lundi 12 septembre 2016

Bendito o que vem em nome do Senhor

Meu Jesus, Salvador
Baruch ata Adonai Elohenu mélech haolam!
Bendito sejas Tu, nosso D'us, rei do universo!

Apresentação
Um testemunho de Jorge Pinheiro / o encontro com o Mashiah

Mas quem é esse Mashiah?

1. O mistério revelado

1 Coríntios 15.3-8
"Pois o que primeiramente lhes transmiti foi o que recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e apareceu a Pedro e depois aos Doze. Depois disso apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, a maioria dos quais ainda vive, embora alguns já tenham adormecido. Depois apareceu a Tiago e, então, a todos os apóstolos; depois destes apareceu também a mim, como a um que nasceu fora de tempo".

Três detalhes:

* nossos pecados / hamartía -- nossos alvos errados, nossas falhas, nossa corrupção.
** O sepultamento do corpo de Jesus confirma sua morte. José de Arimatéia e Nicodemos, ao prepararem o corpo de Jesus para o sepultamento, teriam percebido se Jesus não estivesse realmente morto, conforme João 19:38-42.
*** ressuscitou / egeiró -- foi levantado, ressurgiu.

A. O Mashiah, o nosso Cristo, nos apresenta quem é ser humano que Deus planejou. Jesus, o Cristo é Eterno e homem, essencialmente perfeito e pleno. Nesse sentido, entendemos que o Cristo encarnado possibilita uma compreensão do que é a humanidade, traduzindo numa linguagem cheia de vida os conteúdos fundamentais daquilo que está dito em Gênesis sobre o ser humano, antes do pecado.

B. O Cristo revelado é a dimensão mais profunda do humano, a dimensão que traduz aquilo que o cristão é: filho adotado do amor e da graça do Eterno, criado para honra, glória e louvor do Criador.

Uma das linhas-força dessa teia de idéias teológicas presente nas Escrituras hebraico-judaicas é a de halakha. Mais do que propor uma adoração a Deus, as Escrituras nos falam de andar com ele. Daí a idéia de caminho. Se o ser humano é colocado a cada momento e a cada dia diante da exigência de exercer sua liberdade e escolher entre o bem e o mal, ou, como diz Deuteronômio 30.15, “vejam que hoje ponho diante de vocês vida e prosperidade, ou morte e destruição”, ele deve trilhar o caminho através da lei.

E o Mashiah, o nosso Cristo, mostrou o verdadeiro sentido da halakha, Ele é a halakha -- Ele é o caminho!

2. O Cristo revelado cria uma nova comunidade

Efésios 5.25-27
"Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível".

A. O corpo de Cristo sobre a terra é uma nova vida com Cristo e em Cristo, dirigida pelo Espírito Santo. A comunidade dos fiéis nasce a partir dele, com o derramar do Espírito.

B. A luz da ressurreição de Cristo reina sobre a igreja e a alegria da ressurreição, do triunfo sobre a morte, compenetra-se nela. O Senhor ressuscitado vive conosco e nossa vida é uma vida misteriosa em Cristo. Os cristãos levam este nome precisamente porque são de Cristo, vivem em Cristo e Cristo vive neles.

C. A encarnação não é unicamente uma idéia ou uma teologia; é antes de tudo um fato que se produziu uma vez no tempo, mas que possui a força da eternidade. E esta encarnação perpetua, sem confusão, as duas naturezas: a natureza divina e a natureza humana.

3. A nova comunidade/ a igreja nos prepara para a eternidade

Apocalipse 22.16
"Eu, Jesus, enviei o meu anjo para dar a vocês este testemunho concernente às igrejas. Eu sou a Raiz e o Descendente de Davi, e a resplandecente Estrela da Manhã".

A. A igreja é o corpo místico/ espiritual de Cristo, enquanto unidade de vida com Ele. Expressa-se a mesma idéia quando se dá à igreja o nome de esposa de Cristo ou esposa do Verbo. A igreja, enquanto corpo de Cristo não é Cristo-Deus-homem, pois ela não é mais que sua humanidade; mas é a vida em Cristo e com Cristo, a vida de Cristo em nós. ou como nos diz o apóstolo Paulo na epístola aos Gálatas 2.20

"Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim".

B. A igreja, em sua qualidade de corpo de Cristo, que vive da vida de Cristo, é por Ele mesmo o domínio, onde está presente e onde opera o Espírito Santo. Eis aqui, porque se pode definir a igreja como uma vida bendita no Espírito Santo. A igreja é obra da encarnação do Cristo, ela é encarnação: na igreja Deus se assimila à natureza humana e através da igreja o corpo se assimila à natureza divina. É a santificação, que os pais chamavam deificação (Zeosis) da natureza humana, conseqüência da união de duas naturezas em Cristo.

C. A igreja é o corpo de Cristo: enquanto igreja participamos da vida divina da Trindade. Ela é a vida em Cristo, é o corpo de Cristo, que permanece unida à Trindade.

Por isso, o apóstolo Paulo na carta aos Colossenses 3.3-4 nos diz:

"Porque vocês já estão mortos, e a vida de vocês está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então também vocês serão manifestados com ele em glória".

E finalizo com esta benção:

אשרי הוא כי יבוא על שמו של אלוהים
Baruch haba b'shem Adonai. No evangelho de Mateus 23.39, Jesus após proferir uma série de sentenças sobre a geração que o rejeitara proferiu essas palavras proféticas:"Não me vereis até que venhais a dizer: Bendito o que virá em nome do Senhor". Esta expressão, no hebraico "Baruch haba b'shem Adonai", é uma citação do Salmo 118, um cântico do povo de Israel, que clamava a salvação pelo Messias ao dizer também: Hosana, filho de Davi.

E eu digo mais uma vez -- meu Jesus, Salvador!







dimanche 11 septembre 2016

Desafio a um jovem pastor batista

[Este sermão foi apresentado por ocasião da ordenação ao ministério pastoral do querido amigo e colega André Sass Farias. JP.]

A graça e a paz de Jesus Cristo esteja em todos os corações. É uma alegria estar com os irmãos e irmãs neste momento de comunhão cristã e adoração ao nosso Criador, o Deus Eterno. E eu trago uma saudação calorosa da Igreja Batista em Perdizes, da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil e da Convenção Batista Brasileira a todos os presentes, mas, em especial, à Igreja Batista de Montpellier. 

Nossa palavra desta manhã recebeu um título:

A missão radical
Desafio a um jovem pastor batista
Pr. Jorge Pinheiro, PhD

Vamos abrir nossas bíblias em Lucas 4.16 a 21.

“Il se rendit à Nazareth, où il avait été élevé, et, selon sa coutume, il entra dans la synagogue le jour du sabbat. Il se leva pour faire la lecture, et on lui remit le livre du prophète Ésaïe. L'ayant déroulé, il trouva l'endroit où il était écrit: L'Esprit du Seigneur est sur moi, parce qu'il m'a oint pour annoncer une bonne nouvelle aux pauvres; il m'a envoyé pour guérir ceux qui ont le coeur brisé, pour proclamer aux captifs la délivrance, et aux aveugles le recouvrement de la vue, pour renvoyer libres les opprimés, pour publier une année de grâce du Seigneur. Ensuite, il roula le livre, le remit au serviteur, et s'assit. Tous ceux qui se trouvaient dans la synagogue avaient les regards fixés sur lui. Alors il commença à leur dire: Aujourd'hui cette parole de l'Écriture, que vous venez d'entendre, est accomplice”.

Estamos em Montpellier, na França, mas somos desafiados a olhar um país do hemisfério sul chamado Brasil. E nos fazemos duas perguntas:

Qual o papel de um jovem pastor batista brasileiro, depois de dois anos de imersão na cultura francesa, de volta a seu país, numa sociedade em desenvolvimento, mas em profunda crise ética e social?

Como Cristo, centralidade da ação e fé batista, pode ser a solução para os problemas brasileiros?

E diante dessas interrogações que acabamos de levantar, 

Três questões devem ser levadas em conta

• A primeira é que existe de fato uma revolta generalizada dos brasileiros das grandes cidades contra a atual situação em que vive grande parte da população. Por isso, somos exortados pensar uma reforma radical, no sentido protestante, batista, diante do grito de revolta de uma população que desperta para a consciência de que a exclusão de bens e possibilidades não pode ser uma situação irreversível e permanente. 

• A segunda questão, é que as manifestações e mobilizações apontam para aquilo que Tomás de Aquino afirmava: “há um mínimo de condições exigidas para a prática da virtude”. Assim, a existência de vidas em condições desumanas, injustas, inferiores, leva milhões de brasileiros à prática de atos contrários aos padrões morais.

• E a terceira questão é que o Brasil quer definir sua identidade enquanto nação: o que somos? Qual o papel que podemos ter no concerto das nações? 

Ora, como todos sabemos, há um choque hoje, no Brasil, entre o desejo de Reformas e uma forte resistência à mudança social. Mas é bom esclarecer que o Brasil não enfrenta um problema de subdesenvolvimento, mas outro, mais complexo, que é o do desenvolvimento desigual.

