mardi 11 octobre 2016

Revelação e processo epistemológico no estudo da religião de Israel

Estudo da religião de Israel, algumas questões de método
Jorge Pinheiro


Quando se estuda a religião de Israel, questões referentes à revelação e ao processo epistemológico parecem difíceis de compreender. Duas macrocorrentes do pensamento teológico apresentaram nos últimos dois séculos respostas para essas questões. Uma que parece evidente e coloca a ênfase na revelação, outra vê a religião de Israel como inflexão da experiência cultural e religiosa dos povos vizinhos.

Essas duas correntes, apesar do arsenal considerável de informações reunidas, que não podem ser descartadas, pecam ao nível da metodologia. Não levam em conta que todo conhecimento pressupõe elaboração nova e exige do estudioso jamais esquecer a dialética de qualquer processo social e histórico. Apresenta-se diretamente ligado ao ser humano enquanto sujeito, dá-se no terreno formal e só torna-se necessário depois de elaborado. Mas, também, acontece no terreno do real e possibilita a conquista da objetividade.

É um erro afirmar que uma nova estrutura pode ser fruto único de um processo exclusivo apriorístico, revelado ou inato; ou, por oposição, que repousa exclusivamente em características preexistentes no objeto. Em ambas os casos, o erro consiste em definir o conhecimento como predeterminado, quer por estruturas internas ao sujeito, quer por características preexistentes no objeto. Descarta-se, assim, o conhecimento enquanto construção efetiva e contínua.

O conhecimento não começa com um sujeito plenamente consciente de seu ato histórico, nem de realidades definidas a priori. Resulta sim de interações que surgem da combinação de fatores múltiplos, que vão criando dependência e novas relações. Não é um intercâmbio entre formas diferentes, mas a construção de realidades com plasticidades. A este processo de surgimento de novas estruturas chamamos revolução. Isto porque são construções de conhecimento e não crescença ou reforma de uma estrutura já conhecida. Aqui, temos crise e ruptura de estruturas e conhecimentos anteriores, gerando fatores que criam novas relações e novos equilíbrios. Nesse processo haverá sempre um ou vários desequilíbrios iniciais, uma crise epistemológica, que rompe esquemas definidos, gerando movimentos que parecem estar fora do controle do sujeito.

Em relação à religião de Israel assistimos a essa revolução epistemológica em dois momentos. Em primeiro lugar, em seu próprio surgimento, ou seja, com a aliança abraâmica. E, posteriormente, durante o processo que se abre com a guerra dos macabeus. Nesses dois momentos, movimentos ao nível do indivíduo e sociais desencadearam processos diferentes que revolucionaram o próprio conceito de religião e, por extensão, mudaram a face da fé em todo o mundo. Ou como diz Schillebeeckx:

“Não existe uma experiência da Revelação sem mediação histórico-social; além disso, a Revelação tem também, na realidade, um papel de mediação com relação à autocompreensão das comunidades, de modo que a Revelação tem, inclusive, uma função ideológica. Este fato é analisado de duas formas: de maneira histórico-crítica e de maneira temática; em ambos os casos constata-se que a experiência da Revelação implica sempre uma teologia política, seja no sentido afirmativo (e renovador), seja em sentido pioneiro (abrindo o futuro)”. [1]

Metodologicamente, com o aparecimento da aliança abraâmica e com a guerra dos macabeus temos na história da religião de Israel o surgimento de estruturas epistemológicas novas.

A aliança sinaítica é um fenômeno de consolidação em relação à aliança anterior. É uma normatização. E o movimento liderado por Esdras, no período pós-exílio, é um momento de reforma, partenogênese do judaísmo. A revolução virá depois, no bojo da guerra dos macabeus. Entender esse processo é definir uma metodologia para a compreensão da história da religião de Israel e, por extensão, dos fenômenos sociais e históricos que eclodiram com o surgimento do cristianismo.

A tradição bíblica apresenta os pais da humanidade e os patriarcas como monoteístas. Adão, Sete, Noé, Abraão e seus descendentes conheciam Elohim, [2] o Deus único, e guardavam seus preceitos. O henoteísmo surge como excrescência e o politeísmo como degeneração. Essa visão, ainda hoje, prevalece no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, e era hegemônica em toda a cultura ocidental até há duzentos anos. No entanto, a partir de Darwin e do desenvolvimento das ciências naturais no século dezenove essa crença foi seriamente abalada.

A visão clássica da crítica bíblica, da qual Karl Graf, Abraham Kuenen e J. Wellhausen são expoentes, parte de uma construção progressiva do desenvolvimento da profecia clássica que caminha em direção ao monoteísmo ético. A estrutura construída por Wellhausen, por exemplo, é persuasiva, tem coesão interna e ajusta pormenores antes difíceis no texto das Escrituras hebraicas. Assim, apesar dos avanços da crítica posterior, sua visão do desenvolvimento e da datação das fontes continua sendo importante para os estudos modernos. A partir daí, podemos tirar três referências da teoria de Wellhausen, que devem ser consideradas: (1) A análise das três fontes primárias: JE, narrativas javista e da tradição do reino do norte, combinadas e editadas nos séculos nove e oito antes de Cristo; P, narrativa histórica expandida interessada na origem e nos regulamentos das instituições de Israel, presente no período do exílio e da restauração; e D, material que forma o núcleo do livro de Deuteronômio, composta na época de Josias, com suas leis e arcabouço narrativo. (2) O atual livro da Torah não era nos tempos pré-exílicos, canônicos e obrigatórios para a nação. A literatura que iria ser incorporada à Torah existia em vários documentos e versões. Um único livro ainda não fora cristalizado. Antes houve um período extenso de criação literária por parte de sacerdotes e escritores religiosos. (3) O livro de Deuteronômio foi promulgado no reinado de Josias e a Torah, como um todo, foi fixada na época de Esdras e Neemias.

Para os defensores da hipótese Graf-welhausiana, os profetas literários criaram o monoteísmo ético, e a Torah é a formulação sacerdotal-popular posterior do pensamento profético. Essa hermenêutica analisa as Escrituras como documento histórico-textual, à luz de outros textos religiosos, da história, da poesia e dos mitos dos povos vizinhos a Israel. Preocupado com questões de autoria, data, circunstâncias, estilo e desenvolvimento do pensamento, o conteúdo da Revelação tem valor secundário. Como conseqüência, tal postura leva a dois problemas: nega a história bíblica como está apresentada no texto sagrado e propõe alterações em sua mensagem, a fim de refletir o desenvolvimento do pensamento religioso. Assim, nossa divergência com Wellhausen se dá com respeito a datação da parte principal do Pentateuco, o Código Sacerdotal, e a relação do Pentateuco com a profecia clássica. E a pergunta que faz é: até que ponto a Torah pode ser usada como fonte da fase mais antiga da religião de Israel? Ou, o monoteísmo da Torah é pré-profético? A tradição bíblica nos conta que os pais da raça humana e os patriarcas de Israel eram monoteístas. Dessa maneira, a idolatria teria surgido como degeneração posterior. Esta compreensão prevalece nas principais cosmovisões teístas: no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Por isso, afirmamos que o monoteísmo de Israel é anterior ao profetismo clássico e ao próprio surgimento do Pentateuco.

