mardi 11 janvier 2011

A teologia da esperança versus o teísmo aberto

A teologia da esperança versus o teísmo aberto
Jorge Pinheiro

Introdução 


Vamos analisar uma pequena teologia que, às vezes, transita na internet, entre colegas, mas principalmente estudantes de teologia. Como premissa quero me reportar a uma frase do Apocalipse que diz que Jesus, a Palavra que reina, estar chegando (22.20). O texto usa ercomai tacu (ercomai táxi), algo como Ele já saiu, está chegando rapidamente e não vai atrasar. Por isso, a esperança é possível e qualquer momento da vida, por mais estranho que pareça, está debaixo da Sua graça e soberania.

Bem, agora vamos pensar um pouco o teísmo aberto. Numa rápida pesquisa na internet, mais especificamente no Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Te%C3%ADsmo_aberto), lemos que 

“O teísmo aberto é uma teologia que parte de uma reavaliação do conceito da onisciência de Deus. Considera que Deus não conhece o futuro completamente e pode mudar de idéia conforme as circunstâncias. Afirma também que o termo “todo-poderoso” não pode ser extraído do contexto bíblico, pois a idéia original da palavra se perdeu ao longo dos séculos. Assim, o teísmo aberto diz que Deus se relaciona com o ser humano, conhece o futuro, mas não todo ele, pois esse futuro ainda não teria existência na presença de Deus, devido ao livre arbítrio concedido por Deus ao ser humano. Para o teísmo aberto, Deus é todo-poderoso por seu despojamento, visto que mesmo tendo total controle sobre as escolhas humanas, é capaz de governar o futuro prometido. Ou seja, porque Deus não se preocupa em estar no controle de suas criaturas é que ele demonstra realmente estar no controle. O teísmo aberto tem origem na teologia do processo. Surgido na década de 30 do século passado, a teologia do processo teve como principais representantes Charles Hartshorne, Alfred North Whitehead e John Cobb. Trouxe para a teologia o panenteísmo, que faz a aproximação dos pensamentos teísta e panteísta. O termo teísmo foi cunhado pelo adventista Richard Rice em 1979, quando publicou pela Review and Herald Publishing, o livro "A Abertura de Deus: a Relação entre a Presciência Divina e o Livre-arbítrio" (The Openness of God: The Relationship of Divine Foreknowledge and Human Free Will). John MacArthur, no ensaio Megamudança Evangélica diz que o ensino teve origem com Robert Brow, em suas preleções em praça pública. Apesar das origens na teologia do processo e das afirmações de John MacArthur, em 1990, essa leitura teológica divulgou-se meio evangélico a partir de 1986, através de Clark Pinnock, num ensaio denominado "Deus Limita seu Conhecimento" [God Limits His Knowledge]. Clark Pinnock e John Sanders tornaram-se os mais conhecidos defensores dessa leitura teológica”. 

Partindo da constatação de Luiz Sayão (vide texto do Wikipedia), eu diria que essa apologética do teísmo aberto, de teólogos norte-americanos cheios de sentimentos de culpa pelos erros da política externa dos EUA, procura livrar Deus de qualquer responsabilidade diante das maldades do Império. É uma teologia pragmática, que acaba por desconhecer a própria teologia, em especial o trabalho gigantesco de Jürgen Moltmann.

Moltmann e os teólogos da esperança, ao contrário dos teístas abertos, afirmam que Deus está fora do tempo e do espaço, acima de toda materialidade, e se revela ao humano vindo do futuro escatológico. Por isso, não há como Deus desconhecer aquilo que se dá no mundo material.

Critérios metodológicos

Quer queiramos ou não há princípios que norteiam a pesquisa teológica cristã. E estes princípios estão presentes em nossos estudos mesmo quando os desconhecemos. O primeiro deles é o princípio arquitetônico, ou seja, a revelação enquanto fonte e fundamento de qualquer estudo da teologia. Nesse sentido, a revelação, ou seja, os dois testamentos que compõem as Escrituras Sagradas cristãs são a base e o eixo da teologia. Podemos chamar a revelação também de fé objetiva, pois deve nortear a vida cristã em matéria de doutrina e fé subjetiva.

O segundo princípio é o hermenêutico e se refere aqueles instrumentos de interpretação que utilizamos para compreender os aspectos históricos da salvação, ou seja, os fundamentos culturais, religiosos, sociais e lingüísticos que subjazem no texto, já que se por um lado o texto é cem por cento revelado, e nesse sentido divino, por outro lado é cem por cento humano. Isso quer dizer que o texto expressa também todas as limitações de uma produção humana, no que tange conteúdos culturais, econômicos, religiosos, sociais e lingüísticos. Assim, o princípio hermenêutico é produto da razão humana. E por se produto da razão a instrumentalidade da hermenêutica através da história cristã sempre expressou a universalidade do senso comum, ou seja, nossa maneira fenomenológica de ver o mundo, de entendê-lo no dia a dia a partir da aparência dos fenômenos. E assim dizemos que o dia nasce às cinco horas, mas é certo que o dia não nasce, nem se põe. Ou, teologicamente, dizemos que uma pessoa quando morre vai para o céu, embora saibamos que o reino escatológico de Deus não se localiza nem na atmosfera, nem na estratosfera e nem mesmo em nenhum lugar do universo visível. Mas o senso comum faz parte da linguagem humana, e cada cultura faz suas construções simbólicas, que não traduzem a realidade da natureza. Por isso, a hermenêutica procurou a razão científica, aquela que baseada nas ciências, sejam elas humanas ou técnicas, possibilitam entender melhor a profundidade do texto bíblico. E foi dessa maneira que introduzimos em nossos estudos a lingüística, com o estudo dos idiomas em que os textos foram escritos, a história, a geografia, a sociologia, o direito, etc. E assim a razão científica conquistou um lugar na hermenêutica acadêmica que estuda a teologia. Mas, se os cristãos sempre utilizaram o senso comum, se a academia trouxe os conhecimentos da ciência, a filosofia, desde o início da história da teologia cristã, foi um elemento fundamental na ordenação do pensamento. Na verdade, o mundo ocidental aprendeu a pensar de forma ordenada com os filósofos gregos, já que eles foram aqueles que formataram ainda no início de nossa civilização as bases do pensamento científico. Por isso, quer queiramos ou não, a filosofia é formadora do pensamento cristão e as filosofias em suas diversidades de abordagens e métodos sempre ofereceram ao teólogo instrumental hermenêutico valioso.

Assim podemos dizer que o princípio hermenêutico sempre se utilizou do senso comum e da razão filosófica e, na modernidade, agregou ao seu instrumental também a razão científica. Mas, não podemos nos esquecer que a utilização de tais princípios possibilita diferentes avaliações da revelação. Por que? Porque o princípio arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral de nossa metodologia de pesquisa: pode ser a graça e a fé, como no caso de Lutero; a soberania de Deus, como no caso de Calvino; ou o amor, a justiça e o poder, como no caso de um célebre texto de Paul Tillich. E também porque o princípio hermenêutico depende do uso de uma ou de várias das múltiplas abordagens filosóficas e científicas que podem ser utilizadas como instrumento de interpretação da história da salvação. É por isso que se diz que a ideologia define a hermenêutica.

Aqui reside a dificuldade do fazer teológico: a revelação é universal e plena, mas toda teologia é transitória, pois reflete um momento de compreensão da revelação e da história da salvação. 