A resistência à mudança no Brasil localiza-se predominantemente na natureza patrimonialista do Brasil de pensamento arcaico. E tal pensar não está apenas nas zonas rurais tradicionais – do Nordeste e outras regiões --, mas dentro do próprio Brasil urbano.

Diante de tal situação, qual a missão de um jovem pastor batista? Será possível uma resposta coerente, que apresente saídas para os grandes dilemas brasileiros? 

A situação brasileira se insere num contexto mundial, que é fruto das transformações sociais e dos imperativos morais e religiosos decorrentes da ampla utilização da ciência aos meios de produção. Em última instância, a técnica é boa pois modifica as condições de vida das pessoas, mas, paradoxalmente, virou o mundo de ponta cabeça.

Somos exortados a viver a reforma radical, no sentido batista, em marcha, já que não é mais possível tolerar a exclusão de possibilidades de milhões de brasileiros. 

Os jovens pastores batistas não podem divorciar-se da luta pela justiça. E essa luta traduz ao nível do real, atributos do próprio Cristo, já que ele fez do brasileiro mordomo e não dono absoluto deste quase continente. Esse Cristo redentor lança sobre nós o desafio do Brasil, já que é impossível adotar a criança da manjedoura e esquecer a realidade, colocar-se sob a cruz e esquecer a sociedade em que vivemos.

A vida é o primeiro passo para a construção de uma centralidade do Cristo. Vamos pensar o texto de Lucas 4. 16-21. 

"Jesus foi para a cidade de Nazaré, onde havia crescido. No sábado, conforme o seu costume, foi até a sinagoga. Ali ele se levantou para ler as Escrituras Sagradas, e lhe deram o livro do profeta Isaias. Ele abriu o livro e encontrou o lugar onde está escrito assim: “O Senhor me deu o seu Espírito. Ele me escolheu para levar boas notícias aos pobres e me enviou para anunciar a liberdade aos presos, dar vista aos cegos, libertar os que estão sendo oprimidos e anunciar que chegou o tempo em que o Senhor salvará o seu povo.” Jesus fechou o livro, entregou-o para o ajudante da sinagoga e sentou-se. Todas as pessoas ali presentes olhavam para Jesus sem desviar os olhos. Então ele começou a falar. Ele disse: — Hoje se cumpriu o trecho das Escrituras Sagradas que vocês acabam de ouvir".

Estudos sobre a marginalidade social de Jesus, a partir das acusações feitas a ele pela hierarquia sacerdotal da época (conforme João 8.41, eles afirmam: “Ils lui dirent: Nous ne sommes pas des enfants illégitimes; nous avons un seul Père, Dieu”.), nos levam a algumas considerações interessantes. Ao não ter, por exemplo, pai reconhecido, Jesus não tinha direito a um sobrenome. Por isso, era visto como alguém de genealogia desconhecida. E o fato de ser nomeado “de Nazaré” (Lucas 4.34, 18.37, 24.19; e João 8.48), oriundo de uma vila de camponeses e artesãos, de mínima relevância, e afastada das rotas comerciais, fazia com que sua identidade geográfica também o desclassificasse como alguém que pudesse jogar papel de importância na vida política e social da Palestina. Por isso, os senhores da lei o acusam dizendo: “N'avons-nous pas raison de dire que tu es un Samaritain, et que tu as un démon?”, conforme João 8.48.

A genealogia não reconhecida e geografia periférica faziam de Jesus um palestino socialmente à margem, que, por suas origens, não merecia crédito. 

E sobre a leitura do rolo de Isaias, que marca sua entrada no seu ministério político e social, é bom lembrar que na época, não havia nas sinagogas uma leitura dos profetas regularmente prescrita. E o fato de essa passagem não estar presente nos lecionários conhecidos posteriormente, tende a indicar que Jesus a escolheu de propósito. Essa hipótese repousa sobre a afirmação de Lucas: “abrindo o livro, achou o lugar onde estava escrito”. Aqui dois detalhes merecem ser realçados: primeiro, é a única referência clara nos Evangelhos de que Jesus sabia ler. E, segundo, por que, ao ler Isaías 61.1-2, ele omitiu uma frase, curar os contritos de coração e acrescentou outra, libertar os oprimidos, que está em Isaías 58.6? Na verdade, utilizou os textos que considerou mais úteis à exposição de sua plataforma político social.

No curso de seu ministério, o uso que fez de termos políticos, como Evangelho e Reino, mostram que tal seletividade tinha uma finalidade: falar de uma promessa política de intervenção social alternativa àquelas dos poderes presentes na época. Assim, se lermos o texto apresentado por Jesus, numa perspectiva rabínica, estamos diante de uma recorrência às promessas do Jubileu, quando as injustiças acumuladas durante anos deveriam ser sanadas. A fala daquele homem de identidade questionada não afirmava que a Palestina seria resgatada na escala temporal, mas que deveria entrar na vida palestina o impacto solidário do ano sabático. 

Da mesma maneira, o Reino vindouro surgia enquanto compreensão profética do ano sabático. Nesse sentido, o shabat da semana ampliava-se no shabat dos anos, onde o sétimo deveria ser de descanso e reforma, já que restaurava o que tinha sido exaurido, a natureza e as pessoas. Essa coleção de regulamentos presente em Levítico 25.1 a 26.2 concernia ao direito de propriedade da posse da terra e de pessoas, que constituíam a base da riqueza. O propósito era fixar limites ao direito de posse, já que toda propriedade, natureza e pessoas, pertenceria a Deus. Assim, ninguém poderia possuir a natureza e as pessoas de forma permanente, pois tal direito pertencia a Deus. E o ciclo de sete anos sabáticos desaguava no quinquagésimo ano, o Jubileu messiânico (conforme Levítico 25.8-24), que só vai aparecer de novo em todo o Antigo Testamento apenas em Números 36.4. Mas, Jeremias, no capítulo 34.8-17 falou de uma reforma social na Jerusalém sitiada, quando Zedequias proclamou a liberdade dos escravos hebreus. Da mesma maneira, em Isaías 58.6-12 encontramos a reforma como parte da visão profética. Nesse sentido, a reforma do Jubileu apontava para a reestruturação econômica e sócio-política das relações entre os povos da Palestina.

É interessante que o historiador judeu Flávio Josefo tenha afirmado anos depois do ministério de Jesus em Nazaré, que “não existe um único hebreu que, mesmo hoje em dia, não obedeça à legislação referente ao ano sabático como se Moisés estivesse presente para puni-lo por infrações, e isso mesmo em casos que uma violação passaria despercebida”.

Apesar da afirmação de Flávio Josefo, sabemos que um enquadramento econômico e social a partir das disposições de Levítico 25, o que incluía inclusive a redistribuição da propriedade, nunca foi literalmente vivido entre os judeus. Por isso, coube a um “retirante sem-terra” levantar o discurso do ano da libertação. 

A proposta de reforma do Jesus marginal era a anunciação profética da entrada em vigor de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma econômica e sócio-política que deveria mudar as relações entre os povos palestinos.

E aquele homem de genealogia questionada e geografia periférica colocou a centralidade da reforma sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a promessa profética se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência de seu Evangelho: o reformador marginal era o Messias prometido.

E assim o Messias, retirante sem nome, homem sem terra, apresentou aos judeus e palestinos um programa político-social de reforma radical. Esse programa é apresentado e justificado pelo evangelista Lucas (4.14-30) e tem o exercício da justiça como centralidade.

E nessa pregação pela justiça, todos, judeus e palestinos, deveriam gozar concretamente de liberdade e usufruir dos bens da natureza – dom de Deus para suprir às necessidades humanas. E ao recorrer às promessas do jubileu (Lucas 4.19), aquele “nazareno” – e isso era um xingamento – sem terra e sem nome disse que a natureza era de todos e para todos, e condenou o monopólio que impossibilitava este destino universal. Dessa maneira, a justiça, tão presente no texto referido de Lucas, nasce da mensagem profética presente no discurso de Jesus, e consiste em reconhecer a gratuidade do amor de Deus na Palestina, e, posteriormente, no mundo. Por isso, o discurso de Jesus é o discurso da justiça, da ação justa que remete à paz.

Se o discurso de Jesus apresentou um alcance palestino imediato, a partir da própria realidade vivida pelo nazareno, tal discurso remete à catolicidade da promessa messiânica: a restauração do mundo. Ou seja, tal discurso visto sob a ótica teológica do referido texto de Lucas fala do fim da discriminação e da violência.

A proposta de reforma do Jesus marginal foi a anunciação profética da entrada em vigor de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma econômica e sócio-política que deveria mudar as relações entre os povos palestinos.

E o Messias colocou a centralidade de uma reforma radical sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a promessa profética se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência de seu Evangelho: o reformador marginal era o Cristo universalmente prometido. 

A partir da compreensão do texto de Lucas podemos dizer que se os três primeiros itens do programa se referem aos aspectos materiais da vida humana, o quarto – que nos chama a anunciar que chegou o tempo em que o Senhor salvará o seu povo -- trata do compromisso da centralidade do Cristo na vida cristã, a opção por estar na trincheira ao lado daqueles que lutam por dignidade e justiça. 