Duas questões são pertinentes nessa discussão com a crítica bíblica: memória e oralidade. [3] A construção da memória dos clãs de Deus deve ser vista como fenômeno dinâmico e não como conhecimento apriorístico e externo à vida desses clãs. A memória é atividade, imaginação, lembrança e esquecimento, enfim, um trabalho de criação coletiva.

Diante da ameaça de extermínio, de escravidão e exclusão em meio à civilização egípcia, e sem documentação formal que comprovasse suas origens e chamado por parte de Deus, surgiu a necessidade de construção de uma história após a fuga e a travessia do mar Vermelho. E será essa necessidade que levará esse aglomerado de gentes a fazer a transição da memória da oralidade étnica, oriunda dos tempos imemoriais do Pai Alto (ab ram), em direção a um longo período onde oralidade e escrita começaram a conviver. A escrita surgiu então no deserto como tentativa de assenhoramento da memória, ferramenta reveladora de um passado épico, de uma história grande, com heróis forjados nas experiências com o Deus eterno. Nesse enredo que busca as origens estarão presentes as memórias pessoais e coletivas.

As relações entre memória, oralidade e escrita na história de Israel são complexas e dificultam uma leitura simples da religião de Israel. Por isso, consideramos que podemos falar de três grandes ciclos que caminham da memória oral à memória escrita. Podemos dizer que de Abraão até Moisés e a fuga do Egito temos memória oral, cujos liames são a identidade étnica individual e coletiva. Do deslocamento no deserto até a monarquia temos um ciclo que combina oralidade com memória escrita. Neste ciclo, as lembranças e as histórias são contadas, as idéias que estão na cabeça são gravadas. Começa, assim, a nascer, de fato, uma história com suas peculiaridades, mas não há uma linearidade na produção dessa história, já que é registro de lembrança dos fatos do passado, vividos por pessoas e comunidades em diferentes tempos, mas também da oralidade profética que vão sendo registrados, muitos deles, em sua contemporaneidade. A partir da volta da diáspora babilônica, com Esdras e Neemias até o surgimento do cristianismo, estamos diante de um terceiro ciclo onde predominou a memória escrita, com sinagogas, escribas e a leitura semanal dos rolos da Torah. A memória, matéria prima da história é, durante este último ciclo, produzida como campo de poder, evidenciados claramente na construção do judaísmo em sua disputa com o helenismo, mas também no deslocamento da pregação profética. Assim, a memória escrita produziu dois fenômenos na história de Israel: matou a oralidade profética e possibilitou o assenhoramento da história pela hierarquia político-religiosa. Dessa maneira, podemos dizer que memória, oralidade e escrita na história de Israel são construções que ocorreram num campo de disputas culturais e ideológicas, onde pessoas e comunidades, com seus interesses, apresentaram releituras do passado. Para se refletir sobre essa questão sugerimos a leitura de uma história que encontramos no livro de Juízes: a do levita, sua concubina e a guerra contra Benjamim (Jz 19, 20 e 21), que reproduzem antigas tradições sobre a migração danita e a fundação do santuário de Dã, e nos fala das tradições dos santuários de Masfá e de Betel, possivelmente de origem benjaminita. A edição que temos do livro de Juízes é de origem monárquica, apresenta uma leitura hostil à realeza de Saul em Gibeá e faz a defesa da monarquia davídica na repetição da declaração “naqueles dias não havia rei em Israel” (17.6; 18.1; 19.1; 21.25).

Mas, se levarmos em conta o ciclo da memória oral, qualquer análise do surgimento da religião de Israel deve partir do homem Abraão, enquanto personagem transistórico, [4] e de seu contexto histórico e social. O mundo de Abraão é um mundo real e a aliança com o Senhor, [5] o Eterno, a chave para entender o processo. A questão da aliança coloca em pauta a relação entre o conhecimento formal de Abraão e a realidade histórico-social do patriarca e leva a um ponto de partida comum, o processo revelatório. Essa participação revelatória deve ser entendida como diferente das características inatas do sujeito, que estão ligadas aos sentidos, ao sistema nervoso e pertencem à ordem estrutural da pessoa. Já o processo revelatório, que abre caminho para um conhecimento novo, realiza-se ao nível da organização funcional. Caracteriza-se por ser ilimitado em sua possibilidade de construir noções e, acima de tudo, sobrepassa, vai além das informações sensíveis.

Apesar de seu reducionismo, a crítica bíblica fornece material importante no campo da história, arqueologia, lingüística, sociologia e religião para entender o texto sagrado em seu contexto, historicidade e revelação progressiva. Tomemos um exemplo: Merneptah II, o faraó do êxodo. Ramsés II, o terceiro rei da décima nona dinastia, era filho de Seti I. Guerreiro, ele realizou uma grande expedição contra Cades, a capital dos heteus, em parte fracassada, porque não conseguiu tomar a cidade. Foi um grande administrador e desenvolveu projetos arquitetônicos às margens do Nilo, como Pa-Ramesses (Tânis) e Pitom, conforme estão descritas em Êxodo 1:11. Seu décimo terceiro filho, Merneptah II, o faraó do êxodo, enfrentou uma invasão dos líbios, vencida por seu exército mercenário. Mas em que se baseia toda esta história? Em documentos, entre os quais numa estela de vitória composta que diz:

"Os chefes curvam-se fazendo saudações de paz/ nenhum dos povos inimigos ousou erguer a cabeça/ a terra dos líbios está vencida/ está em paz a terra dos heteus/ o lugar de Pa-Canana, ao sul da Palestina, foi devastado com grande violência/ o lugar de Ascalom foi levado para longe/ aniquilado está o lugar de Gazer/ o lugar de Inuã, perto de Tiro foi reduzido a nada/ o povo isiraalu foi aniquilado, sem deixar semente/ lugar de Car, a Palestina do sul, fez-se qual viúva do Egito/ o mundo inteiro está em paz/ tudo quanto era rebelião caiu subjugada pela mão do rei Merneptah”. [6]

É interessante notar que esse povo isiraalu é mencionado em estreita ligação com as regiões ocupadas por heteus, cananeus, filisteus e fenícios. Sem estar determinado, o termo isiraalu, não define um país ou cidade, querendo significar antes uma tribo nômade. Assim, partindo da arqueologia e da história, vemos que o berço dessa nação isiraalu foi o Egito, e que esses eventos aconteceram, muito possivelmente, no final do século treze antes de Cristo, durante o reinado de Merneptah (1235-1227). Mostramos a historicidade do surgimento da nação de Israel como exemplo metodológico que nos ajuda a definir o processo vivido.

