samedi 23 avril 2016

Eclesiologia e revolução

A saga anabatista

Professor Dr. Jorge Pinheiro[1]

Texto e ilustração de Paloma Pinheiro

A história anabatista é uma saga ao estilo do cristianismo antigo, anterior à estabilização imperial pós-Constantino, de sangue, perseguições e martírios. E os eventos notáveis e feitos heróicos do movimento anabatista até hoje repercutem no imaginário protestante, levando alguns historiadores e teólogos a exorcizarem o movimento e seus líderes. 

Segundo Weber, o ascetismo laico do movimento anabatista[2] espraiou-se pela Europa Ocidental e Estados Unidos, nos séculos 16 e 17, dando origem, quer diretamente, quer por adoção, a novas formas de pensamento religioso, como aqueles dos batistas, menonitas e quakers. Um processo semelhante se deu no Brasil através dos batistas. Por isso, os evangélicos brasileiros não podem voltar as costas à história dos anabatistas. Afinal, as influências eclesiológicas e teológicas do anabatismo, herdadas pelos batistas, foram repassadas para as comunidades, igrejas e pensadores evangélicos brasileiros que em algum momento de sua história comungaram com o pensamento batista.[3]

Por isso, nesse trabalho, vamos fazer uma abordagem das origens do anabatismo, principalmente daquele de forte conteúdo social, a partir da leitura história e do uso da sociologia da religião como ferramentas, com a intenção de demonstrar que em sua prática o anabatismo construiu uma eclesiologia que formatou uma teologia e não o contrário. Mas como o nosso texto trabalha a relação entre a eclesiologia e a revolução camponesa e plebéia liderada pelos anabatistas, convém entender o que significa eclesiologia. Nós a consideramos o estudo teológico da realidade de comunidades de fé em seus aspectos estruturais: sua forma de se relacionar com o mundo, seu papel social e sua forma de governo. Por isso, vamos analisar o comunitarismo, que mais tarde foi caracterizado por Karl Marx e Friedrich Engels como socialismo utópico, enquanto construção político/religiosa marcante e central do movimento anabatista.

Os anabatistas eram cristãos reformados que se levantaram contra a hegemonia da Igreja católica e dos príncipes alemães. A partir da frase do Evangelho de Marcos (16.16), “quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”, deduziram que quem não crê de nada adiantou o batismo que recebeu quando pequeno. Então, negaram valor ao batismo de crianças, afirmando que aquele sacramento católico e reformado, só deveria ser recebido quando a pessoa tivesse plena consciência do que estava a fazer. Por isso, aqueles que tinham sido batizados antes de terem consciência do bem e do mal deveriam ser batizados de novo. 

O fato de levantarem a importância de escolha pessoal na opção pela caminhada cristã levou grupos e comunidades anabatistas a crescerem rapidamente. Mas, o crescimento dos anabatistas na Alemanha e na Europa central se tornou um problema para as autoridades eclesiásticas, afinal propunham às pessoas não batizar os filhos. Logicamente, os católicos e os reformados se colocaram em oposição direta a essa idéia. E como o poder eclesiástico estava ligado às forças do feudalismo ou às forças da burguesia emergente, ambos os lados optaram pelo extermínio dos anabatistas.

Primeira aproximação: Thomas Münzer

Para Engels, a descentralização, a autonomia local e regional, a diversidade comercial e industrial das províncias alemães e a insuficiência das comunicações foram os fatores que explicam o agrupamento das classes sociais da Alemanha no início do século 16 em três campos: o feudal nucleado ao redor do catolicismo; o burguês reformista, ao qual se aliaram os luteranos; e o plebeu/camponês liderado pelos anabatistas.[4]

É bom lembrar que na Alemanha medieval a Igreja católica tinha o monopólio da educação, o que fazia com que todo o ensino tivesse um caráter religioso. Nas mãos do clero católico estavam a política, a jurisprudência e o conhecimento, que era visto como extensão da teologia. E os dogmas do catolicismo, assim como a compreensão católica das Escrituras tinham força de lei em todos os tribunais. Dessa maneira, críticas ou ataques ao feudalismo traduziam-se em confronto com o catolicismo. 

A oposição ao feudalismo, começou bem antes do século 16, com os valdenses, albigenses, com as insurreições nos cantões suíços e foi tomando conta da Alemanha com as reivindicações religiosas, sociais e políticas que tomaram corpo como pensamento divergente. Os plebeus e camponeses alemães queriam o estabelecimento da igualdade cristã, que devia se traduzir em igualdade civil e social. Ou seja, a nobreza devia colocar-se ao nível dos camponeses, e os patrícios e burgueses no mesmo nível dos plebeus. Ou seja, reivindicavam, pela primeira vez na história, direitos cidadãos universais. Além disso, exigiam o fim das leis feudais, tais como obrigatoriedade dos serviços pessoais, tributos, privilégios e nivelamento das escandalosas diferenças no que se referia à propriedade. Dessa maneira, essas reivindicações democráticas levaram às reivindicações pelo estabelecimento de comunidades onde a propriedade e os bens fossem comunitários, o que era visto como a realização da promessa do Reino de Deus. 

Até 1525-1526, o movimento protestante era mais ou menos informal na Alemanha. Mas com as guerras camponesas, os conventos foram secularizados, o direito canônico abandonado e, com a recusa dos bispos de se associarem ao movimento pelas reformas, as autoridades civis foram empurradas a se tornar favoráveis às novas orientações e a se envolver na reorganização da igreja. Estas ações se inspiraram nas antigas visitas pastorais efetuadas antes pelos bispos. Os príncipes passaram, então, a visitar as paróquias, com delegações compostas de juristas e teólogos. A partir de 1530, criaram instituições permanentes com superintendentes, levando as igrejas a ficarem dependentes do príncipe que, de fato, substituiu o bispo. Nasceu assim a igreja territorial reformada. 

Em 1555, a Dieta de Augsbourg proclamou o princípio do “cujus regio, ejus religion” segundo o qual o príncipe ou uma outra autoridade podia determinar a religião das pessoas. A legislação e o órgão jurisdicional, em especial matrimonial, passaram para o poder do príncipe, que o entregava a uma instância jurídica: e o príncipe ou o magistrado das cidades passaram a ser a autoridade última em matéria de liturgia, doutrina ou nomeação de sacerdotes. Os bens eclesiásticos secularizados foram incorporados às possessões dos príncipes, ou geridos por administradores autônomos, em especial as escolas. Dessa maneira, passou a existir um controle sobre o comportamento religioso, e o estado jurídico e financeiro das paróquias, bem como sobre a doutrina e a vida moral dos pastores. 

Thomas Münzer e outros dissidentes do protestantismo reformado procuraram mobilizar seus pares e exigir das autoridades políticas liberdade de expressão e de ação religiosas e criaram comunas autônomas, proibindo os seus adeptos de exerceram funções políticas no Estado. Entre suas ações, Münzer suprimiu completamente o uso do latim, em 1522, antes de Lutero. Em Altstadt, nos cultos que dirigia vinha gente de todas as partes ouvi-lo. Seus ataques voltaram-se em especial contra o clero católico, chamando os príncipes e o povo à intervenção armada contra a Igreja católica.

“Não disse Cristo, vim trazer-vos não a paz, porém a espada? E que deveis fazer com ela? Nada, senão afastar a gente má que se opõe ao Evangelho. Cristo ordenou com grande severidade (Lucas 19.27): quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu os governasse, trazei-os aqui e matai-os diante de mim... Não vos valhais do vão pretexto de que o braço de Deus deve faze-lo sem ajuda da vossa espada que bem poderia enferrujar-se na bainha. Os que se oponham à revelação divina que sejam aniquilados sem piedade, como Ezequiel, Ciro, Josias, Daniel e Elias destruíram os pontífices de Baal; de outro modo a Igreja cristã não pode retornar à sua origem. Na época da vindima temos que arrancar a erva daninha das vinhas do Senhor. Deus disse (Deuteronômio 7.5): nem terás piedade dos idólatras;... deitarás abaixo seus altares... e queimarás a fogo as suas imagens de escultura... Porque tu és um povo santo e Jeová teu Deus...” [5]

Münstzer, segundo Tillich, foi o mais criativo dos evangélicos radicais e acreditava que o Espírito podia sempre falar por meio das pessoas. No entanto, para se receber o Espírito era preciso participar da cruz. 

“Lutero, dizia ele, prega um Cristo doce, um Cristo do perdão. Devemos também pregar o Cristo amargo, o Cristo que nos chama a carregar sua cruz.” [6]

Assim, os anabatistas atacavam a teologia de Lutero a respeito das Escrituras, porque consideravam que Deus não falara apenas no passado, tornando-se mudo no presente. Mas que sempre falou e fala nos corações ou nas profundezas de qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua própria cruz. O Espírito habita nas profundezas do coração. A cruz, explica Tillich, representava a situação limite, era externa e interna. 