Aqui estão, à maneira protestante radical, as sementes da centralidade do Cristo em nossas vidas e na vida da nação.

E podemos tirar algumas conclusões desta abordagem profética. 

Alef. A fé deve interpretar a condição humana à luz do propósito de Cristo. E por isso somos porta-vozes de Cristo para as condições específicas da vida humana. 

Bet. Exercemos uma ação ética e social à luz da compreensão do destino do povo de Cristo. E o fundamento de nossa pregação social é a aliança no sangue do Cristo.

Guimel. A Justiça e o Juízo, o Amor e a Integridade são fundamentais para a construção da estrutura política e a organização das instituições econômicas de nosso país. 

Dalet. Por isso, podemos dizer, sem sombra de dúvida, que o compromisso é com Cristo. E que ele participa dos combates pela Justiça, e é a centralidade de todo clamor e ação. 

Ou seja, queridos irmãos e irmãs, Cristo é a centralidade da reforma radical

Assim, os jovens pastores batistas são chamados a se colocar na brecha social e a considerar fundamental a participação na vida real do país. Mas, de novo, voltamos à questão: em que sentido podemos falar da centralidade do Cristo numa reforma radical da sociedade brasileira?

E o que significa, em última instância, a centralidade do Cristo?

Teologicamente, fazemos a proclamação da soberania de Cristo, depositando sobre os ombros de nossa juventude a tarefa de aceitar o desafio do momento, a fim de demonstrar a evidência da ação do Cristo no mundo.

O perigo é, em meio às rápidas transformações sociais, ficar atrás em nosso pensamento social e pregar um evangelho que não seja compreensível e adequado às necessidades do sociedade em mudança.

O papel dos jovens pastores batistas numa sociedade em crise é seguir os passos de Cristo, amante apaixonado dos excluídos de bens e possibilidades.

E atenção André Sass Farias, querido pastor batista, brasileiro, amigo e colega, mas já também francês, e também todos os irmãos e irmãs aqui presentes:

Cristo é a centralidade para a solução dos problemas brasileiros, e por extensão de toda a globalidade, porque sob sua soberania está nossa ação ética, a favor da vida, na reforma permanente do reinar de Deus. E neste que fazer, o fazemos todos, juntos, a partir de nosso atuar transformador em Cristo Jesus, o Senhor.









dimanche 4 septembre 2016

Fé cristã e ação política

A relação entre fé cristã e presença no Partido dos Trabalhadores manifestou-se na forma de um paradoxo, no sentido de um modo de pensar que estava à margem das opiniões aceitas e mesmo em oposição a elas. O paradoxo inicial da fé cristã residiu no fato de ser ela uma obra da cultura na forma de um saber que tem a intenção de explicar a realidade e, por extensão, a própria cultura da qual procede. Essa universalidade da fé cristã foi designada como sendo o predicado da interrogação cristã que se dirige ao ser da nossa brasilidade. Ela determina o caráter paradoxal da relação entre cultura e fé cristã na medida em que é origem e uma das instâncias fundadoras da cultura brasileira. 

Há aqui uma correlação de causalidades históricas, mas é importante assinalar que outras produções culturais, como a política e a democracia de participação apresentam essa originalidade de ostentarem os traços do que serão as suas essências como intenção de conhecimento. Nesse sentido, a fé cristã no Brasil deve ser considerada não só um caminho para se penetrar no espírito da cultura proletária, mas meio para se compreender o pensamento libertário em um partido de trabalhadores. Mas, para isso é necessário ter presente a relação dialética que existe entre o dinamismo da cultura proletária e a produção da fé cristã brasileira, que juntas construíram nossa história recente.[1] E, ainda hoje, a sobrevivência dessas construções mostra que a fé cristã é um dos elos que asseguram a continuidade da tradição humana que chamamos de cultura cristã brasileira. 

Assim, a fé cristã esteve inscrita no destino da cultura petista e fez parte do seu espírito. Por isso, é necessário perguntar qual a razão que conduziu a esse destino. Ora, a própria fé cristã brasileira nos dá motivos para essa interrogação. Ela nomeia a razão debaixo da qual a cultura proletária caminhou, sendo a única que fez de tal razão a sua marca, embora sejamos obrigados a levar em conta os tristes caminhos que essa razão ofereceu no suceder histórico da brasilidade. Mas, é fato que a descoberta do instrumento pelas duas grandes correntes formadoras do pensamento cristão brasileiro, o catolicismo e o protestantismo, e a legitimação social de seus usos, foram a causa do aparecimento de um conhecimento de fé e de vida, que se apresentaram marcados pelo paradoxo da interrogação sobre o ser brasileiro e pela utopia. 

Como vimos, há um choque entre a utopia e o kairós, que se traduz enquanto clamor crítico diante da responsabilidade que não pode ser esquecida. E é a partir da compreensão do que significa o espírito da autonomia crítica no tempo presente, que voltamos ao kairós, que irrompe no instante concreto, no sentido de clamor desestabilizador, enquanto plenitude no tempo certo. Este kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo da destinação. A relação entre utopia e kairós está caracterizada pela necessidade do desenvolvimento de uma utopia que aceitou legitimar socialmente a autonomia. O kairós passou a ser, então, a forma exemplar da vida segundo a autonomia. 

Ora, a intenção de universalidade que move um partido de trabalhadores, levando-o a voltar-se reflexivamente sobre si próprio e sobre a utopia que lhe dá origem, opera aqui uma inversão na significação dos termos da relação entre a utopia e kairós como sua própria criação. Inicialmente a utopia é o termo fundante nessa relação, se considerarmos o kairós revolução que se determina a si própria. Considerado, porém, na sua natureza de interrogação sobre aquilo que deve ser a sociedade brasileira, portanto, intencionalmente universal, kairós assume, na sua relação com a utopia, a posição de termo fundante, já que a utopia se torna objeto a ser explicado pelo kairós no tribunal do que é essencial e inescusável. Essa explicação nos leva a estabelecer, de modo sistemático, a ordem das razões segundo a qual a utopia pode ser pensada na sua natureza, na sua unidade e nos seus fins. Assim, como termo fundante da sua relação com a utopia, o kairós descobre seu propósito essencial na construção histórica de partido de trabalhadores. 

Pensar a utopia significa para o kairós, de um lado, examinar a solidez do edifício da utopia, os conceitos ontológicos que tornam possível a atividade espiritual do ser humano: o ser e a essência, e definir segundo o seu estatuto ontológico, as condições de exercício dessa construção, sua razão e justiça. Nesse sentido, a utopia, em sua acepção mais ampla, leva o kairós a ser um kairós da utopia. Por isso, podemos afirmar que a relação entre utopia e kairós apresenta uma forma dialética, pois nela a utopia e o kairós invertem, no movimento do conceito, o papel de termo fundante da relação. 

Essa estrutura dialética caracteriza a tensão histórica entre utopia e kairós que é um paradoxo tanto no ato de pensar a fé cristã, quanto na intenção de ser socialista. Ela obriga o kairós, ao constituir-se como termo fundante da sua relação com a utopia, a passar além das esferas de interesse dentro das quais ocorrem os momentos diversos do pensar utópico. Assim, o lugar da tensão dialética entre utopia e kairós, nesse impulso de remoer as origens, encontrará satisfação no kairós, enquanto história que conhece diferentes tentativas de superação dessa tensão, que está no começo e no anunciado ato final do destino histórico. Existe assim uma regência da utopia pelo kairós, não só simbólica, mas política. É o de tornar-se mundo pelo advento daquilo que é novo na história, da qual ele é a coroa. Donde, a inevitabilidade da pergunta pelo futuro, inscrita como destino e como condição de sobrevivência de um partido de trabalhadores. Portanto, a situação do kairós na utopia socialista nos convida a conviver com essa tensão que assume feições diversas ao ser o kairós confrontado com os universos utópicos que constituem a realidade complexa da utopia: particulares, mas universal. Talvez, por isso, o futuro do kairós e o da existência de um partido de trabalhadores permaneçam problematizados: o kairós vive essa tensão e é a partir dele que se articulam as questões fundamentais do futuro do movimento socialista no alvorecer do novo milênio.

  • A primeira práxis do cristianismo social dentro do Partido dos Trabalhadores foi a crítica no sentido original da justificação, enquanto integridade que conduz à dúvida tanto sobre a utopia, como sobre o próprio kairós. No caso da utopia essa tarefa se desenvolveu no terreno da tensão dialética da qual é o kairós que deveria refletir criticamente sobre a própria utopia. Nos últimos anos, o paradoxo dessa situação voltou a se manifestar dentro do PT, quando setores do cristianismo social, que se opunham à política majoritária, disseram que é o kairós que deve julgar a utopia. Essa pretensão foi condenada em razão da relatividade dos paradigmas que possibilitavam o kairós e que se dissolviam na pluralidade das utopias. Tratava-se, porém, de uma pluralidade quantitativa no espaço e no tempo históricos, mas qualitativamente relativas. Dessa maneira, a reflexão sobre a utopia colocou o kairós em face de um questionamento: o problema da unidade e diversidade do ser socialista, que está presente no fundamento das diferentes versões do viver utópico e político dentro do PT. 