O conhecimento que se origina na atividade reflexa do sujeito recebe com a Revelação esta organização funcional que o torna possível. Convém notar que no conhecimento que tem por base o processo revelatório a organização funcional sempre se mantém invariável. Ou seja, essa organização funcional se mantém em equilíbrio, apesar dos processos vividos nas estruturas. E mais do que isso se impõe a elas como necessárias.

Podemos dizer que a matriz do Pentateuco se encontra na aliança feita por Deus com Abraão, conforme encontramos em Gênesis 15. A consolidação dessa aliança acontecerá com Moisés, descrita em Êxodo 24 e reiterada em Deuteronômio cinco, numa das montanhas do deserto do istmo, entre o Egito e Madiã-Seir. Essa é a idéia força de toda a religião de Israel. Um acordo que implica em salvação. Berit, aliança, tem o sentido de obrigação, mas também de segurança. É um acordo entre duas pessoas, celebrado solenemente, com o derramamento de sangue. A parte mais forte fornece a segurança ou a salvação, e a mais fraca se obriga a determinados compromissos. Dessa maneira, a aliança impôs um relacionamento especial entre Deus e o povo. E os mandamentos e leis, dados no período da consolidação, transportam, assim, toda conotação legal e externa, para uma perspectiva de acordo maior. O centro da aliança está no primeiro mandamento do decálogo (as dez palavras, em hebraico) que proíbe a adoração de outros deuses, da milícia do céu e dos ídolos.

Mas a aliança é também um pacto moral. Só que o fundamental desse pacto, que perpassa toda a Torah não é sua mera formalização, já que outros povos também possuíam noções desenvolvidas de lei e moralidade. O assassinato, o roubo, o adultério e o falso testemunho eram condenados não apenas pela lei moral universal, mas também duramente punidos pelos códigos de Ur-Nammu, de Lipit-Ishtar e de Hamurabi, [7] para citar os mais representativos. Agora, no entanto, pela primeira vez a moralidade é apresentada pelo próprio Deus como fruto de um relacionamento entre ele e o povo, com normas para o estabelecimento de um reino de novo tipo. É uma aliança com toda a nação. A consolidação sinaítica, fruto da aliança abraâmica, vai além das sabedorias babilônica e egípcia, que lidam com o indivíduo. A moralidade apresentada no Gênesis, por exemplo, que é individual, ganha aqui uma roupagem nova, passa a ser coletiva e nacional. Assim para Kaufman,

Deus “não elegeu Israel para fundar um novo culto mágico em benefício dele; elegeu-o para ser seu povo, para realizar nele o seu arbítrio. Portanto, por sua natureza, também a aliança religiosa foi uma aliança moral-legal, envolvendo não apenas o culto, mas também a estrutura e os regulamentos da sociedade. Assim, colocou-se o alicerce da religião da Torah, incluindo tanto o culto como a moralidade e concebendo a ambos como expressões da vontade divina”. [8]

Na verdade, a aliança que Deus faz com Abraão em Gênesis 15, historicamente, tem seu cumprimento em outra estrutura, no Sinai. Dessa maneira, literariamente, Gênesis não somente prepara o roteiro Pentateuco, mas faz parte intrínseca dele. É bereshit[9] não somente como saga da origem, mas como alicerce de todo o Pentateuco.

Em relação à segunda parte do livro, que trata da diáspora, do helenismo e da guerra, é importante precisar que o conhecimento é sempre um processo de interação e organização, de construção de novas estruturas que se inserem nas já existentes. Todo conhecimento é sempre um padrão, uma medida de relação entre o sujeito e o objeto. Ou, se preferirmos, entre a nossa existência e o mundo. É impossível compreender a revolução do período macabaico se não visualizarmos a dinâmica interior, que rasgou corações e mentes, assim como os fatores externos que combinados geraram crise e ruptura nessa relação interação/organização.

O período histórico aberto com a reforma de Esdras, sob a dominação persa, levou Israel a um profundo equilíbrio. Havia interação com a reforma religiosa e com o momento histórico. Prevalecia a organização. Colocamos os conceitos nessa ordem, porque interagir e organizar são aspectos de um mesmo processo. Interagir é sempre o equilíbrio necessário que resulta da relação entre a inteligência e o ambiente. É a resposta que damos às novas questões, quer de forma reflexiva, a partir do sujeito, quer de maneira dinâmica, procurando adaptar a realidade aos nossos desejos e necessidades. Só que acontece em primeiro lugar ao nível do objetivo, formalizando-se a posteriori.

Interagir implica em transformar a realidade circundante. Por isso, podemos dizer que a face objetiva da interação é a mudança, a reforma ou mesmo a revolução, e a subjetiva é a organização.

A organização tem como finalidade restabelecer um equilíbrio e para isso trabalha ao nível daquilo que se deseja. Procura-se uma meta, um fim, que coloque as coisas em seus devidos lugares e nos mostre a razão de ser das coisas. Quando se deseja alguma coisa é porque não temos essa coisa. Assim, organizar é definir como alcançar esse objetivo. Só que a organização é sempre genética, está em movimento. Não se estabiliza. Aponta sempre para uma organização nova e está sempre em construção. É claro que a organização é um processo formal, que se resolve ao nível do pensamento intelectual, por isso quando as condições sociais são violentamente desequilibradas, esse processo nunca é plenamente consciente. Ele se realiza, enquanto processo, historicamente. E é esse fenômeno, riquíssimo, construtor de novas estruturas e conhecimentos, que vemos acontecer em todo o processo da revolução dos macabeus.

Nossa abordagem da história e da religião de Israel quebra alguns paradigmas por considerarmos que o conhecimento não começa com certeza, mas com questionamentos. Nessa leitura quase judaica das Escrituras hebraicas queremos dizer aos leitores que não devem esquecer os três fundamentos da Guemará babilônica, quando diz que há apenas um Deus verdadeiro, justo e bom; que a Torah, dada por Ele, contém toda a verdade e a justiça; e que o ser humano deve fazer o possível para caminhar com Ele e ser também verdadeiro, justo e bom. E a melhor maneira de viver essa meta é investigar e viver a Torah. As histórias, contos, biografias, provérbios e profecias que encontramos nela podem e devem servir como fonte inesgotável de inspiração para a multiculturalidade brasileira. Afinal, essa tradição milenar da história e da religião de Israel ainda serve aos estudiosos e ao fiel como roteiro de vida mesmo nos momentos mais sombrios da história.


Questões para reflexão e debate

Leia os capítulos 19, 20 e 21 do livro de Juízes, mas dê atenção aos versículos 1,12-14, 16, 18 e 30 do capítulo 19 e versículos 1-5, 9 e 12 do capítulo 20, e versículo 25 do capítulo 21.

1 ¶ Naqueles dias em que Israel não tinha rei, um levita foi morar bem longe, na região montanhosa de Efraim. Ele arranjou uma jovem de Belém de Judá para ser a sua concubina.