A esperança enquanto paradigma

Depois de fazermos uma ruptura criativa com a modernidade, enquanto pensamento, tradição e história – e fizemos isso ao mostrar as limitações da hermenêutica iluminista --, é necessário sentir de novo a alegria da esperança escatológica, para compreender a natureza do terreno sobre o qual a teologia pisa. Há um momento de cisão no qual se modificou de modo essencial a concepção do que significa a teologia. Esse momento foi assinalado a partir dos anos 60 do século XX com a teologia da esperança de Jürgen Moltmann. E são os trabalhos dele que utilizaremos aqui para fazer a crítica do teísmo aberto. O pensamento de Moltmann é uma reflexão prodigiosamente profética, pois enunciou não somente a queda do muro de Berlim, mas o processo de aglutinação vivido por alemães, em primeiro lugar, por europeus, na seqüência, e agora muito possivelmente por parte da humanidade. É sem dúvida, uma das elaborações mais impressionantes, se entendermos sua abordagem epistemológica teológica. Para esclarecer, entendemos a epistemologia utilizada no campo teológico como os métodos dos diferentes ramos do saber teológico -- Ontologia, Cristologia, Pneumatologia, etc. -- e de suas práticas eclesiológicas, avaliadas a partir de sua validade cognitiva, seus paradigmas estruturais e suas relações com a sociedade e a história. Haveria assim uma teoria geral da teologia enquanto gnosiologia e ciência normativa, que nas últimas décadas, através de comunidades e movimentos, abriram aguerridamente, a golpes de machado, a senda da alta modernidade.

A expressão abordagem epistemológica não é exagerada. Conforme Bachelard, 

"Os filósofos justamente conscientes do poder de coordenação das funções espirituais consideram suficiente uma mediação deste pensamento coordenado, sem se preocupar muito com o pluralismo e a variedade dos fatos. Não se é filósofo se não se tomar consciência, num determinado momento da reflexão, da coerência e da unidade do pensamento, se não se formularem as condições de síntese do saber. E é sempre em função desta unidade, desta síntese, que o filósofo coloca o problema geral do conhecimento". [G. Bachelard, Filosofia do Novo Espírito Científico, Lisboa, Presença, 1972, pp. 8-9]. 

Assim, abordagem epistemológica, aqui utilizada, refere-se ao projeto teológico, de herdadas estruturas hegelianas e marxistas, relidas e traduzidas por ele e Ernest Bloch. É sobre a questão da identidade histórica, entendida como processo a realizar-se, que recai a crítica da teologia realizada por Moltmann. Usando a leitura de Machado, diríamos com ele que 

"A história arqueológica nem é evolutiva, nem retrospectiva, nem mesmo recorrente; ela é epistêmica; nem postula a existência de um progresso contínuo, nem de um progresso descontínuo; pensa a descontinuidade neutralizando a questão do progresso, o que é possível na medida em que abole a atualidade da ciência como critério de um saber do passado". [Roberto Machado, Ciência e saber. A trajetória arqueológica de Foucault, Rio de Janeiro, Graal, 1982, p. 152]. 

É justamente a experiência de viver, enquanto comunidade que se realiza no futuro, que é realçada por Moltmann. No nível antropológico, trabalha os elementos dessa esperança, a partir da qual se produz saber e práxis cristã. Suas heranças são translúcidas: 

"Por meio de subverter e demolir todas as barreiras -- sejam da religião, da raça, da educação, ou da classe -- a comunidade dos cristãos comprova que é a comunidade de Cristo. Esta, na realidade, poderia tornar-se a nova marca identificadora da igreja no mundo, por ser composta, não de homens iguais e de mentalidade igual, mas, sim, de homens dessemelhantes, e, na realidade, daqueles que tinham sido inimigos. O caminho para este alvo de uma nova comunidade humanista que envolve todas as nações e línguas é, porém, um caminho revolucionário". [Jürgen Moltmann, "God in Revolution", in Religion, Revolution and the Future, New York, Scribner, 1969, p. 141]. 

Como num laboratório, o teólogo da esperança extrai o fato teológico de sua contingência histórica, tratada sob condições de extrema pureza escatológica. Muito claramente afirma a escatologia como essência da história da redenção e leva à conclusão de que essa mesma essência seja a expressão maior da ressurreição, enquanto metáfora da cruz de Cristo. Essa cruz repousa sobre o esvaziamento da desesperança, enquanto praesumptio e desperatio, na relação que mantém com o mundo. 

A teologia, vida cristã em movimento, numa permanente autoformação, advém das pulsações criadoras da própria esperança, cujo sentido volta-se para ela própria. Essa construção, que se nos apresenta como caleidoscópio, belo, mas aparentemente ilógico, traz em si a força combinatória do devir cristão. Assim, a teologia de Moltmann quebra os grilhões do presente eterno da neo-ortodoxia, e nos oferece um conceito realista da história, que tem por base um futuro real, lançando dessa maneira as bases para uma teologia que responda às reais necessidades do homem pós-moderno. 

"O passado e o futuro não estão dissolvidos num presente eterno. A realidade contém mais do que o presente. Ao desenvolver sua teologia futurista, Moltmann realmente tem o peso considerável da história bíblica do lado dele, e faz bom uso dela. Ao enfatizar o futuro, desenvolveu um pensamento bíblico legítimo que jazia profundamente enterrado na teologia ética e existencial dos séculos XIX e XX". [Stanley Gundry, Teologia Contemporânea, São Paulo, Mundo Cristão, 1987, p.167].

A teologia de Moltmann nasce enquanto reação ao existencialismo e absorção do revisionismo de Bloch. A descontrução do marxismo, realizada por aquele filósofo, não agradou ao mundo comunista, mas estabeleceu uma ponte, diferente daquela da teologia da libertação, entre o hegelianismo de esquerda e o cristianismo. Substituiu a dialética pelo ainda-não, enquanto espaço que não está fechado diante de nós, e definiu uma antropologia que não mais está calcada no império dos fenômenos econômicos, mas na esperança. 

Os escritos filosóficos do jovem Marx serviram de ponto de partida para o vôo de Bloch. A alienação da pessoa é um fato inquestionável, não como determinação econômica, mas enquanto determinação ontológica. Afinal, o universo em que vive é essencialmente incompleto. Mas a importância do incompleto é que é susceptível de complemento. Por isso, o possível, o ainda-não, o futuro traduz de fato a realidade. 

Nesse processo estão presentes a subjetividade humana e sua potência inacabada e permanente em busca de solução e a mutabilidade do mundo no quadro de suas leis. Dessa maneira, o ainda-não do subjetivo e do objetivo é a matriz da esperança e da utopia. A esperança traduz a certeza da busca e a utopia nos dá as figuras concretas desse possível. Para Bloch, o homem é impelido, assim, ao esforço permanente de transcender a alienação presente, em busca de uma “pátria de identidade”. É no “vermelho quente” do futuro que está a razão fundamental da existência humana. Nenhum marxista chegou tão próximo da escatologia cristã! 