  • A segunda práxis do cristianismo social no PT foi a busca do fundamento da unidade da cultura socialista no PT, que só poderia estar na ontologia, enquanto ontologia do ser humano. Para esse fundamento refluiu a interrogação sobre a unidade ontológica da cultura socialista e a questão se formulou nesses termos: qual é o princípio antropológico daquilo que a cultura socialista produz? É certo que o humano cria seu próprio universo de significação, que é a cultura, e é nela que vamos encontrar o ato e a forma da nossa expressividade. Dessa maneira, a reflexão do cristianismo social sobre a cultura socialista no Partido dos Trabalhadores consistiu em assegurar no ato dessa produção petista a unidade que só poderia ser pensada em oposição ao fluxo do tempo e à dispersão do espaço onde a experiência se situava. Essa intuição já tinha inaugurado o pensar da Teologia da Libertação na America Latina. Donde, a unidade ontológica da cultura socialista, aquilo que é inteligivel no seu ser, reside na relação dialética entre a estrutura transcendental da pessoa e aquilo que é ideal no que a cultura de trabalhadores e excluídos produz, que se manifesta na forma transtemporal e transespacial que lhe dá perenidade simbólica. O próprio cristianismo social apresentou-se, então, como paradigma da utilidade ontológica da cultura socialista, pois nela foi tematizada a transcendência da ação.[2]

Assim, a natureza da unidade da cultura socialista foi entendida como unidade analógica, porque a produção cultural socialista se apresentou como expressão da abertura do trabalhador à universalidade do ser brasileiro e foi no horizonte dessa universalidade que essa produção cultural se situou e adquiriu sua idealidade simbólica. Por isso, a unidade da cultura socialista apresentou-se, num primeiro momento, como possibilidade a ser assegurada pelas categorias de estrutura e relação estabelecidas pelo cristianismo social e outras compreensões socialistas e articuladas pelo movimento dialético da expressão da pessoa excluída. 

Dessa maneira, para os cristãos sociais, a unidade passou a ser defendida como uma unidade na diferença e por isso analética,[3] que permitiria aos trabalhadores e socialistas realizarem-se na pluralidade das culturas brasileiras e na profusão de formas por elas produzidas. Foi, pois, a não compreensão do caráter analético da unidade da cultura socialista que deu origem à não compreensão dos universos culturais petistas. Falar do caráter analético dos universos culturais petistas significava afirmar a exterioridade: superar a totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro das tendências petistas. O caráter analético é crítico porque leva à superação da dialética. Afirmar a exterioridade da militância partidária, dos movimentos sociais, realizaria o que era aparentemente impossível para o partido, imprevisível para a totalidade, aquilo que deveria surgir a partir da liberdade não condicionada, revolucionária.

Como a analética é prática, torna-se uma pedagogia e uma política de massas, que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a epifania de todos os trabalhadores e excluídos. E essa analética, então, leva à questão dos universos culturais brasileiros, ao problema das categorias antropológicas que exprimem as relações de trabalhadores e socialistas com a realidade, no âmbito da sua abertura transcendental ao ser brasileiro. A diferenciação dessas categorias obedece à diferenciação do ser na realidade e incide na diferenciação dos modos de relação do trabalhador e socialista com o ser humano brasileiro, de maneira que a categoria de objetividade delimita o campo da relação de produção enquanto campo da relação teórica e campo de relação da práxis. O entrelaçamento dessas relações no existir histórico do PT deveria definir a cultura socialista no partido, pois as diferentes correntes de um partido de trabalhadores como seres em relação são, ontologicamente, seres da cultura socialista, assim como a realidade é, para eles, uma realidade da cultura socialista. A unidade analética da cultura socialista em um partido de trabalhadores deve ser pensada segundo a analogia de atribuição, ordenada em direção à inteligibilidade,[4] porque a determinação dessa direção orienta a discussão sobre a relação entre teoria e práxis. 

  • A terceira práxis do cristianismo social no Partido dos Trabalhadores teve em vista o estatuto ontológico que rege a atividade cultural socialista do ser petista. Esse estatuto ontológico exprime-se como unidade da cultura socialista que encontra sua efetivação nos diversos ciclos da história de um partido de trabalhadores. Mas, ao colocar em evidência a dimensão da realização do brasileiro, o cristianismo social descobriu o caráter normativo que lhe é inerente. E como a ontologia prolonga-se numa ética da cultura, o brasileiro fundou o mundo da cultura brasileira tendo em vista o seu próprio bem. Por isso, o ético não deve ser entendido como um predicado externo à cultura: os dois conceitos tornam-se complementares porque a produção encontra seu lugar no espaço daquilo que é morada do ser humano.[5]

Ethos, então, passa a ser a forma de vida da cultura e é por sua própria natureza conhecimento normativo da cultura. Fazendo-se reflexão ética, a reflexão do cristianismo social sobre a cultura socialista teve a função constitutiva de operar no ser do trabalhador e em sua produção cultural e política. Assim, o cristianismo social tem por objeto a ontologia e a ética do ser militante da cultura socialista petista. É por isso que a tematização ontológica e ética da cultura socialista ocorreu no âmbito do Partido dos Trabalhadores ao nível da sua autojustificação em termos de razão. No momento em que a cultura socialista colocou no seu espaço simbólico os sistemas criados pela razão, entre os quais está o cristianismo social, ela definiu o estatuto dessa produção simbólica, as regras e as normas do seu uso em vista da realização daquilo que é humano. 

Desde o momento em que o campo simbólico da cultura socialista dilatou-se no espaço universal da razão, os limites do ethos tradicional tornaram-se estreitos e coube ao cristianismo social a proposta de um outro ethos, a ética cristã. Por isso, o cristianismo social foi o produtor dessa instauração no PT. O roteiro da ética na cultura petista acompanhou o roteiro seguido pelo pensamento cristão. Ele reflete as dificuldades da cultura petista nessa hora de crise de identidade que é vivida como crise da cultura socialista, mas também como crise ética.[6] Mas tal crise tem um paradigma que traduz este momento especial: esta crise é uma enfermidade da modernidade capitalista. Diante dessa crise, o cristianismo social tinha dois caminhos a seguir: participar do fechamento do sistema sobre si mesmo, favorecendo a totalização do sistema, e cumprir a função de ocultar a dominação. Isto significaria desistorificar a realidade social, desdialetizar um processo que teve gênese e dinâmica próprias. Tal divinização levaria à fetichização, que consiste na identificação da estrutura atual com a vontade divina. Outro caminho seria ver a própria fé cristã como clamor daquele que está excluído, e que precisa de fé para abandonar as ilusões sobre sua própria situação. Por isso, a crítica do cristianismo social no Partido dos Trabalhadores levantou a anterioridade da responsabilidade prática que se tem com o excluído dentro do sistema capitalista brasileiro. Essa anterioridade parte da exigência de que o cristão social deve transcender o sistema vigente de dominação[7] e ver como responsabilidade sua o serviço ao excluído. A fé cristã nesse caso é a instauração de uma nova práxis. E o fato de que a práxis cristã possa chegar ao poder e tornar-se superestrutural não nega o fato de que a crítica profética continue a irromper na história. 

Essa presença de responsabilidade social com o excluído mostra a vigência do clamor crítico e autônomo e funciona como freio das pressões alienantes e superestruturais. Por isso, consciente de seu papel de profeta, dom Hélder Câmara, um dos pais do cristianismo social no país, disse que quando falava da pobreza todos o chamavam de cristão, “mas quando eu falo da causa da pobreza, me chamam de comunista. Quando eu falo que os ricos devem ajudar os pobres, me chamam de santo, mas quando eu falo que os pobres têm que lutar pelos seus direitos, me chamam de subversivo”.[8]

Assim, a crítica do cristianismo social desmitifica para que as pessoas pensem, para que atuem e transformem suas realidades como seres humanos conscientes. Um exemplo dessa crítica cristã social à crise e enfermidade do capitalismo brasileiro, em nossa história recente, foi a decisão da CNBB em criar o Grito dos Excluídos, fazendo um paralelo com o Grito do Ipiranga, de Dom Pedro I, que teria sido um grito de “liberdade ou morte”. A Igreja católica, com o apoio de entidades como a CUT e o MST, fez com que o Sete de Setembro passasse a ser comemorado com mobilizações centradas nas reivindicações dos trabalhadores. Da mesma forma, foram os temas sociais da Campanha da Fraternidade, que ainda no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso perguntou: “Desemprego, por quê?”, chamando assim a atenção para um problema estrutural da sociedade brasileira. Naquele momento o país tinha um desempregado em cada cinco trabalhadores brasileiros. O índice na grande São Paulo, segundo o DIEESE, era de 18% da mão-de-obra. E o índice nacional aproximava-se dos 8%, e o próprio índice oficial falava de aproximadamente 10 milhões de trabalhadores desempregados. Isso, sem levar em conta que os novos trabalhadores, os jovens que deveriam entrar anualmente no mercado de trabalho eram cerca de dois milhões. O país, no entanto, só conseguia criar quinhentos mil novos empregos por ano.