12  Mas o patrão respondeu: —Não vamos parar numa cidade onde o povo não é israelita. Vamos continuar até Gibeá.
13  É melhor a gente andar mais um pouco e passar a noite em Gibeá ou Ramá.
14  Então passaram pela cidade de Jebus e continuaram a viagem. O sol já se havia escondido quando eles chegaram a Gibeá, cidade da tribo de Benjamim.

16 ¶ E aconteceu que passou por ali um velho que estava voltando do seu trabalho na roça. Ele era da região montanhosa de Efraim, mas estava morando em Gibeá. O povo dali era da tribo de Benjamim.

18  O levita respondeu: —Eu estou viajando de Belém de Judá para bem longe, para a região montanhosa de Efraim, onde moro. Fui a Belém e agora estou voltando para casa, mas ninguém me ofereceu hospedagem para esta noite.

30  E todos os que viam isso diziam: —Nunca vimos uma coisa assim! Nunca houve uma coisa igual a essa, desde o tempo em que os israelitas saíram do Egito! Pensem! O que vamos fazer agora?

1 ¶ Por causa disso todo o povo de Israel, desde Dã, no Norte, até Berseba, no Sul, e Gileade, no Leste, se reuniu em Mispa. Eles se reuniram na presença de Deus, o SENHOR, como se fossem uma só pessoa.
2  Os chefes de todas as tribos de Israel estavam presentes nessa reunião do povo de Deus. Havia quatrocentos mil homens a pé, treinados para a guerra.
3  E o povo de Benjamim soube que todos os outros israelitas haviam subido até Mispa e que eles queriam saber como aquele crime havia sido cometido.
4  Então o levita, marido da mulher assassinada, explicou: —Cheguei com a minha concubina a Gibeá, no território da tribo de Benjamim, para passar a noite.
5  Os homens de Gibeá vieram de noite e cercaram a casa. Eles queriam me matar. Em vez disso abusaram da minha concubina, e ela morreu.

9  Vamos escolher alguns homens para atacar Gibeá.

12 ¶ As tribos israelitas mandaram que mensageiros fossem por toda a tribo de Benjamim e dissessem: — Que crime horrível vocês cometeram!

25   Naquele tempo não havia rei em Israel, e cada um fazia o que bem queria.


Compare com I Samuel 10.10, 14-15.

10 Quando Saul e o seu empregado chegaram a Gibeá, um grupo de profetas o encontrou. O Espírito de Deus tomou conta de Saul, e ele se juntou a eles, agindo como um profeta.

14 E Samuel disse ao povo: —Vamos todos a Gilgal e lá confirmaremos Saul como nosso rei.
15 Então foram todos a Gilgal e lá, no lugar sagrado, fizeram de Saul o seu rei. Ofereceram sacrifícios de paz, e Saul e todo o povo de Israel festejaram o acontecimento.

Explique, a partir da correlação dos textos acima, como se dão as relações entre memória, oralidade e escrita na construção da historicidade do período de Juízes.

Por que a edição do livro de Juízes pode ser datada do período monárquico davídico?

E o que significa no texto de Juízes a afirmação que abre e fecha o relato: “Naquele tempo não havia rei em Israel”.


Leituras complementares

Epstein, Isidore, Judaísmo, Lisboa/Rio de Janeiro, Editora Ulisséia/Pelicano, 1975.
Kaufmann, Yehezkel, A Religião de Israel, Editora Perspectiva, São Paulo, 1989.
LaSor, W. S., Hubbard, D. A., Bush, F. W., Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Edições Vida Nova, 1999.
Schillebeeckx, E., Iersel, B. Van, Revelação e Experiência, Editora Vozes, Petrópolis, 1978.




[1] Schillebeeckx, Edward/ Iersel, B. Van, Revelação e Experiência, Editora Vozes, Petrópolis, 1978, p. 5.
[2] Em hebraico, El, Elah, Eloah, Elohim; em gregro Theós. O nome mais geral da Divindade (Gn 1.1). No Antigo Testamento é o ser supremo, único, infinito, criador e mantenedor do universo.
[3] Le Gof, Jacques, “Memória”, Enciclopédia Einaudi, vol. I, Memória-História, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 11-50.
[4] Consideramos transistórico o conhecimento que é transmitido oralmente por mais de uma pessoa ou comunidade, às vezes por muitas gerações, que funcionam como amplificadores do relato, antes que ele venha a ser, posteriormente, registrado de forma escrita.
[5] Em hebraico YHVH, o tetragrama, o nome de Deus impronunciável, cuja tradução mais provável é "o Eterno" ou "o Senhor Eterno". O Senhor é Deus que existe por si mesmo, que não tem princípio nem fim (Êx 3.14; 6.3). Seguindo o costume que começou com a Septuaginta, a maioria das traduções contemporâneas usa "Senhor" como equivalente de YHVH (Deus). A forma Iaveh é a mais aceita entre os eruditos. A forma Jeovah, que só aparece a partir de 1518, não é recomendável por ser híbrida, isto é, por ser produto da mistura das consoantes de YHVH (o Eterno) com as vogais de Adonai (meu Senhor).
[6] Estela “Israel”, Museu do Cairo, Egito. Alguns estudiosos que defendem uma data anterior para o Êxodo, entre 1450 e 1420 a.C., quando Amenotep II era faraó, consideram que a estela “Israel” refere-se a uma incursão de Merneptah contra a Palestina quando os israelitas já estavam estabelecidos na região: 200 anos depois do Êxodo.
[7] Epsztein, León, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, Ed. Paulinas, São Paulo, 1990, "As Leis Mesopotâmicas", pp. 11 a 26.
[8] Kaufmann, Yehezkel, A Religião de Israel, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1989, p. 232.
[9] "O exegeta Rashi quer que o primeiro versículo do Gênesis seja traduzido da seguinte maneira: No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã, etc., pois a Escritura Sagrada não quer mostrar aqui a ordem da criação. A prova disso é que o fim do segundo versículo dá a entender que as águas já existiam antes dos céus e da terra". Campos, Haroldo de, Bere'shitth, A Cena da Origem, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1993, p. 24.

Fonte:
Jorge Pinheiro, História e religião de Israel, origem e crise do pensamento judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007, pp. 15-30.

lundi 10 octobre 2016

Berit, um pacto histórico

Um pacto histórico
Jorge Pinheiro


Os livros de Gênesis e Êxodo apresentam a fé israelita, enquanto construção, fundamentada em dois acontecimentos históricos. O primeiro é a escolha de um homem chamado Abrão, [1] que foi tirado da cidade de Ur e levado para Canaã, uma terra prometida a ele e sua descendência (Gn. 12.1-3; 13.14-17). Essa promessa foi selada com um acordo entre Deus e Abraão, conforme Gênesis 15.5-10. E o segundo fato histórico é a libertação dos descendentes de Abraão da escravidão do Egito, através de Moisés, e sua entrada na terra prometida (Ex.3.6-10).

