mercredi 15 mars 2017

A mulher e a comunidade de fé no Apocalipse 12

a mulher 
e a comunidade de fé no Apocalipse 12
Prof. Dr. Jorge Pinheiro*


Resumo: O livro do Apocalipse é um desafio para os exegetas e intérpretes bíblicos em geral. E a questão feminina aí colocada mais ainda, já que parte do Cristianismo faz uma leitura particular – a Mulher do Apocalipse 12 é Maria, a mãe-de-Deus. Jorge Pinheiro neste texto, a partir da Teologia da Cultura, traz alguns elementos novos para a discussão: a tradição matrifocal mediterrânea e o conceito de feminescência. A compreensão do papel da comunidade de fé em Apocalipse 12 nasce, então, dessas correlações.

Palavras chaves: matrifocalidade, feminescência, comunidade de fé, Apocalipse 12.
  
O capitulo 12 do Apocalipse é central para a compreensão da comunidade de fé que está a ser construída no Novo Testamento e também para o entendimento do  próprio texto como um todo. A mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e a cabeça ornada por doze estrelas, que enfrenta o dragão, rompe os padrões da velha aliança, de tradição patriarcal, e apresenta uma nova leitura de gênero, matricial da comunidade nascente.

1. Uma questão teórica: feminescência e Mariologia

Como protestantes somos desafiados e refletir sobre os dogmas de Maria e a construção simbólica que mudou a face de um grande setor da religião cristã.

Isabel exclamou em alta voz: De onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor?” (Lucas 1.4243).

Embora a dogmática cristã ao falar de duas naturezas do Filho se refira ao divino e ao humano, esses dois processos simbolicamente nos falam de duas gerações. E no caso do dogma católico de Maria nos fala da filha que é gerada pelo Pai, num primeiro momento, e do Deus que é gerado pela filha.

Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho (...) gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria, mãe de Deus [théotokos]”. (Bettenson, p. 86 / em português contemporâneo por Jorge Pinheiro).

O concílio de Calcedônia, 415 AD, apresentou Maria, a moça de Nazaré, como théotokos, mãe de Deus. Nesse conceito há uma desconstrução da patriarcalidade e, por extensão, da propriedade. O que significa Maria mãe-de-Deus nesta revisão da questão de parentesco?

Simbolicamente, Maria aparece nos ícones como aquela que deu à luz Deus e, portanto, parceira do Pai. Ao mesmo tempo, a defesa daqueles que veneravam Maria através dos ícones era de que quando assim faziam não a encaravam como deusa à maneira pagã, mas como aquela que deu à luz Deus.

Esse pensamento percorreu um caminho que levou até a idéia de segunda Hawah. E por que segunda Eva? Qual a diferença entre a primeira e a segunda? A primeira Hawah, “a-vida”, é a mãe da humanidade, mas a segunda Hawah, é apresentada como mãe-de-Deus. Uma revolução na história da linguagem simbólica acerca da mulher. Há algumas questões intrigantes nesta discussão: a primeira é a idéia de que ela deu à luz Deus; a segunda a percepção da necessidade de identificar uma pessoa como geradora de uma nova criação; e a terceira de que, sendo Deus gerado e a pessoa geradora da nova criação uma jovem, o gênero feminino ocuparia a centralidade da nova estrutura de parentesco. Vejamos cada uma dessas questões.

Em primeiro lugar, a maternidade não depende de um homem e que, de fato, o pai não é um pai. Na verdade, com a universalidade da maternidade da moça de Nazaré ela teria se tornado mãe de todos os pais.

Em segundo lugar, se acrescentarmos o anúncio do anjo Gabriel de que o que moça de Nazaré haveria de gerar seria fruto do ruach hakadosh, do vento santo, temos a ruptura do significado biológico e cultural da paternidade, o que daria à maternidade caráter suprabiológico e supracultural, já que foram rompidos os laços de sangue. Nesse sentido, podemos entender théotokos. Mas tal desconstrução não para aí. A priori há uma realidade natural: inter feces et urinas nascimur. A vulva, a madre aberta pela passagem do primogênito, permanece presente em nossa cultura e tem a consistência da lei biológica: não se chega ao mundo de outra maneira. Mas em théotokos há uma ruptura.

Em terceiro lugar, é interessante notar que Pilatos pergunta à multidão quem ela deseja que seja solto: Yeshua ou Bar-abas? Ora, Yeshua é “Deus liberta”; e Bar-abas, “filho do pai”. Assim, naquele momento demônico, poderíamos dizer que a multidão pediu a morte da liberdade e a permanência da estrutura de parentesco. Momentos mais tarde, já na cruz, Jesus teria reafirmado a universalidade da maternidade suprabiológica e supracultural.

Jesus viu a sua mãe e junto dela o discípulo que ele amava. E disse à sua mãe: ´Mulher, aí tens o teu filho.´ Depois disse ao discípulo: ´Aí tens a tua mãe.´ E, desde esse momento, aquele discípulo recebeu-a em sua casa” (Jo 19.26-27).

Estaríamos, então, diante de uma nova estrutura de parentesco, liberta dos laços de sangue, do biológico e dos condicionamentos culturais da patriarcalidade. Aqui encontramos uma ponte de diálogo com a cultura popular brasileira, a estrutura de parentesco matrifocal, que tem como possibilidade de construção o parentesco definido pelo amor, mas também por seu oposto, o abandono. Tal postura leva à escolha adotiva e, nesse sentido, aponta para a liberdade, mas também à escravidão, ambas, liberdade e escravidão em relação à natureza e às construções daí decorrentes.

Em quarto lugar, a matrifocalidade extrapola o universo da naturalidade, está embutida em théotokos e apontaria para o futuro -- a gravidez e o parto da mulher virgem, que não tem a vulva como caminho, mas acontece na exterioridade do corpo. Assim, a moça de Nazaré, eterna virgem, preanunciaria o tempo da maior de todas as desconstruções, a abolição da maternidade e a expansão da matrifocalidade. Essa desconstrução, sem dúvida, transformou a face da história do cristianismo. Mãe de Deus, a mulher virgem geraria seu libertador.

Nessa construção teológica de expansão da matrifocalidade, o cristianismo correlacionou-se com o modelo mediterrâneo, onde o espaço físico da casa era entendido enquanto categoria de gestão da chefia feminina e de arranjos extensos presentes nos grupos de parentesco. Nesses arranjos a centralidade da figura feminina e do papel exercido pelas mulheres, além de ser traço característico, religiosos ou não, exercia um eixo estruturador, que produzia e reproduzia modos de ser do modelo familiar.