Ora, o clamor crítico e autônomo procede porque em nosso país o cristianismo é a primeira consciência que a pessoa tem de si mesmo, e as relações morais são relações de formatação cristã. Tal realidade, de forma paradoxal, se expressa também no cristianismo conservador e fundamentalista. Isto explica porque as massas, enquanto oprimidas e passivas, vivem a ideologia das classes dominantes e aceitam as respostas que o sistema oferece de forma ambígua para as suas necessidades. Ao aceitar esse cristianismo superestrutural das classes dominantes, enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores, as massas se colocam sob resignação passiva. Por isso, é tarefa dos socialistas verificar a realidade e desmascarar a santidade da auto-alienação. Devem, sem dúvida, fazer a crítica do céu para que se transforme em crítica da terra. Mas, também procede a crítica que o cristianismo social faz, quando diz que o ateísmo, por negar a necessidade da essencialidade perde sentido, pois, ao negar afirma, através da negação, a existência do humano. Ora, o socialismo não necessita dessa mediação, já que surgiu como consciência sensível, teórica e prática do ser humano e da natureza como essência. O socialismo, então, deve fazer a negação da negação da emancipação e da recuperação humana, enquanto princípio dinâmico, embora não seja nem o fim do desenvolvimento humano, nem a forma última da sociedade humana. 

Diante disso, os cristãos sociais precisam entender que sua militância faz parte de uma luta mais ampla, onde o cristianismo infraestrutural é aliado estratégico de trabalhadores e socialistas e que o ateísmo, por isso, é ocultamento, pois fecha as portas ao aliado estratégico, ao cristianismo, que se fará presente enquanto houver seres humanos obstinados pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de justiça, esperança de um novo kairós. Assim, para o cristão social a história brasileira e nela as possibilidades de um partido de trabalhadores são uma produção das massas em movimento, a partir da ação de milhões de trabalhadores e excluídos, que transforma, cria uma nova cultura e produz o nascimento de uma nova sociedade. É num processo permanente que os trabalhadores e seus partidos constróem sua essencialidade: do ser humano em direção ao ser humano. Mas, o êxito nesse processo depende das condições de possibilidade, donde é impossível separar teoria e práxis. Por isso, os cristãos sociais num partido de trabalhadores devem propor a integração dos princípios na escolha de fins que permitam levar à práxis de libertação aqueles que estão excluídos. E diante da crise, o cristianismo social deve chamar pessoas e comunidades à co-responsabilidade pela construção de uma nação com identidade própria, e estimular os cristãos, em nome da sua fé, a se engajaram na política, pois vale a pena servir a uma causa que ultrapassa o momento da crise: tal política é um exercício de amor. 


Notas
[1] Jorge Pinheiro, Somos a imagem de Deus, caminhos para o diálogo da teologia com a brasilidade, op.cit., pp. 94-104. 
[2] Jorge Pinheiro, “É possível dialogar?”, Coluna Opinião, Biblia World Net, São Paulo, 07.2004. Site: www.bibliaworldnet.com.br/index.asp
[3] Enrique Dussel, “Para una fundamentación analéctica de la liberación latinoamericana” (Apéndice 4), Método para una Filosofía de la Liberación, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974, p. 281. 
[4] Gildardo Díaz Novoa, “O Método Analético”, in Enrique Dussel en la Filosofía Latinoamericana y frente a la Filosofía Eurocéntrica, Valladolid, 2001, pp. 151-152. 
[5] Jorge Pinheiro, “Exclusão e liberdade no século 21, a relevância do sentido espiritual da vida”, Coluna Opinião, Biblia World Net, São Paulo, 01.2005. Site: www.bibliaworldnet.com.br/index.asp
[6] Jorge Pinheiro, “Lições da história: finalidade ou tempo de fim?”, Coluna Opinião, Biblia World Net, São Paulo, 04.2005. Site: www.bibliaworldnet.com.br/index.asp
[7] Jorge Pinheiro, “Domínio globalizante e defesa da vida”, São Paulo, Teológica, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, vol. 4, pp. 74 - 93, 2001. 
[8] Frei Betto, “Política e religião”, João Pessoa, Universidade Federal da Paraíba, Campus I, 03.02.1999. Site: www.dhnet.org.br/direitos/militantes/freibetto (Acesso em 06.12.2005).


Ou como dissemos acima: diante da crise, o cristianismo social deve chamar pessoas e comunidades à co-responsabilidade pela construção de uma nação com identidade própria, e estimular os cristãos, em nome da sua fé, a se engajaram na política, pois vale a pena servir a uma causa que ultrapassa o momento da crise: tal política é um exercício de amor. 



vendredi 2 septembre 2016

PT, a questão proletária e seus conflitos internos

A questão proletária e seus conflitos internos
Jorge Pinheiro, PhD



Ora, fazer uma leitura teológica desse espectro do vermelho e das possibilidades de um partido dos trabalhadores implica em fazer uma discussão sobre as origens proletárias do partido e o que isso significa. Foram condições especiais que levaram a massa proletária e a pessoalidade de jovens sindicalistas, cristãos e socialistas a formarem uma síntese, que correspondeu ao ideal da teonomia. Essa massa orgânica, que nem sempre caminha em direção ao ideal da teonomia, no final dos anos 1970 plasmou-se enquanto massa dinâmica no tempo histórico do final do regime militar. Essa massa em movimento é revolucionária,[1] não só no seu sentido político, mas no sentido de fé espiritual e social, gerou um movimento que a levou a ir além do estado de massa, o que se concretizou na organização do Partido dos Trabalhadores.

Apesar do caminho que fez através da democracia de participação e das mobilizações, isto não evitou que o Partido dos Trabalhadores vivesse desde sua origem os conflitos internos do socialismo,[2] que tiveram como ponto de partida a própria condição proletária do partido. Os conflitos da situação proletária no PT surgiram do fato de que esse proletariado industrial e suas direções sindicais tiveram que se apoiar no princípio burguês de gestão da vida cultural, política e social, e, ao mesmo tempo, se opor ao princípio burguês. Ou seja, os conflitos tiveram por base o fato de que esse proletariado industrial deveria ir além, sobrepujar o princípio burguês com os meios deste mesmo princípio. Esta oposição foi inevitável, porque a existência proletária é expressão do princípio burguês. Estão presentes na própria existência do proletariado e, em especial, em suas direções sindicais, o processo de permanente objetivação, reificação e a ruptura com sua própria origem. 

Então, o proletariado, mesmo estando organizado em sindicatos, não pode reagir ao pensamento burguês com total liberdade e independência. Isto porque não se pode responder à reificação apenas com o ethos, é necessário usar meios políticos. Mas, ao mesmo tempo, a situação dos trabalhadores, a cada ação e manifestação, mostrava a milhões de brasileiros que suas existências estavam em contradição com o destino humano. Foi essa realidade, que o conjunto da sociedade brasileira vivia e sentia, que deu força ao movimento operário e o ligou às reivindações democráticas da sociedade. Foi por isso que o princípio protestante da autonomia teve função especial na compreensão da situação brasileira, pois ao ser olhado a partir da situação proletária, mostrou que a realidade brasileira nos anos da ditadura militar se apresentava como cisão demoníaca ou alienação. Estes elementos que desde o início estiveram correlacionados à situação de classe dos trabalhadores, que formaram a base social do PT, ligados à consciência da necessidade de lutar pelo socialismo, tiveram para os brasileiros uma significação universal. 

E são esses elementos que nos permitem falar de espectro do vermelho, que vão além dos atributos de classe, mas fizeram parte do conteúdo humano levantado nas bandeiras de luta do Partido dos Trabalhadores. Dessa maneira, como em outros momentos da história, setores do proletariado brasileiro descobriram que esses direitos que brotam da autonomia o ligavam a outros grupos humanos e que a miséria tocava tanto seus corpos como suas almas. E que esses elementos originais daquilo que é humano são realidades presentes que os levam à luta contra o princípio burguês. Esta é a razão porque o cristianismo social deve dialogar com o materialismo proletário pela construção de uma nova sociedade. E nesse diálogo deve, também, lembrar ao socialismo que a miséria dos trabalhadores e excluídos não é somente uma miséria econômica e social, mas humana.

Nos primeiros vinte anos da história do PT vimos que a oposição entre a fé cristã e o socialismo não estava na utilização do método dialético e nem mesmo no materialismo, mas na leitura dos fatores intra-históricos, já que para os cristãos sociais a história é definida pela combinação de fatores intra e supra-históricos. A ausência desse elemento transistórico no socialismo materialista tende a levar as correntes socialistas a caminharem numa direção contrária a do próprio socialismo, pois ao não entendem a irrupção do kairós, caminham para o desencantamento. O kairós é um tempo carregado de tensão e transformação, já que nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos. O kairós reina no tempo presente, que é diferente dos tempos do passado. É nessa viva consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser construída uma ação política consciente da história, a revolução.

A concepção conservadora, que se plamou na corrente sindicalista do PT, liderada pela tendência Articulação, perdeu o sentido supratemporal do kairós, e, por isso, o pensamento conservador petista congelou as possibilidades de transformação da realidade brasileira. O mito fundador do PT expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de eventos nos quais o partido pode perceber sua origem. Mas, em seu mito fundador ressoam as leis cíclicas do nascimento e da morte, que promete a segurança da origem e o coloca debaixo de seu império. 