Esses dois acontecimentos expressam a materialidade da aliança, que se traduz como escolha de Deus a favor de um homem, gerador de um povo, para uma missão definida. Realidade esta que foi reafirmada, centenas de anos depois, pelo príncipe dos profetas israelitas: “Ouvi-me, vós, que estais à procura da justiça, vós que buscais a Deus. Olhai para a rocha da qual fostes talhados, para a cova de que fostes extraídos. Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, aquela que vos deu à luz. Ele estava só quando o chamei, mas eu o abençoei e o multipliquei”. Isaías 51:1-2.

O pacto com Abraão foi selado com sangue, conforme os versículos 9 e 10 do capítulo 15 de Gênesis. Segundo os costumes semitas, o berit (pacto ou aliança) era feito através da degola de animais, geralmente um bezerro, que era dividido em duas partes, colocadas uma em frente à outra, e os contratantes passavam entre os pedaços (Jr.34:18-20) e diziam: “que a divindade corte em pedaços, como a estes animais, os violadores deste pacto”.[2] Daí as expressões, “karot berit”, imolar uma vítima para concluir um pacto; “bo ba berit”, entrar na aliança (Jr.34:10); “abor ba berit”, passar pela aliança (Dt. 39:2); “amod ba berit”, parar na aliança (2 Rs.23: 3). Tecnicamente, chamamos o acordo assim selado de pacto de suserania, que geralmente era assinado entre um rei e o chefe de um clã, onde o rei oferecia proteção ao clã e, em caso de guerra, o clã fornecia jovens para lutarem no exército do rei.

Assim, Deus deu a Abraão uma formalização do pacto. Ou seja, o próprio Deus selou o acordo com um costume humano, a fim de que a aliança pudesse ser visualizada por Abraão. E o Eterno, em seu amor pelo contratante mais fraco, passa no meio dos animais partidos (Gn. 15.17). O versículo seguinte agrega: “Naquele dia, o Eterno estabeleceu uma aliança com Abrão nestes termos: à tua posteridade darei esta terra”.

Aqui voltamos ao início de nossa análise: a idéia de teia de linhas-força fornece elementos para a compreensão do livro de Gênesis, do Pentateuco e de todas as Escrituras hebraico-judaicas. Em primeiro lugar porque o diálogo de Deus com Adão e Eva em Gênesis 3.15 aponta para um libertador. E em Gênesis 15 temos a primeira realização dessa promessa através da aliança com Abraão, que produzirá descendência com duas missões: ser testemunha entre as nações e ser a nação da qual nasceria o messias prometido. É importante entender que tal promessa iniciou uma relação entre Deus e Israel, uma relação selada por Deus, não exclusiva, mas íntima em seu ideal. Embora, na tradição judaica, o livro de Êxodo seja o livro da aliança, o conceito está presente e é desenvolvido no primeiro livro do Pentateuco.

Na aliança está embutida a idéia de salvação e de relacionamento pessoal com Deus. Esta realidade nova dentro do plano de redenção do homem está implícita na declaração de Deus a Abraão: “Estabelecerei uma aliança entre eu e você, e a sua raça depois de você, de geração em geração, uma aliança perpétua, para ser o seu Deus e o da tua raça depois de você”. Gn. 17:7. E como todo pacto, além do “berit milah” (pacto da circuncisão), Abraão e seus descendentes são chamados à responsabilidade moral (v.1) e à uma adoração permanente (vs.7 e 19). Elementos estes, que a partir de Moisés serão desenvolvidos, dando origem à religião de Israel, que tem por base, num primeiro momento histórico a primazia do culto e suas ordenanças e, num segundo momento, com o surgimento da profecia literária, da justiça social. Assim, é impossível fazer uma completa separação entre as promessas de Deus e o desejo de um reino. Este último será uma construção que tem como primeiro tijolo a relação pretendida por Deus com a universalidade dos seres humanos.

E porque a promessa remetia ao reino, a questão da terra a partir de Abraão permanecerá como promessa para os patriarcas, tornando-se objetivo mítico de seus descendentes. Por isso, a importância de Moisés, que antes de ser visto como legislador, deve ser compreendido como libertador. E é nesse misto do papel libertador/legislador que formatará as condições para a invasão da Palestina.

Assim, enquanto caminhavam pelo deserto, os hebreus contavam a seus filhos uma velha história. Há quatrocentos anos - diziam eles - um homem chamado Abrão desceu lá do norte, da cidade de Ur, na Caldéia, e com toda a sua família dirigiu-se para o sul da Palestina. Era uma ordem de Deus.

Ele receberia por herança uma terra, teria uma descendência tão grande como as estrelas do céu, e através dele todas as famílias da terra seriam abençoadas. Era uma estranha promessa, afinal Abrão não tinha filhos e seu clã[3] era nômade. Mas ele acreditou na promessa de Deus. Anos mais tarde, Deus trocou seu nome para Abraão, que quer dizer pai de uma multidão de nações, fez um pacto especial com ele e lhe deu um filho, que foi chamado Isaque.

Como líder, Moisés tinha certeza que o acordo feito com Abraão estava sendo cumprido. Deus dissera que a terra prometida era Canaã, e que seus limites iriam do Egito até o rio Eufrates. Explicou também que Canaã estava ocupada por dez povos guerreiros: queneus, queneseus, cadmoneus, heteus, periseus, refains, amorreus, cananeus, girgaseus e jebuseus. Mas eles seriam arados da terra, como mato bravo arrancado para permitir a semeadura.

 

Durante os anos de caminhada pelo deserto, Moisés foi formando uma liderança que julgou capaz de dirigir a invasão da Palestina. Entre seus homens de confiança havia um jovem chamado Josué. Tinha sido seu assistente pessoal e quando grupos de assaltantes amalequitas começaram a ameaçar a segurança dos hebreus, Josué liderou um grupo de combatentes. Era disciplinado, ousado e muito corajoso.

Em hebraico Josué quer dizer Deus é a salvação. Era do clã de Efraim, filho de Num, e esteve com Moisés durante toda a peregrinação no deserto. Quando Moisés subiu ao monte Sinai, para receber de Deus os Dez Mandamentos, Josué subiu com ele. Foi quem avisou a Moisés que lá embaixo estava uma barulheira incrível, como um alarido de guerra. Mas o que ele ouvia era o povo dançando e cantando em adoração ao deus Ápis, o deus touro dos egípcios.

Como dirigente militar recebeu de Moisés uma missão especial: fazer parte de um grupo de espiões que deveriam se infiltrar em Canaã. As ordens eram precisas: observar a terra, o que produzia, se os campos eram férteis, como era o povo, se era organizado, numeroso, e se haviam fortalezas. Deviam também trazer frutos da terra.

Os espiões chegaram até as proximidades de Hebrom, que fica ao sul de Jerusalém, e depois de dias trouxeram a Moisés um relatório terrível:

-- É, na verdade, uma terra que produz leite e mel em abundância. Vimos cachos de uvas que tinham que ser transportados numa vara por dois homens, de tão grandes. Mas o povo que habita na terra é muito poderoso, as cidades são grandes, fortificadas. Vimos gigantes e nos sentimos como se fôssemos gafanhotos, de tão pequenos diante deles.

