jeudi 19 mars 2020

As raízes cristãs da economia social e solidária

As raízes cristãs da economia social e solidária

Uma lição do protestantismo francês
Jorge Pinheiro, PhD


Foi Charles Gide, economista protestante do século 19, quem criou o conceito de solidariedade, que depois deu origem a um outro conceito, o de Economia Social Solidária, ESS. A economia social solidária, segundo dados apresentados por Frédéric Rognon, pastor da Igreja Protestante Unida da França e professor de filosofia da religião na Universidade de Estrasburgo, hoje na França é responsável por cerca de 12% dos empregos assalariados. Está presente em quase todos os setores de atividade. 
As origens da economia social solidária remontam à idéia de solidariedade, desenvolvida por Charles Gide (1847-1932), economista e protestante, a partir de sua compreensão dos textos bíblicos. Normalmente, quando falamos de economia e protestantismo, frequentemente nos referindo ao sociólogo Max Weber. Mas Frédéric Rognon, autor de "Charles Gide - Ética Protestante e Solidariedade Econômica" (Olivetan ed., 2016), prefere nos falar de Charles Gide, porque este intelectual protestante é o pai do solidarismo, um caminho econômico iniciado no final do século 19, cujo legado não é a economia social solidária.

Foi por volta de 1870 que surgiu a ideia de que todos estamos relacionados uns com os outros do ponto de vista econômico, quando Charles Gide e outros solidaristas foram inspirados pelos textos bíblicos e, em especial, pelo apóstolo Paulo, que diz, entre outros textos : “Se um membro sofre, todos os membros compartilham seu sofrimento, se um membro é honrado, todos compartilham sua alegria. Você é o corpo de Cristo, e cada um de vocês é um membro desse corpo." (1Co, 12, 26-27).
O solidarismo criou o sentido sociopolítico de solidariedade, e recorreu ao termo latino "in solidum", que se refere à ideia de um todo coerente. Implica na idéia de que se um irmão sofre uma agressão ou por algum motivo trem uma dívida, todos os demais irmãos estão envolvidos. O termo solidariedade é também usado na biologia, para descrever o modo como todo o corpo é tocado quando um órgão é afetado.
Assim, de acordo com Charles Gide, estamos ligados uns aos outros, ou seja, quando pessoas sofrem, é importante que todos ajudem por aqueles menos afortunados.

Segundo o departamento de Economia e Finanças francês, a ESS gera de 6% a 10% do PIB e emprega mais de 2,3 milhões de franceses: cerca de 13% do emprego privado. 

Mas como funciona e qual são os objetivos da ESS hoje na França?
Sem dúvida, o desenvolvimento sustentável, a produção orgânica e o comércio justo são objetivos fáceis de entender, mas teoricamente podemos dizer que há um objetivo fundador, tornar a economia significativa, reunindo empresas que conciliam atividade econômica e função social, dando primazia às pessoas e exclusivamente aos lucros.

Uma das características da ESS é a de que não é um setor econômico, mas sim um modo de conciliar exigências de solidariedade e desempenho econômico, utilidade social e eficiência. Tal característica exige paciência dos investidores e envolvimento das partes interessadas: membros voluntários, funcionários, mas também fornecedores e clientes, conforme relatório do Ministério da Economia, em 2014. 
Este modo de gerar empresas e realizar negócios está fundado sobre cinco princípios:


1. Não à lucratividade individual. 
Este princípio não proíbe ou elimina a realização de lucros, mas a apropriação individual deles. Pode ser absoluta: é o caso de associações, onde qualquer pagamento de dividendos, remuneração paga aos acionistas de uma empresa em troca de seu investimento no capital da empresa, é proibido. Pode ser parcial, em cooperativas, onde os funcionários podem receber até metade dos lucros obtidos, de diferentes formas. Na mesma linha, escalas de pagamento são controladas dentro do ESS, e qualquer aumento no capital resultante da atividade da estrutura é, prioritariamente, atribuído ao desenvolvimento de seus projetos.
2. Gestão democrática.

Toda decisão tomada dentro de uma estrutura governada pela economia social e solidária responde ao princípio de uma pessoa = um voto. Assim, qualquer que seja o capital investido ou o tempo gasto dentro da estrutura, cada um de seus membros tem o mesmo peso.

3. Utilidade coletiva ou social do projeto.
O interesse coletivo do projeto é um princípio comum às estruturas da economia social e solidária, mas esse princípio é vasto. Pode ser manter empregos de qualidade, montar um projeto que respeite os três pilares do desenvolvimento sustentável (social, econômico e ambiental), pensar em montar uma organização mútua que tenha suas próprias características. Para algumas profissões, esses tais projetos fazem parte da economia social e solidária.

A utilidade social, desde que esteja sujeita a uma gestão altruísta, que é garantida desde que os conselheiros desempenhem suas funções de forma voluntária e não realizem qualquer distribuição direta ou indireta de lucros. E deve ser aprovada se a atividade satisfaz uma necessidade não levada em conta pelo mercado ou insuficientemente; se a atividade é realizada em benefício de pessoas que justifiquem a concessão de vantagens especiais em vista de sua situação econômica e social; se os preços dos produtos estão abaixo dos custos de mercado; e se a publicidade em torno deste projeto destina-se apenas a coletar doações ou a informar sobre as ações realizadas pela estrutura. 
4. Recursos mistos

Os projetos das estruturas da economia social e solidária são financiados graças ao rendimento das atividades de mercado, aos subsídios públicos e às contribuições voluntárias.
5. Livre adesão

Ninguém deve ser obrigado a participar de um projeto de economia social e solidária. Nesse sentido, um membro de uma cooperativa pode vender livremente suas ações se não desejar embarcar em um projeto da ESS ou se desejar sair de tal estrutura.

Assim, a Economia social e solidária agrupa organizações definidas primeiro por seu status, administração sem fins lucrativos e democrática, e/ou pelo que fazem, finalidade social reivindicando uma utilidade social específica em domínio econômico, social ou ambiental. Tais organizações traduzem o fato de que a empresa privada capitalista não é a única forma de organização capaz de produzir bens e serviços e que o enriquecimento pessoal não é o único motivo que pode fazer uma pessoa empreender.

A ESS é, portanto, considerada uma forma de empreender, e tais estruturas podem aparecer em todos os setores de atividades, desde que os princípios acima mencionados sejam respeitados. 

Dessa maneira, na França, as organizações e empresas de economia social e solidária são as primeiras empregadoras do setor social, 62% dos empregos, e na áreas de esporte e recreação representam 55% dos empregos no setor. É também o segundo maior empregador nas atividades financeiras, bancárias e de seguros, (30% dos empregos no setor, e tem peso significativo nas artes, 27% dos empregos no setor, e na educação, 19%.
Assim, 90% dos serviços prestados às pessoas são gerenciados por uma estrutura da ESS, enquanto mais de 85% das instalações para pessoas com deficiências são gerenciadas por um modo associativo. Para dar exemplos concretos de estruturas da ESS, o crédito cooperativo é o banco histórico do ESS, e a maioria dos profissionais que trabalham em associações esportivas estão vinculados à economia social e solidária, enquanto as associações de ensino, complementares à escola pública, assim como as federações de educação popular, que intervêm em tempo extracurricular, também são administradas sob os princípios da ESS.