“Surpreendentemente, Münzer expressa esta idéia em termos existencialistas modernos. Quando percebemos a finidade humana, desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos pobres de espírito. O homem é tomado pela ansiedade de sua existência de criatura e descobre que a coragem é impossível. Nesse momento Deus se manifesta e ele é transformado. Quando isso acontece, o homem pode receber revelações especiais. Pode ter visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas sobre assuntos de vida diária”.[7]

Nessa conjuntura de choque, em Zurique, na Suíça, no meio dos seguidores do reformador Zwinglio, surgiu um grupo de cristãos que rejeitou o poder eclesiástico, fosse ele católico ou reformado, exigindo a autonomia das comunidades cristãs. Assim, os anabatistas fundaram sua primeira comunidade no dia 21 de janeiro de 1525. E eles próprios passaram a escolher seus pastores e a construir comunidades separadas do estado. 

Mas, no sul da Alemanha, sem dúvida, foi Thomas Münzer quem se levantou como defensor de uma proposta de revolução social camponesa. Em 1521, liderou um grupo de anabatistas que se somaram aos camponeses sublevados ao redor da reivindicação de terra e liberdade. Münzer criou, assim, pela primeira vez na história um movimento de libertação camponês anabatista. 

Münzer não foi apenas um pensador, mas um militante que praticava a fé. Acreditava ser um profeta, chamado para implantar o Reino de Deus. Considerava ser seu dever denunciar e executar as sentenças contra os governantes que exploravam o povo. Suas pregações estavam impregnadas de conteúdo social e político: o fim da velha Igreja deveria marcar o inicio de uma nova ordem social. 

Engels, que junto com Marx foi um dos pais do socialismo científico, considerou as guerras camponesas lideradas pelos anabatistas como combates sociais. Afirmou que “se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito de representar, em suas lutas com a nobreza, além dos seus interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao lado de todo grande movimento burguês que se desatava, eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o precedente mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. Tal foi na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha, a tendência dos anabatistas e de Thomas Münzer”.[8]

Considerou que, apesar de terem uma face cristã reformada, as reivindicações anabatistas iam além da expressão religiosa que apresentavam. Para Engels,[9] a política de Münzer nasceu de seu pensamento revolucionário, que caminhava adiante da situação social e política de sua época. Seu programa propunha o estabelecimento do Reino de Deus, com o milênio de justiça, paz e felicidade, com a supressão de todas as instituições que se encontravam em contradição com o mandamento do amor.

Para Münzer, o céu estava aqui no chão. E, por isso, o cristão deveria construí-lo na vida. A esse cristão anabatista cabia a missão de estabelecer o Reino de Deus sobre a terra. Seus sermões eram clamores políticos e estavam dirigidos a instaurar uma nova ordem social. A partir de Münzer, os anabatistas fizeram dos sermões proféticos, elaborados a partir da realidade social em que estavam inseridos, manifestos revolucionários, cujas propostas atemorizavam as autoridades, governantes eclesiásticos e príncipes de toda a Europa. 

A crise econômica fruto exploração agrícola predatória e extensiva; a crise demográfica, por causa das epidemias e fome; a crise social gerada com o surgimento da burguesia e dos assalariados; a crise clerical, devido às contradições e o enfraquecimento da Igreja católica e a crise espiritual ocasionada pelo surgimento de novas leituras do cristianismo fizeram da baixa Idade Média um período de alta instabilidade e angústia coletiva. Milhares de camponeses sem terra e plebeus desempregados vagavam pelos campos e cidades. Essa situação levou às propostas de construção de comunidades formadas por camponeses e plebeus, onde pudessem viver e trabalhar juntos, num sistema de vida em comum com os bens partilhados, disponíveis segundo as necessidades das pessoas e famílias. E, de fato, os anabatistas organizaram comunidades com este formato, organizações baseadas na propriedade social autônoma em relação ao Estado e aos poderes eclesiásticos e laicos da época, em primeiro lugar católico e depois reformado.

Dessa maneira, a compreensão que os anabatistas tiveram de que o cristianismo era uma ferramenta para a mudança da condição social em que se encontravam os camponeses e deserdados da terra, sem dúvida, partiu de suas próprias experiências de vida e trabalho e quebraram o paradigma de que a fé devia estar alienada da vida social e política. 

Mais tarde, em combate, e exército d e Münzer foi derrotado e ele foi preso, torturado e executado. Mas a guerra camponesa na Alemanha se estendeu até 1525, quando os anabatistas revolucionários foram afogados em sangue. O conflito, que teve lugar nas áreas do sul, centro e oeste da Alemanha, também afetou regiões vizinhas na Suíça e Áustria, e envolveu no seu auge, no verão de 1525, cerca de 300 mil camponeses. Estimativas da época situaram o número de mortes em torno de 100 mil camponeses e plebeus.

O sonho anabatista, porém, não morreu aí, subsistiu no coração de milhares de cristãos. Vejamos alguns exemplos. Sete anos depois da morte de Münzer, em 1532, uma insurreição tomou conta da cidade de Münstzer. Ela foi iniciada por um ex-padre da Catedral de Münstzer, que se tornou luterano, Bernard Rothmann, e acabou sendo expulso da cidade. Dois anos depois, em 1534, o pastor anabatista Jan Matthys, junto com outros líderes, entre os quais Jan van Leiden e Gert Tom Kloster, declarou a cidade de Münstzer livre do domínio dos príncipes e do poder eclesiástico. 

Matthys iniciou uma revolução social: os proprietários de terras foram expropriados e suas terras e bens distribuídos entre os camponeses. Dando seqüência à revolução, ele e um grupo de anabatistas atacaram a guarnição liderada pelo príncipe Franz von Waldeck, que era bispo de Münstzer e também chefe do exército. No confronto Matthys foi morto. Foi, então, sucedido por Jan van Leiden. Após um ano de resistência, Waldeck liderou um exército bem equipado e assaltou a cidade. Jan van Leiden e seus oficiais foram presos, torturados e executados. Os combatentes anabatistas foram lançados às prisões e, posteriormente, deportados para outras regiões da Alemanha e Suíça. 

A partir desse momento as comunidades anabatistas passaram a viver umas isoladas das outras, de forma clandestina. Seus líderes eram leigos que pregavam em roupas civis. Adotaram uma disciplina e uma ética rígidas a fim de sobreviverem na clandestinidade. Essas pequenas comunidades se refugiaram no interior da Europa e se estruturaram de forma autônoma. Cada comunidade de fé sobrevivia do compromisso de serviço e financeiro de seus afiliados.

Segunda aproximação: a Confissão ante o Concílio de Nuremberg

Depois da morte de Münzer, Hans Denck (1500-1527) surgiu como o reformador do destino anabatista. Em 21 de janeiro de 1525, Denck deixou Nuremberg para nunca mais retornar. No curso do ano e meio seguinte, sofreu o mesmo destino em outras cidades no sul da Alemanha e Suíça: foi expulso delas devido ao seu espiritualismo radical. Uniu-se aos anabatistas do sul da Alemanha e se tornou seu líder mais eloqüente até sua morte precoce pela peste em 1527. 

A diferença entre Münzer e Denck repousou sobre o Cristo internalizado. E é a partir do Cristo internalizado que Denck construiu uma eclesiologia alternativa à hierarquia católica, à exegese dos reformadores e apontou um novo caminho para o anabatismo. Para Denck, a presença do Cristo internalizado era mais importante do que o próprio batismo de adultos e, inclusive, as Escrituras. E essa transformação interna do cristão deveria ser construída através das experiências de vida, das lutas internas e externas que enfrenta e do sofrimento. Se a teologia de Münzer tinha duas faces, uma de transformação interna, pessoal, no poder do Espírito, e outra de transformação social, que se correlacionavam numa visão revolucionária do Reino de Deus, a teologia de Denck foi construída em cima de uma única via, a da revolução interna das pessoas. Assim, a teologia de Denck repousou sobre a renovação das pessoas, de expressão não violenta, e não sobre a revolução da sociedade. 

Foi a partir dessa concepção que Denck modificou as perspectivas revolucionárias de Münzer, exortando os fiéis a manter suas espadas embainhadas até que Deus desse a ordem para que as utilizassem. Denck, no sul da Alemanha, abriu o caminho para o anabatismo da não violência, sugerindo também que os fiéis não mais se organizassem em comunidades separatistas, isoladas da sociedade. 

Sua “Confissão Ante o Concílio de Nuremberg” é parte da herança teológica dos irmãos hutteritas, dos menonitas e dos pietistas alemães, e seus escritos influenciaram os trabalhos de espiritualistas como Frank[10] (1495–1592) e Schwenckfeld[11] (1490-1561). Nessa Confissão ele expõe sua compreensão da fé, das Escrituras Sagradas, do Espírito Santo, da justiça, do batismo e da ceia do Senhor. Vejamos alguns trechos da Confissão de Denck.