Excluindo Josué e Calebe, os outros espiões estavam em pânico. E o medo que tinham foram transmitindo ao povo, que então se rebelou contra Moisés.

-- Foi para isso que você nos tirou do Egito, para a gente morrer aqui, no deserto, para sermos massacrados a espada, nós, nossas mulheres e nossos filhos?

Josué e Calebe ainda tentaram reverter a situação. Explicaram que a terra era excelente e que se era da vontade de Deus a terra prometida seria entregue na mão deles, não importava a força dos povos ocupantes, pois “a sombra protetora de Deus lhes foi tirada”. Mas a mentalidade escrava do povo prevaleceu. Não estavam preparados para lutar. E diante da rebelião, Deus afirmou que nenhum deles entraria na terra, mas seus filhos. Assim, durante quarenta anos caminharam pelo deserto. E os filhos dos escravos foram transformados em guerreiros. Forjados sob o sol escaldante, confiantes na promessa de que a terra lhes seria entregue. Os espiões que se acovardaram e sublevaram o povo contra Deus e Moisés foram presos e condenados à morte. Josué por sua coragem e fidelidade a Deus despontou como sucessor de Moisés.

 

Os hebreus não eram um grupo homogêneo, mas um conglomerado de povos escravizados pelos egípcios que fugiram sob a liderança de Moisés. Além disso, mesmo tendo seu núcleo nos descendentes de Abraão, no correr dos séculos miscigenaram-se com outros povos e inclusive com os próprios egípcios. Tinham, no entanto, um confuso sonho de liberdade, uma fé não consolidada no Deus único, e aceitavam realizar alguns rituais semitas, dos quais o principal deles, nessa época, era a circuncisão.

Esse conglomerado de gentes foi dividido em agrupamentos menores que recebeu o nome de patriarcas, formatando clãs[4]: Rubem, Simeão, Judá, Issacar, Zebulom, Efraim, Manassés (esses dois, netos de Abraão, filhos de José, que juntos formavam um clã), Benjamim, Dã, Aser, Gade e Naftali. Havia ainda outro clã, o de Levi, que era o dos sacerdotes. Dessa maneira, a nação de Israel surgiu como uma confederação de clãs, sem governo centralizado. Seria governada por juizes, pessoas experientes que deveriam julgar seus clãs a partir das leis deixadas por Moisés.

Assim, após a morte de Moisés, os hebreus invadiram a Palestina liderados por Josué, considerado pelos historiadores um dos maiores generais da história. Formou regimentos com guerreiros jovens que, ao contrário de seus pais, estavam desejosos de combater por Deus, o Deus de Israel. Os regimentos foram organizados a partir dos doze clãs que formaram a confederação hebréia.

A estratégia inicial de Josué consistiu em montar seu quartel general em Gálgala, ao oriente da cidade de Jericó, e a partir daí atacar as cidades de Ai e Gabaom. Em Gálgala já estavam estabelecidas os clãs de Rubem, Simeão e Manassés. Ali havia água em abundância, provisão para os combatentes e lugar seguro para armazenar os despojos.

 

Antes de iniciar o período da conquista, Josué deu combate aos grupos inimigos, nômades, que poderiam ameaçar a produção agrícola dos clãs já instalados em Gálgala. Só depois disso, tomou Jericó, fortaleza avançada do território de Canaã e conhecida na época como “a princesa do vale do Jordão”.

A cidade de Jericó data, segundo pesquisas arqueológicas, do ano oito mil antes de Cristo. Por ter uma fonte e um oásis e estar estrategicamente situada, foi ocupada por povos diferentes, como os amorreus e cananeus, e muitas vezes destruída. Antes da conquista por parte dos hebreus, foi atacada por faraós da 18a dinastia e totalmente destruída. De novo reconstruída, tinha nessa época muros altos, de pedras macho e fêmea, duas torres, e casas retangulares e espaçosas.    

Essa linda cidade, que também recebia o nome de Cidade das Palmeiras, dominava o vale do Jordão e as passagens para as montanhas do oeste. Antes de atacá-la, Josué enviou dois jovens oficiais do recém formado exército para espionar a região. Eles entraram na cidade, foram protegidos e escondidos por uma prostituta cultual chamada Raabe. Aliás, sobre essa moça há algumas coisas que devem ser analisadas.

Zaná, praticar prostituição, cujo sentido literal quer dizer manter relações sexuais ilícitas, é a palavra que designa a atividade de Raabe, jovem que escondeu os espiões enviados por Josué. Alguns exegetas, no entanto, consideram que ela era somente uma hospedeira, algo como dona de uma pousada, partindo da raiz zun – alimentar – e não da raiz zaná como origem da palavra zonã, mas são poucos que consideram esta a melhor tradução.

A maioria dos exegetas considera que a palavra tem somente uma raiz. Este verbo é usado tanto literal como figuradamente. Neste último caso, a idéia que comunica pode ser de relações internacionais proibidas, de uma nação, especificadamente Israel, fazer acordos com outras nações. Pode-se referir também a relacionamentos religiosos, nos quais Israel adorava falsos deuses. A palavra normalmente se refere às mulheres e apenas duas vezes diz respeito a homens (Êx 34.16; Nm 25.1). A forma feminina do particípio é usada regularmente para indicar a prostituta (Gn 34.31). Tais pessoas recebiam pagamento (Dt 23.19), tinham marcas características que as indicavam (Gn 38.15; Pv 7.10; Jr 3.3), tinham suas próprias casas (Jr 5.7) e deviam ser evitadas (Pv 23.27). Poucas vezes a mulher com quem o ato é cometido é identificada como mulher casada (Lv 20.10; Jr 29.23), mas também nunca se afirma que é solteira.

Há estudiosos que arriscam dizer que Raabe talvez fosse sacerdotisa cananéia e, dessa maneira, prostituta cultual. Mas também essa afirmação é praticamente impossível de ser comprovada. Raabe foi mulher de Salmon (Mt 1.5), possivelmente filho de Calebe (cf. 1Cr 2.51) e mãe de Boaz. É bom lembrar que as prostitutas na Antigüidade, cultuais ou não, começavam seu ofício ainda na puberdade.

Na vida escura e duvidosa dessa jovem, prostituta e mentirosa, deve ter brilhado a centelha de que com os hebreus havia um Deus superior a todos os deuses que ela conhecera. A cidade estava em pânico, temendo um ataque dos hebreus, e entre o povo se comentava o que o Deus dos hebreus fizera na saída do Egito e durante a caminhada no deserto: ...“porque temos ouvido que o Senhor secou as águas do mar Vermelho diante de vós, quando saíeis do Egito, e o que fizestes aos dois reis dos amorreus, a Siom e Ogue, que estavam dalém do Jordão, os quais destruístes” (Js 2.10).