A presença matrifocal no modelo mediterrâneo não está associada à idéia de pessoas e comunidades fracas do ponto de vista da sobrevivência, mas denotam a expansão das trajetórias de ascensão das mulheres, que podem ou não ser chefes-da-casa, assim como podem ser liderança de extenso grupo familiar, onde homens, pai e filhos aceitam a chefia feminina. É importante entender que a matrifocalidade mediterrânea não representa ausência do homem na família ou comunidade, e nem implica em chefia de mulheres solteiras, distante dos agrupamentos familiares, ou solitárias na gerência da prole.

Teologicamente, a extensão da matrifocalidade deve ser entendida como construção e expansão da imagem da mulher, que concentra poder entendido como força simbólica circulante, que se fundamenta em presença conquistada na trajetória da fé cristã. Na Marialogia, essa presença se traduz na definição de espaço espiritual próprio, fruto do prestigio adquirido nas comunidades, ao receber o estatuto de mãe coletiva pela sua trajetória: ser théotokos, e pelo tipo de funções desempenhadas, de parteira de um novo tempo, responsável por trazer ao mundo, com suas próprias mãos, o filho de novas gerações. A este conceito chamamos de feminescência. Mas vejamos isso no livro do Apocalipse.

2. A mulher e o dragão

Viu-se grande sinal no céu, a saber, uma mulher vestida do sol com a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça, que, achando-se grávida, grita com as dores de parto, sofrendo tormentos para dar à luz. Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças, sete diademas”. (Ap 12.1-3).

O capítulo 12 relata o conflito existencial da comunidade de fé, ilustrado na luta entre uma mulher e um dragão (vv. 1-5), imagens que remetem às da mulher e da serpente em Gn 3.15. Apresenta uma mulher gloriosa e sofredora ao mesmo tempo. Ela está para dar à luz um filho que um dragão, diabo, aquele que é "mentiroso e homicida desde o início" (Jo 8.44), pretende devorar. A mulher gera o filho (vv. 7-9), o Cristo. Ele escapa do dragão e é elevado aos céus. Temos, então, uma guerra entre o arcanjo Miguel, acompanhado de anjos, e o dragão, que é lançado à terra (12,10-12), onde persegue e procura matar a mulher e mãe. Mas Deus defende a mulher, que se refugia no deserto por três anos e meio, ou seja, 42 meses, ou ainda 1260 dias. Ao ver que não consegue destruir a mulher-mãe, o diabo se lança contra seus filhos (12.6 e 13-16).

Na cultura grega, a que João recorre, o mar gerou monstros e dragões. O mais terrível deles foi Ládon, com um corpo de serpente e cem cabeças que falavam idiomas diferentes. Serviu aos deuses do Olimpo, que os cristãos viam como demônios, guardando a macieira de ouro de Zeus. Dessa maneira, João relaciona o dragão com a serpente e lhe deu funções demoníacas, a principal delas perseguir a mulher e seus filhos. Por isso, o dragão simbolizaria o Estado pagão que desejava matar a mulher e exterminar seus filhos.

Dragão, serpente, diabo. O dragão é adversário de Deus, da mulher e de seus filhos. Ele investiu contra a humanidade essencializada em Cristo, coroa da criação de Deus, e procura a sua destruição, razão pela qual é chamado destruidor (Ap 9.11). Atacou Jesus, quando realizava a obra da redenção, enquanto Estado romano. Acusa o povo de Deus (Ap 12.10) em centenas de idiomas. É o chefe dos demônios (Mt 25.41; 9.34; Ef 2.2), é o líder das forças inimigas e as emprega no combate a Cristo e ao reinar de Deus.

Não é humano, mas não é um deus. Exerce influência sobre a sociedade civil, mas tem lá seus limites (Mt 12.29; Ap 20.2) e será lançado no abismo (Ap 20.10). É astuto (2Co 11.3), maligno (Jó 2.4), orgulhoso (1Tm 3.6), poderoso (Ef 2.2), e presunçoso (Mt 4.4,5). É cruel (1Pe 5.8), enganador (Ef 6.11), se opõe ao Evangelho (Mt 13.19; 2Co 4.4) e perturba a obra de Deus (1Ts 2.18).

O dragão é forte, mas para a comunidade de fé é um inimigo derrotado (Jo 12.31). E apesar de falar através de muitas cabeças em línguas diferentes é covarde (Tg 4.7).

E assim João nos dá o caminho ao relacionar dragão, serpente e diabo, mostrando que o Estado não limita seu controle apenas sob a humanidade alienada, mas atua também nos círculos elevados da política, apresentando-se como conhecedor do mundo e sábio (2Co 11.14). Faz-se presente nas conferências das nações (Jó 1.6), procura enganar gregos e troianos (1Tm 4.1) e fomenta sínodos e entidades onde tenha o controle (Ap 2.9). E é este Estado aparentemente todo-poderoso que ataca a humanidade essencializada por Cristo.

O Salmo 72.9 diz que “diante do Eterno, a Fera se curvará e seus inimigos lamberão o pó”, se referindo aos demônios do deserto e aos Estados derrotados, conforme Dn 7.3 e Ap 13.1. Este é o destino do Estado opressor. 

Mas, e a mulher, quem é ela? As relações culturais construídas entre mulheres e homens na Palestina e na história do povo hebreu estavam enraizadas nos relatos sobre Eva, ha´wah, “a-vida”, e Adão, ha´adam, “da-terra”. Diante disso, é importante fazer uma hermenêutica etiológica dos símbolos que levaram à construção dos diferentes sentidos presentes nesses textos, a fim de se encontrar neles jóias teológicas escondidas sob a literalidade do texto. Essa compreensão parte da constatação de que o pensamento hebreu não foi construído apenas pela racionalidade, mas é correlato às experiências de conhecimento cultural, intuitivo e transcendente, que deram sentido e significado à vida das comunidades de fé judaicas.

Daí que se há uma compreensão literal de Gênesis e da criação que apresenta hadam e hawah como ancestrais da espécie humana, não podemos esquecer que há uma rica simbologia no texto. Ou como disse Orígenes no De Principiis: "as Escrituras Sagradas têm um sentido que é aparente à primeira vista, e um outro que a maioria dos homens não percebe. Porque são escritas em forma de certos mistérios, e à imagem de coisas divinas. A respeito do que há uma opinião em toda a igreja, que toda a lei em verdade é espiritual, porém que o sentido espiritual da lei não é conhecido a todos, mas apenas aqueles que receberam a graça do Espírito Santo na palavra de sabedoria e conhecimento".

Há alguns anos, a historiadora Elaine Pagels voltou-se para a leitura de Gênesis por curiosidade científica. Ela estava em Cartum, no Sudão, numa discussão com o ministro do Exterior sudanês, membro da tribo Dinka, que tinha escrito um livro sobre as histórias ancestrais de seu povo. Então, ele lhe disse que a história da criação dos dinkas traduzem a cultura de parte do Sudão, não somente religiosa, mas também social e política.