“Eu, Hans Denck, confesso que verdadeiramente considero, sinto e percebo que por natureza sou uma pessoa pobre de espírito, sujeito a toda doença do corpo e da alma. (...) Eu queria muito ter fé, isto é, vida. Mas, como isso não é alicerçado completamente dentro de mim, não posso enganar nem a mim mesmo, nem aos outros. De fato, se digo hoje, eu creio, eu posso, contudo, amanhã reprovar a mim mesmo por mentir, ainda que não eu, mas a verdade, que percebo imperfeitamente em mim. (...) Quanto a essa fé, não ouso dizer que a tenho, pelo motivo declarado. Pois vejo que a minha incredulidade não pode estar diante Dele. Por isso, digo: Muito bem, então, no nome do onipotente Deus, a quem eu temo do fundo do meu coração. Senhor, eu creio, ajuda-me na minha incredulidade!” 

“A Sagrada Escritura, o farol, brilha na escuridão, mas não pode por si mesma (por ser escrita por mãos humanas, falada por boca humana, vista por olhos humanos e ouvida por ouvidos humanos) remover plenamente a escuridão. Mas, quando o dia, essa luz eterna, amanhece, quando a estrela da manhã – que a fé como um grão de mostarda anuncia para breve o sol da justiça do Cristo – nasce em nossos corações, como a Sagrada Escritura também testemunha acerca do patriarca Jacó, então apenas assim a escuridão da incredulidade é superada. Isso ainda não está em mim. Enquanto tamanha escuridão está em mim, é impossível que possa entender completamente a Sagrada Escritura. Mas, se não a entendo, como deveria então tirar a fé disso? Isso significaria que a fé origina-se de si mesma se eu alegasse isso antes de ser revelado a mim por Deus. De fato, aquele que não quer esperar a revelação de Deus, mas presume o trabalho que pertence unicamente ao Espírito de Deus, certamente faz pouco do mistério de Deus, documentado na Sagrada Escritura -- uma abominação dissoluta diante de Deus -- e perverte a graça do nosso Deus em libertinagem, como é apontado nas epístolas de Judas e 2Pedro”.

“Essa é a minha posição com a qual me apego, de bom grado, para o amor e a honra de Deus e para o mal e a desgraça de ninguém, exceto o que não está na verdade. Disto é em parte percebido facilmente por aquilo que me atém com respeito à Sagrada Escritura: pecado, justiça de Deus, lei, e evangelho. Contudo, para brevemente me explicar, falo dessas quatro últimas da seguinte forma: incredulidade sozinha é pecado, o qual a justiça de Deus extirpa através da lei. Tão logo a lei perde essa função, o evangelho toma o seu lugar. Pelo ouvir da mensagem a fé vem. Fé não tem pecado. Onde não há pecado, a justiça de Deus habita. Assim, a justiça de Deus é o próprio Deus. Pecado é o que cresce sozinho contra Deus; isto na verdade não é nada”.

“A justiça trabalha através da palavra que estava desde o início e é dividida em duas, subsequentemente, lei e evangelho, por causa da posição dupla a qual Cristo como Rei da justiça pratica, a saber: extirpar a incredulidade e trazer a vida aos crentes. Sendo assim, todos os crentes eram outrora incrédulos. Consequentemente, tornando-se crentes, desse modo primeiro tiveram que morrer na condição de que eles não poderiam mais viver para si mesmos como um não crente faz, mas para Deus através de Cristo é que eles podem caminhar de fato não sendo tanto na terra, mas no céu, como disse Paulo. Davi também comprovou isso quando ele disse: “O Senhor faz descer à sepultura e dela resgata”. Em tudo isso eu creio (Senhor, esmague minha incredulidade) verdadeiramente, agora na expectativa, de quem quer que deseje negar e derrubar isso. Por isso, eu intento também registrar que eu creio no batismo e na ceia do Senhor. Agora meu tempo é curto. O Senhor esteja conosco. Amém”. 

“A poderosa palavra de Deus sozinha é capaz de sobrevir e penetrar dentro do abismo da impureza do homem, exatamente como um solo árido é preparado pela boa chuva. Onde isso acontece, nasce o conflito no homem antes da natureza ceder, e resulta em desespero, então se presume que ele deve perecer de corpo e alma e que poderá não suportar o trabalho que Deus começou. Como acontece quando chega uma grande enchente que a terra não pode agüentar, mas é lavada. Em grande desespero Davi disse: ´Senhor Deus, ajuda-me, pois as correntezas subiram até a minha alma´. Mas tamanho desespero, embora grande ou pequeno, dura tanto quanto o eleito está em seu corpo, e o trabalho de Cristo começa imediatamente após isso. Por isso, não apenas João Batista, mas também os apóstolos de Cristo batizaram-se nas águas. A razão: tudo que não sobrevive à água pode de fato tolerar menos o fogo, pois o batismo de Cristo é no Espírito, a perfeição de seu trabalho. Essa água ou batismo santifica (1 Pe 3), não que ela remova a sujeira do corpo, mas por causa do compromisso de uma boa consciência diante de Deus”.

“Esse compromisso significa que, aquele que se deixa ser batizado o faz perante a morte de Cristo, que morreu assim como este também morre para Adão; como Cristo ressuscitou, ele também caminhará na nova vida de Cristo, de acordo com Romanos 6. Onde está esse compromisso, o Espírito de Cristo está junto e acende o fogo do amor, que consome completamente o que permanece enfermo, e completa a obra de Cristo. Depois disso acontece o Sabbath, o eterno descanso em Deus, acerca do qual todas as línguas se calam. Onde o batismo formal exala o compromisso anteriormente mencionado, é bom. Onde não acontece isso não serve para a razão indicada. O batismo formal não é preciso para a salvação; como Paulo disse, ele não foi enviado para batizar, o que seria desnecessário, mas para pregar o evangelho é necessário. Mas, o batismo interno, acima mencionado, é necessário. Como está escrito, quem crer e for batizado será salvo”. 

“Aquele que, portanto, em lembrança come o invisível pão vivo, sempre será fortalecido e capacitado na vida justa. Aquele que, portanto, em lembrança bebe do vinho invisível do cálice invisível, o qual Deus desde o início verteu através de seu Filho, através da palavra, torna-se exaltado e não mais sabe nada sobre si mesmo, mas através do amor de Deus torna-se divino e Deus está humanizado nele. Isso é denominado ter comido o corpo de Cristo e ter bebido o sangue de Cristo, João 6. De fato, aquele que, portanto, em lembrança, tão frequentemente quanto lembra do que o Senhor diz, isto é, tão frequentemente come o pão e bebe do cálice, celebra e proclama a morte do Senhor. Assim sendo, para aquele que, entretanto, fisicamente também come e bebe, isso é verdadeiramente benéfico e saudável para o corpo porque o corpo se sujeita ao Espírito e também o serve em verdade”. 

“O comer alegra e fortalece, o beber acende o amor e aperfeiçoa aquilo para o que Cristo veio, a purificação do pecado que realizou-se no derramamento do sangue de Cristo. Assim sendo, o que foi dito acima diz respeito ao pão visível, também podendo ser aqui referente ao cálice. O mesmo pode viver sem esse pão exterior através do poder de Deus onde quer que sua glorificação o requerer, como fez Moisés no Monte Sinai e Cristo no deserto. Sem o pão interior ninguém pode viver. O justo vive pela fé. Aquele que não crê, não vive. Tudo isso eu confesso do fundo do meu coração diante da face do Deus invisível, para quem através dessa confissão devo me submeter humildemente; não deveria dizer “eu”, mas ele propriamente me sujeita a Ele, não por Ele mesmo, mas para todas as criaturas Nele. Não obstante, eu imploro a todas as criaturas e a sua sabedoria, que está nas mãos de Deus, através do terrível e grande nome de Deus, para julgar-me e aos meus irmãos presos, a quem amo em verdade, não de acordo com a aparência, mas de acordo com a verdade. Assim também o Senhor julgará quando ele vier em sua glória no dia da revelação de todos os mistérios. Amém. Amém”.[12]

Assim, Denck na sua Confissão caminhou na direção de uma ética do Novo Testamento internalizada nos corações, que deveria levar os crentes a aplicá-la no dia-a-dia. Não eliminou o poder formativo da eclesiologia comunitária, mas privilegiou uma compreensão carismática da espiritualidade. Essa internalização da fé deslocou a proposta de revolução religiosa, social e política. Se antes, com Münzer o combate aos poderes do mundo nasciam do caráter incondicional da justiça de Deus e do caráter concreto da situação histórica, com Denck a realidade da graça era espiritualidade privatizada. De todas as maneiras, permanecia a compreensão de que nenhuma hierarquia pode se apoderar do direito à graça e exigir que os cristãos se submetam ao arbítrio na busca pela salvação. E, assim, o sonho anabatista permaneceu: a fé é humana, mas não vem do humano, embora se realize no humano. A graça é pregada e assim vem a fé. Ter fé significa ser tomado e transformado pela graça, e isso acontece na materialidade das vidas.