Assim, pela fé (veja a confissão que faz no vs. 11, “o Senhor vosso Deus é Deus em cima nos céus e embaixo na terra”, lembrando que o politeísmo e a idolatria predominavam entre os cananeus) ela confiou na misericórdia e no poder desse Deus, arriscou a vida para salvar os representantes do povo de Deus, e obteve salvação para si e sua família.

Dessa maneira, ao ver o espírito de terror que pairava sobre a cidade, os jovens espiões voltaram ao quartel general de Josué com uma grande notícia:

-- Realmente Deus nos deu toda esta terra. Os seus habitantes estão apavorados com nossa presença.

Josué então chamou os sacerdotes, que leram para os oficiais e soldados uma ordem que Deus tinha dado a Moisés.

“Quando saírem para guerrear contra teus inimigos, se virem cavalos, carros de combate e um povo mais numeroso do que vocês, não fiquem com medo, pois com vocês está o Senhor Deus, que tirou vocês do Egito. Quando estiverem para começar o combate, o sacerdote se aproximará para falar aos soldados e lhes dirá: ‘Ouve, ó Israel! Estais hoje prestes a guerrear contra teus inimigos. Não se acovardem, não fiquem com medo, não tremam, nem se atemorizem diante deles, porque o Senhor Deus marcha com vocês, lutando com vocês’.”

Depois, os sacerdotes disseram:

-- Quem tem uma tenda nova e ainda não a usou? Volte para a sua tenda, para que não morra na batalha e não possa curtir sua tenda nova. Quem plantou uma vinha e ainda não colheu os primeiros cachos de uva? Volte para sua tenda, para que não morra na batalha e não coma de seus primeiros frutos. Quem acaba de casar-se e ainda não completou sua lua de mel? Volte para sua tenda, para que não morra na batalha e não usufrua sua noite de núpcias.

E por fim os sacerdotes, perguntaram:

-- Quem está com medo e se considera um covarde? Volte para sua tenda para que não contagie seus irmãos.
          
Então, Josué destacou os oficiais e definiu o ataque. Rodearam a cidade uma vez por dia, durante sete dias. Tocavam trombetas, gritavam e saltavam. Ao sétimo dia, todo o povo, com os soldados e os sacerdotes rodearam sete vezes a cidade, tocando trombetas e gritando. De repente, ao som mais agudo da trombeta, alguns muros desabaram permitindo a entrada do povo. A cidade foi amaldiçoada, seus habitantes executados, com exceção da moça Raabe e da família do pai dela. Os despojos de ouro e prata foram levados para o tabernáculo, que era a tenda onde estava a arca da aliança, com os Dez Mandamentos.

Foi uma guerra implacável. E diante disso, é o caso de perguntar: o extermínio realizado pelos hebreus foi um ato justificável?

Na época, a Palestina era permanentemente disputada por conquistadores. Confederações de reinos, agrupados em torno de cidades, lançavam-se contra outros pequenos reinos. Os filisteus, por exemplo, não eram originários da região, vinham da ilha de Caftor, mais conhecida como Capadócia. Instalaram-se na região de Gaza, exterminando os Avins que viviam nesse território.

Assim, os hebreus se consideravam no direito à terra tanto quanto os que foram despojados. Eram conquistadores lutando contra conquistadores.

E quanto ao seu modo de atuar nas operações de guerra? Caso tomemos os padrões guerreiros da época, os hebreus não eram nem mais sanguinários, nem mais cruéis. Os assírios, por exemplo, decapitavam os povos vencidos, fazendo pirâmides com seus crânios. Crucificavam ou empalavam os prisioneiros, arrancavam seus olhos e os esfolavam vivos. Não há casos de tortura na tradição guerreira dos israelitas.

Um povo que foi duramente golpeado, mas não exterminado foram os cananeus. Apesar de serem bons agricultores, seus costumes religiosos estavam entre os mais violentos de todo o mundo antigo. Eram henoteístas e ofereciam sacrifícios humanos e infantis aos seus baalim. É interessante notar que antes dos hebreus se lançarem à conquista da Palestina, Deus lhes falou:

“Ó Israel, hoje vocês estão atravessando o rio Jordão para conquistar nações mais numerosas e poderosas, cidades grandes e fortificadas. (...) Portanto, vocês devem saber que o Senhor Deus vai atravessar na frente, como um fogo devorador. É ele quem exterminará. Vocês, então, desalojarão rapidamente esses povos, os farão perecer, conforme falou o Senhor Deus. Quando Deus os tiver removido de sua presença, vocês não devem dizer nos seus corações: ‘É por causa da nossa justiça que O Senhor nos fez entrar na posse dessa terra’. É por causa da perversidade dessas nações que Deus irá expulsá-las da tua frente.” (Deuteronômio 9:1, 3 e 4).

Dessa maneira, os cananeus estavam sob a punição de Deus por causa de seus crimes e idolatria. E como, segundo a maneira de pensar dos antigos israelitas, Deus responsabilizava tanto as nações como os indivíduos, consideravam totalmente justo uma guerra de extermínio.

Depois da conquista de Jericó, Josué tomou a cidade de Ai, que fazia fronteira com Gálgala. Recebeu, então, a visita de embaixadores do reino de Gabaom com os quais Josué celebrou um tratado de paz, sem consultar Deus.

Os reis de Jerusalém, Hebrom, Jerimote, Laquis e Eglom formaram uma aliança e atacaram Gabaom. Como Josué havia feito um acordo bilateral com Gabaom, teve que sair em sua defesa e lançar um ataque contra os cinco reis. Conseguiu derrotá-los e conquistou as cidades de Maceda, Libna e Laquis.

Estabeleceu um acampamento provisório perto de Eglom e daí lançou-se à conquista de mais três cidades, Eglom, Hebrom e Debir. A essa altura, já havia ocupado toda a região central e sul da Palestina. Josué voltou então para Gálgala. Descansou meses e começou a organizou os futuros ataques ao norte de Canaã, região onde estavam localizadas cidades populosas e fortificadas.

O rei de Asor chefiava uma confederação de reinos e ficou sabendo dos planos de Josué. Reuniu, então, todas as cidades vizinhas e organizou uma confederação para enfrentar militarmente o exército hebreu. A mais violenta das batalhas aconteceu às margens do rio Merom. Josué derrotou os exércitos confederados, queimou a cidade de Asor e tomou todas as cidades dos reinos aliados. Estrategicamente, foi sua maior vitória, pois com ela quebrou o poder dos cananeus. Mas nem todos os habitantes da Palestina tinham sido exterminados. Cidades importantes ficaram intocadas, principalmente as da região norte da Filístia. A guerra da conquista foi longa e durou quarenta e cinco anos.

Apesar de ser o maior general da história de Israel, Josué cometeu três erros: fez aliança com os gabaonitas, permitiu aos jebuseus permanecerem em Jerusalém e não destruiu as bases dos filisteus no litoral.