Por isso, a raiz do pensamento político conservador petista é essa consciência mítica original. Esse é o nó de origem do Partido dos Trabalhadores: a partir da utopia que lhe deu nascimento, parte da militância quis congelar sua saga de origem, eternizando os momentos de vitória do início dos anos 1980. Mas o sentido supratemporal daquele kairós abala o tempo e seus conteúdos e é por isso que a utopia leva à decepção. Ela esquece o presente e se lança à frente, mas este estar no passado ou no futuro faz do presente um tempo pobre, e é isso que desencanta a utopia, principalmente as lideranças sindicais, que estão sob forte pressão do princípio burguês. Daí que a realização da espera socialista não pode ser entendida como um conceito meramente empírico, pois a utopia é impotente para enfrentar os poderes da sociedade. Quando o PT não se questiona a respeito da promessa socialista, sua espera deixa de estar orientada em direção à realização, pois a esperança exorta a luta política a caminhar na direção do presente prometido. A ação dinâmica dos trabalhadores deve criar novas possibilidades de existência, provocar antecipações significativas do futuro. Na ação animada pela espera, há transformações e superações, mas não se alcança uma existência humana isenta de ameaça. Por isso, o princípio último da justiça é o reconhecimento da dignidade do ser humano como pessoa e dos ameaçados pela injustiça.

O PT, sem dúvida, foi além do colocar-se como realidade dada. Fez a experiência de uma exigência que o separou do imediato da concepção socialista e o levou a colocar-se diante da pergunta: por que o PT é assim?[3] Esta pergunta quebrou o ciclo nascimento/morte e lançou o PT numa realidade nova e desconhecida. A pergunta pela razão de ser do PT é a exigência de algo que tem que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que é, significa que tal exigência impôs ao PT o incondicional. 

O questionamento pela razão de ser do PT está fora dos limites da origem e através dela o partido deve alcançar algo incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência: quando o Partido dos Trabalhadores, por ser um partido dividido, que tem contradições, faz esta experiência, ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além daquilo que o cerca. Tal é a liberdade do partido: suas lideranças e suas bases não têm vontades livres de circunstâncias e situações, mas também não estão presas ao que está dado. A existência e ação petistas não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe, para lideranças e bases, podem ser rasgados os laços da origem, o mito original será quebrado. Essa ruptura do mito original pelo incondicional da exigência é a raiz do surgimento do pensamento democrático no Partido dos Trabalhadores. Mas, essa concepção democrática, que é progressista, tem seus limites, pois considera a utopia um alvo colocado à frente, que se realiza a conta-gotas, que não se apresenta enquanto revolução. Assim, os tempos tornam-se sem decisão. 

Nessa concepção democrática, e aqui estão representados os socialismos reformistas no PT, existe uma tensão diante daquilo que o partido foi, pois a consciência de que o alvo se dá por etapas leva a um compromisso continuado com o passado, por isso a concepção democrática em si mesma não oferece opção ao que está dado. Transforma-se em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última. Esse progressismo mitigado é a atitude característica das tendências do socialismo reformista no PT e é uma ameaça, pois significa a supressão do kairós, do anúncio da plenitude dos tempos. Esse socialismo reformista é o grande adversário da autonomia crítica.

Mas, a exigência que o Partido dos Trabalhadores faz na experiência diante do que é incondicional não é estranha a sua história. Se fosse estranha, o PT não poderia entender tal coisa como exigência. Se ela toca sua militância é porque coloca diante de seus olhos a sua essência enquanto exigência. Funda-se, então, a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser confronta a cada dia o partido e exige ser afirmado por ele. Se a exigência da incondicionalidade do PT é sua própria essência de um partido de trabalhadores, nascido das lutas sociais, a essência do PT encontra seu fundamento na sua origem e, então, a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. 

A pura consciência mítica original ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que faz a experiência da exigência daquilo que é incondicional se livra dos laços de origem e se apercebe da ambigüidade da origem. Por isso, um partido de trabalhadores não recebe sua exigência incondicional de partidos não-operários e não-socialistas: é no encontro com as massas em movimento que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido pelas massas com a dignidade de partido dos trabalhadores, dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que aponta à origem. 

Reconhecer nas massas em movimento uma dignidade igual ao de partido dos trabalhadores é justiça: e a exigência que arrasta um partido de trabalhadores à ambigüidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação tanto do partido como a imobilização das massas. Quando a origem é rompida vem o poder de ser partido dos trabalhadores, o declínio dos poderes julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo. 

Diante do poder e da impotência de ser partido de trabalhadores, opõe-se a justiça, que provém do dever-ser. Portanto, não há uma simples oposição, porque o dever-ser é a realização do ser partido de trabalhadores. A justiça é o verdadeiro poder de ser PT. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre as diferentes tendências existentes no partido e as duas grandes vertentes de pensamento político, democracia radical versus socialismo, a exigência deve predominar sobre a origem, e a justiça sobre o poder de ser partido de trabalhadores. 

A pergunta pela razão será superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença desvelada. Esse é o caminho da utopia socialista. Sem o espírito utópico socialista não há protesto, nem transformação. Assim, a realização do criticismo profético se encontra além do tempo, lá onde a utopia socialista pode perder força, mas sua ação continua presente. Mas toda transformação exige uma compreensão do momento vivido, deve entender que há um choque entre a utopia socialista e o kairós. É a partir dessa compreensão do que significa o espírito crítico do profetismo no tempo presente, que se deve voltar ao kairós, à revolução que abala o tempo e os lugares, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inetulável. 

E tal desafio não pode ser resolvido por um líder, por mais que expresse a utopia petista: o sujeito da transformação será, em última instância, a comunidade dos excluídos em movimento. Ora, as raízes do pensamento político petista mantêm relações que vão além da soma de diferenças, porque a exigência predomina sobre a origem. E quando decisões são requeridas, o conceito tradicional de compreensão da realidade não é aplicável, porque não é possível entender o socialismo quando não se experimenta a exigência da justiça como uma exigência incondicional. Quem não é confrontado por esta exigência não pode falar de socialismo, a não ser enquanto expressão externa. Aqui reside a polarização de opiniões que a discussão sobre socialismo e democracia gerou dentro do Partido dos Trabalhadores. 

Frente à realidade das tendências e das diferentes raízes de pensamento político, está posto que toda ação política dentro do partido, mas também diante da sociedade, requer autoridade, não só no sentido do uso do poder, mas também em termos de consentimento manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível quando o partido representa uma idéia que tenha significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia. Exatamente por isso, autoridade e autonomia estão presentes no Partido dos Trabalhadores e não podem existir sem a correção da democracia, enquanto mediação, e do direito de tendências. 

Isto porque o socialismo proposto pelo PT colocou a questão da possibilidade de que a vida tenha sentido para todas as pessoas e que deveria se esforçar para responder a esta questão no plano da realidade e do pensamento. Já os cristãos sociais dentro do PT acrescentaram algo a essa compreensão ao dizer que o socialismo não deve ser apenas um movimento político, pois é maior que o próprio movimento das massas trabalhadores: deve ser um movimento que procure apreender cada aspecto da vida e cada grupo da sociedade. 

Para os cristãos sociais dentro de um partido de trabalhadores este seria o desafio: manter o socialismo de origem, sem se deixar congelar por ele; projetar seus sonhos, sem sacrificar vidas no altar da utopia; ser democrático, participativo e representativo, quando a intolerância e o arbítrio marcaram e fazem parte da tradição política brasileira. E ser voz do criticismo profético que se projeta além das classes, neste agora onde a utopia socialista deve parir o kairós, a revolução.


Notas
[1] Paul Tillich, “Masse et Esprit. Études de philosophie de la masse” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 
[2] Jorge Pinheiro dos Santos, “Socialismo e religião no processo de fundação do Partido dos Trabalhadores, uma leitura a partir de Paul Tillich”, Correlatio 4, dezembro 2004, São Bernardo do Campo. Site: www.metodista.br/correlatio 
[3] Jorge Pinheiro, “Politique et religion, un éclairage tillichien sur le socialisme brésilien”, in Marc Boss, Doris Lax, Jean Richard (orgs.), Ethique sociale et socialisme religieux, Munique, LIT Verlag Munster, 2005.