Terceira aproximação: a Confissão de Schleitheim

A derrota da revolução e as idéias espiritualistas, de Denck e de outros pregadores, levaram a uma síntese. De fato, o anabatismo tinha vindo para ficar. E mesmo perseguidos ou clandestinos, continuavam a celebrar o batismo adulto por infusão como símbolo de reconhecimento e obediência a Cristo. E o apelido pejorativo transformou-se em definição teológica: anabaptista, "re-baptizador", do grego "ana" e "baptizo". Em alemão, Wiedertäufer, porque seus convertidos eram batizados em idade adulta. Continuavam a celebrar, também, a Ceia do Senhor, que para eles não transmitia graça, mas era ato in memoriam à morte e ressurreição de Jesus Cristo. Continuavam, ainda, a afirmar a autoridade da comunidade em disciplinar seus membros e até mesmo definir sua expulsão, a fim de manter a pureza das pessoas e da comunidade de fé. E quanto à salvação, caminhando no sentido contrário ao da Reforma, acreditavam no livre-arbítrio, defendendo que todas as pessoas têm a capacidade de se arrepender de seus pecados, que Deus as regenera e as ajuda a andar em uma vida transformada. 

Essa proposta eclesiológica/teológica foi expressa na Confissão de Schleitheim, de 1527,[13] que reagrupou comunidades anabatistas ao redor das sete teses de Schaffhouse, que podem ser sintetizadas assim: (1) o batismo está reservado aqueles que aceitam a fé, quer dizer, aos adultos seguros da redenção, que desejam viver fielmente a mensagem do Cristo; (2) a ceia do Senhor não é simbólica: é uma cerimônia de lembrança feita com pão e vinho, mas nela não há nem consubstanciação, nem transubstanciação; (3) o pastor é eleito livremente pela comunidade e não está investido do sacerdócio; (4) estão excluídos da ceia do Senhor todos os fiéis que caíram em erro ou pecado; (5) a separação do mundo é total: tanto eclesiástica como política. É necessário se separar de todas as instituições que não vivem o Evangelho; (6) um anabatista não pode exercer funções civis e nunca servir às forças militares do mundo; (7) ele não deve jamais fazer juramento.

A partir desse documento, um dos mais divulgados do anabatismo, possivelmente redigido pelo mártir Miguel Sattler,[14] a eclesiologia anabatista está definida: o batismo só deveria ser concedido aos que conheceram o arrependimento e mudaram de vida, para que entrassem na ressurreição de Jesus Cristo. Os que estavam no erro não podiam ser excomungados sem antes serem advertidos três vezes e isto deveria ser feito antes do partir o pão, para que a comunidade permanecesse unida. A ceia do Senhor era só para os batizados e era um serviço comemorativo. Entre os alertas que fazia, estavam: os membros deviam deixar o culto católico e protestante; não deviam tomar parte dos negócios públicos, que eram na sua maioria imoral; deviam renunciar à guerra e às armas de fogo. Os pastores deviam ser sustentados pelas congregações, a fim de poderem ler as Escrituras, assegurar a disciplina da comunidade e dirigir a oração. Se um pastor fosse expulso ou martirizado, deveria imediatamente ser substituído, e ordenado outro, para que o rebanho de Deus não fosse destruído. A espada destinava-se aos magistrados temporais, a fim de poderem castigar os maus, mas os cristãos não deviam usá-la, mesmo em legítima defesa, como também não deviam recorrer à lei ou tomar o lugar dos magistrados. Eram proibidos os juramentos.

Na confissão de Schleitheim vemos que eclesiologia, teologia e política se correlacionaram formando um todo teórico coerente. E essa confissão se tornou a coluna mestra do movimento anabatista e, no século seguinte, marcou o pensamento dos Batistas Gerais na Inglaterra.[15]

A olhar o futuro

À guisa de finalização, é necessário dizer que, ao analisar a teoria social dos anabatistas, de contrapor as políticas de poder ao amor cristão, vemos que desejavam o estabelecimento do Reino de Deus na terra, o reino milenar dos profetas. Tal Reino seria uma sociedade sem diferenças de classes, sem propriedade privada e sem autoridade estatal independente ou externa aos membros da sociedade. É claro, que na construção dessa eclesiologia sócio-política não podemos esquecer a dimensão religiosa do milenarismo de Münzer, sua força espiritual e moral, sua experimentada e autêntica profundidade mística. Sem dúvida, encontramos nas propostas anabatistas uma síntese das reivindicações plebéias e camponesas daqueles tempos, que antecipou os movimentos socialistas de outras revoluções camponesas e proletárias. Mas essa dimensão sócio-política não pode ser entendida em toda a sua riqueza se for separada da dimensão utópica milenarista dos cristãos anabatistas.

As comunidades de fé anabatistas rejeitaram qualquer forma de poder representado na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitar as políticas de poder da sociedade feudal e de submissão ao poder dos príncipes, optaram pela construção de uma nova sociedade, de uma nova política, de uma eclesiologia, e, por extensão, de um novo cristianismo. E, nesse contexto, até mesmo a expressão “movimento anabatista” precisa ser reconsiderado, já que não podemos falar de uma reforma anabatista como falamos de uma reforma luterana, zwingliana ou calvinista. Os anabatistas não estabeleceram chefes espirituais, nem código de doutrina amplamente aceito e de consenso, nem órgão central dirigente. Não influenciaram governos, não modelaram sociedades nacionais, não conservaram uma administração política. 

Neste sentido, a revolução anabatista desembocou na reflexão não violenta de Denck, que não podemos caracterizar como pacifismo. Sem dúvida, diferia do separatismo anabatista, revolucionário e de confronto, que historicamente propôs a radical separação entre igreja e Estado em nome da liberdade e da justificação pela fé, mas não era ainda uma proposta pacifista. Afinal, o separatismo revolucionário, que via o fracasso das políticas de poder como impedimento para a manifestação do Reino de Deus, ainda estava muito presente na vida e memória dos fiéis. 

A teologia anabatista, que podemos dizer existencial e humanista, fazia a crítica da política vigente e propunha o enfrentamento físico dos poderes do mundo. Traduzia uma atitude política consciente. Tal espiritualidade permaneceu sob a proposta não violenta e espiritualista de Denck e da confissão de Schleitheim e se espraiou pela Europa, traduzindo-se em novas construções religiosas, entre as quais podemos citar menonitas e batistas. 

Na Inglaterra, principalmente durante o período de Oliver Cromwell (1599-1658) e da revolução puritana (1625-1660) as idéias anabatistas retornaram com força, não mais com sua marca separatista, mas como missão moral de transformação. Aliás, o próprio Cromwell foi criticado por ter franca empatia pelos anabatistas. E são nesses anos que cobrem a primeira metade do século 17, que os batistas, muitos dos quais antigos anabatistas, vão construir uma nova identidade religiosa. E talvez o batista que melhor expressou essa realidade foi William Dell, que considerou o uso da coação uma invenção humana, algo deletério que não tinha lugar no Reino de Deus. Dell escreveu um livro chamado “Uniformidade Examinada” e apoiou a revolução dirigida por Cromwell.

Assim, podemos dizer que fatores religiosos, sociais e políticos, entre os quais a revolução camponesa e plebéia de 1525, levaram à construção da eclesiologia anabatista. Tal eclesiologia traduziu a realidade das comunidades anabatistas nos seus confrontos e relacionamentos com o mundo feudal e burguês reformado, em seu papel social e na forma comunitária e democrática de governo dessas comunidades.

A matriz eclesiológica anabatista permanece presente hoje, com releituras e contextualizações, em parte das igrejas evangélicas brasileiras. Por isso, entender que tal eclesiologia não deve estar separada de uma ética política e social é caminho para repensar a missão das comunidades de fé nesta alta modernidade. Tal eclesiologia deve utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca. Mas, é necessário entender que quem rejeita todo poder, rejeita políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, como no caso da revolução anabatista, desde que as comunidades de fé tenham consciência do que estão fazendo e, coerentemente, proponham a revolução do mundo. Mas as comunidades de fé que repousam sua relação com o mundo numa eclesiologia de tipo anabatista não precisam se omitir diante da política e do poder, mas a partir da não violência ativa podem favorecer a expansão do Reino de Deus, ou seja, trabalhar pela justiça, pela paz e pela alegria. Têm-se, então, uma política cristã, que nasce participativa e se espraia como representativa.