E que era assim porque remontava às origens do humano em busca por soluções para os problemas referentes à natureza, sua origem, o modo como esta cultura se comportava, as transformações que nela se verificavam e seu caráter de continuidade. Estes questionamentos levaram ao surgimento desses relatos ancestrais, formas pictóricas para a explicação dos fenômenos – em geral da natureza, mas também da origem e razão do humano. Daí que os relatos ancestrais formataram as culturas dos povos antigos.

Depois da conversa, Pagels leu na revista Time que leitores contestaram um artigo que falava da mudança de costumes nos Estados Unidos. Algumas dessas cartas mencionavam a história de Hadam e Hawah, como Deus criara o primeiro casal humano, e a importância disso para o comportamento estadunidense hoje. Estimulada por sua conversa com o líder sudanês, ela constatou que os povos, mesmo aqueles que não acreditavam literalmente no relato da criação, precisavam retornar a ele como padrão de referência, quando confrontados com os desafios dos seus valores.

Pagels considerou que, como as estórias de outras culturas, o relato de Gênesis abordava questões fundamentais. Os dinkas e os americanos, do norte, do centro e do sul, não seriam assim tão diferentes. Por isso, por que não olhar para os relatos da criação, quando se procura respostas a perguntas como: existe uma finalidade para a existência humana? Por que sofremos? Por que morremos?

Os debates intelectuais nos anos 1990 levantaram questões que o filósofo da religião Stephan Hoeller chamou de “fator Gênesis”. No segundo semestre de 1996, palestras e discussões realizadas no Manhattan Theological Seminary, lideradas pelo rabino Burton Visotzky, virou série de televisão dedicado ao livro do Gênesis.

Sarah Lieberman, uma historiadora judia, estudou a origem da palavra tselá (costela, costa, lado) e disse que em sumério ela significa tanto “costela” como "tornar vivo" e que na antiga Mesopotâmia, Ninti, significa tanto “senhora da costela” como “senhora que traz a vida”. O duplo significado remete à idéia de que hawah não foi tirada de uma costela de Hadam, mas brotou dele e lhe trouxe vida e sentido existencial.

Então, uma das hipóteses é que a estrutura familiar patriarcal se faz presente na narrativa de Gênesis, embora em certos trechos encontremos elementos que nos remetem à presença de estruturas matrilineares e matrifocais. Ora, o caso do serviço de Jacó a Labão (Gn 29) para que pudesse casar-se com a mais velha e depois com a mais nova é um exemplo que está em conformidade com as práticas matrifocais do casamento. Sara e Rebeca também são vistas como cumprindo papel matrifocal. No caso de Sara, um desses aspectos é a opção pela esterilidade, visto como resultante de abstinência sexual a fim de não engravidar. Tal postura de afirmação matrifocal tem paralelo com o papel tradicional das sacerdotisas da Mesopotâmia, terra natal de Sara. Da mesma maneira, a frase "deixará pai e mãe para ficar com a mulher" sugere que o homem se deslocava em direção à família da mulher, o que também é um elemento da família matrifocal.

Bill Moyers foi um dos teólogos a propor que diante da modernidade que se esvai, cheia de desafios para a civilização ocidental, de efervescência religiosa com poucas definições, não faz sentido procurar a saída lá na frente, mas voltar ao livro das Origens. E, assim, católicos, protestantes e judeus, mas também agnósticos, budistas, hindus e muçulmanos, participaram dos debates de Moyers.

E as escrituras não-canônicas do vale de Nag Hammadi, no Egito, enriqueceram os debates. A biblioteca de Nag Hammadi é uma coleção de textos não-canônicos, que cobre do surgimento do cristianismo até o Concílio de Nicéia em 325. Descoberta no Alto Egito, próximo à cidade de Nag Hammadi, em 1945, a biblioteca contem textos de cinquenta e dois tratados, três trabalhos pertencentes ao Corpus Hermeticum e uma  tradução parcial de A República de Platão. Segundo James M. Robinson, na sua obra The Nag Hammadi Library in English, os códices pertenceram ao monastério de São Pacômio e foram enterrados depois que o bispo Atanásio de Alexandria foi condenado pelo uso de versões não-canônicas dos testamentos em suas Cartas Festivas de 367. Após o Concílio de Niceia, monges tomaram os livros e os esconderam em potes de barro nas cavernas de Djebel El-Tarif.  Ali ficaram por mais de 1500 anos. Os textos nos códices estão escritos em copta, embora sejam traduções do grego. O mais conhecido deles é o Evangelho de Tomé, cujo único texto completo está na Biblioteca de Nag Hammadi. Atualmente, todos os códices estão no Museu Copta do Cairo.

Os textos de Nag Hammadi não analisam os relatos do Gênesis literalmente, mas construíram hermenêuticas a partir da tradição matrilinear. Assim, hadam e hawah eram representações dos padrões existenciais do humano. Hadam seria símbolo da psiquê, a razão, e Hawah do pneuma, o espírito. Mas ambos eram, igualmente, corpo, matéria. Razão traduzia as funções emocionais, de pensamento e da personalidade, enquanto o espírito representava a capacidade humana para a consciência existencial. Hadam seria representação do ego da psicologia profunda, e Hawah da função transcendental. Obviamente, Hawah não era inferior a Hadam.

E o papel de Hawah teria sido o de despertar Hadam. Em sono profundo, Hadam teria sido levantado por Hawah. Enquanto Hawah da versão patriarcal é uma costela, dependente, na versão matrifocal é um princípio espiritual. Não teria saído fisicamente do corpo de Hadam, mas brotado das profundezas do inconsciente de um Hadam adormecido. E teria sido assim que nasceu a consciência crítica no humano, que aponta para a liberdade.

O texto “Sobre a Origem do Mundo” [On the Origin of the World] apresenta Hawah como Zoe, vida, mensageira da Sabedoria de Deus. A Sabedoria enviara Zoe, a vida, como instrutora, a fim de levantar Adão, que se encontrava espiritualmente adormecido. A finalidade era fazer com que aqueles que fossem gerados por ele pudessem ser existencialmente livres. Quando Hawah viu que seu companheiro dormia, sentiu pena dele e teria exclamado: “Adão, vive! Levante-se sobre a terra!” Ao clamor de Hawah, Adão abriu os olhos e levantou-se. Quando ele a viu disse: “Você vai ser chamada de ‘Hawah, a-vida’, porque é a mãe dos humanos”.

O teólogo teuto-estadunidense Paul  Tillich fez uma interpretação semelhante: entendeu que a alienação traduz simbolicamente a situação humana. O humano alienado é despertado para a realidade da existência através da consciência crítica e transformadora. Nesse sentido, sem a função Hawah, de despertamento para a vida e para a consciência, não haveria a construção da espécie humana.