Longe de ser um setor à margem, a ESS administra 30% das instalações de saúde: 9 de cada 10 pessoas com deficiência são cuidadas por instituições da economia social, e 68% dos serviços de cuidados a domicílio em França. Dentro da mesma perspectiva, pessoas dependentes são usadas por empresas da economia social.

E o uso da etiqueta “solidariedade corporativa”, permitido a organizações que não estão listadas nos mercados financeiros, possibilita que elas se beneficiem de certos subsídios. A obtenção desta etiqueta está sujeita a algumas condições específicas. De maneira simples, uma empresa que deseja obter esta etiqueta deve cumprir pelo menos uma das duas condições:


1. pelo menos 30% de sua força de trabalho contrata jovens, deficientes, e beneficiários de condições sociais mínimas; 
2. a empresa cumpre duas condições relacionadas tanto com a natureza jurídica da empresa como com o nível de remuneração.

A natureza jurídica da empresa deve estar sob a ESS, associação, mutualidade, cooperativa, instituição de previdência. O nível de remuneração é controlado: para empresas com um a dezenove empregados e/ou membros, o executivo não deve receber remuneração superior a quatro vezes o salário mínimo. Para empresas com vinte ou mais funcionários e/ou membros, a condição acima deve ser atendida por dezenove funcionários e/ou membros e nenhuma remuneração deve exceder oito vezes o salário mínimo. Além disso, a faixa de salários não deve exceder a proporção de 1 para 7.

É bom esclarecer que na França, a maioria das organizações de empregadores e empresas são microempresas, com menos de 10 empregados, e que organizações e empresas de ESS representam 19% empresas privadas com mais de 250 empregados. 
A distribuição de empresas e organizações da ESS estão presentes em todo o território, mas concentram-se no grande oeste de França, nas regiões da Bretanha e do Loire. Nessas regiões, o peso dos estabelecimentos de empregadores da ESS em todos os estabelecimentos patronais no território excede 11,5%.
Eu sei que você levou um susto e talvez diga, isso é impossível no Brasil. Mas se começarmos a pensar em solidariedade e em economia social e solidária vamos encontrar os nossos próprios caminhos.


Mon Jésus, mon Sauveur!


Béni soit celui qui vient au nom du Seigneur
Mon Jésus, mon Sauveur !

Baruch ata Adonai Elohenu mélech haolam!
Béni soit notre Dieu, roi de l'univers!

À propos de nous
Un témoignage de Jorge Pinheiro
La rencontre avec le Mashiah



Mais qui est ce Mashiah?

Le mystère révélé

1 Corinthiens 15: 3-8 -- « Ce que je vous ai dit en premier lieu, c’est ce que j’ai reçu, à savoir que le Christ est mort pour nos péchés selon les Écritures, a été enterré et est ressuscité le troisième jour selon les Écritures, et est apparu à Pierre, puis aux Douze. Cinq cents frères à la fois, dont la plupart sont encore en vie, même si certains se sont endormis … Alors il apparut à Jacques puis à tous les apôtres, et ensuite il m’apparut comme un enfant né hors du temps ».

Trois détails: (1) Nos péchés, hamartía : nos mauvaises cibles, nos échecs, notre corruption. (2) L'enterrement du corps de Jésus confirme sa mort. Joseph d'Arimathie et Nicodème, en préparant le corps de Jésus pour l'inhumation, se seraient rendu compte si Jésus n'était pas vraiment mort, comme Jean 19: 38-42. (3) Ressuscité / egeiró - a été soulevé, refait surface.

A. Le Mashiah, notre Christ, nous présente qui est un être humain que Dieu a planifié. Jésus, le Christ est éternel et l'homme, essentiellement parfait et complet. En ce sens, nous comprenons que le Christ incarné permet de comprendre ce qu'est l'humanité, traduisant en un langage de la vie le contenu fondamental de ce qui est dit dans la Genèse sur l'être humain avant le péché.

B. Le Christ révélé est la dimension la plus profonde de l'humain, la dimension qui traduit ce qu'est le chrétien: fils adopté de l'amour et de la grâce de l'Éternel, créé pour l'honneur, la gloire et la louange du Créateur.

L'une des forces de ce réseau d'idées théologiques présentes dans les Écritures hébraïques est le halakha. Plus que d'offrir un culte à Dieu, les Ecritures nous disent de marcher avec lui. D'où l'idée de chemin. Si l'être humain est placé à chaque instant et chaque jour devant la demande d'exercer sa liberté et de choisir entre le bien et le mal, ou, comme le dit Deutéronome 30.15, " vois qu'aujourd'hui, je te propose la vie et la prospérité, ou la mort et la destruction ", il doit parcourir le chemin à travers la loi.

Et le Mashiah, notre Christ, a montré la vraie signification de halakha, il est halakha - il est le chemin!

Le Christ révélé a créé une nouvelle communauté

Éphésiens 5: 25-27 – « Le Christ a aimé l'église et s'est livré pour elle, pour la sanctifier, pour la purifier par le lavage de l'eau par la parole, pour se présenter une église glorieuse, sans tache ou autres, mais saint et irréprochable. »

A. Le corps du Christ sur la terre est une nouvelle vie avec Christ et en Christ, dirigée par le Saint-Esprit. La communauté des croyants est née de cela, avec l'effusion de l'Esprit.

B. La lumière de la résurrection du Christ règne sur l'église et la joie de la résurrection, du triomphe sur la mort, y pénètre. Le Seigneur ressuscité vit avec nous et nos vies sont une vie mystérieuse en Christ. Les chrétiens prennent ce nom précisément parce qu'ils appartiennent à Christ, ils vivent en Christ et le Christ vit en eux.

C. L'incarnation n'est pas simplement une idée ou une théologie; est avant tout un fait qui s’est produit une fois dans le temps, mais qui a la force de l’éternité. Et cette incarnation perpétue sans fusion les deux natures: la nature divine et la nature humaine.

La nouvelle communauté : l’église nous prépare pour l'éternité
Apocalypse 22.16 – « Moi, Jésus, j'ai envoyé mon ange pour vous donner ce témoignage concernant les églises: je suis la racine et le descendante de David et l'étoile du matin resplendissante. »

L’Église est le corps mystique, spirituel du Christ en tant qu’unité de la vie avec lui, la même idée s’exprimant lorsque le nom de l’épouse du Christ ou de l’épouse de la parole est donné à l’église. L'église en tant que corps du Christ n'est pas Christ-Dieu-homme, car elle n'est que son humanité; mais c'est la vie en Christ et avec Christ, la vie du Christ en nous. Ou comme l'apôtre Paul nous le dit dans l'épître à Galates 2: 20.

« J'ai été crucifié avec Christ, donc je ne vis plus, mais Christ vit en moi. La vie que je vis maintenant dans le corps, je vis par la foi en le fils de Dieu, qui m'a aimé et qui s'est donné pour moi. »

B. L’Église, en tant que corps du Christ vivant, est le domaine dans lequel le Saint-Esprit est présent et où le Saint-Esprit opère. C'est pourquoi l'église peut être définie comme une vie bénie dans le Saint-Esprit. L'église est l'œuvre de l'incarnation du Christ, c'est l'incarnation: dans l'église, Dieu s'assimile à la nature humaine et, à travers l'église, le corps s'assimile à la nature divine. C'est la sanctification, que les parents ont appelée la déification (zéose) de la nature humaine, conséquence de l'union de deux natures dans le Christ.