Bibliografia

Balthasar Hubmayer (1527) in George H. Williams e Angel M. Mergel, Spiritual and anabatist writers, Filadélfia, TheWestminster Press, 1957, pp. 112-135.
Clarence Bauman, Spiritual Legacy of Hans Denck: Interpretation and Translation of Key Texts, Brill Academic Publishers, 1990. 
Cornelius J. Dyck, editor, Uma introdução à história menonita, Campinas, Editora Cristã Unida, 1992.
Friedrich Engels, “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, in Karl Marx e Friedrich Engels, Textos, volume I, São Paulo, Edições Sociais, 1975.
______________, As guerras camponesas na Alemanha, São Paulo, Editorial Grijalbo, 1977.
Jean Séguy, Les Assemblés Anabaptistes Mennonites de France, Paris e La Haye, Mouton, 1977.
John Denck (1526) in George H. Williams e Angel M. Mergel, Spiritual and anabatist writers, Filadélfia, TheWestminster Press, 1957, pp. 86-111.
J-M. Mayeur, Ch. Pietri, A. Vauchez, M. Venard, "Les Réformateurs radicaux" in Marc Lienhard, Histoire du Christianisme des origines à nos jours (vol. 7, "De la réforme à la Réformation (1450-1530), Desclée, 1994, pp. 830-850.
Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paula, Editora Pioneira, 1998.
Paul Tillich, História do pensamento cristão, São Paulo, ASTE, 2000.
Série Documents Anabaptistes de l'École Biblique Mennonite Européenne (Centre de Formation et de Rencontre du Bienenberg), Bienenberg, 4410, Liestal - Suisse: No. 1, "Lettres de Conrad Grebel à Thomas Münstzer" (1973, 1975). 
Thomas Münstzer (1524) in George H. Williams e Angel M. Mergel, Spiritual and anabatist writers, Filadélfia, TheWestminster Press, 1957, pp. 47-70.
Titus Guenther, “Las teologías del Tercer Mundo y la identidad anabautista”, in Luis Scott e Titus Guenther, Del Sur al Norte, Aportes teológicos desde la periferia, Buenos Aires, Kairós, 2003, pp. 51-91.
Wilhelm Zimmermann, Allgemaine Geschichte des grassen Bauernkrieges (História da Grande Guerra Camponesa), vols 1-3, Sttutgart, 1841-1843. 


Notas
[1] Jorge Pinheiro dos Santos é Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Doutor e Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Tem graduação em Jornalismo pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Chile e em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É professor de Teologia e História na Graduação e no Mestrado da Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Entre seus livros publicados estão “Deus é Brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus”, São Paulo, Fonte Editorial, 2008; “História e Religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico”, São Paulo, Editora Vida, 2007; “Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira”, São Paulo, Fonte Editorial, 2007; “A Forma da Religião”, Etienne Higuet e Jaci Maraschin (orgs,), vv.aa., São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2006; “Teologia e Modernidade”, Etienne Higuet (org.), vv.aa., São Paulo, Fonte Editorial, 2005; “Ética e Espírito Profético, revisitando a História com Paul Tillich”, São Paulo, Ed. Igreja sem fronteiras, 2002; e “Somos a imagem de Deus, ensaios de antropologia teológica”, São Paulo, Ágape Editores, 2001. 
[2] Max Weber, «Anticritique à propos de l´esprit du capitalisme» (1910), in L’Ethique protestante et l’esprit du capitalisme, Paris, NRF Gallimard, 2003, traduction de Jean-Pierre Grossein, pp. 344-380. Ver também: Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo, Editora Pioneira, 2000, pp. 102, 196-197. 
[3] John Smyth (†1617), ministro anglicano, desejava uma radical reforma do cristianismo inglês. Discordava da organização episcopal anglicana por considerá-la superficial. Formou em Gainsborough uma comunidade dissidente no ano de 1604. Foi perseguido pelo anglicanismo oficial e obrigado a exilar-se com seus companheiros, fugindo para Amsterdã, na Holanda. Ali passou a residir na casa de um padeiro menonita, que lhe expôs a eclesiologia e a teologia anabatistas. De volta à Inglaterra, ele e seus companheiros fundaram a primeira Igreja batista, que ficou conhecida como a igreja dos Batistas Gerais, porque ensinava que Cristo salvara na cruz todos os fiéis e não apenas os predestinados. Segundo Weber, dos batistas, só os Batistas Gerais tiveram suas origens no movimento anabatista (Weber, op.cit. p. 196). 
[4] Friedrich Engels, As guerras camponesas na Alemanha, São Paulo, Editorial Grijalbo, 1977, p. 37. 
[5] Friedrich Engels, idem, op. cit., p. 47. 
[6] Paul Tillich, História do pensamento cristão, O conflito de Lutero com os evangélicos radicais, São Paulo, ASTE, 2000, p. 238.
[7] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 238. 
[8] Friedrich Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico, in Karl Marx e Friedrich Engels, Textos, volume I, São Paulo, Edições Sociais, 1975, p. 28. 
[9] No prefácio do seu livro As guerras camponesas na Alemanha, Engels conta que utilizou como fonte para as pesquisas das insurreições camponesas e de Thomas Münzer o trabalho do historiador Wilhelm Zimmermann (1807-1878), que publicou Allgemaine Geschichte des grassen Bauernkrieges (História da Grande Guerra Camponesa), em três volumes, em Sttutgart nos anos 1841-1843. 
[10] Sebastian Frank foi escritor e impressor. Expulso de Strasbourg por ordem das autoridades de Ulm, em 1544, reeditou a Vulgata latina a partir de uma versão revista por Servet. Em 1557, foi preso em Frankfurt por ter impresso um texto sobre a guerra de Schmalkalden. Também editou poetas latinos expurgados pela Igreja Católica. 
[11] Caspar Schwenckfeld von Ossig foi um nobre alemão que se converteu ao protestantismo reformado, mais especificamente ao espiritualismo anabatista. Foi um dos promotores da Reforma na Silésia. Schwenckfeld chegou às idéias reformadas através de Thomas Müntzer e Andreas Karlstadt. Divergiu de Lutero em relação à Ceia do Senhor (1524) e seu pensamento influenciou o anabatismo, o puritanismo na Inglaterra, e o pietismo. 
[12] Hans Denck, "Confession before the Nuremberg Council, 1525", in Jaroslav Pelikan, Valerie Hotchkiss (orgs.), Creeds and Confessions of Faith in the Christian Tradition , vol. II, New Haven, Connecticut, Yale University Press, 2003, pp. 665-672. Tradução para o português de Paula Coatti. 
[13]"The Schleitheim Confession, 1527", in Jaroslav Pelikan, Valerie Hotchkiss (orgs.), Creeds and Confessions of Faith in the Christian Tradition , vol. II, New Haven, Connecticut, Yale University Press, 2003, pp. 694-703. 
[14] "The Schleitheim Confession, 1527", in Jaroslav Pelikan, Valerie Hotchkiss (orgs.), op. cit., p. 695. 
[15] “As seitas batistas desenvolveram a mais radical desvalorização de todos os sacramentos como meios de salvação e realizaram assim, até as últimas conseqüências, a desmistificação religiosa do mundo”. Weber, op. cit., p. 104.

jeudi 21 avril 2016

Sou negra e bela!

Sou negra e bela! 

Jorge Pinheiro, PhD 


“Oh mulheres de Jerusalém, eu sou negra e bela. Sou negra como as barracas do deserto, como as cortinas do palácio de Salomão". Cantares de Salomão 1.5. 

Afrobrasilidade: este é um assunto sobre o qual não temos nos debruçado muito. Quando falamos afrobrasileiras estamos nos referindo às nossas conterrâneas com ascendência da África subsaariana ou à influência cultural trazida pelos escravos africanos para o Brasil. Atualmente, no mundo, o Brasil é o país com a maior população de origem africana fora da África. Segundo o IBGE, os negros autodeclarados representam 6,3% e os pardos 43,2% da população brasileira, ou seja, oitenta milhões de brasileiros. E estudos genéticos dizem que 86% dos brasileiros apresentam mais de 10% de contribuição da África subsaariana em seu genoma, mesmo quando não apresentam fenótipos característicos de populações negras. [1] 

Mas, hoje, queremos pensar a afrodescendência a partir de uma história bíblica. E das diversas maneiras que foi lida no correr dos séculos.

Uma história de amor

Os leitores certamente se lembrarão das imagens de amor deste que é considerado um dos mais belos poemas da humanidade: o livro de Cantares de Salomão. Mas, a moça em torno da qual gira a narrativa é motivo de acirrada polêmica, principalmente para as teólogas e teólogos negros. Segundo a ensaísta norte-americana Peggy Ochoa, o livro de Cantares traz à tona os detalhes dolorosos da animosidade entre grupos étnicos no reinado de Salomão.

Para muitos estudiosos, aqui estamos diante de uma constatação: a Sulamita, mulher inspiradora dos poemas de amor do livro de Cantares era uma bela negra. E quando as filhas de Jerusalém, que faziam parte da elite ligada à corte protestaram ao descobrir a paixão do rei, a Sulamita respondeu ao clamor preconceituoso com a famosa afirmação: "Eu sou negra e formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão" (Cantares 1.5).

Na versão inglesa King James, a Sulamita diz nos versículos 5 e 6 (ênfase minha): "I am black, BUT comely". E na Bíblia hebraica lemos assim o mesmo texto, em representação fonética e ênfase minha: "shekhorah ani VE na'vah". Em hebraico não há distinção entre "porém" e "e". A conjunção hebraica "ve" pode ser traduzida por "porém" ou "e". O tradutor decidirá por um ou por outro com base no contexto. Mas, tanto no inglês, como no português, a escolha pode fazer uma enorme diferença. 