"Deus -- enquanto problema do radicalmente novo, do absoluto libertador, do fenômeno da nossa liberdade e do nosso verdadeiro conteúdo -- torna-se-nos presente somente como um evento opaco, não objetivo, somente como conjunto da obscuridade do momento vivido e do símbolo não acabado da questão suprema. O que significa que o Deus supremo, verdadeiro, desconhecido, superior a todas as outras divindades, revelador de todo o nosso ser, ‘vive' desde já, embora ainda não coroado, ainda não objetivado. Aparece claro e seguro agora que a esperança é exatamente aquilo em que o elemento obscuro vem à luz. Ela também imerge no elemento obscuro e participa da sua invisibilidade. E como o obscuro e o misterioso estão sempre unidos, a esperança ameaça desaparecer quando alguém se avizinha muito dela ou põe em discussão, de modo muito presunçoso, este elemento obscuro". [Ernst Bloch, Geist der Utopie, Franckfurt, 1964, p. 254 apud Battista Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo, Paulinas, 1987, vl. 3, pp. 246-7]. 

Bloch realiza uma penetrante releitura da cosmovisão judaico-cristã. Entende o clamor profético do mundo bíblico e da proclamação cristã não como alienação e ópio, mas como fermentos explosivos de esperança, protestos contra o presente em nome da realidade futuro, a utopia. Talvez por isso possamos dizer que nos anos 60, os caminhos de Moltmann e Bloch não apenas cruzaram-se na Universidade de Tübingen, mas abriram espaço para o mais enriquecedor diálogo cristão-marxista que conhecemos. 

É interessante lembrar que em 1968, quando manifestações estudantis varriam Tübingen, Heidelberg, Münster e Berlim Ocidental, grande parte dos líderes estudantis eram oriundos das faculdades de teologia. Sua Theologie der Hoffnung (Jürgen Moltmann, Teologia della Speranza, Queriniana, Bréscia, 1969), publicada no início da década na Alemanha, estava na oitava edição e, no ano seguinte, ele lançaria Religion, Revolution and the Future nos Estados Unidos. 

Agora, a partir da escatologia da esperança de Moltmann vejamos algumas considerações que têm por base o texto de Apocalipse 22.6-21. 

Algumas conclusões

No Apocalipse, o futuro define o presente. Ou seja, Moltmann não está errado ao entender que o futuro define o presente. E que a cruz de Cristo veio do futuro em direção ao presente histórico da humanidade. Foi plantada num momento de nossa história, porque o sacrifício foi realizado na eternidade, fora do tempo, no que a partir do senso comum chamamos de futuro, e a partir da razão filosófica chamados de futuro escatológico. E exatamente porque Deus a partir da eternidade criou as materialidades do universo e do humano, ele conhece porque parte do todo, da eternidade, em direção ao contingente, ao universo e a historicidade humana. 

O Apocalipse inverte a nossa noção de tempo. O futuro escatológico modela e estrutura o presente. Saber como a história termina nos ajuda a entender como devemos nos encaixar nela, agora. Por isso, já estamos vivendo os últimos dias. As visões de João mostram a realidade do juízo divino, quando cada um de nós dará conta de sua existência diante de Deus. Deus recompensará aqueles que, às vezes, ao custo de sua própria vida "guardaram as palavras da profecia deste livro". Não podemos esquecer que profecia é proclamação da Palavra de Deus. E no Novo Testamento é proclamação das boas novas. 

Podemos dividir o texto escolhido em três blocos. O primeiro bloco (vv 6 e 7) nos diz que a esperança escatológica é fiel e verdadeira. Ou seja, as palavras proferidas, profetizadas, proclamadas são leais, não contrariam a confiança depositada no Senhor que as decretou. E estão em conformidade com a realidade escatológica. 

O segundo bloco (vv. 10-12) diz para não fecharmos o livro, porque o futuro é hoje. E é esse futuro escatológico que deve definir o que você faz. E você dará conta do hoje e receberá a justa recompensa. Ora, fechar o livro é abandonar a esperança. É achar que o seu presente você mesmo traça, sem entender que o contingente é sempre um possível dentro de um sistema hipotético dedutível. Dedutível por Deus por conhecer todas as hipóteses, o fundo da alma humana e cada uma das possibilidades da história. É não entender que Deus está fora do tempo e da materialidade e exatamente por isso ao abrir a gaveta de nossa historicidade conhece todas as possibilidades do espaço, os movimentos e o tempo.

O terceiro bloco (vv 18-19) é um chamado aos leitores a viver a esperança escatológica. Alertando que a praesumptio e o desperatio subvertem a esperança e por isso não podem ser acrescentadas. Acrescentá-las geram conseqüências, a alienação do futuro escatológico e a morte. Mas também nada pode ser tirado: a cruz, o sofrimento e a dor, incompreensíveis, que fazem parte da materialidade, enquanto espaço/ tempo não completado, e da humanidade, enquanto existência não essencializada, não podem ser arrancadas da vida na esperança escatológica. Tirá-las significa ficar fora do futuro que chegou, que veio da eternidade e nos trouxe o acesso à árvore da vida. Tirá-las é ficar fora da cidade santa e abandonar a esperança.

A Palavra é fiel (v. 20). Jesus, a Palavra que reina, garante: Ele está chegando! E aqui o texto fala ercomai tacu (ercomai táxi). Ele já saiu nesta sua volta, está chegando rapidamente e não vai atrasar. Por isso, a esperança é possível e qualquer momento da minha vida, por mais estranho que pareça, está debaixo de Sua graça e soberania.

Fonte
Site: Teologica
WEB: www.teologica.br/theo_new/files/TeismoAberto_JPinheiro.pdf


Jürgen Moltmann, Youtube

vendredi 7 janvier 2011

Ao Sul da Fronteira 1/8

Colegas, não sei se você conhecem este documentário, Ao sul da fronteira, do diretor de cinema Oliver Stone. Vale a pena ver. Stone é um profissional sério e o documentário marcha na contra-corrente do que geralmente vemos na grande mídia. Por isso, postei no blog. Está dividido em oito partes.
Um feliz 2011 para todos e todas, Jorge Pinheiro.

Ao Sul da Fronteira 2/8

Ao Sul da Fronteira 3/8

Ao Sul da Fronteira 4/8

Ao Sul da Fronteira 5/8

Ao Sul da Fronteira 6/8

Ao Sul da Fronteira 7/8

Ao Sul da Fronteira 8/8

mercredi 5 janvier 2011

Você pode ser sábio


Para ser sábio é preciso primeiro temer a Deus, o Senhor. Se você conhece o Deus santo, então você tem compreensão das coisas. Provérbios 9.10.

 

Provérbios é um livro de vários autores, três dos quais são citados pelos seus nomes: Salomão, Agur e Lemuel. Salomão coletou e é o autor principal (Provérbios 25.1).

Provérbios fala sobre diversos assuntos, mas três devem ser realçados: Deus e o ser humano; a sabedoria; a vida e a morte.

1.                  Na Torá, a revelação se expressa de três maneiras: Lei, sabedoria e profecia. Ou como disse Jeremias (18.18): “Pois sempre haverá sacerdotes para nos ensinar (a lei), sábios para nos dar conselhos e profetas para anunciar a mensagem de Deus”.

2.                 A sabedoria nos apresenta a relação entre Deus, o conhecimento e a prosperidade. Ou como disse Oséias (4.6): “O meu povo não quer saber de mim, por isto está sendo destruído...

3.                 E o lema de Provérbios relaciona sabedoria e temor a Deus. “Para ser sábio é preciso temer a Deus, o Senhor”. Provérbios 1.7.