C. L'église est le corps du Christ: en tant qu'église, nous participons à la vie divine de la Trinité. C'est la vie en Christ, c'est le corps du Christ qui reste uni à la Trinité.

Par conséquent, l'apôtre Paul dans la lettre à Colossiens 3: 3-4 nous dit: « Car vous êtes déjà mort, et votre vie est cachée avec Christ en Dieu. Lorsque Christ, notre vie, paraîtra, alors vous aussi vous serez manifestés avec lui dans la gloire. »

Et je termine par cette bénédiction:

רי הוא י יבוא שמו של אלוהי

Baruch haba b'shem Adonai. Dans l'évangile de Matthieu 23:39, Jésus, après avoir prononcé une série de phrases sur la génération qui l'a rejeté, a prononcé ces paroles prophétiques: 
« Vous ne me verrez pas jusqu'à ce que vous veniez dire: Béni soit celui qui viendra au nom du Seigneur. » 

Cette expression, en hébreu « Baruch haba b'shem Adonai », est une citation du psaume 118, une chanson du peuple d'Israël, qui a appelé au salut du Messie quand il a également dit: Hosanna, fils de David.

Et je dis encore une fois - mon Jésus, mon Sauveur!






dimanche 15 mars 2020

A comunhão na criação de Deus e nosso mandato cultural




A comunhão na criação de Deus e nosso mandato cultural 
Pr. Jorge Pinheiro


Os relatos bíblicos descrevem a criação do céu e da terra, obra do Eterno, através da indicação “e o Espírito de Deus se movia por cima da água” (Gn 1.2). Isto quer dizer que o Espírito divino é Pessoa criadora e presença do Eterno, tendo sido a criação uma realidade formatada por Ele. E é o mesmo Espírito quem clama pela liberdade redentora da criação escravizada.  

Um dia o próprio Universo ficará livre do poder destruidor que o mantém escravo e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que até agora o Universo todo geme e sofre como uma mulher que está em trabalho de parto” (Rm 8.21-22).

O Espírito é o poder atuante do Criador e a força de vida das criaturas. O Espírito é a fonte da vida. Por isso, tudo o que existe e vive manifesta a presença dele. Ele transforma a comunhão com o Pai e o Filho na comunhão da criação, na qual todas as criaturas, cada qual a seu modo, se comunicam com Deus. A existência, a vida e os relacionamentos estão firmados no Espírito, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28). 

Assim, a partir da comunhão trinitária, o ser humano faz parte da criação e é dependente dela. Vive dentro de um contexto de interdependência com a criação. Desde o início, nosso futuro está ligado ao solo, à água e ao ar. Deus nos coloca junto e com a natureza para trabalhar essa mesma natureza (Gn 2.15). Não haveria falta (2.8-9) se soubermos administrar. Dependemos do solo e dele recebemos o nosso sustento. Pertencemos a este mundo criado e é ele que fornece a base para nossa existência.  A vida começa e se orienta sob o cuidado de Deus. 

Ó Senhor, tu tens feito tantas coisas e foi com sabedoria que as fizeste. A terra está cheia das tuas criaturas” (Sl 104.24).

 “Todos esses animais dependem de ti, esperando que lhes dês alimento no tempo certo. Tu dás a comida, e eles comem e ficam satisfeitos. Quando escondes o rosto, ficam com medo; se cortas a respiração que lhes dás, eles morrem e voltam ao pó de onde saíram. Porém, quando lhes dás o sopro de vida, eles nascem; e assim dás vida nova à terra” (Sl 104.27-30). 

Hoje, pensamos que o mundo é um objeto para nossa exploração, em vez de sujeito para a glorificação de Deus. Em grande parte, ignoramos as necessidades de outras formas de vida. Essa atitude utilitarista de ver e agir é pecado, é uma falta de respeito para com o Espírito de Deus.

O desafio do cuidado amoroso

É Deus quem dá e quem sustenta a vida de todo o universo. Sua preocupação por atender às necessidades básicas (comer, beber e vestir) não se restringe ao ser humano, mas se estende a toda a natureza, refletida nos pássaros e nas flores do campo.

É Deus quem veste a erva do campo, que hoje dá flor e amanhã desaparece, queimada no forno. Então é claro que ele vestirá também vocês, que têm uma fé tão pequena!” (Mt 6.30). 

O universo inteiro depende do cuidado amoroso de Deus, que não descuida de nenhuma criatura. Os lírios, por exemplo, caracterizados por sua fragilidade e vida curta, são vestidos de tal modo que nem Salomão usava roupas tão bonitas como essas flores. (Mt 6,29). 

Criação significa que tudo é completamente obra de Deus. Deus é o autor de tudo, o Deus pessoal e salvífico, que se revelou como puro amor. Toda a realidade brota da pura iniciativa deste amor divino, puro dom gratuito. 

Mas, o ser humano faz parte da criação, depende dela e é seu cuidador. O ser humano, como o restante da criação, foi criado “de acordo com a sua espécie” (Gn 1.24 e 25), só que à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26-27). A imagem de Deus é elaborada em termos do domínio administrativo que o ser humano teria sobre o resto da criação. O ser humano foi criado à imagem de Deus, não somente por sua liberdade e direito à escolha, mas também pela postura que assume diante da criação, uma postura de soberania em amor e comunhão, que deve refletir a soberania de Deus (Gn 1.26-28). O ser humano não foi criado apenas para realizar uma administração espiritual, mas foi criado para ordenar a criação. 

No entanto, fizeste o ser humano inferior somente a ti mesmo e lhe deste a glória e a honra de um rei. Tu lhe deste poder sobre tudo o que criaste; tu puseste todas as coisas debaixo do domínio dele: as ovelhas e o gado e os animais selvagens também; os pássaros e os peixes e todos os seres que vivem no mar” (Sl 8.5-6). 

Essa administração humana sobre a criação nós chamamos de mandato cultural. Ser criado à imagem de Deus é ser responsável pelo planeta e por todas as formas de vida! 

A soberania humana implica responsabilidade para preservar a ordem que Deus criou e promover a existência de todos os seus elementos. Tal soberania não implica em liberdade para roubar, matar e destruir. Os seres humanos são mordomos de Deus, responsáveis diante dele e cuja primeira tarefa é assegurar a permanência e equilíbrio da criação. 

Somos todos responsáveis

A preocupação divina com a salvação espiritual não é alheia da sua preocupação pelo bem-estar da sua criação material. A criação é o primeiro dos atos salvadores de Deus. 

Mas tu, ó Deus, tens sido o nosso Rei desde o princípio e nos salvaste muitas vezes. Com o teu grande poder, dividiste o Mar e esmagaste as cabeças dos monstros marinhos. Esmagaste as cabeças do monstro Leviatã e deste o seu corpo para os animais do deserto comerem. Fizeste com que corressem fontes e riachos e secaste grandes rios. Criaste o dia e a noite, puseste o sol, a lua e as estrelas nos seus lugares. Marcaste os limites da terra e fizeste o verão e o inverno” (Sl 74.12-17).