3. A mulher enquanto comunidade cristã

A leitura da primeira Hawah, que apresenta a dualidade entre a tradição matrilinear e a formação da cultura patriarcal, se prolongou na segunda Hawah, a humanidade essencializada pelo Cristo. Por isso, em Ap 12.1 e seguintes, a Mulher é gloriosa, mas sofredora porque seus filhos estão sujeitos aos ataques do dragão, ou seja, do Estado a serviço dos poderes espiriturais da maldade. Como vimos, na compreensão de Lopez (veja bibliografia), “encontramos aqui uma riqueza mítico-simbólica interessante. Vemos um Deus solidário que corre em auxílio da mulher, que representa a comunidade. Por trás disso, percebe-se que o corpo da mulher é visível e é salvo, graças a esse filho ´maravilhoso´ que regerá as nações”.  

No Apocalipse a leitura de gênero da mulher é reconstruída matrilinearmente. Na verdade, João funda a partir de sua leitura neotestamentária a matrifocalidade cristã. A mulher é gloriosa e sofredora, porque no primeiro século da comunidade de fé havia uma leitura solidária em relação a ela: desde o Éden, Deus lhe prometera um papel nobre na obra da redenção. Passa, então, a ser valorizada por causa do Filho, mas é sofredora porque a geração dele provoca a fúria do adversário. A matrifocalidade joanina rompe a ausência e o distanciamento patriarcal, traz a realidade da ancestralidade para o presente, pois a partir dela todos são filhos e não há um filho mais importante, porque o primeiro, o mais querido, foi elevado e nele repousam todas as esperanças.

A matrifocalidade do Apocalipse aponta para uma teologia onde a universalidade cristã também repousa em colo feminino. E porque uma jovem deu à luz e é geradora de nova criação, o gênero feminino tem centralidade na expansão do Reino. A mulher descrita por João faz a desconstrução das relações convencionais de sangue, filiação, paternidade e parentesco. Essa desconstrução das relações familiares, aqui chamada feminescência, produz um estado simbólico inovador que transforma a face da existência cristã. A partir da mulher gloriosa e sofredora do Apocalipse nasce uma criança e, ao mesmo tempo, uma época.

A mulher do Apocalipse não pode ser identificada com uma pessoa em especial. A estrutura simbólica de gênero em Apocalipse 12 traduz a compreensão joanina da feminescência e correlaciona o projeto do novo feminino cristão com a comunidade de fé. O erro católico consiste em atribuir feminescência a Maria e não entender o processo da matrifocalidade mediterrânea que se expressava na vida de mulheres da época de Jesus e na construção da comunidade de fé do Novo Testamento. Hoje, a matrifocalidade se faz presente nas comunidades de fé saudáveis, onde tais características se expressam na cooperação solidária com o restante da comunidade. Mas a feminiescência, o espaço espiritual próprio, de parteira de um novo tempo, pertence à comunidade de fé: “Eu te darei as chaves do reino dos céus. O que ligares na terra será ligado no Céu, e o que desligares na terra será desligado no Céu” (Mt 16.19). Eis a lição de João: “A-vida” que nos primórdios foi atravessada pela alienação, dor e sofrimento, agora, atravessa a existência em luta com a não-vida, e na feminescência da comunidade de fé o sentido se faz presente e constrói a esperança de um mundo novo.


* Jorge PINHEIRO dos Santos tem Pós-Doutorados em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É Doutor e Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo e graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É professor da Graduação e Pós-Graduação na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, com especialidade em Teologia Sistemática, atuando principalmente com os temas de Filosofia, Política e Religião.


Bibliografia e referências
Bettenson, H., Documentos da Igreja Cristã, São Paulo, ASTE, 1967.
Bisinoto, Eugênio Antônio, Para conhecer e amar Nossa Senhora: formação Mariana. 2ª. ed. – Aparecida, SP: Editora Santuário, 2005.
Blank, Renold J., Escatologia da pessoa, vida, morte e ressurreição, São Paulo, Paulus, 2000.
____________, Escatologia do mundo, projeto cósmico de Deus, São Paulo, Paulus, 2011.
Coyle, Kathleen, Maria na tradição cristã, a partir de uma perspectiva contemporânea, São Paulo, Paulus, 2000.
Driver, John, Comunidade e compromisso, São Paulo, Editora Cristã Unida, 1992.
__________, Contra a corrente, São Paulo, Editora Cristã Unida, 1994.
Lieberman, Sarah Roth, The Eve Motif in Ancient Near Eastern and Classical Greek Sources, Boston University, 1975.
López, Maricel Mena La mujer en Apocalipsis 12. In site: Clailatino. WEB : www.clailatino.org/ribla/ribla46/mujer%20maria%20comunidad.html
Pagels, Elaine, Adam and Eve and the Serpent, Londres, Weidenfeld and Nicholson, 1988.
Pinheiro, Jorge, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo, Fonte Editorial, 2008.
Tillich, Paul, Teologia Sistemática, São Leopoldo, RS, Escola Superior de Teologia e Edição Sinodal, 5ª. revista, 2005. Tradução: Getúlio Bertelli e Geraldo Korndörfer. Revisão: Enio Mueller. Texto original: Systematic Theology – Three volumes in one [Volume I, 1951; volume II, 1957; volume III, 1963], Chicago, Illinois, The University of Chicago. “Das System der Wissenschaften nach Gegenstanden und Methoden”, Fruhe Hauptwerke, Gesammelte Werke I, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1955, pp. 265-290.
Valdez, Adylson, O livro do Apocalipse, uma interpretação conforme a história e o simbolismo bíblico, São Paulo, Fonte Editorial, 2009.


jeudi 9 mars 2017

A centralidade do Cristo e a ...

A centralidade do Cristo
e a ação dos jovens batistas
Jorge Pinheiro


Qual o papel dos jovens batistas brasileiros numa sociedade em crise?
Como Cristo, centralidade da ação e fé batista, é a solução para os problemas brasileiros?


1. Três questões que devem ser levadas em conta

A revolta generalizada do brasileiro urbano contra a atual situação em que vive grande parte da população. Por isso, somos exortados à reforma radical, no sentido protestante, batista, diante do grito de revolta de uma população que desperta para a consciência de que a exclusão de bens e possibilidades não é uma situação irreversível e permanente.

As manifestações e mobilizações apontam para aquilo que Tomás de Aquino afirmava: “há um mínimo de condições exigidas para a prática da virtude”. Assim, a existência de vidas em condições desumanas, injustas, inferiores, leva milhões de brasileiros à prática de atos contrários aos padrões morais.

O Brasil quer definir sua identidade enquanto nação.