O que é hokmah, a sabedoria?


A hokmah é uma figura de cinco lados:

1.                  É musar, instrução ou treinamento. E essa idéia pode ser traduzida também por correção e disciplina. É para os discípulos.

2.                  É binah, entendimento ou discernimento. Vem de leb, da palavra coração em hebraico, que deve dirigir nossos movimentos, nossas ações. É capacidade de escolha.

3.                  É maskil, bom senso ou sabedoria prática. Nos leva ao sucesso através da equidade e procedimentos de justiça e juízo.

4.                  É ormah, prudência ou discrição. É a capacidade de planejar, e traduz a idéia de habilidade, de conhecer nosso negócio ou aquilo que fazemos.

5.                  É leqah, conhecimento ou aprendizagem. Nos exorta a buscar a verdade e o próprio Deus, e essa revelação é assimilada, recebida de Deus.

E como se consegue?


1.                  Através da revelação
É dom de Deus, que dá a todos que a desejam. Ou como o apóstolo Paulo  disse aos Efésios (1. 17): “E peço ao Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai glorioso, que dê a vocês o seu Espírito, o Espírito que os tornará sábios e revelará Deus a vocês, para que assim vocês o conheçam como devem conhecer”.

2.                  Exige conversão
Implica em desviar-se do mal e voltar-se para a luz.  Ou como disse Tiago (3.17). “A sabedoria que vem do céu é antes de tudo pura: e é também pacífica, bondosa e amigável. Ela é cheia de misericórdia, produz uma colheita de boas ações, não trata os outros pela sua aparência e é livre de fingimento”.

3.                  Exige devoção
O livro de Provérbios (9.10) nos diz que o começo da sabedoria é temer a Deus. Ora, temer não significa ter medo de Deus, mas honrá-lo, obedecê-lo, respeitá-lo por tudo o que Ele é, faz e pode fazer. Temer a Deus significa confiar nele e ter a certeza de que pode lhe ajudar a tomar decisões e resolver problemas. Sabedoria é um presente de Deus. Ele dá sabedoria pela confiança que você coloca nele. E você busca a sabedoria porque sabe que precisa dela. É uma busca apaixonada. É a caminhada do discípulo.

Leia de novo, ore e clame a Deus por sabedoria e, no correr da semana, treine cada face da figura. Não encare a sabedoria apenas como exercício intelectual, mas como atitude prática. Caso você exercite a sabedoria, com oração, mudança de maus hábitos de caráter e no reconhecimento de que esse conhecimento provem de Deus, sem dúvida sua vida vai mudar. Tire o mês de janeiro para viver a sabedoria e 2011 será próspero. 

E deixo para você o shalom que nasce da hokmah.

Jorge Pinheiro.

vendredi 31 décembre 2010

O espectro do vermelho

Uma leitura teológica do socialismo no Partido dos Trabalhadores, a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel. Apresentação lida na defesa da tese de doutoramento em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo, em 2005. Agora dedicada à companheira Dilma Roussef, primeira mulher eleita presidente da República Federativa do Brasil.

Desde a primeira República com a chegada dos imigrantes europeus, em especial espanhóis e italianos, surgiram tentativas de construção de um partido operário que tivesse condições de ação político-eleitoral. Mas todas essas tentativas fracassaram. Até mesmo o Partido Comunista, fundado em 1922, por seu posicionamento ambíguo em relação à democracia e por traduzir, durante a longa presença de Josef Stálin na liderança da União Soviética, uma política ditada por interesses externos, mais precisamente do Cominter, não conseguiu ser este partido. Com o final do Estado Novo surgiu o Partido Trabalhista Brasileiro como organização populista, que combinava uma liderança burguesa e pelego-sindical com base eleitoral popular e de trabalhadores urbanos. Mas também não foi o partido operário sonhado pelos militantes socialistas da primeira República. Outra experiência que vale a pena ressaltar foi a do Partido Socialista Brasileiro, fundado por intelectuais e políticos socialistas-democráticos em 1947. Tendo que enfrentar, à esquerda, o Partido Comunista Brasileiro, marxista-leninista, e à direita, o Partido Trabalhista Brasileiro, burguês, o Partido Socialista Brasileiro também não conseguiu construir o sonhado partido operário de massas, com inserção sindical e expressão político-eleitoral.

Por esses motivos, quando no final dos anos 1970 surgiu o Partido dos Trabalhadores, que nucleou amplos setores sindicais e de trabalhadores fabris em todo o país, a esquerda brasileira, com raras exceções, começou a olhar tal fenômeno como algo novo na história brasileira. O sonho tornava-se realidade. Passados 25 anos da fundação do PT, algumas questões são levantadas, todas girando ao redor da pergunta: que partido é esse? É marxista-leninista? É social-democrata? E se é socialista, que socialismo é esse?

Por isso, as dissertações de mestrado e as teses de doutorado produzidas nos últimos anos sobre o Partido dos Trabalhadores traduziram a preocupação de analisá-lo a partir de leituras sociológicas e históricas. Aqui tivemos outro tipo de preocupação. Todas as dissertações e teses se perguntaram se com o PT estávamos diante de um socialismo de novo tipo. Discutiram o que acontecia no interior mesmo do socialismo, comparando tendências e correntes, ou analisando a importância do sindicalismo na formação desse novo partido. Dessa maneira, nos últimos anos, a academia brasileira produziu excelentes estudos sobre o Partido dos Trabalhadores e suas relações com a esquerda brasileira e o socialismo. Estes trabalhos efetuaram análise qualitativa do papel desempenhado pelos diferentes agrupamentos políticos da esquerda na formação do Partido dos Trabalhadores, abrindo caminho para a compreensão do socialismo e da formação do PT para a história das idéias socialistas no Brasil.

Mas no conjunto dos estudos acadêmicos ainda são poucas as dissertações ou teses que trabalham a análise do Partido dos Trabalhadores a partir da Teologia. Tal carência na pesquisa acadêmica chamou nossa atenção, pois é fato notório que a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base estiveram presentes na formação do PT, quer fornecendo reflexão teórica, quer participando com militantes e ativistas. Era de se perguntar, então, porque tão pouco esforço nesse sentido. E por extensão se era possível compreender o pensamento e a história do PT sem correlacionar suas propostas sociais com a religião e o cristianismo. Por isso fizemos a pergunta se havia uma correlação entre cristianismo e socialismo, onde estariam presentes esses elementos religiosos no socialismo petista e em que sentido dariam um caráter especial ao socialismo proposto? Cremos que a tese ora defendida respondeu tais questões, confirmando esta presença cristã no PT, mas também analisando como influenciou o conjunto da esquerda não-comunista no Brasil.

Fez parte dos objetivos do trabalho, a partir da história da formação do Partido dos Trabalhadores mostrar como ele surgiu de amálgama de socialismos, soldados ao redor de uma corrente sindical, com apoio de um setor da Igreja católica, em especial das Comunidades Eclesiais de Base. E também foi objetivo da pesquisa analisar como depois da queda do muro de Berlim e da crise do comunismo no bloco soviético, o Partido dos Trabalhadores procurou definir um socialismo petista com cara brasileira. E que nesse trânsito entre socialismo como mito fundante, socialismo real e cristianismo social, o Partido dos Trabalhadores acabou por afirmar a democracia enquanto projeto político central. E assim constatamos que tais mudanças, que levaram à democracia enquanto realpolitik, acabaram por afastar o PT de sua utopia original e, inclusive, da revolução democrática. Assim, a tese ora apresentada procurou preencher a lacuna existente na pesquisa acadêmica referente à construção do pensamento socialista e democrático no Partido dos Trabalhadores.