Por isso, não devemos conceber a participação do ser humano no mundo como opcional, nem como secundária sua missão na salvação de vidas. Desde o início, a criação fazia parte do plano salvador de Deus. A conversão de seres humanos não é o último dos atos salvadores de Deus, mas o estabelecimento de novos céus e nova terra, ou seja, uma nova criação (Ap 21.1), a libertação da própria criação em si (Rm 8.20-22). 

Até o fim, a criação fará parte do plano salvador de Deus. A mesma graça de Deus que se manifestou em Cristo, também se manifestou na criação.

Deus falou muitas vezes e de muitas maneiras aos nossos antepassados, mas nestes últimos tempos ele nos falou por meio do seu Filho. Foi ele quem Deus escolheu para possuir todas as coisas e foi por meio dele que Deus criou o Universo. O Filho brilha com o brilho da glória de Deus e é a perfeita semelhança do próprio Deus. Ele sustenta o Universo com a sua palavra poderosa. E, depois de ter purificado os seres humanos dos seus pecados, sentou-se no céu, do lado direito de Deus, o Todo-Poderoso” (Hb 1.1-3).

E a graça do Eterno manifesta alcançará o seu propósito de submeter a Cristo todas as coisas.

Por isso Deus deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é o mais importante de todos os nomes, para que, em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos e declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus, o Pai”. (Fp 2.9-11).

As Escrituras Sagradas dizem: Deus pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. É claro que dentro das palavras “todas as coisas” não está o próprio Deus, que põe tudo debaixo do domínio de Cristo. Mas, quando tudo for dominado por Cristo, então o próprio Cristo, que é o Filho, se colocará debaixo do domínio de Deus, que pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. Então Deus reinará completamente sobre tudo” (1Co 15.27-28). 

Assim podemos dizer que existe uma eco-teologia bíblica, que envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação de Deus e a transformação das dimensões culturais, econômicas, morais, intelectuais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação de um sentido bíblico de mordomia, que implica em administração e cuidado responsável. Da mesma maneira, o conceito bíblico de descanso semanal recorda que se deve por limites às atividades de produção e ao consumo. Assim, devemos usar a riqueza e o poder no serviço dos demais. É um compromisso de trabalhar para libertar os ricos da escravidão ao dinheiro e ao poder, e possibilitar aos que têm menos obter acesso à dignidade e às oportunidades de desenvolvimento. A esperança de tesouros no céu nos livra da tirania de Mamon. E fazendo assim estaremos compreendendo o sentido maior do cuidado da natureza e da vida criada pelo Eterno.




dimanche 8 mars 2020

Algumas dicas do amigo Ben Sirac

“Palavras amáveis multiplicam os amigos, uma língua afável multiplica as palavras corteses. Sejam numerosos os que te saúdam, mas teus conselheiros, um entre mil! Se queres adquirir um amigo, adquire-o provando-o: não te apresses em confiar nele. Há quem seja amigo na hora que lhe convém, mas não permanece tal no dia da aflição. Há o amigo que se transforma em inimigo e revela as divergências, para tua desonra. Há o amigo, companheiro de mesa, que não permanece tal no dia da aflição. Na tua prosperidade será como tu mesmo, dando ordens com desenvoltura a teus servos. Mas se fores humilhado, estará contra ti e se ocultará da tua vista. Mantêm distância dos inimigos e usa de cautela com os amigos. Amigo fiel é refúgio seguro: quem o tem encontrou um tesouro. Amigo fiel não tem preço: é um bem inestimável. Amigo fiel é um elixir de longa vida: os que temem o Senhor o encontrarão.  Quem teme o Senhor dirige bem sua amizade: como ele é, tal será seu companheiro. Ben Sirac 6.5-17.

Yeshua, filho de Sirac, por isso chamado Ben Sirac, escreveu reflexões que entraram para a cultura judaica como peças da sabedoria judaica helenizada, escritas entre os anos 190 e 124 antes da Era Comum. Aqui ele fala sobre a amizade e espero que você, como os cristãos dos primeiros séculos, possa fazer bom proveito dessas reflexões. Jorge Pinheiro.

Os textos de Jesus ben Sirac não fazem parte dos textos sagrados do judaísmo. Professor ligado aristocracia jovem de Jerusalém, fez viagens ao exterior em missões oficiosas, o que nos leva a crer que tenhq ocupado cargo de importância junto ao Sinédrio, organismo de governo sob a responsabilidade do sacerdote maior. Por ter vivido em Jerusalém entre os anos 200 e 180 antes da Era Comum, viveu os tempos de transição da dominação complacente dos ptolomeus do Egito em direção à dominação sangrenta dos selêucidas da Síria. Trabalhou com o sacerdote-maior Simão (50.1-24), que ocupava tal função quando Jerusalém foi conquistada por Antíoco III em 198. Viveu a tragédia da deposição e assassinato de Onias III, filho de Simão, em 174, e a perseguição de Antíoco Epífanes (175-163) contra a cultura e religião judaicas. Assim, viveu sob dominções estrangeiras que oscilaram entre a complacência e o terror, e assistiu e possivelmente apoiou a insurreição liderada pelos Macabeus, em 167.

Por isso, ao contrário de estarmos diante de um livro apenas religioso a obra de Jesus ben Sirac traduz uma sabedoria destinada a consolidar a segurança do Estado, frente a inimigos externos e internos. Nesse sentido, despido da linguagem religiosa que possibilitou sua leitura sem censura e perseguições, estamos diante de textos que nos falam sobre os procedimentos do Estado na construção de sua segurança.

Tomemos por exemplo esse bloco de pensamentos e o leiamos como dirigido a elite dos dirigentes Macabeus e a aristocracia jovem que sobe ao poder com eles.

Palavras amáveis multiplicam os amigos, uma língua afável multiplica as palavras corteses. Sejam numerosos os que te saúdam, mas teus conselheiros, um entre mil! Se queres adquirir um amigo, adquire-o provando-o: não te apresses em confiar nele. Há quem seja amigo na hora que lhe convém, mas não permanece tal no dia da aflição. Há o amigo que se transforma em inimigo e revela as divergências, para tua desonra. Há o amigo, companheiro de mesa, que não permanece tal no dia da aflição. Na tua prosperidade será como tu mesmo, dando ordens com desenvoltura a teus servos. Mas se fores humilhado, estará contra ti e se ocultará da tua vista. Mantêm distância dos inimigos e usa de cautela com os amigos. Amigo fiel é refúgio seguro: quem o tem encontrou um tesouro. Amigo fiel não tem preço: é um bem inestimável. Amigo fiel é um elixir de longa vida: os que temem o Senhor o encontrarão.  Quem teme o Senhor dirige bem sua amizade: como ele é, tal será seu companheiro”. Ben Sirac 6.5-17.

O leitor apenas religioso, de ontem e de hoje, vê apenas um tratado sobre a amizade nas palavras de ben Sirac. Mas se levarmos em conta que as invasões de Alexandre levaram ao Oriente uma nova civilização, globalizada enquanto helenismo, era necessário pensar questões como choaue de culturas, religião e ecumenismo que pela força, diplomacia e comércio tendiam a abolir fronteiras e colocar em xeque o judaísmo. 
 
