere a impudicícia, e espírito o que se refere à interioridade do coração. Na realidade, Paulo chama de carne, tal como Cristo em Jo 3 [6], a tudo o que nasce da carne, a pessoa inteira, com seu corpo e sua alma, sua razão e todos seus sentidos. Por consequência, tudo nela se orienta segundo a carne, e a tu, portanto, compete chamar de carnal aquele que sem a graça muito inventa, ensina e tagarela sobre altos assuntos espirituais; isso tu podes aprender com as obras da carne, Gl 5 [20], visto que ele chama a heresia e o ódio de obras da carne. E, em Rm 8 [3], ele diz que a Lei se enfraquece por meio da carne: ele se refere não somente à impudicícia, mas também a todos os pecados, principalmente, porém, à falta de fé, que é o mais espiritual dos vícios.

Por outro lado, tu chamarás também de espiritual àquele que lida com as obras excessivamente exteriores, como Cristo ao lavar os pés dos discípulos, e Pedro ao conduzir o barco e pescar. Portanto, carne é a pessoa que interna e externamente vive e age de modo a servir aos interesses da carne e da vida temporal; espírito é a pessoa que interna e externamente vive e age de modo a servir ao espírito e à vida futura. Se não compreender desse modo tais palavras, tu jamais entenderás essa epístola de São Paulo, nem qualquer outro livro da Sagrada Escritura. Por isso, previne-te contra todos os mestres que usam essas palavras noutro sentido, seja quem for, ainda que sejam Jerônimo, Agostinho, Ambrósio, Orígenes e outros equivalentes ou mesmo superiores. Passemos agora à epístola.