A justificativa da pesquisa confirmou-se através da utilização de uma documentação oficial que incluiu as resoluções de onze encontros nacionais, dois encontros nacionais extraordinários e dois congressos nacionais. Partimos, então, dessa documentação oficial e da revista trimestral “Teoria e Debate”, que cobrem a história e a produção teórica do partido. A pesquisa explorou também a bibliografia existente em livros, teses, artigos de jornais e revistas, e memórias, enquanto informações e testemunhos que confrontamos com a documentação oficial analisada. Utilizamos, dessa maneira, um farto material para a compreensão do pensamento e ideário do PT como um todo e do pensamento socialista em particular. O desvelamento teológico do ideário do Partido dos Trabalhadores através da leitura dessa literatura nos permitiu uma nova visão acerca do passado, possibilitando entender melhor os envolvimentos presentes.

Mas além da justificativa científica, foi importante constatar a importância do Partido dos Trabalhadores para a sociedade brasileira, assim como para a política nacional. Em termos sociais, o PT surgiu enquanto organização ligada às classes trabalhadoras da cidade e do campo, polarizando, inevitavelmente, a política nacional. A importância social da tese mostrou tal relevância, ao analisar o papel da religião no próprio crescimento eleitoral do PT.

Um exemplo disso, que na tese foi analisado, é o fato de que o PT atuou sobre o conjunto da sociedade brasileira modificando padrões sociais anteriormente estabelecidos, como, por exemplo, sua inserção nos grotões, através da presença cristã, o que modificou o perfil do voto conservador e de direita dessas áreas. Ora, essa importância social nos direcionou à questão política. Sem mistificar os limites da presença do PT no cenário nacional, vimos que construiu lideranças e desenvolveu nova maneira de fazer política: de diálogo com os setores excluídos e marginalizados da sociedade, em parte esquecida desde os governos de Getúlio Vargas e João Goulart.

A pesquisa qualitativa possibilitou, também, o equacionamento de uma das questões que levantamos: a presença de uma religiosidade cristã invisível que se fez presente no processo de construção do pensamento socialista do Partido dos Trabalhadores e que foi encontrada nos textos oficiais e nos pronunciamentos dos líderes petistas, não enquanto discurso cristão propriamente, mas enquanto consciência religiosa. Tais constatações da pesquisa confirmaram as hipóteses de que o socialismo do Partido dos Trabalhadores tem profundas imbricações com a religião. Ou seja, o desenvolvimento do pensamento socialista dentro do Partido dos Trabalhadores, sem dúvida, pode e deve ter uma leitura teológica.

Assim, vimos que a Teologia, enquanto hermenêutica dos universos simbólicos, permite uma abordagem do problema do poder, principalmente quando partimos de duas perspectivas fundamentais nessa leitura teológica: a antropológica política, que percebe o simbólico como fundante da vida social, e a ética que, ao dar ênfase às instituições, pensa a relação entre instituições e estruturas políticas.

Vimos que para Paul Tillich, a distância que separa o ser e a consciência é necessária para que o ser se eleve à consciência. Por isso, consciência supõe não somente uma ligação ao ser, mas também um distanciamento que permita reflexão. Assim, aquele que é confrontado em sua ligação original com um grupo ou com uma classe é chamado a dar consciência a outra classe que não é a sua. E toma como exemplo Marx, que não era proletário, mas rompeu com sua classe de origem e se colocou a serviço de outra. Marx mostrou que a relação entre a situação social e o pensamento político deve se elevar da esfera biográfica para aquela das relações funcionais. Tal realidade leva a palavra princípio a caracterizar de maneira global os grupos políticos, pois deixa de lado a esfera biográfica e permite ao pensamento extrair a multiplicidade de fenômenos que constitui a característica comum a todos os indivíduos.

Normalmente, esta tarefa se cumpre com ajuda do conceito de essência, pois a relação entre essência e fenômeno domina a teoria do conhecimento. Porém a lógica da essência não é suficiente para explicar as realidades históricas. A essência de um fenômeno histórico, como constata Tillich, é uma abstração vazia, de onde se expulsou a força viva da história. Isso leva Tillich a buscar a essência do socialismo na própria história e nos mitos que lhe deram origem, afirmando que o socialismo é um movimento de oposição, um movimento de oposição à sociedade burguesa, mas enquanto mediação uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo ajudaria a entender as raízes do pensamento político que lhe deu origem. Tillich parte de uma teologia política onde seu referencial primeiro é o ser. Mas para ele, não se pode entender o socialismo caso não se experimente a exigência de sua justiça como uma necessidade incondicional, pois quem não é desafiado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não de forma superficial. Não pode falar dele porque é contrário àquilo que ele defende. É por isso que a leitura teológica de Tillich sobre política e socialismo rompe as bases preconceituosas sobre tal debate e nos possibilitou abordar o assunto, a partir da correlação, sem estigmatizar grupos e movimentos. Logicamente, por olhar a realidade a partir de um momento específico da história, que se dá na Europa, entre as duas guerras mundiais, faltaria nesta abordagem teológica de Paul Tillich o olhar latino-americano que, mesmo reconhecendo as estruturas comuns à história do pensamento político, indicassem novos aspectos e movimentos, entre os quais a presença cristã institucional e invisível na sociedade brasileira.

Enrique Dussel complementa Paul Tillich através de uma teologia latino-americana que é um pensar sobre Deus, mas um Deus que se revela na história, que se revela através do Outro, que é o mistério incompreensível de nossa liberdade. Para Dussel, crer na revelação de Deus é compreender o sentido da história, que ele nos apresenta através do Outro. Tal compreensão da teologia permite a Dussel analisar como cristianismo e socialismo se relacionaram na história recente da América Latina e do Brasil. Para ele, a relação cristianismo-socialismo começou a ser colocada nos grupos estudantis cristãos, principalmente a partir de 1959 pela revolução cubana, e que o antecedente mais distante aconteceu no Brasil, na época da Juventude Universitária Católica. Segundo Dussel, o pensamento do padre Cardonnel e principalmente de Henrique de Lima Vaz foram adotados como ‘compromisso político’ pela Ação Popular, cujo Documento de Base admitiu a ação revolucionária. Assim, em junho de 1968, o Congresso Nacional da Juventude Operária Católica e da Ação Católica Operária condenou o capitalismo e defendeu a luta de classes, admitindo a análise marxista da realidade social. A partir desse momento, dezenas de grupos cristãos na América Latina aceitaram a estratégia revolucionária dos focos de Che Guevara, como a guerrilha de Teoponte de Nestor Paz Samora, em 1970, na Bolívia. Mas o caso mais conhecido foi o do padre Camilo Torres, morto em 15 de fevereiro de 1966. Com o fracasso da teoria dos focos, a Unidade Popular chilena constituiu-se em novo modelo de transição ao socialismo. E, assim, o cristianismo social ocupou um espaço político até então inédito na história latino-americana e brasileira.