Ou como dissemos acima, para os cristãos sociais dentro de um partido de trabalhadores este seria o desafio: manter o socialismo de origem, sem se deixar congelar por ele; projetar seus sonhos, sem sacrificar vidas no altar da utopia; ser democrático, participativo e representativo, quando a intolerância e o arbítrio marcaram e fazem parte da tradição política brasileira. E ser voz do criticismo profético que se projeta além das classes, neste agora onde a utopia socialista deve parir o kairós, a revolução.



jeudi 1 septembre 2016

Brasil hoje, a questão do poder e seus desdobramentos

A questão do poder e seus desdobramentos

Uma leitura a partir do Partido dos Trabalhadores

Jorge Pinheiro, PhD


Quando trazemos esta discussão para a realidade brasileira, vemos que a partir dos anos 1960 com o engajamento de católicos e protestantes na luta contra o regime militar tomou corpo o debate sobre a responsabilidade política da comunidade cristã. Foi e continua sendo importante para o cristianismo brasileiro que tal discussão se faça, mas expressivos setores da comunidade cristã ainda não ultrapassaram a espiritualidade privatizada em direção ao compromisso social. Por isso, é necessário reconstruir aqui o caminho desse diálogo da fé cristã com a política, já que se o ser é o poder de ser, mesmo em seu sentido metafórico, o poder supõe um objeto sobre o qual possa exercer seu poder. A política tem uma essência: o uso do poder. E o poder determina os caminhos da sociedade. E esse poder político recorre à autoridade social instituída e possibilita ao Estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos. Mas as convicções pessoais sobre a transcendência e sua soberania, numa leitura reducionista da espiritualidade, quando vê apenas sua dimensão negativa, têm implicações no pensar a política. Ao optar por uma espiritualidade privatizada,[1] ofusca-se caminhos e mascaram-se práticas, às vezes, não éticas, mas de atitudes aparentemente piedosas. E dessa maneira, a política não tem sido aceita por essa espiritualidade negativa brasileira, que apresenta propostas de uma ordem política onde o amor sem poder supere o poder sem amor.[2]

Ao analisar tais propostas, que ressuscitam entre os protestantes a teoria social dos anabatistas, de contrapor as políticas de poder ao amor cristão, vemos que para o negativismo é impossível integrar política e estilo de vida cristão. Chamam, então, à igreja a rejeitar qualquer forma de poder representado na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitarem as políticas de poder da sociedade, aceitam, por exclusão, já que a política também se faz por omissão, o uso do poder que está instituído, pois, ao não defenderem uma retirada do mundo, colocam-se sob o poder presente. Neste sentido, diferem do separatismo batista, que historicamente propôs a radical separação entre Igreja e Estado em nome da liberdade de consciência. Este separatismo acreditava que o fracasso das políticas de poder são impedimentos para a manifestação da transcendência. Era um fundamentalismo de cunho liberal, fazia a crítica da política e propunha o distanciamento físico dos poderes do mundo. O que nos obriga a admitir que traduzia uma atitude política consciente. Hoje, a espiritualidade cristã brasileira não é separatista e não foge do mundo: acredita ter uma missão moral de transformação, mas, muitas vezes, nega a possibilidade de real envolvimento político, por temer o poder político. Ora, se a comunidade cristã tem uma ética política, deve utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca. Rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham consciência do que estão fazendo e, coerentemente, proponham o abandono do mundo. Quando uma comunidade acredita que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus, tem-se a negação da política como política cristã, o que fortalece aqueles grupos que buscam o poder em benefício próprio. E, ao contrário do que crê o negativismo, tal postura não estabelece o reino de Deus. 

Se não é possível falar de política sem falar de poder, outra questão se coloca: amor e poder são compatíveis?[3] A pergunta procede porque a espiritualidade remete à prática do serviço ao próximo, mas, em nome da espiritualidade e do amor ao próximo, comunidades cristãs negam a possibilidade de todo e qualquer poder. Tal postura apresenta-se como equívoco, pois o poder não é uma identidade morta, mas um movimento reflexivo, onde o ser se separa dele para depois retornar a ele de novo. O poder, dessa maneira, é tão maior quanto maior for a separação vencida. E o movimento que reúne aquilo que estava separado é o amor. Mas se há um amor reunificador, há o não-ser vencido e há o poder de ser, por isso, o amor é a base e não a negação do poder. Tal amor é um ato da vontade, porém, não se pode forçar uma pessoa a amar alguém. Já os atos políticos contêm elementos não voluntários, porque o poder do Estado está associado a ações que podem estar fora da vontade da pessoa, enquanto o ato de amor está associado a ações do querer. Outro fato importante é que o amor deve ser mediado pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita da existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre necesita de um agente moral livre. O Estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente.

A relação da pessoa com o Estado é uma relação cidadão/instituição em lugar da relação eu/você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor. Além disso, o amor tem um caráter sacrificial. Ou seja, possibilita ações que a despeito dos interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro ganhe. Sacrificam-se direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado. Ou seja, por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita. É por isso que o amor pode se transformar segundo as exigências concretas das pessoas e das instituições sociais, sem perder a dignidade incondicional. Assim, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. E, finalmente, que o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem. 

A política implica em servidão não voluntária, já que sua natureza baseia-se no uso da coerção e da força para alcançar seus fins. É organização formal e opera impessoalmente, e os políticos, mesmo quando são trabalhadores e socialistas, se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio Estado. Nessas condições, a maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob uma ordem política, seja ela dirigida por trabalhadores e socialistas ou não, que responde às exigências de sua obrigação moral. E quando isso não acontece podem levantar um chamado à rebelião contra o Estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que é sua obrigação moral. Fazendo assim atuam no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negue os limites de seu poder de Estado ou passe por cima das obrigações que tem com as pessoas. Não obstante, mesmo para um governo dos trabalhadores, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre as pessoas é um contra-senso, pois moralmente não se pode coagir ninguém ao amor. Tal coerção destruiria também a obrigação moral do Estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário.

Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como a comunidade cristã, católica ou evangélica, deve se situar frente à política implementada por um partido de trabalhadores? Colocada a questão nestes termos, de fato é difícil escolher entre ser massa, mas cidadão do reino, e ser um militante atuante à margem da salvação. Como seguir o caminho cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder político? A alternativa de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder é o conceito de justiça. E justiça, num sentido amplo, significa dar às pessoas aquilo que por direito lhes pertence. Mas aqui outra questão se levanta: o que por direito lhes pertence? Uma possibilidade de resposta é entender a justiça como a maneira através da qual o poder deve ser realizado. Nesse caso, a justiça deve estar em sintonia com o movimento do poder, deve ser capaz de dar forma ao encontro da pessoa com outra pessoa. O problema da justiça no encontro surge do fato de que é impossível dizer como se organizará a relação de forças nesses encontros. A cada momento existem inúmeras possibilidades. E cada uma dessas possibilidades exige uma forma particular de justiça. Assim, as reivindicações da justiça só podem ser operacionais numa comunidade se forem definidas com um grau significante de particularidade, pois a justiça requer julgamentos diferentes diante de reivindicações contraditórias. Donde, não basta justiça como generalidade. É necessário trabalhar a compreensão de justiça no particular, para não cair no moralismo, quando não se tem nada a oferecer por se falar de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes.

Muitas vezes o Partido dos Trabalhadores, em especial sua corrente cristã, considerou que fazer justiça significava dar a cada pessoa aquilo que lhe é por direito, mas essa afirmação colocava algumas questões: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e políticas em que se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e políticas. Ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser e fizeram parte dos debates políticos entre os cristãos e o socialismo reformista no Partido dos Trabalhadores. 

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, as correntes cristãs fundamentalistas têm rejeitado o conceito de justiça enquanto ordem possível na humanidade. A justiça enquanto ordem possível na humanidade traduz a idéia de que o ser humano tem um conhecimento universal do bem e por isso compreende a necessidade de justiça. O novo conceito defendido pelas comunidades fundamentalistas é o de que a justiça é uma ordem apenas possível através da redenção e, por isso, não existiria um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Dentro dessa leitura teológica, só houve justiça na origem. Assim, ao rejeitar a possibilidade de uma ordem universal fora da revelação, tal compreensão teológica leva a um problema epistemológico, pois afirma que a razão não tem nada a dizer fora da revelação.[4]

Essa visão teve e tem conseqüências práticas na elaboração de estratégias para a ação política, porque define que só a partir da fé se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não poderiam, como conseqüência, militar politicamente com não-cristãos, pois não há base secular para o envolvimento político dos cristãos. Desse modo, ao negar o conhecimento natural do bem político, a única alternativa é omitir-se, porque política é coisa mundana, ou estabelecer uma política cristã sectária. Por isso, o fundamentalismo no Brasil buscou impor normas redentivas, favorecendo o distanciamento dos fiéis da política, ao contrário daqueles que defendem uma teologia do conhecimento universal do bem, que rechaça a negatividade das ordenanças da redenção por isolar, alienar e separar a pessoa e a comunidade da prática política. 

Ora, numa leitura teológica do conhecimento universal do bem, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito, pois estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas têm um conhecimento do bem: donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. Assim, a justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante. E devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos cidadãos buscaram trazer para as democracias representativas. É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados. É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que existem independentemente da volição humana. Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações em nome da justiça e podem ser rejeitadas reivindicações em nome da justiça. Considerando que o amor deve ser volitivamente entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade. 