Ben Sirac, homem da inteligência judaica, acolhe aspectos importantes da cultura grega, como a filosofia estóica, mas sabe que a adoção não crítica do helenismo põe em risco a religião judaica (Sr 2.12-14) base da cultura palestina. E critica as concessões e entregas de membros do sacerdócio e da aristocracia, conforme denuncia o movimento dos Macabeus (cf. 1Mc 1-2).

Assim, ben Sirac trabalha com um paradoxo, a busca da liberdade e a presença do mal, traduzida na presença imperial. O ser humano foi criado livre (15.14), e o mal não se encontra na divindade, mas na ação humana (15.11-13). Aí está a fonte do mal (21.27; 25,24). Mas é possível enfrentar as forças da destruição (31.10).

Por isso, sua religião se aproxima de uma antropologia política, e aqui quero destacar alguns desses elementos. Faz uma apologia do nacionalismo judaico através do resgate da tradição dos antepassados (44.1-49,16). Opõe a Lei outorgada a Israel no Sinai (24.23), ou seja, a jurisprudência judaica, ao helenismo. E diante da nova racionalidade da filosofia grega reivindica a sabedoria judaica que fala do temor de Deus, enquanto aplicação da Torá escrita (1.26; 6.37). Dessa maneira, como professor e homem da inteligência chama ao estudo da Lei como tarefa para a sobrevivência nacional. E defende a fé tradicional: Deus é eterno e único (18.1; 36.4; 42.21); é o autor da criação (42.21.24), conhece todas as coisas (42.18-25).

E como homem da inteligência defende um futuro nacional, político, para a nação viável e soberano. Isso pode ser visto, em lingugem religiosa na oração que faz pela libertação e restauração de Israel (36,1-17), quando diz glorifica tua mão e teu braço direito. Excita o teu furor e derrama tua cólera. Suprime o adversário e aniquila o inimigo. Apressa o tempo, lembra-te do momento fixado e divulguem-se as tuas façanhas. Por um fogo vingador seja devorado o que sobreviver, e os que maltratam teu povo encontrem sua ruína. Esmaga as cabeças dos chefes inimigos que dizem: "Não há ninguém como nós!” 

A atitude do Sirácida em face de uma crença na ressurreição, o seu amor do culto, sua veneração pelo sacerdócio sadoquita (cf. 51,12 no hebraico) e, por outro lado, a falta de referência explícita às idéias messiânicas que se desenvolverão nos meios fariseus fizeram-no relacionar-se com uma espécie de pré-saduceísmo. De fato, pode-se situá-lo na linha desse movimento conservador, nacionalista, ligado à Lei escrita. Mas seria um erro assimilá-lo pura e simplesmente aos saduceus que conhecemos pelos evangelhos e por Flávio Josefo: ele ainda vive antes da diferenciação do judaísmo em seitas caracterizadas.

Em relação às nações pagãs, Ben Sirac manifesta uma atitude já tipicamente judaica. Após certa abertura universalista nos Profetas, as dificuldades do período pós-exílico levaram Israel a um particularismo pouco a pouco reforçado pela idéia da eleição bem como pelas exigências práticas da vida segundo a Lei: circuncisão, sábado, regras de pureza alimentar e ritual. A concepção helenista do homem cidadão do universo, então em voga, não arrefeceu a ufania do autor de pertencer à raça escolhida no meio da qual a própria Sabedoria estabeleceu sua residência privilegiada (24,7ss). Ele recomenda separar-se, principalmente dos ímpios (11,33; 12,14; 13,17), atitude levada ao extremo pelos essênios de Qumran e que provavelmente dará aos fariseus essa designação característica: "os separados". O mundo aparece, pois, dividido em duas categorias, a dos bons e a dos maus ou, equivalentemente, a dos sábios e a dos insensatos (21,11-28). Contudo, há traços reveladores de uma sensibilidade nova no judaísmo, e certos desenvolvimentos sobre o perdão (27,30-28,7) encontrarão paralelos no Evangelho. Talvez mesmo a concepção do "semelhante" que é "carne" como cada ser humano (28,4-5) anuncie já a idéia de que todos os homens são irmãos. Aliás, a exegese judaica antiga compreendeu às vezes Lv 19,18 da seguinte maneira: "Amarás o teu próximo como a outro tu mesmo".

Plano. Os comentadores não estão muito de acordo quanto ao plano da obra. Recordemos que o Sirácida é um semita e um mestre de sabedoria que compõe segundo critérios muito diferentes dos nossos. Reunindo suas notas, ele retomou a forma de um ensinamento oral por temas sucessivos, comportando numerosas digressões e formando assim largas unidades sem estrutura definida. Portanto, nenhum plano sistemático se impõe. Mas é possível reconhecer, ao menos, duas partes: 1-23 e 24-50, cada uma começando por um elogio da sabedoria. O capítulo 51 contém dois apêndices: um cântico de ação de graças e um poema sobre a busca da sabedoria.

Importância. A importância do Sirácida provém do seu papel de testemunha de uma época de transição onde começam a desenhar-se traços característicos do judaísmo, enquanto este representa uma forma evoluída da religião bíblica. Assinalamos acima alguns desses traços. Ben Sirac nos informa sobre aspectos essenciais desse judaísmo polimorfo no qual o cristianismo deitará raízes: é muito diferente do judaísmo rabínico, ao qual a preponderância farisaica (após o ano 70 de nossa era) vai dar um aspecto monolítico. Sob esse ponto de vista, sua obra deve ser estudada junto com a ampla literatura dos Apócrifos do Antigo Testamento e os escritos descobertos há um quarto de século no deserto de Judá. Do confronto judaísmo-helenismo, ela dá testemunho quer por seus empréstimos (nem sempre fáceis de identificar) quer por suas advertências ou mesmo invectivas apaixonadas.

Ben Sirac é também testemunha importante da constituição quase acabada de um cânon das Escrituras. O prólogo menciona a divisão tripartida clássica ("a Lei, os Profetas e os outros escritores"; cf. também 39,1-3) e o livro cita ou menciona mais ou menos explicitamente o Pentateuco, Josué, Samuel, Reis, Crônicas, Jó (hebr.: 49,9), Isaías, Jeremias, Ezequiel, os doze Profetas menores (especialmente Malaquias e Ageu), Neemias. Os Salmos são atribuídos a David e os Provérbios a Salomão.

O Sirácida será um dos autores preferidos do judaísmo: muitas vezes citado no Talmud e até entre os autores da Idade Média, sua obra deve ser posta em paralelo com um tratado fundamental da literatura judaica, os Ensinamentos dos Pais (Pirqê Abôt). As referências aos clássicos da Sabedoria antiga do Oriente Próximo (como a História de Ahikar [Aicar], cf. Tobit: Introdução) e aos textos judaicos mais antigos, indicados nas notas, mostrarão concretamente este aspecto ao mesmo tempo tradicionalista e criador do Sirácida. De fato, como o escriba do Evangelho, ele soube "tirar do seu tesouro coisas novas e antigas" (Mt 13,52).