Os estudos desenvolvidos por Paul Tillich, assim como por Enrique Dussel, nos deram instrumentos para uma compreensão teológica da realidade política brasileira, quer a partir da leitura das raízes antropológicas, no caso de Paul Tillich, quer ética, no caso de Enrique Dussel. E foi a partir das justificativas expostas, e definido o campo motivacional dos autores, que nos armamos de razões instrumentais e referenciais para desenvolver o trabalho ora apresentado. E mais do que isso, levamos em conta a riqueza do momento histórico, tanto em relação à consolidação democrática, quanto em relação às perspectivas de construção do futuro, apesar de ser este um momento de crise ética, que ameaça, sobretudo, a esperança.

A metodologia da tese teve por base uma extensa pesquisa bibliográfica do socialismo brasileiro no período do pós-guerra até a formação do Partido dos Trabalhadores, assim como das correntes socialistas que se fizeram presentes no partido. A metodologia procurou através da pesquisa bibliográfica trazer informações sobre a presença da ética cristã no PT, quer através das correntes católicas ligadas à Teologia da Libertação, quer de grupos evangélicos. Também foi nossa intenção compreender a relação que Tillich e Dussel construíram entre religião, cristianismo e socialismo, e como tais correlações se apresentaram na formação e construção do Partido dos Trabalhadores. Por isso, a metodologia teve por base os escritos socialistas de Tillich, amparados em conceitos que foram por ele construídos no correr de sua vida. A idéia-chave para o trabalho foi o argumento tillichiano de que o socialismo traduz a exigência incondicional de justiça e por isso não pode ser entendido quando separado da ética cristã que lhe deu origem.

Da mesma maneira, a metodologia reportou a Dussel e seu conceito de religião enquanto infraestrutura, ou seja, enquanto estrutura crítica da totalidade do sistema que oprime, o que dá à religião função histórica essencial. E também ao conceito de analética, que é a afirmação da exterioridade, não somente como negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade, mas como superação da totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. A analética é crítica por isso, é a superação do método dialético negativo, mas não o nega, simplesmente o assume e completa. Para Dussel   afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, é descobrir aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada, revolucionária e inovadora. Por isso, só através da analética é possível comprometer-se com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela libertação desse outro, além do que possibilita a justiça do sistema.

Dessa maneira, a partir da metodologia descrita, analisamos a relação entre teologia e socialismo em Tillich e Dussel, focalizando questões como socialismo, democracia e justiça. Tal análise teológica proposta partiu, assim, do universo simbólico cristão e socialista como fundante do pensamento político e da vida militante dentro do Partido dos Trabalhadores, com abordagens do problema do poder em suas relações com estes universos simbólicos. Dessa maneira, a proposta da tese cumpriu seu objetivo ao analisar a relação do cristianismo com a política brasileira através de seus conteúdos simbólicos.

Nossa hipótese central foi demonstrada: a religião e o cristianismo social foram componentes fundamentais na formação do pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores. Essa hipótese -- que teve dois desdobramentos, ao perguntar: qual é o sentido teológico de um partido socialista que se forma desta maneira? E se é possível, teologicamente, demonstrar a importância disso? -- também foi respondida. Pois ficou evidente que um tipo de socialismo religioso teve presença marcante no conjunto do pensamento petista, ao levantar a bandeira da expansão da democracia de participação e a solução de problemas brasileiros historicamente pendentes, como a questão da terra, do trabalho e da liberdade cidadã. Assim, cremos que respondemos através da tese “O espectro do vermelho: uma leitura teológica do socialismo no Partido dos Trabalhadores, a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel” aos questionamentos levantados.

[Jorge Pinheiro, “O espectro do vermelho: Uma leitura teológica do socialismo no Partido dos Trabalhadores, a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel, apresentação exposta na defesa da tese de doutoramento, em 2005, na Universidade Metodista de São Paulo. Em 2006, a tese foi publicada como livro: Jorge Pinheiro, Teologia e política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a experiência brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006].

jeudi 30 décembre 2010

Fé cristã e Partido dos Trabalhadores

A relação entre fé cristã e presença no Partido dos Trabalhadores manifestou-se na forma de um paradoxo, no sentido de um modo de pensar que estava à margem das opiniões aceitas e mesmo em oposição a elas. O paradoxo inicial da fé cristã residiu no fato de ser ela uma obra da cultura na forma de um saber que tem a intenção de explicar a realidade e, por extensão, a própria cultura da qual procede. Essa universalidade da fé cristã foi designada como sendo o predicado da interrogação cristã que se dirige ao ser da nossa brasilidade. Ela determina o caráter paradoxal da relação entre cultura e fé cristã na medida em que é origem e uma das instâncias fundadoras da cultura brasileira.

Há aqui uma correlação de causalidades históricas, mas é importante assinalar que outras produções culturais, como a política e a democracia de participação apresentam essa originalidade de ostentarem os traços do que serão as suas essências como intenção de conhecimento. Nesse sentido, a fé cristã no Brasil deve ser considerada não só um caminho para se penetrar no espírito da cultura proletária, mas meio para se compreender o pensamento libertário em um partido de trabalhadores. Mas, para isso é necessário ter presente a relação dialética que existe entre o dinamismo da cultura proletária e a produção da fé cristã brasileira, que juntas construíram nossa história recente. E, ainda hoje, a sobrevivência dessas construções mostra que a fé cristã é um dos elos que asseguram a continuidade da tradição humana que chamamos de cultura cristã brasileira.

Assim, a fé cristã esteve inscrita no destino da cultura petista e fez parte do seu espírito. Por isso, é necessário perguntar qual a razão que conduziu a esse destino. Ora, a própria fé cristã brasileira nos dá motivos para essa interrogação. Ela nomeia a razão debaixo da qual a cultura proletária caminhou, sendo a única que fez de tal razão a sua marca, embora sejamos obrigados a levar em conta os tristes caminhos que essa razão ofereceu no suceder histórico da brasilidade. Mas, é fato que a descoberta do instrumento pelas duas grandes correntes formadoras do pensamento cristão brasileiro, o catolicismo e o protestantismo, e a legitimação social de seus usos, foram a causa do aparecimento de um conhecimento de fé e de vida, que se apresentaram marcados pelo paradoxo da interrogação sobre o ser brasileiro e pela utopia.

Como vimos, há um choque entre a utopia e o kairós, que se traduz enquanto clamor crítico diante da responsabilidade que não pode ser esquecida. E é a partir da compreensão do que significa o espírito da autonomia crítica no tempo presente, que voltamos ao kairós, que irrompe no instante concreto, no sentido de clamor desestabilizador, enquanto plenitude no tempo certo. Este kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo da destinação. A relação entre utopia e kairós está caracterizada pela necessidade do desenvolvimento de uma utopia que aceitou legitimar socialmente a autonomia. O kairós passou a ser, então, a forma exemplar da vida segundo a autonomia.