2. Reformas e resistência à mudança social no Brasil

O Brasil não enfrenta um problema de subdesenvolvimento, mas outro, mais complexo, que é o do desenvolvimento desigual.

A resistência à mudança no Brasil localiza-se predominantemente na natureza patrimonialista do Brasil de pensamento arcaico. E tal pensar não está apenas nas zonas rurais tradicionais – do Nordeste e outras regiões --, mas dentro do próprio Brasil urbano.

Diante de tal situação, qual a missão da juventude batista? Será possível uma resposta coerente, que apresente saídas para os grandes dilemas brasileiros?

A situação brasileira se insere num contexto mundial, que é fruto das transformações sociais e dos imperativos morais e religiosos decorrentes da ampla utilização da ciência aos meios de produção. Em última instância, a técnica é boa pois modifica as condições de vida das pessoas, mas, paradoxalmente, virou o mundo de ponta cabeça.

Somos exortados a viver a reforma radical, no sentido batista, em marcha, já que não é mais possível tolerar a exclusão de possibilidades de milhões de brasileiros.

Os jovens batistas não podem divorciar-se da luta pela justiça. E essa luta traduz ao nível do real, atributos do próprio Cristo, já que ele fez do brasileiro mordomo e não dono absoluto deste quase continente. Esse Cristo redentor e santificador lança sobre nós o desafio do Brasil, já que é impossível adotar a criança da manjedoura e esquecer a realidade, colocar-se sob a cruz e esquecer a sociedade em que vivemos.

A vida é o primeiro passo para a construção de uma centralidade do Cristo. Vamos ler Lucas 4. 16-21.

Temos aqui o programa ministerial de Jesus. E no texto destaca os quatro pontos programáticos de Jesus Cristo: anunciar uma nova ordem aos excluídos de bens e possibilidades; proclamar a libertação aos deserdados da terra; restaurar a vida dos que estão sendo ceifados pelas enfermidades; e apregoar o ano aceitável do Senhor.

Ora, se os três primeiros itens do programa se referem aos aspectos materiais da vida humana, sobre o que trata o quarto item? Ao compromisso, a opção por estar na trincheira ao lado daqueles que lutam por dignidade e justiça.

Aqui, está, à maneira protestante radical, as sementes para uma centralidade do Cristo em nossas vidas e na vida da nação.

E podemos tirar dez conclusões desta abordagem profética.

(1) A nossa fé deve interpretar a condição humana à luz do propósito de Cristo. (2) Somos porta-vozes de Cristo para condições específicas. (3) Somos jovens batistas em ação. (4) Somos jovens do povo de Cristo e de nosso tempo. (5) Exercemos uma ação política à luz da compreensão do destino do povo de Cristo. (6) O propósito básico de nossa pregação social é a aliança no sangue do Cristo. (7) Justiça e juízo, amor e integridade são importantes que a estrutura política, a religião organizada e a organização e instituições econômicas da nação. (8) Nosso compromisso é com Cristo. (9) Cristo participa dos combates pela justiça, é a centralidade de nossa ação. (10) Hoje, somos desafiados, na centralidade do Cristo, a enfrentar os dilemas destes dias.


3. Cristo, a centralidade da reforma radical

Se os jovens batistas colocam-se na brecha social e consideram fundamental participar da vida real do país, em que sentido podemos falar da centralidade do Cristo numa reforma radical da sociedade brasileira?

O que significa, em última instância, a centralidade do Cristo?

Teologicamente, fazemos a proclamação da soberania de Cristo, depositando sobre os ombros de nossa juventude a tarefa de aceitar o desafio do momento, a fim de demonstrar a evidência da ação do Cristo no mundo.

O perigo é, em meio às rápidas transformações sociais, ficar atrás em nosso pensamento social e pregar um evangelho que não seja compreensível e adequado às necessidades do sociedade em mudança.

O papel dos jovens batistas numa sociedade em crise é seguir os passos de Cristo, amante apaixonado dos excluídos de bens e possibilidades.

E atenção, juventude batista brasileira

Cristo é a centralidade para a solução dos problemas brasileiros porque sob sua soberania está nossa ação política, a favor do brasileiro e da vida, na reforma permanente do reinar de Deus. E neste que fazer, o fazemos todos, juntos a partir de nosso atuar transformador.





samedi 4 mars 2017

Ambiguïtés des images religieuses à la lumière de la théologie de P. Til...

Protestant Theologian Dr. Paul Tillich, of the Union Theological Seminar...

Interview of Paul Tillich Part 1

Uma conversa com Paul Tillich (Legendado)

Poder e Secularização

Uma análise do conservadorismo político evangélico
no Brasil a partir de Poder e Secularização, 
as categorias do tempo, de Giacomo Marramao.
Jorge Pinheiro
 

Em 1983, o cientista político italiano Giacomo Marramao lançou Potere e secolarizzazione , em que de forma contundente trabalha a controvérsia sobre tempo pagão e tempo cristão e, como consequência, a questão das imagens do mundo e as representações do tempo.

No Brasil de hoje e, sem dúvida, no mundo da globalidade, podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para crentes e não-crentes, mas agora com a criação e combinação dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, os ritmos e tempos se interpenetram.

O conceito secularização não é apenas uma metáfora, que expressa o distanciamento progressivo da esfera religiosa enquanto poder, já que seu significado semântico continua em permanente construção. Para Marramao (1997), "a impossibilidade de reconduzir essa noção a uma concepção unitária não depende meramente, como no caso de outros termos característicos da modernidade, da sua polissemia ou polivalência semântica", mas necessita de uma "estrutural ambivalência de significado, a qual dá lugar a premissas antitéticas ou diametralmente inversas". 

Assim, o paradoxo maior da secularização mostra-se enquanto conflito Igreja versus secularidade, já que a Igreja assume uma caráter burocrático e a secularidade, cada vez mais, discute, opina e legisla sobre questões religiosas. Ou seja, há ou não um interseccionalidade de valores? A Igreja, e aqui estamos a falar dos evangélicos brasileiros, posa enquanto institucionalidade estatal e  a secularidade cria características religiosas.

Assim, é de se entender que a secularização, enquanto fenômeno interseccional, possui significado de afirmação e de oposição entre o espiritual e o secular. Dessa maneira, a secularização se apresenta hoje, na hipermodernidade sob três formas, o princípio da ação eletiva, o princípio da diferenciação/especialização progressiva, e o princípio da legitimação. E se falamos do princípio da ação eletiva, estamos a falar da emersão progressiva da pessoa na busca do significado do seu "eu" e da "consciência de si mesmo". Por isso, para Marramao (1995), "este aspecto comporta um modo cultural particular de estabelecer a linha de demarcação entre subjetividade e objetividade e, portanto, de construir a realidade social."