Reconheceu-se também a influência do Sirácida sobre textos importantes da liturgia judaica, como os da festa do Grande Perdão (Kippurim); e a oração das Dezoito Bênçãos apresenta paralelos notáveis com 36,1-17.

Quanto ao Novo Testamento, os paralelos numerosos (sobretudo com Tg) provam que Ben Sirac desfrutou de grande estima entre os primeiros cristãos, estima confirmada pelo nome de Eclesiástico que a tradição dará a seu livro e, após algumas hesitações, pela inserção da obra no cânon das Escrituras. Admitido na coleção dos livros religiosos em Alexandria, e apesar da estima de que acabamos de falar, a obra foi no entanto rejeitada pelas autoridades farisaicas por causa de sua origem tardia e, talvez, por causa de idéias que não estavam mais de pleno acordo com a ortodoxia que se estabeleceu após 70. Essa decisão explica as hesitações dos cristãos nos primeiros séculos e é responsável também pela história complicada da transmissão do texto.

Transmissão do texto. O original foi redigido em hebraico, e S. Jerônimo, no século IV, ainda conheceu uma cópia.

Mas a seguir desapareceu totalmente, se se excetuam as citações rabínicas, várias das quais remontam apenas a florilégios. Ora, no fim do século passado, numa dependência de uma sinagoga do Cairo, descobriram-se fragmentos hebraicos recobrindo cerca de dois terços do texto grego. Os mais importantes são os manuscritos A e B, publicados em 1910 por S. Schechter. Fragmentos menores, da mesma procedência, foram também identificados a seguir. Outros fragmentos hebraicos mais ou menos importantes foram recuperados em Qumran e na fortaleza de Massadá (tomada pelos romanos em 73), confirmando a autenticidade substancial dos manuscritos do Cairo.

Reconheceram-se dois estágios do texto no hebraico reencontrado: o mais antigo é o que serviu de base à versão grega feita no Egito, cerca de 130 a.C. pelo neto de Ben Sirac (Grego I), ao passo que uma edição revista no sentido das idéias farisaicas (entre 50 e 150 d.C.) foi utilizada para uma revisão do texto grego entre 130 e 215 de nossa era (Grego II), revisão atestada numa série de manuscritos gregos. A versão siríaca também parece remontar a esta revisão do hebraico.

Nossa tradução seguiu o texto grego conforme a edição crítica de J. Ziegler (Göttingen 1965), referindo em notas os acréscimos de Grego II, importantes por causa de sua antiguidade. O grego é uma testemunha privilegiada do original hebraico e é em grego que o Sirácida foi acolhido pela tradição judaica e a tradição cristã. Sob este ponto de vista, os progressos teológicos que oferece em relação ao hebraico (quando a comparação é possível) documentam a evolução das idéias religiosas em Israel. Certas adaptações a um contexto teológico, histórico, geográfico e social diferente explicam também variantes cujos motivos as notas procurarão explicitar. Essas adaptações resultam da tendência midráshica que consiste essencialmente em atualizar a Palavra de Deus para as necessidades de uma comunidade viva, evitando que a Escritura se torne uma múmia.

Os fragmentos hebraicos foram utilizados cada vez que permitiam interpretar as leituras obscuras do grego, e citamos em nota as leituras variantes relevantes por seu conteúdo religioso; da mesma forma procedemos com as variantes do siríaco e da versão latina. Propor uma versão a partir do hebraico, cujas testemunhas são de valor variável e, além disso, recobrem apenas uma parte do original, resultaria em oferecer um texto compósito, cujas opções seriam injustificáveis sem uma abundância de notas críticas. Notemos enfim que todos os manuscritos gregos comportam uma transposição de dois cadernos e remontam portanto a um mesmo arquétipo: a seção 33,16b-36,10a encontra-se após 30,24 e a seção 30,25-33,16a vem depois de 36,10a. Aqui, com os editores modernos do grego, restabelece-se a ordem primitiva conservada pelo siríaco e o latim e confirmada pelo hebraico. 



A mariologia herética dos jovens reformados

Huguenotes, tupinambás 
e a mariologia herética dos jovens reformados
Jorge Pinheiro, PhD

Um dos elementos da doutrina reformada em construção, que favoreceu a aceitação do cunhadismo por parte dos huguenotes, e sua conseqüente entrada na estrutura social tupinambá, foram as novas leituras da mariologia e a possibilidade, a partir daí, de compreensão de novas leituras para as estruturas de parentesco.

É muito possível que o texto básico para essa compreensão do papel de Maria, como desestabilizador da estrutura patriarcal monogâmica católica, estivesse no evangelho de Lucas 1.4243, quando este afirma: “Isabel exclamou em alta voz: De onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor?”.

É bom lembrar que outra afirmação, esta presente num dos mais importantes documentos da igreja cristã dizia que Maria era théotokos. Assim, o concílio de Calcedônia, 415, apresentou a moça de Belém, como théotokos. Nessa afirmação há uma desconstrução não intencional da patriarcalidade ocidental e, por extensão, da propriedade. O que significava Maria mãe de Deus nesta revisão da questão de parentesco, para os jovens huguenotes? 

Embora a dogmática católica ao falar das duas naturezas do Filho de Deus e de Maria se referisse ao divino e ao humano, esses dois processos miticamente falam de duas gerações. Maria é filha gerada pelo pai, num primeiro momento, mas o pai é gerado pela filha numa universalidade posterior. É por isso que miticamente Maria aparece nos ícones como aquela que deu à luz Deus e, portanto, substituta do pai. Ao mesmo tempo, a defesa daqueles que adoravam Maria através dos ícones era de que ao venerar a imagem não a encaravam como deusa à maneira pagã, mas como aquela que deu à luz Deus. Esse pensamento percorreu um caminho que levou a idéia de segunda Eva. Provavelmente a maior revolução em toda a história da linguagem acerca de Maria. E por que segunda Eva? Qual a diferença entre a primeira e a segunda? Há três questões teológicas importantes nesta discussão: a primeira é a idéia de que ela deu à luz Deus; a segunda, a percepção da necessidade de identificar uma mulher como a geradora de uma nova criação; e a terceira de que, sendo Deus criado e a mulher geradora da nova criação, o gênero feminino e não o gênero masculino ocuparia a centralidade da nova estrutura de parentesco. Vejamos cada uma delas.

Em primeiro lugar, nessa leitura a maternidade não depende de um homem e que, de fato, o pai não é um pai. Na verdade, na universalidade da maternidade da moça de Belém, ela se tornou mãe de seu pai e, por extensão, mãe de todos os pais. 

Em segundo lugar, ao acrescentar o anúncio do anjo Gabriel de que o que moça de Belém haveria de gerar seria fruto do “ruach hakadosh”, do vento santo, se dava a ruptura do significado biológico e cultural da paternidade: o que dava à maternidade caráter suprabiológico e supracultural, já que foram rompidos os laços de sangue. Então, o pai não é mais pai, nem o filho é filho do pai, mas da mãe. Nesse sentido, podemos entender théotokos. Mas tal descontrução não pára aí. A priori há uma realidade natural: inter feces et urinas nascimur. A vulva, a madre aberta pela passagem do primogênito/a permaneceu presente na cultura ocidental católica e tem a consistência da lei biológica: ninguém chega ao mundo de outra maneira. Não ha exceção. Mas em théotokos houve a ruptura.