Esses erros isolaram os clãs de Judá e Simeão do resto do país. A entrada principal para o território de Judá ficou sob controle dos jebuseus, que ocupavam Jerusalém. E toda a região permaneceu cercada pelas cidades dos gabaonitas. Esta situação criou um separatismo entre os clãs do norte e os do sul e acabou fracionando a confederação hebréia.

 

A repartição da terra foi feita parcialmente em Gálgala e depois em Siló, cidade para onde havia sido transportada a tenda da congregação. Essa primeira distribuição de terras foi realizada por uma comissão formada pelo sacerdote Eleazar, pelo general Josué e por dez chefes dos clãs. Havia uma lei básica, que já havia sido promulgada e que orientava a divisão. Os clãs mais populosos receberiam as porções maiores. Os sacerdotes destinaram duas urnas, uma para receber o nome dos clãs e outra para as regiões da Palestina que seriam sorteadas. Assim, o método de distribuição combinava a sorte - podia ser no sul, no centro ou no norte da Palestina -, com um elemento objetivo, a população de cada clã. As questões de limites ou permanência dos clãs nos lugares onde já se encontravam, como era o caso dos clãs de Rubem, Simeão e Manassés, foram decididas pela comissão.

Depois de uma semana de trabalhos, a confederação dos clãs de Israel estava assim distribuída:

·      A parte montanhosa ao sul foi entregue ao clã de Judá.
·      A parte montanhosa ao centro, ao clã de José. Este território foi dividido entre os clãs de Efraim e Manassés, filhos de José.
·      A parte montanhosa central coube ao clã de Benjamim.
·      A parte excedente do território entregue a Judá, por ser grande demais, ficou com o clã de Simeão.
·      O território que limitava a parte montanhosa central com a região norte foi entregue aos clãs de Zebulom e de Issacar.
·      A região costeira coube aos clãs de Aser e Naftali.
·      Dois territórios foram entregues ao clã de Dã, um no litoral central e outro no extremo norte.
·      Os territórios ao oriente do Jordão foram entregues aos clãs de Rubem e Gade. A parte que coube a Manassés também estava do lado oriental do rio Jordão.

Era tradição no antigo Oriente Médio que o crime de sangue fosse vingado por um parente da pessoa assassinada. Através de Moisés, Deus deu ao povo uma legislação que punia severamente os crimes contra a pessoa, fossem eles assassinatos, seqüestros ou violências sexuais. Com isso, Deus tirava a justiça das mãos do vingador individual e a colocava sob responsabilidade social. Mas Josué sabia que muitos crimes podiam acontecer sem premeditação, por acidente ou imprevisto. Por isso, criou também as cidades de refúgio, onde pessoas que ainda não tinham sido julgadas e condenadas pela justiça recebiam o direito de asilo. Era uma forma de oferecer misericórdia àqueles que involuntariamente tinham cometido um erro. Nas cidades de refúgio nenhum vingador de sangue tinha permissão para entrar, e dentro dela os perseguidos tinham o direito de viver sem serem molestados.

Terminada a guerra, Josué pediu aos dirigentes da confederação de tribos, como recompensa pelos serviços prestados, a cidade de Timnate-Sera, que ficava no alto do monte Efraim. Viveu aí seus últimos dias e morreu com 110 anos.


Mapa: Terras destinadas às tribos de Israel. Atlas Vida Nova da Bíblia e da História do Cristianismo, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1998, p. 22.


Questões para reflexão e debate

Leia o capítulo 15 de Gênesis, mas dê atenção aos versículos 8-18.

8  —Ó SENHOR, meu Deus! —disse Abrão. —Como posso ter certeza de que esta terra será minha?
9  O SENHOR respondeu: —Traga para mim uma vaca, uma cabra e uma ovelha, todas de três anos, e também uma rolinha e um pombo.
10  Abrão levou esses animais para o SENHOR, cortou-os pelo meio e colocou as metades uma em frente à outra, em duas fileiras; porém as aves ele não cortou.
11  Então os urubus começaram a descer sobre os animais mortos, mas Abrão os enxotava.
12 ¶ Quando começou a anoitecer, Abrão caiu num sono profundo. De repente, ficou com medo, e o pavor tomou conta dele.
13  Então o SENHOR disse: —Fique sabendo, com certeza, que os seus descendentes viverão num país estrangeiro; ali serão escravos e serão maltratados durante quatrocentos anos.
14  Mas eu castigarei a nação que os escravizar. E os seus descendentes, Abrão, sairão livres, levando muitas riquezas.
15  Você terá uma velhice abençoada, morrerá em paz, será sepultado e irá se reunir com os seus antepassados no mundo dos mortos.
16  Depois de quatro gerações, os seus descendentes voltarão para cá; pois eu não expulsarei os amorreus até que eles se tornem tão maus, que mereçam ser castigados.
17 ¶ A noite caiu, e veio a escuridão. De repente, apareceu um braseiro, que soltava fumaça, e uma tocha de fogo. E o braseiro e a tocha passaram pelo meio dos animais partidos.
18  Nessa mesma ocasião o SENHOR Deus fez uma aliança com Abrão.


A partir do texto acima explique o costume do pacto de suserania existente entre os semitas da Palestina e qual a importância dele na conversa que Deus teve com Abrão.

Que questões humanas, sociais e políticas estão presentes na materialidade da aliança? E por que a questão da terra é nomeada por Deus em sua conversa com Abrão?

Em que sentido a invasão e a guerra liderada por Josué faziam parte da aliança abraâmica?


Leituras complementares

Briend J., Lebrun, R., Puech, E., Tratados e juramentos no Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulinas, 1996.
Epsztein, León, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, Ed. Paulinas, 1990.
Hill, A. E., Walton J. H., AT, Panorama do Antigo Testamento, São Paulo, Editora Vida, 2006.
Melamed, Meir Matzliah, A Lei de Moisés e as Haftarót, Flórida, 1962.




[1] Em Gênesis 17:5 Deus muda o nome de Abrão para Abraão. Essa mudança de nome traduz o seu chamado. Abrão significa “pai alto”, o que teologicamente costumamos ler “Deus é grande”. Depois, Deus o chama “ab hamôn”, pai de multidão.
[2] Melamed, Meir Matzliah, A Lei de Moisés e as Haftarót, Flórida, 1962, p. 33.
[3] Aqui utilizamos o termo clã no sentido antropológico, enquanto unidade social formada por indivíduos ligados a um ancestral comum por laços de descendência demonstáveis ou putativas, ou seja, de família expandida.
[4] Embora o termo tribo seja o mais comum quando nos referimos às divisões do povo hebreu, consideramos que o termo só tem razão quando diz respeito a agrupamentos com território geográfico já definido. Assim, vemos uma transição do clã em direção à tribo, sendo que esta deverá sempre apresentar duas característas, território e liderança.


Fonte
Jorge Pinheiro, História e religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007, pp. 42-58.