Ora, a intenção de universalidade que move um partido de trabalhadores, levando-o a voltar-se reflexivamente sobre si próprio e sobre a utopia que lhe dá origem, opera aqui uma inversão na significação dos termos da relação entre a utopia e kairós como sua própria criação. Inicialmente a utopia é o termo fundante nessa relação, se considerarmos o kairós revolução que se determina a si própria. Considerado, porém, na sua natureza de interrogação sobre aquilo que deve ser a sociedade brasileira, portanto, intencionalmente universal, kairós assume, na sua relação com a utopia, a posição de termo fundante, já que a utopia se torna objeto a ser explicado pelo kairós no tribunal do que é essencial e inescusável. Essa explicação nos leva a estabelecer, de modo sistemático, a ordem das razões segundo a qual a utopia pode ser pensada na sua natureza, na sua unidade e nos seus fins. Assim, como termo fundante da sua relação com a utopia, o kairós descobre seu propósito essencial na construção histórica de partido de trabalhadores.

Pensar a utopia significa para o kairós, de um lado, examinar a solidez do edifício da utopia, os conceitos ontológicos que tornam possível a atividade espiritual do ser humano: o ser e a essência, e definir segundo o seu estatuto ontológico, as condições de exercício dessa construção, sua razão e justiça. Nesse sentido, a utopia, em sua acepção mais ampla, leva o kairós a ser um kairós da utopia. Por isso, podemos afirmar que a relação entre utopia e kairós apresenta uma forma dialética, pois nela a utopia e o kairós invertem, no movimento do conceito, o papel de termo fundante da relação.

Essa estrutura dialética caracteriza a tensão histórica entre utopia e kairós que é um paradoxo tanto no ato de pensar a fé cristã, quanto na intenção de ser socialista. Ela obriga o kairós, ao constituir-se como termo fundante da sua relação com a utopia, a passar além das esferas de interesse dentro das quais ocorrem os momentos diversos do pensar utópico. Assim, o lugar da tensão dialética entre utopia e kairós, nesse impulso de remoer as origens, encontrará satisfação no kairós, enquanto história que conhece diferentes tentativas de superação dessa tensão, que está no começo e no anunciado ato final do destino histórico. Existe assim uma regência da utopia pelo kairós, não só simbólica, mas política. É o de tornar-se mundo pelo advento daquilo que é novo na história, da qual ele é a coroa. Donde, a inevitabilidade da pergunta pelo futuro, inscrita como destino e como condição de sobrevivência de um partido de trabalhadores. Portanto, a situação do kairós na utopia socialista nos convida a conviver com essa tensão que assume feições diversas ao ser o kairós confrontado com os universos utópicos que constituem a realidade complexa da utopia: particulares, mas universal. Talvez, por isso, o futuro do kairós e o da existência de um partido de trabalhadores permaneçam problematizados: o kairós vive essa tensão e é a partir dele que se articulam as questões fundamentais do futuro do movimento socialista no alvorecer do novo milênio.
  • A primeira práxis do cristianismo social dentro do Partido dos Trabalhadores foi a crítica no sentido original da justificação, enquanto integridade que conduz à dúvida tanto sobre a utopia, como sobre o próprio kairós. No caso da utopia essa tarefa se desenvolveu no terreno da tensão dialética da qual é o kairós que deveria refletir criticamente sobre a própria utopia. Nos últimos anos, o paradoxo dessa situação voltou a se manifestar dentro do PT, quando setores do cristianismo social, que se opunham à política majoritária, disseram que é o kairós que deve julgar a utopia. Essa pretensão foi condenada em razão da relatividade dos paradigmas que possibilitavam o kairós e que se dissolviam na pluralidade das utopias. Tratava-se, porém, de uma pluralidade quantitativa no espaço e no tempo históricos, mas qualitativamente relativas. Dessa maneira, a reflexão sobre a utopia colocou o kairós em face de um questionamento: o problema da unidade e diversidade do ser socialista, que está presente no fundamento das diferentes versões do viver utópico e político dentro do PT.
  • A segunda práxis do cristianismo social no PT foi a busca do fundamento da unidade da cultura socialista no PT, que só poderia estar na ontologia, enquanto ontologia do ser humano. Para esse fundamento refluiu a interrogação sobre a unidade ontológica da cultura socialista e a questão se formulou nesses termos: qual é o princípio antropológico daquilo que a cultura socialista produz? É certo que o humano cria seu próprio universo de significação, que é a cultura, e é nela que vamos encontrar o ato e a forma da nossa expressividade. Dessa maneira, a reflexão do cristianismo social sobre a cultura socialista no Partido dos Trabalhadores consistiu em assegurar no ato dessa produção petista a unidade que só poderia ser pensada em oposição ao fluxo do tempo e à dispersão do espaço onde a experiência se situava. Essa intuição já tinha inaugurado o pensar da Teologia da Libertação na America Latina. Donde, a unidade ontológica da cultura socialista, aquilo que é inteligivel no seu ser, reside na relação dialética entre a estrutura transcendental da pessoa e aquilo que é ideal no que a cultura de trabalhadores e excluídos produz, que se manifesta na forma transtemporal e transespacial que lhe dá perenidade simbólica. O próprio cristianismo social apresentou-se, então, como paradigma da utilidade ontológica da cultura socialista, pois nela foi tematizada a transcendência da ação.
Assim, a natureza da unidade da cultura socialista foi entendida como unidade analógica, porque a produção cultural socialista se apresentou como expressão da abertura do trabalhador à universalidade do ser brasileiro e foi no horizonte dessa universalidade que essa produção cultural se situou e adquiriu sua idealidade simbólica. Por isso, a unidade da cultura socialista apresentou-se, num primeiro momento, como possibilidade a ser assegurada pelas categorias de estrutura e relação estabelecidas pelo cristianismo social e outras compreensões socialistas e articuladas pelo movimento dialético da expressão da pessoa excluída.

Dessa maneira, para os cristãos sociais, a unidade passou a ser defendida como uma unidade na diferença e por isso analética,[1] que permitiria aos trabalhadores e socialistas realizarem-se na pluralidade das culturas brasileiras e na profusão de formas por elas produzidas. Foi, pois, a não compreensão do caráter analético da unidade da cultura socialista que deu origem à não compreensão dos universos culturais petistas. Falar do caráter analético dos universos culturais petistas significava afirmar a exterioridade: superar a totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro das tendências petistas. O caráter analético é crítico porque leva à superação da dialética. Afirmar a exterioridade da militância partidária, dos movimentos sociais, realizaria o que era aparentemente impossível para o partido, imprevisível para a totalidade, aquilo que deveria surgir a partir da liberdade não condicionada, revolucionária.