Já o princípio da diferenciação/especialização progressiva nos mostra que quando o princípio eletivo se torna afirmativo, a adoção do critério de escolha fica em aberto. Esse critério de escolha está no âmbito da racionalidade instrumental, assim, Marramao (1995) nos dirá que "a consequência disto é a relação estreitamente biunívoca que a se instaurar entre secularização e  aumento de complexidade do mundo social."

Ao analisar a politica evangélica no Brasil, dois autores traçam linhas bem demarcadas, sobre como se lançaram contra os direitos civis, democráticos, seculares. Para Cowan, “a direita política evangélica no Brasil tornou-se presuntiva, mas foram prefiguradas durante os processos simultâneos de redemocratização nacional e de politização evangélica na década de 1970 . Nesta encruzilhada, os líderes de várias denominações religiosas adotaram a linguagem de uma crise moral aguda, lançando as bases para uma direita evangélica. A própria crise moral tornou-se “nosso terreno”, o ponto de inserção dos evangélicos de direita na esfera política, e uma das várias questões-chave que dividem evangélicos reacionários e seus correligionários progressistas. Até o momento da Constituinte, a posição dos Batistas e Assembleianos, como vozes dos conservadores que apoiaram amplamente o regime militar e se opuseram às iniciativas de justiça social do ecumenismo de esquerda e ao comunismo, tinha sido estabelecida após anos de pronunciamentos que ligavam essas questões à crise moral.” 

E para Carneiro, “no Brasil, a formação da Assembleia de Deus por missionários suecos trouxe o que já se chamou de uma mistura do pietismo sueco com o patriarcalismo nordestino forjando a imagem popular do rigorismo do “crente” como alguém abstinente de todos os prazeres e de vestuário austero, que não gostava de dança nem de música e menos ainda de adornos corporais.

“Os novos cultos pentecostais acrescentaram, além dos elementos de transe e de práticas extáticas e de possessão, uma relativa abertura para um aggiornamento que levou algumas igrejas a se especializarem em segmentos jovens, de surfistas, rockeiros, etc. A diversidade de congregações traz as mais diversas atitudes, mas permanece nos grupos dominantes a identidade comum de abstinência como valor de pureza cristã. Quando essa atitude se torna um lobby político elegendo parlamentares e até candidatos presidenciais com a intenção de impor à sociedade os critérios particulares dessas igrejas estamos diante de um tipo de fundamentalismo religioso.

“No Brasil, o evangelicalismo evoluiu cada vez mais para a direita ao longo do período ditatorial e pós-ditatorial, constituindo o que já foi chamado de uma “nova direita” baseada na reação moral e cultural. Na ditadura houve uma distinção clara entre setores protestantes e evangélicos democráticos que se opuseram ao regime, como o pastor presbiteriano James Wright, fundador do Brasil Nunca Mais, e os grupos mais conservadores e anti-ecumênicos que apoiaram os governos militares.

“Esta ala direita se aproveitou de benesses do regime, cresceu e predominou. Sua atuação política mais destacada se deu em torno ao combate à pornografia, o alcoolismo, o tabagismo, o jogo, o divórcio, e a emancipação feminina. Defensores de que o lugar da mulher é no lar, se juntaram à Igreja Católica para se opor ao controle populacional e aos anticonceptivos.” 

Mas temos que ver, a partir de Marramao, que tal realidade se expressa de forma imagológica na política, fazendo com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelacem e produzam, como diz Giner, “mutações na vivencia e qualidade desses tempos”.  Assim, a bancada evangélica, presente hoje no Congresso brasileiro, expressa produções imagológicas de tempos, que apesar de suas volatilidades, acumulam de forma caleidoscópica mudanças no momento presente.

Em seu livro Passagem ao Ocidente, filosofia e globalização, de 2003, Marramao faz uma análise do pensamento contemporâneo e como este se debruçou sobre a investigação da globalização. Mas procura evitar a ocidentalização da abordagem, delineando uma política global.

Assim fez leituras de F. Fukuyama e Kojève e, consequentemente, ao fim da História e à universalidade do individualismo competitivo. Atravessa, então, o conflito de civilizações que, após o colapso do Muro de Berlim, viu o globo mergulhado num conflito intercultural mundial. E, chegou com S. Latouche, à concepção da expansão planetária de dominação da tecnologia sob o controle da razão instrumental.

Mas, para Marramao, a globalização deve ser vista como pressuposto típico da modernidade, na transição de um mundo fechado a um universo circum-navegável, que possibilita o encontro, mas também o choque de culturas, levando a sociedade a ser transformada por esse encontro diário, que se espraia a partir das megalópolis, mas que permanentemente desafia a nossa identidade.

No percurso dessa compreensão da globalidade, vai além da crise do Estado-nação, agora personificada pelo Leviatã democratizado de John Rawls. Aqui temos a reconstrução do princípio de universalidade da diferença, que se dá em esfera global, onde o mundo aparece como presença-imagem da racionalidade técnica e econômica, que influencia tudo e todos através da criação de um modelo único de sociedade e pensamento. E que, ao mesmo tempo, tira proveito da riqueza das diferenças para construir uma globalidade cosmopolita, onde todos podemos cultivar nossos politeísmo de valores.            

Mas globalidade e temporalidade, para Marramao, estão imbricadas. E para chegar à sua construção da temporalidade da globalização, fez a reconstrução das concepções de tempo nascidas na reflexão ocidental a partir da análise de Timeu de Platão, até chegar às discussões sobre a flecha do tempo na física. Mas, construindo uma reflexão sobre temporalidade/identidade, onde busca os pontos de contato entre as abordagens focadas na pessoa e as sociais.

Assim, faz a crítica da sociedade contemporânea, onde o presente é dominado pelo movimento incessante, onde ninguém consegue saborear o presente. E reconstrói a etimologia do tempo latino, onde são colocados o sentido interno de tempo, a síndrome temporal da pressa e a busca insana para se recuperar a posse da existência.

Donde, o tempo kairós, tão caro à escatologia judaico-cristã, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. Isto porque o tempo privado deixa de ser humano e passa a  depender de condições e variáveis que incluem desde a situação mundial às situações físicas e psíquicas, plasmando tempos esmagam pessoas e comunidades.

Dessa maneira, a síndrome da pressa, do tempo que falta, tornou-se parte do projeto moderno, numa racionalização da escatologia judaico-cristã, onde se busca o fim último do domínio da razão instrumental. Essa homogeneização, que se procura planetária, responde à síndrome da pressa repetindo, eternizando, a mesma cena neurótica, por não ser capaz de parar, considerando normal chegar sempre fora do tempo certo, tarde demais, vivendo a angústia e o trauma permanente da perda da oportunidade certa.