Em terceiro lugar, é interessante notar que Pilatos perguntou à multidão quem ela desejava que fosse solto: Jesus ou Barrabás? Ora, Jesus significa o que é eterno liberta, e Barrabás, filho do pai. Assim, naquele momento demoníaco, a multidão pediu a morte da liberdade e a permanência da estrutura de parentesco patrilinear, do filho do pai. Momentos mais tarde, já na cruz, Jesus reafirmou a universalidade da maternidade suprabiológica e supracultural e disse ao amigo João que Maria era sua mãe, e à Maria que João era seu filho. 

Assim, a Reforma que dava seus primeiros passos estava a construir leituras de uma nova estrutura de parentesco, liberta dos laços de sangue, do biológico e dos condicionamentos culturais da patriarcalidade. E foi através do cunhadismo que os jovens huguenotes encontraram uma ponte de diálogo com essa mariologia herética e revolucionária, a estrutura de parentesco matrifocal, que tem como possibilidade de construção o parentesco definido pelo gozo, mas também por seu oposto, o abandono. Tal postura leva à escolha adotiva e, nesse sentido, aponta para a liberdade, mas também em posição, à escravidão, ambas, liberdade e escravidão em relação à natureza e às construções daí decorrentes.

Mas há uma quarta questão, que extrapolava o universo da naturalidade, está embutida em théotokos e apontava para o novo mundo a construir: a gravidez e o parto da mulher virgem, que não tem a vulva como caminho, mas acontece na exterioridade do corpo. Assim, a moça de Belém, eterna virgem, preanuncia o tempo da maior de todas as desconstruções, a abolição da maternidade e a expansão da matrifocalidade. Essa desconstrução, sem dúvida, poderia transformar a face do Novo Mundo. Mãe de seu pai, a mulher virgem gerará seu pai. E assim construiremos um novo parentesco. 

Quando falamos de matrifocalidade devemos esclarecer que não se trata de um subsistema do matriarcado, mas um sistema dependente do patriarcado, que por sua vez o reproduz. O patriarcado deve ser compreendido, então, como estrutura baseada na distinção dos gêneros, masculino/ feminino, apresentados como complementares, mas vividos em assimetria de poder e, em muitos casos, concordes na proibição da sexualidade homoerótica, embora esse não fosse o caso entre os tupinambás. O matriarcado propriamente dito não existe e usar tal expressão leva a desviar a atenção do patriarcado, criando falsa simetria. Assim esclarecido, aqui não falamos de matriarcado, mas trazemos da antropologia o conceito “matrifocalidade” que nos fornece sentidos para compreender teologicamente os laços de parentesco do cunhadismo tupinambá. 

Nessa construção teológica da matrifocalidade dos primeiros huguenotes, fenômeno também vivido pelos anabatistas na Alemanha, tomamos como modelo o papel da mulher na família mediterrânea, onde o espaço físico da casa era entendido como categoria de gestão da chefia feminina e de arranjos extensos presentes nos grupos de parentesco. Nesses arranjos a centralidade da figura feminina e do papel exercido pelas mulheres, além de ser traço característico, religiosos ou não, exercia um eixo estruturador, que produzia e reproduzia modos de ser do modelo familiar. 

A presença matrifocal no modelo mediterrâneo não estava associada à idéia de pessoas e comunidades fracas do ponto de vista da sobrevivência, mas denotavam a expansão das trajetórias de ascensão das mulheres, que muitos vêem como representantes de um tipo de matriarcado. Mas, como dissemos, referir-se à figura de mulheres fortes utilizando-se a expressão matriarcal/ matriarcado é um erro. O termo correto é matrifocalidade, que deve ser entendido, em seu sentido expandido, como gestão doméstica e/ou familiar por mulheres, que lhes confere um espaço de relativo poder. E no modelo matrifocal mediterrâneo, que interessa desde uma perspectiva teológica, as mulheres podiam ou não ser chefes da casa, assim como podiam ou não ser liderança de extenso grupo familiar, onde homens, pai e filhos, aceitavam a chefia feminina. Assim, é importante entender que a matrifocalidade mediterrânea não representava ausência do homem na família ou comunidade, e nem implicava em chefia de mulheres solteiras, distante dos agrupamentos familiares, ou solitárias na gerência da prole. 

Teologicamente, a matrifocalidade é compreendida aqui como construção e expansão da imagem de Maria, que concentra poder entendido como força simbólica circulante, que se fundamenta em presença conquistada na trajetória da fé cristã. Essa presença se traduz na definição de espaço espiritual próprio, que é fruto do prestigio adquirido nas comunidades, já que recebe o estatuto de mãe coletiva pela sua trajetória: no caso gerar o pai, e pelo tipo de funções desempenhadas, de parteira de um novo tempo, responsável por trazer ao mundo, com suas próprias mãos, o filho de novas gerações. 

Aqueles que procuram nas Escrituras cristãs textos que possam remeter à tradição matrifocal da moca de Belém surpreendem-se com o fato destes textos serem poucos. Fora os relatos agrupados nos evangelhos de Mateus e Lucas nos capítulos um e dois, só se menciona Maria em passagens de João dois e dezenove. Afora isso, há uma alusão a que o pai enviou ao mundo o seu filho, “nascido de mulher”, na carta de Paulo aos gálatas no capítulo 4.4. Da mesma maneira, os estudos das Escrituras cristãs mostram que a primeira geração de escritores, como Paulo, Marcos e João, não deu nenhuma importância à memória da moça de Belém: não se referiu a ela como virgem mãe e nem deu destaque à história da concepção do filho por ação do espírito. Isso, no entanto, não diminuiu a importância da matrifocalidade que seria construída com os passar dos anos na fé católica ocidental e oriental.

A raridade dos textos neotestamentários cristãos sobre a virgem mãe contrasta com a quantidade de histórias e relatos de milagres que foram se acumulando nos primeiros dezesseis séculos de história do cristianismo. A explicação para isso é que, com o passar dos tempos, o cristianismo foi desenvolvendo um imaginário matrifocal a partir de aspectos originários de sua fé, procurando relacioná-lo com culturas e sensibilidades dos povos. Assim, é possível de quatro aspectos na construção da matrifocalidade cristã.

O caráter cultural
  
A matrifocalidade cristã lembra afluentes que deságuam num rio. Surge do relato bíblico e da memória da virgem mãe, com a qual a comunidade cristã se identifica através do próprio canto da moça de Belém, quando diz que “todas as gerações me proclamarão bendita porque o todo-poderoso fez em mim maravilhas”, conforme Lucas 1.48-49.

O cumprimento desse salmo de louvor veio aos poucos, dando seu salto formal com os primeiros concílios da igreja católica. Mas não podemos dizer que o cumprimento dessa profecia de bendição ao pai, pela graça dada à moça de Belém, se deve exclusivamente aos católicos. Maria sempre virgem foi vista assim por Lutero que dedicou a ela seu Magnificat. O que a Reforma dos huguenotes não aceitava é que se construísse uma piedade cristã a partir de uma teologia matrifocal. Ou seja, que Maria fosse colocada no mesmo nível do Cristo. 