Essa discussão sobre a justiça nos leva à questão da democracia. A partir da Revolução Francesa de 1789, as declarações de direitos passaram a se abrir com o enunciado de que os seres humanos são livres e iguais. Foi assim que a Europa assumiu a realidade da dimensão universal do direito à liberdade e à igualdade, que mobilizou os movimentos de libertação de escravos, mulheres e povos. A constatação desse direito à liberdade e à igualdade legitimou as revoluções burguesas, e a democracia representativa apresentou-se como a forma política através da qual essas liberdades se exprimiriam. Mas, a democracia representativa enquanto expressão da justiça entrou em crise, porque cultura da modernidade burguesa se encontrava em crise. No Brasil, recentemente, tal situação foi presenciada no final do governo militar, com a campanha pelas Diretas, que mobilizou dois milhões de pessoas nos atos realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro. Mas, diante do possível desmoronamento do regime militar, iniciou-se um processo onde a democracia representativa funcionou não como forma política de expressão dos direitos à liberdade e igualdade, mas como elemento de controle e restrição dessas liberdades. E as eleições surgiram, então, como alternativa para que o fim do regime militar não desembocasse numa derrocada fragorosa e a mobilização das massas levasse a uma ampliação da democracia participativa. Essa democracia de amplo espectro, participativa, que surge à galope do movimento das massas dinâmicas, é o que chamamos de revolução democrática. 

No Brasil a revolução democrática, entendida como dinâmica que leva ao socialismo e defendida pelos democratas radicais e socialistas reformistas, já tinha sido abortada em 1964, e o foi de novo em 1984, quando ficou claro que as mobilizações conduziriam à extinção do autoritarismo militar e civil. Em 1964, assim como em 1984, o Brasil arrancou na direção de uma democracia de participação. No correr da década de 1990, no entanto, voltaram a surgir condições para uma expansão da democracia de participação, onde a classe trabalhadora, sob a liderança do PT, poderia marchar em direção ao governo, já que a Constituição de 1988 abrira essa possibilidade, e as mobilizações das massas surgidas a partir da deterioração da ordem legal davam às pessoas e aos movimentos o lugar de atores sociais. De fato, as eleições possibilitaram a conquista de espaços democráticos representativos, e permitiram que a voz social e política dos trabalhadores fosse ouvida nacionalmente. E, possibilitou também que as intervenções dos trabalhadores fossem num crescendo diante do debilitamento da política neoliberal. Assim, os trabalhadores começaram a enfrentar seus adversários no próprio campo da luta eleitoral, conquistando espaços democráticos representativos, mas essas vitórias políticas foram aos poucos, dentro do PT, fortalecendo as teses de que o objetivo era a revolução democrática, nesta etapa democrático-burguesa da revolução, e não a conquista do poder e a construção de uma nova sociedade socialista.

A democracia representativa não é um fim em si, mas instrumento de mediação das relações de poder. Isto pode ser compeendido quanto se constata que a democracia representativa enquanto objetivo da revolução burguesa encontra-se em crise, porque se tornou escrava das leis de mercado. Assim, como toda a sociedade burguesa, ela astá submetida à economia. Essa enfermidade crônica da democracia representativa levou os trabalhadores a viverem num mundo sem garantias. Logicamente, se há crise cabe perguntar se pode haver transformação, embora se saiba que transformar não signifique necessariamente restaurar valores que já não respondem às necessidades de trabalhadores e excluídos. Fazer assim seria heteronomia, que só reafirma o autoritarismo. 

Transformar o princípio de liberdade e igualdade significa construir uma democracia participativa, o que se traduz na idéia solidária da incondicionalidade da justiça. Os valores devem e precisam ser construídos, mas isso significa dizer que as massas em movimento, autônomas, devem participativamente tomar a democracia representativa de assalto, pois ela não é um estado natural da sociedade, é sempre uma construção. Por isso, necessita ser vivida criativamente, sempre, e diante da ditadura das leis do mercado, dos fundamentalismos e das mídias controladas pelos grandes grupos, a democracia tem que ser liberdade e igualdade para aquela maioria que não tem voz e vez. Se a democracia é mediadora, embora não seja um fim em si, não basta que as pessoas votem, elejam governantes, e permaneçam distante das ações do poder: democracia vivida implica em participação. Mas a democracia não pode ser vivida exclusivamente a partir daquilo que é pré-estabelecido. Dizer que a democracia é uma mediação fundamental nas relações entre classes e partidos não significa que em todos os lugares ela será igual. Se os seres humanos podem ser livres e iguais, as sociedades têm que se articular para a maioria excluída, e este é o caso brasileiro, os direitos à liberdade devem levar aos direitos sociais, à igualdade. Mas se não existirem as mesmas condições de possibilidade não pode funcionar a democracia, pois se não garante a realização da liberdade não se pode esperar que funcione enquanto mediação fundada sobre os princípios da justiça social. E não basta os mitos fundantes da democracia afirmarem o caráter universal de que “todos os seres humanos são livres e iguais”: esta só pode se realizar enquanto comunidade internacional ativamente participante. Essa é a base do internacionalismo defendido pelos trabalhadores e socialistas. E tal discussão nos remete, mais uma vez, à questão da transcendência da justiça.

Se a transcendência da justiça está correlacionada à transcendência do amor, em termos teológicos amor e justiça não podem ser contrapostos. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça. E se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelas pessoas e comunidades para criar ações que sirvam às reivindicações da justiça. Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Isso significa dizer que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins. Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer a um governo dos trabalhadores que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça. Mas como os cristãos sociais proclamam, as boas noticías da autonomia, sensibilizam as comunidades para as demandas da justiça. Conseqüentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor. Assim, usar o Estado como um instrumento de amor está fora do objetivo de um partido de trabalhadores, pois levaria a um Estado sectário, quando não totalitário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça serão usadas pelo partido para delimitar o que é meu e o que é teu. Negar a justiça em nome do amor seria negar os direitos das pessoas, que são a base de qualquer democracia representativa e participativa. O conceito de justiça, então, aliado aos de amor e poder apresentam as alternativas para as comunidades cristãs ao pensar a ação política em um partido de trabalhadores. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça, possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas. Por isso, Herbert de Souza, Betinho, que foi ativista da Juventude Universitária Católica e combatente da Ação Popular, disse que a fome é exclusão, da terra, da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Porque, quando uma pessoa chega a não ter o que comer, tudo o mais já lhe foi negado. Ou seja, é morte em vida. E concluiu que a alma da fome é política.[5] O clamor de Betinho foi um clamor para que a justiça desse sentido humano à política. E acreditou nessa possibilidade: Disse que o ato solidário é um movimento no sentido oposto a tudo o que se produziu até agora, que é uma mudança de paradigma: “como um olhar novo que mostra todas as relações, (...) restabelecendo as bases de uma reconstrução radical de toda a sociedade. Se a exclusão produziu a miséria, a união destruirá a produção da miséria, produzirá a cidadania plena, geral e irrestrita”.[6]

Quando a justiça é negada, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo da vida da ação política, já que a injustiça só será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e essa é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido. Assim, a síntese deste diálogo pertinente entre cristianismo e política é a justiça. Esta é razão de ser de um partido de trabalhadores. Mas para entender tal relação é necessário compreender o mito fundante petista e o que ele representou. O mito de origem do Partido dos Trabalhadores é o socialismo, traduzido principalmente na experiência da revolução cubana. Essa realidade pode ser vista na preocupação sempre presente de defesa da revolução cubana, de seus líderes e de suas ações políticas, mesmo as mais discutíveis. 

A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo que não existia antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade daquilo que um partido de trabalhadores é está colocado, mas também é algo que lhe é próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio, já que a origem não liberta. Não se pode dizer que o PT era e que não é mais. Isto porque, a origem puxa, segura firme: é ela que estabelece o PT como algo, mas, também para o PT ser-posto no mundo significa amadurecer, envelhecer e, inclusive, morrer. 


Notas

[1] Jorge Pinheiro dos Santos, “Teologia da Libertação e exclusão no século 21”, in Etienne Higuet (org.), Teologia e Modernidade, São Paulo, Fonte Editorial, 2005, pp. 171-182. 
[2] Paul Tillich, Amor, poder e justiça, São Paulo, Novo Século, 2004, p. 109. Amour, pouvoir et justice, Analyses ontologiques et applications éthiques, Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1963 et 1964, números 4 e 5. Love, Power and Justice, Ontological Analyses and Ethical Applications, Nova York, Londres, Oxford University Press, 1954. 
[3] Paul Tillich, Amor, poder e justiça, op. cit., p. 109. 
[4] Jorge Pinheiro, Somos a imagem de Deus, caminhos para o diálogo da teologia com a brasilidade, São Paulo, Editora Ágape, 2001, pp. 58-62. 
[5] Herbert de Souza e Carla Rodrigues, “A Alma da Fome é Política”, Jornal do Brasil, 12.09.1993, apud, Ética e cidadania, São Paulo, Moderna, 1995, pp.22-25. 
[6] Herbert de Souza e Carla Rodrigues, “A Alma da Fome é Política”, op. cit. pp. .22-25.



E como dissemos acima: a origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo que não existia antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade daquilo que um partido de trabalhadores é está colocado, mas também é algo que lhe é próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio, já que a origem não liberta. Não se pode dizer que o PT era e que não é mais. Isto porque, a origem puxa, segura firme: é ela que estabelece o PT como algo, mas, também para o PT ser-posto no mundo significa amadurecer, envelhecer e, inclusive, morrer