Mas, por que o tradutor da versão King James, assim como os nossos tradutores optaram pelo "porém"? Talvez porque essas traduções tenham sido feitas através do filtro cultural ocidental, já a partir da versão latina da Bíblia, a Vulgata, que introduziu o "porém": "Nigra sum sed formosa". Eu sou negra, "porém" formosa. Não negra e bela, mas bela apesar de negra.

A rainha negra

Segundo a teóloga Susan Durber, da St. Columba United Reformed Church, Oxford, no ensaio "A Rainha do Sul se fará presente no Julgamento quando esta geração estiver sendo julgada", uma mulher pode nos ajudar a entender este enigma. Em IReis 10 encontramos a história da rainha do Sul ou rainha de Sabá. Uma mulher inteligente, que fez perguntas duras a Salomão. Queria saber se ele era tão sábio quanto se comentava. Assim, a Bíblia está interessada nela por causa de sua inteligência.

Mas um fato significante sobre Sabá é que ela era negra. Não se sabe exatamente de que região. Poderia ser do Iêmen ou do Norte da África, possivelmente a Etiópia. Os falashas, judeus etíopes, e os rastafares reivindicam ser descendentes de Menelik, o filho de Salomão e Sabá. E também para os cristãos negros de todo o mundo, Sabá surge como ícone racial e é vista como a musa de Cantares de Salomão.

O poeta W. B. Yeats, por exemplo, releu o versículo "sou negra e bela" e poemou assim: "Salomão cantou a Sabá, e beijou a face negra dela".

Ainda segundo Durber, onde os cristãos africanos celebraram a cor negra de Sabá, o cristianismo europeu marginalizou sua história. Na rainha de Sabá viu a história de uma mulher pagã, uma mulher estrangeira que tinha se rendido à verdadeira fé. Em sua rendição, aparentemente, Sabá perdeu também a cor negra de sua pele.

Assim a história de uma mulher sábia aparentemente não combinaria com a história de uma negra, e tal leitura produziu uma terrível alienação na igreja cristã européia e norte-americana, que levou o terror e o medo ao outro de cor negra. Dessa maneira, o outro de cor negra foi seduzido, subjugado e domesticado. E a leitura do texto é que Sabá capitula a Salomão e torna-se culturalmente branca.

Na verdade, Sabá foi companheira de Salomão e o texto pode ser lido assim. Mas a tradição, a partir da Vulgata, fez dele um conquistador e dela uma conquista, gerando ideologias como a da vitória da Europa sobre Oriente, do homem sobre a mulher e do branco sobre o negro.

Mas a Bíblia hebraica fala de negros e de nações africanas como Cuxe, Mizraim e Pute, que hoje são Etiópia, Egito e Líbia. E até a construção do canal de Suez, em 1859, não se fazia distinção entre as terras bíblicas e esses países. O cenário da atuação divina cobria também a península do Sinai, o Egito, que está na África, e Israel era visto como parte do continente africano. Só com a construção do canal de Suez, a África passou a ser olhada como continente separado do Oriente Médio.

Assim, na Bíblia hebraica, Israel é uma nação africana e semita, e a mensagem que leva ao mundo teve início nesse continente negro. E, embora muitos afrobrasileiros vejam a igreja como de origem européia, a análise da história bíblica demonstra que teve origem multirracial e que a Bíblia começou a ser escrita na África.

Por isso, nossas irmãs afrodescendentes podem, conscientes de sua brasilidade, raça e cor, dizer com a Sulamita: "eu sou negra e bela, como as barracas do deserto, como as cortinas do palácio de Salomão".


Nota

[1] PENA, Sérgio D.J.; BORTOLINI, Maria Cátira. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? São Paulo: Estudos Avançados, Vol. 18, No. 50, Jan./Abr. 2004.



mercredi 20 avril 2016

Campanha da legalidade

Nesse momento, minha sugestão oficial e pública para o Partido dos trabalhadores e aliados democráticos, é lançar através dos governadores e juristas que apoiam a legalidade, uma campanha mobilizadora de toda a nação por uma Nova Campanha da Legalidade.

O exemplo do velho companheiro Leonel Brizola, levadas em conta as especificidades deste momento histórico, pode e deve sensibilizar corações e mentes.


É necessário formar rapidamente o Comitê Nacional pela Legalidade. (JP).

A Campanha da legalidade a nível internacional já teve início, mas ė necessário ir em frente. Esta Nova Campanha da Legalidade, formada por mais de oito mil juristas de todos os estados brasileiros passa, a partir de hoje, a enviar ao mundo o manifesto que denuncia o golpe em curso no Brasil. O Manifesto está em português traduzido para o inglês, italiano, francês, alemão e espanhol. Marque, envie por e-mail e compartilhe este post, fazendo chegar aos amigos estrangeiros.

Não se impressionem com a quantidade de páginas, a maior parte é de assinaturas.

*Espanhol:
https://drive.google.com/open?id=0B25Hqzc_ozMGTE1XcmlDUmpHWkU

*Italiano:
https://drive.google.com/open?id=0B25Hqzc_ozMGc2ZvakIya0NndVk

*Francês:
https://drive.google.com/open?id=0B29oZHxtSdZZdEo3Ym5EaU1FMTA

*Português:
https://drive.google.com/open?id=0B25Hqzc_ozMGVXRfMEcwMkVhNXM

*Inglês:
https://drive.google.com/open?id=0B25Hqzc_ozMGRXQ3Y0IyVnRGM2M


Jacó e o chute

Mergulho na humanidade do texto
Jorge Pinheiro


A profundidade do texto é a sua humanidade. Ao mergulhar nessa humanidade temos a possibilidade de encontrar sua transcendentalidade. E isso pode ser alcançado de duas maneiras: a acadêmica, que nos interessa aqui, e aquela da própria vida, quando chegamos lá através da maceração de nossa pessoalidade, da crise, da dor e do risco.

Então, nesse exercício vamos analisar um verso de uma história da escrituras judaica. 

Na luta, o homem, ao ver que não podia vencer, bateu no vazio da coxa e enforcou a força de criar de Jacó”. (Gênesis 32.25).

O verso escolhido, que se situa no primeiro livro, o das origens, fala da luta do patriarca Jacó com um homem -- a palavra hebraica no texto é îxe, homem, macho, e não anjo. Na luta com esse que poderia ser seu próprio irmão ou um dos capangas dele, o homem não conseguiu vencer Jacó. Então, já cansado, o homem recorre ao golpe mais antigo, que acaba com qualquer luta, dá uma joelhada no vazio da coxa de Jacó e estrangula a sua força.

A região, de terminações nervosas, é protegida por uma grossa camada de derme, como ocorre com outras áreas de grande sensibilidade no corpo, como a ponta dos dedos. "É por isso que, apesar de ambos serem muito sensíveis, um impacto nos testículos dói muito mais do que, por exemplo, bater os dedos na mesa", diz o urologista Mário Paranhos, do Hospital das Clínicas, em São Paulo. 

Apesar de ser muito sensível à dor, o saco consegue se preserva de danos maiores por estar suspenso, o que amortece o trauma. Mas, às vezes, a pancada é tão forte que não há ovo que resista. Veja o que pode rolar : com o chute, pode rolar um sangramento interno causando inchaço e dor. O músculo que envolve os testículos pode se retrair tão depressa que nervos e artérias que seguram as bolas se enroscam, impedindo o fluxo de sangue. Se o coice for bravo mesmo, a cápsula que protege os ovos pode se romper e vazar o conteúdo interno.


Visto assim, na sua humanidade, o texto fala de dois homens que lutam madrugada adentro, e que um deles, o trapaceiro, é golpeado na força de sua virilidade, sendo derrubado por um golpe em baixo, por baixo, baixo. Caído, resfolegando no pó, entre gemidos, pede ao seu oponente um favor: liberdade para seguir adiante. E o homem – Esaú ou um capanga – diz para ele: segue seu caminho, hoje você não trapaceou, você venceu. Arrastando-se, aquele que se agarrava ao tornozelo do irmão, se levanta: é Israel, foi alforriado, está livre para seguir em frente.


mardi 19 avril 2016

Dicionário sefaradi de sobrenomes

Dicionário viaja ao passado dos sefaradis
Márvio dos Anjos
da Folha de S.Paulo

Os brasileiros ganharam recentemente uma luxuosa ferramenta para conhecer suas origens. O "Dicionário Sefaradi de Sobrenomes", compilado por Guilherme Faiguenboim, Paulo Valadares e Anna Rosa Campagnano, traça as rotas que 17 mil sobrenomes de sefarditas (judeus da península Ibérica) e judeus cristianizados percorreram no mundo.