O apóstolo Paulo afirmou em sua primeira carta a Timóteo (2.5), que há um só Deus e um único mediador entre Deus e a humanidade, que é Jesus Cristo. Os catecismos católicos responderam à polêmica suscitada pela matrifocalidade fazendo distinções entre adoração a Deus e veneração, procurando expressões doces para a matrifocalidade e ligando-a de forma mais íntima à própria piedade ao Cristo. Mas o imaginário matrifocal teve tanta força que, de fato, a leitura patriarcal da trindade fez água e o pai perdeu importância de forma crescente na tradição popular medieval.

Esta situação teve raízes históricas. Uma delas se deveu ao analfabetismo das massas e a conseqüente despreocupação em relação à leitura dos textos neotestamentários no longo período de construção da igreja católica, restando ao povo a devoção tradicional combinada às crenças e costumes de suas comunidades. Este tipo de sincretismo foi a regra no mundo antigo que se tornava cristão.

Assim, por exemplo, quando o cristianismo entrou no norte da Europa encontrou os cultos celtas a uma deusa que era a rainha do céu. Logicamente, a síntese entre a rainha do céu e a virgem foi um processo natural, onde os celtas convertidos atribuíram à imagem de Maria as capacidades e peculiaridades da rainha do céu. Essas percepções se deram cada vez que o cristianismo se inseriu em uma região, assumiu a cultura e procurou traduzir as crenças que lhe eram anteriores a uma forma compatível com a fé cristã. 

Na Guanabara invadida pelos franceses, a matrifocalidade mais do que se expressar como culto religioso se traduziu como cunhadismo. Mas, matrifocalidade cristã e cunhadismo se apresentaram enquanto fenômeno correlacional para os huguenotes, porque afirmou novas leituras da fé a partir da estrutura de parentesco dos tupinambás. 

A moça no desamparo de seu gênero

O testamento cristão, e isso estava claro para os huguenotes (conforme A confissão de fé da Guanabara), deu continuidade às escrituras hebraico-judaicas a partir da vida e das palavras de Jesus. Quando Lucas conta, no primeiro capítulo do seu evangelho, a anunciação do anjo à moça de Belém e depois sua visita à prima Isabel (1.36+), estava a pensar em alguns relatos proféticos das escrituras hebraico-judaicas, como o relato de Sofonias capítulo três e o relato de 2Samuel capítulo seis. Se for assim, a idéia da matrifocalidade é clara, aquela moça simbolizava a figura da comunidade de fé. É símbolo da gente despossuída, fiel a Deus e, ao mesmo tempo, da humanidade nova. Nesse sentido a figura de uma mulher, mais precisamente de uma moça no desamparo de seu gênero, sintetiza a vocação do seu povo e dos fiéis da nova aliança. Ela é em pessoa a realização plena do que os profetas antigos chamaram de virgem, filha de Sião, referindo-se ao povo, conforme 2Reis 19.21; Isaías 52; Jeremias 31.4+ e Sofonias 3.12+. A matrifocalidade religiosa está sintetizada nessa moça sem poderes políticos, mas mãe de Deus. É uma parábola da humanidade, que bem poderia traduzir a realidade tupinambá naquele momento de encontro com jovens reformados.

É interessante ver como a matrifocalidade cristã fortalece e amplia a leitura de gênero presente nas Escrituras hebraico-judaicas. Na leitura da criação, narrada no Gênesis, a mulher é produção do pai e culminou sua ação criadora. Em muitos textos bíblicos, embora a mulher seja figura da humanidade em sua relação com o pai, ela mais que nada é esposa. Tal imagem no livro do Apocalipse expande a matrifocalidade cristã nascente ao dizer que pareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas (12.1). Esta imagem traduz a mitologia matrifocal de antigas ancestralidades e apresenta a vitória da comunidade cristã que enfrentava o martírio e as perseguições. E não foi por acaso, então, que o cristianismo nascente viu nesta imagem da comunidade grávida do Messias a figura de Maria mãe.

Mas ao discutir novas possibilidades para a estrutura de parentesco patriarcal como conseqüência da expansão da matrifocalidade, dogmas que, por centenas de anos repousaram no inconsciente cristão, trouxeram percepções importantes: ela é mãe do pai, mas é santificada e exaltada pela morte do filho que vai nascer. Nesse sentido, o fato de ser mãe do pai, que é filho, e vai morrer, ela se faz símbolo perfeito da matrifocalidade. Assim, a matrifocalidade cristã significava para os huguenotes uma reforma radical: a moça de Belém era figura de um caminho novo, de uma nova estrutura de parentesco, matrifocal e não patriarcal nuclear.

O eixo fundamental das Escrituras hebraico-judaicas e cristãs para os católicos era a revelação de que o pai tinha um projeto para a humanidade: uma vida de intimidade com ele. Essa intimidade que recebeu também os nomes de aliança ou reino de Deus supunha uma proximidade afetiva que lembra a relação homem/ mulher. É como um casamento. Ora, a imagem tradicional de Deus no catolicismo medieval era de um pai dono do poder. Para se ter acesso a esse pai era necessário um intermediário. Essa constatação, num primeiro momento inconsciente, mas que se conscientiza na construção católica, leva com a Reforma ao surgimento e à expansão de uma teologia da matrifocalidade. 

Para ouvir a palavra do pai, os católicos na Idade Média precisavam do “anjo do Senhor”, emanação visível do pai transcendente. É imagem ou expressão da presença do pai. Em outros lugares, os textos chamam de “glória do Senhor”, o sinal visível da presença do pai. Como no Êxodo, a nuvem que desce sobre o monte Sinai quando o pai fala (Ex 19) ou a tenda na qual o povo consulta o pai. Quando os israelitas acolheram e reverenciaram a tenda, a arca, a nuvem ou o vento, sinais da presença divina, não é nenhum destes elementos em si que eles adoram e sim o pai presente através deles.

A matrifocalidade rompe a ausência e o distanciamento paterno. O que ela faz é trazer a realidade da ancestralidade para o presente. Heróis civilizadores deixam de estar no passado e passam a estar no cotidiano da vida, nas coisas que são feitas e que representam no dia a dia a manutenção da vida. Nesse sentido, a matrifocalidade não é representação do pai ou do filho, mas novo parentesco. Diante da matrifocalidade todos são filhos e não há um filho mais importante, porque o primeiro, o mais querido, morreu. E a volta dele, o levantar dele, se dá como memória em todos os demais.


Essa matrifocalidade, presente no imaginário dos huguenotes em seus relacionamentos com as cunhãs, possibilitou a construção de pontes entre a cultura tupinambá, hegemônica, e o grupo de reformados, com uma tradição a construir, mas movidos pela utopia da França Antártica. Essa compreensão nos remete ao diálogo político-religioso de tupinambás e huguenotes, onde ao nível da teologia, o eixo mais importante aponta para uma teologia matrifocal, onde a universalidade da Reforma incipiente repousa em colo feminino, deslocando o pai. E porque uma virgem deu à luz Deus e é geradora da nova criação, o gênero feminino e não o masculino passa a ocupar a centralidade da estrutura de parentesco dessa nova criação.  Assim, a cunhã vai introduzir com gozo o jovem huguenote na cultura tupinambá.