Mas este projeto moderno, afirma Marramao, está em crise, e devemos olhá-lo com distanciamento, superando Weber, já que a racionalidade instrumental é um fenômeno típico do Ocidente, que não surgiu em nenhuma outra cultura, nem mesmo na China. É com este distanciamento que devemos analisar o capitalismo, nos debruçando sobre outras culturas, humildes na certeza de que têm algo a dizer e que podem nos ensinar a escapar da sociedade contemporânea e aprender a viver no presente, debruçados sobre um presente escatológico, renunciando à idéia de que lá na frente algo bom e definitivo deve acontecer.

Michael Löwy trabalha esta questão a partir de uma leitura weberiana, o que matiza os contornos aparentemente demoníacos da presença evangélica na política brasileira. Para ele, “os evangélicos são, no fundo, uma religião mágica. Eles acreditam que, fazendo certos rituais, orações ou mesmo dando dinheiro para a igreja, terão seus problemas resolvidos. Isso, para parte da população, sempre foi assim. Mas devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família, é fato. Por outro lado, essas igrejas são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas e, na maioria das questões sociais, regressivas. Além do quê, desenvolvem uma pretensa teologia da prosperidade que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo, que é bastante negativo.” 

Ou seja, podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente agradáveis e facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura, que nos leva, a partir de Marramao, a falar de conflitualidade endêmica do mundo e, como consequência, dos dilemas que traz para a política e para a religião. 

Ou como diz Barrera, “a contraposição mecânica entre a efervescência religiosa, que carateriza hoje as sociedades latino-americanas, e o conceito de secularização leva ao erro comum de negar o processo de secularização e esconde uma superficial compreensão do conceito. Muito pelo contrário, a discussão de conceitos como “secularização”, “desencantamento do mundo” e “saída da religião” mostram que é precisamente nas sociedades secularizadas onde tornou-se possível a pluralidade religiosa que, ao nosso ver, é a maior evidência do enfraquecimento da influência social do outrora poder institucional religioso“. 


Marramao

מניתוח שמרנות הפוליטיות אוונגליסטים בברזיל משלטון החילון, בקטגוריות של זמן, ג'אקומו Marramao.
חורחה פיניירו

בשנת 1983, איש מדע המדינה האיטלקי ג'אקומו Marramao השיק Potere ו secolarizzazione שבו בכוח עובד מחלוקת לאורך זמן נוצרי פגאני זמן, וכתוצאה מכך, את סוגיית תמונות עולם וייצוגי זמן.

בברזיל היום, ואין ספק שבעולם של הגלובליות, אנחנו יכולים לדבר על ממדי-רבים של זמן בתרבות. עכשיו קודם לכן, אין ספק, הזמן צריך להיות שונה במובהק למאמינים ולא מאמינים, אבל עכשיו עם יצירת שילוב של זמן מלאכותי המיוצר על ידי טכנולוגיה, המקצבים פעמים לשזור.

מושג החילון אינו רק מטאפורה, המבטאת את ההתרחקות המתקדמת מתחום הדת ככוח, מאז המשמעות הסמנטית שלה נשארת בניית קבע. לקבלת Marramao (1997), "חוסר האפשרות של הבאה את הרעיון הזה לתפיסה אחדותית תלויה לא רק, כמו במקרה של תנאי טיפוסי אחר של המודרניות, polysemy שלה או צדדי סמנטי," אבל צריך "אמביוולנטי מבנית של משמעות, אשר מוליד את הנחות מנוגדות או הפוך בתכלית. "

לפיכך, הפרדוקס של חילון הגדול מוצג הכנסייה הסכסוך מול חילוניות, מאז הכנסייה מקבלת אופי ביורוקרטי וחילוניות, יותר ויותר, דן מביע את דעתו וחקיקה בנושאי דת. כלומר יש או אין ערכים intersectionality? הכנסייה, וכאן אנחנו מדברים של האוונגליסטים ברזילאים מתחזה מוסדות מדינה וחילוניות יוצרת מאפיינים דתיים.

לפיכך, ניתן להבין כי חילון כמו תופעת intersectional יש אישוש המשמעות וההתנגדות בין הרוחני לבין חילוני. לפיכך, חילון הוא היום hypermodernity בשלוש צורות, עיקרון פעולה אלקטיבי, עיקרון התמחות בידול / פרוגרסיבי ואת עיקרון הלגיטימיות. ואם אנחנו מדברים על עקרון הפעולה אלקטיבי, אנחנו מדברים על הופעתה פרוגרסיבי של האדם בחיפוש אחר משמעות "אני" ו "מודעות עצמית" שלו. אז עבור Marramao (1995), "היבט זה כרוך באופן תרבותי מסוים של הקמת קו התיחום בין הסובייקטיביות והאובייקטיביות ובכך לבנות מציאות חברתית."

אבל העיקרון של התמחות בידול / פרוגרסיבי מראה שכאשר עיקרון הבחירה הופך כך, אימוץ הקריטריונים לבחירה פתוח. הקריטריון של בחירה הזאת הוא בתוך הרציונליות האינסטרומנטלית ובכך Marramao (1995) יאמר לנו כי "התוצאה של זה היא מערכת יחסים דו כיוונית טהרת עבודה מוגדרת בין החילון מורכב גובר של העולם החברתי."

על ידי ניתוח מדיניות אוונגליסטים בברזיל, שני מחברים מתארים מסומנים קווים בבירור כיצד הטיל נגד האזרחית, דמוקרטית, חילוני. לקבלת קוואן, "המדיניות הנכונה אוונגליסטים בברזיל הפכה משוערת, אבל היו קדים במהלך תהליכי סימולטני של דמוקרטיזציה לאומית פוליטיזציה אוונגליסטים בשנתי ה -1970. בצומת זה, מנהיגי דתות שונות אמצו את השפה של משבר מוסרי חריף, ומכשיר את קרקע זכות אוונגליסטים. המשבר המוסרי עצמו הפך "ארצנו", נקודת הכניסה בצד ימין של האוונגליסטים בתחום המדיני, ואחד כמה נושאים מרכזיים אשר מחלקים ריאקציונרים אוונגליסטים ותומכים פרוגרסיבי שלהם. עד לאסיפה המכוננת, העמדה בפטיסטים הרכבות, כמו קולות של שמרנים שתמכו רחב על המשטר הצבאי בניגוד ליוזמות צדק חברתיות משמאל ואקומניות והקומוניזם, שהוקמה לאחר שנים של הצהרות שקשרו סוגיות אלה המשבר המוסרי. "

וכבשים, "בברזיל, ההיווצרות של האסיפה של אלוהים על ידי מיסיונרים שבדיים הביאה מה שכונה פעם תערובת של דָתִיוּת השבדית עם הפטריארכיה הצפון המזרחי זיוף תמונת rigorismo הפופולרית של" המאמין "כמי מתנזר מכל ההנאות ובגדים צנועים, לא אוהבים מחול או מוזיקה ואפילו פחות של עיטור הגוף.