O dicionário bilíngue é fruto de uma pesquisa que começou em 1995. "No início, calculamos que a obra reuniria no máximo mil nomes sefaradis. Em 2002, esse número já ultrapassara os 16 mil, isso após termos eliminado cerca de 25 mil nomes que apresentavam erros ortográficos ou por não serem realmente sefaradis", afirma Guilherme Faiguenboim, genealogista que cuidou da parte etimológica, na introdução do dicionário. "De cada três nomes coletados, só restou um ao final."

 

Faiguenboim contou à Folha, por telefone, que o trabalho iniciou-se com todos os três fazendo de tudo um pouco. "Depois, nós entendemos que o melhor seria dividir as tarefas. Anna Rosa [Campagnano] foi encarregada do levantamento de fontes, o Paulo [Valadares] comprovava a exatidão e a seriedade das fontes e inseria as informações no computador. Depois eu as sistematizava em forma de dicionário", diz.

O trabalho foi inspirado no "Dictionary of Jewish Surnames from the Russian Empire" (Dicionário de Sobrenomes Judeus do Império Russo), de Alexander Beider, que pela primeira vez deu um caráter científico ao estudo, em 1993. Era dedicado apenas aos sobrenomes dos chamados ashkenazim, os judeus residentes no Leste Europeu.

Além disso, outro grande incentivo foi o genuíno interesse de brasileiros sobre as origens de seus nomes de família, fato constatado pela Sociedade Genealógica Judaica do Brasil, da qual Faiguenboim é membro fundador.

"Desde sua fundação, em 1994, a sociedade tem feito pesquisas publicadas em seu jornal 'Gerações/Brasil', e passou a receber cartas e e-mails de brasileiros não-judeus sobre suas origens sefaradis", escreve Faiguenboim.
  

O "Dicionário Sefaradi de Sobrenomes" se divide em três partes. A primeira é uma introdução histórica, escrita por Reuven Faingold, doutor em história pela Universidade Hebraica de Jerusalém, que explica a trajetória dos sefaradis da Antiguidade até a expulsão da Península Ibérica. Na Espanha, a expulsão (e a pena de morte, em caso de desobediência) se deu por ordem dos reis católicos Fernando e Isabel, em 1492, como punição aos costumes judaizantes dos cristãos-novos.

Em Portugal, essa expulsão, que começou em 1497, se estendeu por anos e anos e, enquanto não se concretizava, foi entremeada por tentativas de catequização e ataques sangrentos a cidadãos judeus, culminando com uma inquisição instaurada em 1536.

A segunda parte, escrita pelo historiador Paulo Valadares, trata da dispersão sefaradi, dos éditos de expulsão até o século 20. As introduções históricas mostram a importância dos judeus na cultura e na economia ibéricas. "Eles se consideravam ibéricos, estavam lá havia 15 séculos até serem expulsos", afirma Faiguenboim.

A terceira é o dicionário propriamente dito, precedido por uma explicação sobre a origem dos nomes. Em cada verbete, pode-se saber onde foram achadas as primeiras referências à família e o trajeto do nome pelo mundo e até personalidades dessa família.

DICIONÁRIO SEFARADI DE SOBRENOMES
Organização: Guilherme Faiguenboim, Ana Rosa Campagnano e Paulo Valadares
Lançamento: Fraiha
Patrocinador: Sistema Anglo de Ensino
Quanto: R$ 150 (528 págs.)

Fonte:
Folha de S. Paulo, 06/01/2004, Ilustrada
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u40224.shtml


O mal, uma questão hermenêutica

O mal não é problema 
É questão hermenêutica
Jorge Pinheiro, PhD



Na teologia cristã, teodicéia, termo cunhado por Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), designa a teoria que procura conciliar a bondade e onipotência divinas diante da presença do mal. E será a partir dessa teoria que vamos analisar a questão do mal. A palavra mal vem do latim malu e refere-se aquilo que é nocivo, prejudicial, que fere, que é mórbido, doença, angústia, sofrimento e desgraça. Temos, então, o mal moral, contrário ao caráter do Criador, produzido por agentes morais e temos o mal natural, conseqüência dos desequilíbrios da natureza: furacões, terremotos, epidemias e as sequências degenerativas, como as epidemias, deformidades congênitas etc.

As cosmovisões se posicionam diante da questão do mal de diferentes maneiras. Para alguns pensadores o mal não existe. Jean-Paul Sartre, por exemplo, embora descartasse o mal, falará sobre o absurdo da existência, e dirá que o inferno são os outros. Mas, a posição clássica dos ateísmos humanista, positivista, marxista e mesmo existencialista relativizam o mal, já que é uma visão antropocêntrica, sem, contudo, negá-lo. Assim para um militante comunista no século vinte, ateu, o mal era o imperialismo norte-americano.

Já para o panteísmo monista, como é o caso do hinduísmo e setores do budismo, tudo é deus, então nada é mal. Para essa cosmovisão, as coisas parecem más, mas isso é ilusão, pois não há mal. 

Para o teísmo, o mal é uma realidade. Mas o teísmo tem muitas leituras, assim, para as correntes dualistas, existem duas forças opostas em equilíbrio, o bem e o mal. Para as correntes teístas finitistas, que negam atributos da divindade, Deus pode ser bom, mas não onipotente. Essa é a cosmovisão do judaísmo contemporâneo e do mormonismo. Essa leitura apresenta um Criador que não controla plenamente o universo, ou seja, as coisas não foram feitas de acordo com um plano que pode ser desenvolvido. 

Outra afirmação do teísmo finitista é de que Deus pode ser onipotente, mas não é lá muito bom. Essa cosmovisão foi defendida por John Stuart Mill e R. Roth. Nesse sentido, tudo que recebemos de bom não vem do Criador e a perfeição não existe nem nele próprio. Mas há ainda outras leituras teístas, como a de Irineu e J. Hick que acreditavam que Deus criara o universo como lugar de provação e aperfeiçoamento. Ou seja, o conceito de que a criação é boa padece na origem e a própria redenção do ser humano deixa de ter significado, pois Deus é o único responsável pela condição do mundo.

Ora, o universo, enquanto criação dinâmica, é bom no sentido teleológico, tem as qualidades adequadas à sua natureza ou função. O Criador construiu seres livres que tinham e têm opção de escolha. A impossibilidade de escolha diante do bem e do mal implicaria na remoção da liberdade humana relativa e condicionada à existência. O que explica o clamor de Habacuque, quando pergunta ao Criador como ele pode suportar a traição e as gentes más?

O mal tem origem no exercício da liberdade de seres pessoais. Ou como disse o Criador ao jovem Caim, se ele tivesse feito o que era certo, ele estaria sorrindo, mas como agiu mal, o pecado estava à porta, à espreita. O pecado desejava dominá-lo, mas ele precisava vencê-lo. A liberdade de escolha era e é boa, enquanto liberdade dinâmica e progressiva, pois reflete a própria imagem do Criador. Mas, tecnicamente, necessidade e liberdade, lei e graça são realidades correlatas na existência. 

Donde o mal moral e o mal natural são frutos do processo de alienação da imagem de Deus: é o que teologicamente chamamos de mau encontro, conceito antropológico criado por La Boétie e mais tarde utilizado por Pierre Clastres, que usamos como categoria que traduz as disfunções da imago Dei na espécie humana, ou seja, as alienações espiritual, psicossomática, sociológica e antropo-ecológica. Assim, o ser humano está alienado do Criador, de si mesmo, dos outros homens, da natureza, e esta consigo mesma.

Uma grande parte da ciência no século vinte apresentou-se como materialista. É bom lembrar que cientistas como Galileu, Francis Bacon, Isaac Newton, B. Pascal, M. Faraday e muitos outros não eram materialistas. Albert Einstein, por exemplo, afirmou: “Deus não joga dados com o Universo”. Ao negar a ação de um Criador infinito e pessoal, o materialismo retira a base para qualquer significado no universo. O ser humano e todos os particulares passam a ser nada.

As implicações da alienação

Por isso, vamos retomar aqui a questão do termo dia, yom. A raiz de yom aparece 2.355 vezes no texto massorético e pode exprimir um instante de tempo; um período de luz; um período de vinte e quatro horas; uma época; um período geral e indefinido, sete dias; ao cabo de dias; um mês inteiro; ano; o dia de Iavé. Não temos um conceito único para yom. Não há uma posição unânime na igreja. Agostinho considerou que o tempo surge com o universo. E Tomás de Aquino disse que o tempo é uma medida humana.

Mas tempo nos remete a outro conceito o de caos. E aí vem a pergunta: o que é o caos? Na leitura tradicional, tohu significa apenas sem forma, caos; e bohu vazia, desolada. Mas temos outros termos que nos levam a idéia de caos: trevas; abismo; águas. Na leitura tradicional o caos reflete apenas uma situação sem ordem e faz parte da criação original.

Porém temos outras teorias, como as da catástrofe: (a) teoria da criação a partir do caos ou teoria da recriação. Nela, Gêneses 1:1 é um título ou resumo da perícope 1.2-2.3. Aqui a conjunção vê, em hebraico, traduz seu sentido mais comum “e”. E céu e terra significam o universo organizado. Essa seria a primeira criação; (b) e teoria da brecha, onde Gêneses 1.1 é criação original e a conjunção vê que inicia 1:2 deve ser traduzida como porém, simbolizando um lapso de tempo desconhecido, em que houve uma catástrofe entre os dois períodos. Donde, Gêneses 1.3-21 é uma recriação da terra.

A questão da criação é fundamental para o estudo do mal, pois posiciona o mal em condições e momentos diferentes. De todas as maneiras, a relação criação versus mal sublinha o risco calculado do Criador ao fazer o ser humano à sua imagem e semelhança, que consistiu, entre outras coisas, em conceder liberdade ao ser humano como pessoa. O ser humano poderia usar essa liberdade para retribuir o seu amor ao Criador, oferecendo-se a ele em adoração e serviço. Mas no dom da liberdade estava contida outra possibilidade, a de fazer seu próprio caminho. 

A alienação consiste nisso, na decisão do ser humano de caminhar por conta própria. Esse deslocamento leva ao abuso da dignidade própria e à distorção da aliança de seu ser à imagem do Criador, colocando-se a si próprio como centro de seu querer. Ou como disse Etienne La Boétie (Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 19), “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”. 

E Pierre Clastres (Liberdade, Mau Encontro, Inominável, in Etienne La Boétie, Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 110-111), analisando o texto desse libertário do século dezesseis, que influenciou o pensamento huguenote francês, afirma: 

“Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que trabalho pensar o impensável mau encontro!”.

Antropologicamente, mau encontro é descrito como corrupção da liberdade do ser humano por ele próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária. Teologicamente, definimos como a opção do ser humano de não mais depender do Criador, mas construir sua liberdade e história a partir de interesses próprios. O entendimento do mau encontro enquanto alienação forma o pilar da antropologia teológica, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade do ser humano e porque essa liberdade é uma expressão da imago Dei. A partir dessa leitura, o mau encontro e a alienação primordial da liberdade humana, assim como a ativação do humano num sentido de distanciamento do Criador introduziram a desordem nos processos de relacionamentos e transmissão da informação no universo.

A alienação humana tem como conseqüência o entorpecimento da responsabilidade e da materialidade do mundo e cria o primado da morte. Essa alienação gera distorção no equilíbrio da imago Dei, na relação espiritualidade, psiquismo e materialidade. A alienação entorpece a liberdade, mas teologicamente leva à compreensão do Cristo como figura que representa o penhor de redenção do ser humano.

Assim, dois elementos fazem parte da compreensão da encarnação: o primeiro deles é a absoluta irrepetibilidade do acontecimento e o segundo é o fato material de que o Criador, ao entrar no tempo, ao fazer-se humano, membro de uma família, de uma comunidade, entra na corporabilidade, na materialidade da história da humanidade. E planta na humanidade a semente de uma radical transformação de todo o modo de ser do humano, o que abrange todas as esferas da natureza humana, material, psíquica e espiritual.

A questão do destino

Na tradição judaico-cristã essa relação entre liberdade versus mal sempre foi um tema teológico/ hermenêutico da maior importância. No Antigo Testamento temos a espiral conceitual aliança/ fidelidade/ constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. No Novo Testamento o vértice é o conceito de destino.

Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentará uma leitura diferente do conceito de destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentará um conceito de destino que resgata e transcende o conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e o culto de mistérios traduziam uma luta contra o destino, numa tentativa de colocar-se acima dele. A origem dos cultos de mistério não pode ser entendida quando os vemos apenas como mitos. 

Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável porque o destino tinha qualidades demoníacas. Era um poder sagrado e destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino excluíam do ser humano qualquer possibilidade de liberdade. 

Assim, também a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. O mundo helênico era um mundo de culpa objetiva e castigo trágico e um profundo pessimismo atravessava todo o conhecimento, desde Anaximandro, passando por Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles.

Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é essa dicotomia que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo permaneceu inalterada em todo o helenismo: superar o destino. E isso foi tentado através do domínio do pensamento, como forma de elevar-se acima da existência, já que no campo da ação e da transformação da existência é impossível superar o destino. No entanto, nunca essa meta foi alcançada. Necessidade e liberdade foram conceitos chaves nas discussões do helenismo pós-platônico. O medo de demônios obscureceu o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade absoluta, ou azar, abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.

Dessa maneira, a filosofia grega caminhou para o ceticismo, já que a busca de uma certeza transcendente para a existência humana se mostrou nula. Ao mesmo tempo, enquanto força sobre-humana do destino, as nações eram submetidas ao poderio romano. Diante desse destino trágico, o mundo helênico tinha necessidade da revelação. Ameaçado por um destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava não somente de liberdade, mas também de graça.

O cristianismo é a vitória sobre a idéia da força resistível da matéria eterna, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina. É a vitória da crença na perfeição do ser em todos seus aspectos sobre o medo trágico e a matéria que resiste hostil ao divino. É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá a existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do kairós substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino outorga graça, que traz salvação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida estão superados e com eles, a filosofia, a religião e os cultos de mistério.

Antes, a filosofia buscava desesperadamente a revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e por extensão a metafísica helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística não teve importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da criação divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que se constrói historicamente e acontece no kairós. E isso já não é helenismo, mas antropologia teológica cristã. 

O conceito paulino de destino

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, destino, no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a lei transcendente na qual está imbricado o conceito de liberdade. Assim, destino também implica numa trindade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à lei; (3) destino significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.

Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo em sua carta aos romanos (8.31-39; e 9), podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da correlação lei/ graça, o julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.

Assim, a certeza de que o destino é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino, que coloca o logos acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional. Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar logos e kairós. O logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre logos e existência chegou ao fim. O logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao logos, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

A vontade humana não é neutra e a liberdade humana sempre se dá dentro da existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. Assim, a liberdade entende-se como correlação entre lei e graça. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em termos teológicos, consciência da lei diante da existência do mal é arrependimento, e ação transformadora do logos que produz justificação e mudança de vida, graça.

O mal enquanto feitura humana

Dentro da visão cristã e exatamente pelo que acabamos de ver, o mal, ao contrário do que pensavam os gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é um estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha liberdade é desafiada, quando ele, o mal, é chamado a surgir como feitura humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois o mal é um antítipo da salvação.

Por isso só podemos responder ao mal reconhecendo que o mal é feitura minha e de minha espécie, colocando a ruptura desse domínio nas mãos daquele único que pode fazê-lo, o logos. A partir daí, ao nível do pensamento, já que é um desafio teológico, o caminho é a reflexão, como aquela que Agostinho fez frente aos gnósticos, quando esses levantarem a pergunta: Por que o mal existe? Transformando assim o mal em coisa e mundo, dando existência e imagem ao mal. Agostinho responde dizendo que a única pergunta que posso fazer é: O que me leva a fazer o mal? E ao nível da vontade e do sentimento, crendo em Deus apesar do mal, pois a cristologia nos ensina que o logos também sofreu. E por fim, ao nível da ação, pois o mal é o que não devia estar, devemos ter uma ética de responsabilidade social, de combate a este estado e domínio na vida de meu próximo e da sociedade.

Mil anos depois de Agostinho, a questão do mal continuava em discussão e a teodicéia, ainda em construção, oscilou entre dois imperativos aparentemente excludentes, o da soberania de Deus e o da liberdade humana. Mas, no início do século vinte, a partir da teologia dialética, passou-se a ver tais imperativos como correlação. Assim eleição e oferta aberta foram lidos como termos complementares, e a cruz como base da salvação e da condenação.

Três leituras da modernidade nascente

Vamos analisar a dialética de tais imperativos sob um novo ângulo. Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de liberdade desses três pensadores, sabendo que a autonomia e o ato livre são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicos, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. E essas se referem ao fato de que liberdade significa a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre.

Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não é gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraíza no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/ campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia do sujeito se dá como dor. 

Mas ambos consideram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, a religião é a realização imaginária da essência do ser humano, mas essa essência não tem realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva, quando vê, assim como Cusa e Lutero, a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, e como responsabilidade suprema do ser humano. Para entender esse ponto de partida de Marx é bom ler seus manuscritos econômicos e filosóficos, mas também sua Introdução à Crítica da Economia Política (Marx, São Paulo, Abril Cultural, 1982), texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.

“O cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo” (Lutero, Les grands écrits reformateurs, Paris, Aubier, 1955, p. 225). Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século dezesseis, mas traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da graça. Sua liberdade é fruto da fé que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. 

A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto espiritualidade, uma dimensão de combate. 

O ser humano, que em Cristo vive essa metamorfose, tem a liberdade que vai além, a liberdade que é fonte de realidade e ação. Assim, o cristão transforma-se em receptáculo da fé, em intencionalidade aberta ao Absoluto.