"לתפילת חג השבועות החדשה שנוספה, בנוסף אלמנטים טראנס ושיטות אקסטטי וחזק, פתח ביחס עבור aggiornamento שהובילו כמה כנסיות להתמחות מגזרים צעירים, גולשים, נדנדה, וכו ' המגוון של קהילות מביא את העמדות המגוונות ביותר, אבל נשאר קבוצות דומיננטיות הזהות המשותפת של התנזרות בתור להיות ערך טוהר נוצרי. כאשר יחס זה הופך שדולה פוליטית בבחירת מועמדים לפרלמנט ואף לנשיאות מתוך כוונה להטיל על החברה בקריטריונים מסוימים של כנסיות אלה עומדים בפני סוג של

mardi 28 février 2017

אברהם & האמנה

אברהם & האמנה

המסורת המקראית מציגה הורים של אנושות ואת האבות כפי המונותיאיסטיות. אדם, שת, נח, אברהם וצאצאיו ידעו את אלוהים הנצחי ושמירה מצוותיו. פוליתאיזם מגיע ניוון וניתוק שאלוהים ברא את היקום.

כל ניתוח של עליית הדת של ישראל צריך להתחיל מהאיש אברהם בהקשר ההיסטורי והחברתי שלה. העולם של אברהם הוא עולם אובייקטיבי, לא המיתולוגי, והברית עם אלוהים הנצחי, כפי שנמצאו בספר בראשית 15, היא המפתח להבנת כל התורה, חמשת חומשי התורה.

איחוד של הברית הזאת לקרות משה, תיאר בספר שמות 24 וחזר בספר דברים 5, ב מצר ההרים במדבר, בין מצרים מדין-שעיר. זהו כוח הרעיון של כל דת ישראל, הסכם הכרוך הישועה.

הסכם חגיגי

הברית יש את תחושת החובה, אלא גם ביטחון. זהו הסכם בין שני אנשים, חגג חגיגית, עם שפיכות הדמים. החלק החזק מספק אבטחה, או גאול, ואת ההחלשה נאלצת התחייבויות מסוימות. לפיכך, הברית הטילה יחסים מיוחדים בין האל הנצחי והעם. והמצוות וחוקים, נתונים מאוחר יותר במדבר משה, נושאת קונוטציה משפטית חיצונית לאפשרות של הסכם גדול פולחן והצייתנות. המרכז של הברית היא המצווה הראשונה של עשרת הדיברות (עשר מילים עברית) האוסר על עבודת אלוהים אחרים של המיליציה שמים אלילים.

אתיקת ברית

אולם הברית היא גם ברית מוסרית. אבל היסוד של ברית זו, אשר מחלחלת התורה או החומש כולו אינו פורמליזציה גרידא, שכן אנשים אחרים גם פיתחו רעיונות החוק והמוסר. הרצח, גניבה, ניאוף ושבועות שקר גונו לא רק על ידי חוק המוסר האוניברסלי, אלא גם להענישו בחומרה קודי אור-נמו, Lipit-אשתר חמורבי, שם נציג ביותר.

עכשיו, עם זאת, את המוסר לראשונה מוצג על ידי אלוהים הנצחי עצמו כמו התוצאה של יחסים בינו לבין העם, עם סטנדרטים להקמת סוג חדש של הממלכה. זוהי ברית עם העם כולו. איחוד לוקח מאות בשנים לאחר מכן, על הר סיני הוא תוצאה של הברית עם אברהם ואת הולכת מעבר הבבלי וחוכמה המצרי.

מוסר שהוצג בראשית, למשל, כי הוא רווחי בודד כאן בלבוש חדש, הופך קיבוצי ולאומי. למעשה, ברית יהוה היא עם אברהם בספר בראשית 15 יש מימושה ההסטורי בתנאים אחרים בזמן אחר, בסיני.

לפיכך, הברית שנכרתה עם אברהם לא רק מכינה את תסריט התורה, אך הוא חלק בלתי נפרד ממנו. זה בראשית לא רק סאגה ממוצא, אבל כיסוד של כל חמשת חומשי התורה.

מאחד רעיון

התיאולוגיה של בראשית מבוססת על הרעיון של הברית, כתיאור של תהליך חיים, אשר מקורו ברגע היסטורי נתון, יחסים בין האל הנצחי ואיש מוגדרים הסטוריים. על ידי הבנת את הרעיון של ברית כמרכז המאחד של ספר בראשית, ובהרחבה, החומש, קריאת הטקסט המקראי מוחלפת דינמי אמיתי, שהולך כמו ברית הופך עצם ובשר, הראשונה בחייהם של האבות ומאוחר יותר להיווצרות ולמדינת ישראל.

ספר בראשית מציג את שהוקמה זה עתה כאנושות המונותיאיסטיות. עד פרק 11 אין אנו רואים עקבות של עבודה זרה. רק לאחר בבל מגיע לעבודה זרה, אשר יהיה עכשווי הופעתה של אומות עתיקות.

מבראשית 12 אנו עובדי אלילים והפוליתאיסטים אומות ואנשים שהעריצו יהוה. בין אלה אברהם Melquisedeq. הבנת עובדה זו חשובה לנו לקחת בחזרה אברהם באחריות וליצירת הדת המונותיאיסטית הראשונה. הוא לא יצר את הדת אחת אמיתית של אלוהים, אלא גם הצליח לחיות מסורת, כדי העברת הידע והתרבות, וזאת הייתה אחת סיבות אבותיו.

אזור משגשג

בואו נסתכל קצת יותר על החיים של האיש הזה, כמתואר בספר בראשית 12: 1 עד 25:18. הוא חי בארץ שנוצר בין נהרות הפרת והחידקל, על גדות יובל של נהר פרת, שנקרא Baliq.

בעיר אור, שם הוא גר לפני הולך לחרן, נמצא על ידי ארכיאולוגים באזור המודרני תל אל-Muqayyar, ארבעה עשר קילומטרים Nasiryeh בדרום עיראק. על פי מחקרים על ידי סר ליאונרד וולי, המוזיאון הבריטי, ששחזרה את ההיסטוריה של אור מן האלף הרביעי לפנה"ס שנת 300, הירח-אלוהים Nannar, אשר סגד באור כשדים, גם היה האלוהות הראשית בחרן.

עשרות שנים לפני אברהם, האור הייתה העיר החשובה ביותר בעולם. מרכז ייצור תעשייתי, אגר-פסטורלית ויצואן, נקבע באזור ענק
פוריות. משם יסעו קרוואנים ספינות לכיוון