Como a analética é prática, torna-se uma pedagogia e uma política de massas, que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a epifania de todos os trabalhadores e excluídos. E essa analética, então, leva à questão dos universos culturais brasileiros, ao problema das categorias antropológicas que exprimem as relações de trabalhadores e socialistas com a realidade, no âmbito da sua abertura transcendental ao ser brasileiro. A diferenciação dessas categorias obedece à diferenciação do ser na realidade e incide na diferenciação dos modos de relação do trabalhador e socialista com o ser humano brasileiro, de maneira que a categoria de objetividade delimita o campo da relação de produção enquanto campo da relação teórica e campo de relação da práxis. O entrelaçamento dessas relações no existir histórico do PT deveria definir a cultura socialista no partido, pois as diferentes correntes de um partido de trabalhadores como seres em relação são, ontologicamente, seres da cultura socialista, assim como a realidade é, para eles, uma realidade da cultura socialista. A unidade analética da cultura socialista em um partido de trabalhadores deve ser pensada segundo a analogia de atribuição, ordenada em direção à inteligibilidade,[2] porque a determinação dessa direção orienta a discussão sobre a relação entre teoria e práxis.
  • A terceira práxis do cristianismo social no Partido dos Trabalhadores teve em vista o estatuto ontológico que rege a atividade cultural socialista do ser petista. Esse estatuto ontológico exprime-se como unidade da cultura socialista que encontra sua efetivação nos diversos ciclos da história de um partido de trabalhadores. Mas, ao colocar em evidência a dimensão da realização do brasileiro, o cristianismo social descobriu o caráter normativo que lhe é inerente. E como a ontologia prolonga-se numa ética da cultura, o brasileiro fundou o mundo da cultura brasileira tendo em vista o seu próprio bem. Por isso, o ético não deve ser entendido como um predicado externo à cultura: os dois conceitos tornam-se complementares porque a produção encontra seu lugar no espaço daquilo que é morada do ser humano.
Ethos, então, passa a ser a forma de vida da cultura e é por sua própria natureza conhecimento normativo da cultura. Fazendo-se reflexão ética, a reflexão do cristianismo social sobre a cultura socialista teve a função constitutiva de operar no ser do trabalhador e em sua produção cultural e política. Assim, o cristianismo social tem por objeto a ontologia e a ética do ser militante da cultura socialista petista. É por isso que a tematização ontológica e ética da cultura socialista ocorreu no âmbito do Partido dos Trabalhadores ao nível da sua autojustificação em termos de razão. No momento em que a cultura socialista colocou no seu espaço simbólico os sistemas criados pela razão, entre os quais está o cristianismo social, ela definiu o estatuto dessa produção simbólica, as regras e as normas do seu uso em vista da realização daquilo que é humano.

Desde o momento em que o campo simbólico da cultura socialista dilatou-se no espaço universal da razão, os limites do ethos tradicional tornaram-se estreitos e coube ao cristianismo social a proposta de um outro ethos, a ética cristã. Por isso, o cristianismo social foi o produtor dessa instauração no PT. O roteiro da ética na cultura petista acompanhou o roteiro seguido pelo pensamento cristão. Ele reflete as dificuldades da cultura petista nessa hora de crise de identidade que é vivida como crise da cultura socialista, mas também como crise ética. Mas tal crise tem um paradigma que traduz este momento especial: esta crise é uma enfermidade da modernidade capitalista. Diante dessa crise, o cristianismo social tinha dois caminhos a seguir: participar do fechamento do sistema sobre si mesmo, favorecendo a totalização do sistema, e cumprir a função de ocultar a dominação. Isto significaria desistorificar a realidade social, desdialetizar um processo que teve gênese e dinâmica próprias. Tal divinização levaria à fetichização, que consiste na identificação da estrutura atual com a vontade divina. Outro caminho seria ver a própria fé cristã como clamor daquele que está excluído, e que precisa de fé para abandonar as ilusões sobre sua própria situação. Por isso, a crítica do cristianismo social no Partido dos Trabalhadores levantou a anterioridade da responsabilidade prática que se tem com o excluído dentro do sistema capitalista brasileiro. Essa anterioridade parte da exigência de que o cristão social deve transcender o sistema vigente de dominação e ver como responsabilidade sua o serviço ao excluído. A fé cristã nesse caso é a instauração de uma nova práxis. E o fato de que a práxis cristã possa chegar ao poder e tornar-se superestrutural não nega o fato de que a crítica profética continue a irromper na história.

Essa presença de responsabilidade social com o excluído mostra a vigência do clamor crítico e autônomo e funciona como freio das pressões alienantes e superestruturais. Por isso, consciente de seu papel de profeta, dom Hélder Câmara, um dos pais do cristianismo social no país, disse que quando falava da pobreza todos o chamavam de cristão, “mas quando eu falo da causa da pobreza, me chamam de comunista. Quando eu falo que os ricos devem ajudar os pobres, me chamam de santo, mas quando eu falo que os pobres têm que lutar pelos seus direitos, me chamam de subversivo”.[3]

Assim, a crítica do cristianismo social desmitifica para que as pessoas pensem, para que atuem e transformem suas realidades como seres humanos conscientes. Um exemplo dessa crítica cristã social à crise e enfermidade do capitalismo brasileiro, em nossa história recente, foi a decisão da CNBB em criar o Grito dos Excluídos, fazendo um paralelo com o Grito do Ipiranga, de Dom Pedro I, que teria sido um grito de “liberdade ou morte”. A Igreja católica, com o apoio de entidades como a CUT e o MST, fez com que o Sete de Setembro passasse a ser comemorado com mobilizações centradas nas reivindicações dos trabalhadores. Da mesma forma, foram os temas sociais da Campanha da Fraternidade, que ainda no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso perguntou: “Desemprego, por quê?”, chamando assim a atenção para um problema estrutural da sociedade brasileira. Naquele momento o país tinha um desempregado em cada cinco trabalhadores brasileiros. O índice na grande São Paulo, segundo o DIEESE, era de 18% da mão-de-obra. E o índice nacional aproximava-se dos 8%, e o próprio índice oficial falava de aproximadamente 10 milhões de trabalhadores desempregados. Isso, sem levar em conta que os novos trabalhadores, os jovens que deveriam entrar anualmente no mercado de trabalho eram cerca de dois milhões. O país, no entanto, só conseguia criar quinhentos mil novos empregos por ano.

Ora, o clamor crítico e autônomo procede porque em nosso país o cristianismo é a primeira consciência que a pessoa tem de si mesmo, e as relações morais são relações de formatação cristã. Tal realidade, de forma paradoxal, se expressa também no cristianismo conservador e fundamentalista. Isto explica porque as massas, enquanto oprimidas e passivas, vivem a ideologia das classes dominantes e aceitam as respostas que o sistema oferece de forma ambígua para as suas necessidades. Ao aceitar esse cristianismo superestrutural das classes dominantes, enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores, as massas se colocam sob resignação passiva. Por isso, é tarefa dos socialistas verificar a realidade e desmascarar a santidade da auto-alienação. Devem, sem dúvida, fazer a crítica do céu para que se transforme em crítica da terra. Mas, também procede a crítica que o cristianismo social faz, quando diz que o ateísmo, por negar a necessidade da essencialidade perde sentido, pois, ao negar afirma, através da negação, a existência do humano. Ora, o socialismo não necessita dessa mediação, já que surgiu como consciência sensível, teórica e prática do ser humano e da natureza como essência. O socialismo, então, deve fazer a negação da negação da emancipação e da recuperação humana, enquanto princípio dinâmico, embora não seja nem o fim do desenvolvimento humano, nem a forma última da sociedade humana.

Diante disso, os cristãos sociais precisam entender que sua militância faz parte de uma luta mais ampla, onde o cristianismo infraestrutural é aliado estratégico de trabalhadores e socialistas e que o ateísmo, por isso, é ocultamento, pois fecha as portas ao aliado estratégico, ao cristianismo, que se fará presente enquanto houver seres humanos obstinados pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de justiça, esperança de um novo kairós. Assim, para o cristão social a história brasileira e nela as possibilidades de um partido de trabalhadores são uma produção das massas em movimento, a partir da ação de milhões de trabalhadores e excluídos, que transforma, cria uma nova cultura e produz o nascimento de uma nova sociedade. É num processo permanente que os trabalhadores e seus partidos constróem sua essencialidade: do ser humano em direção ao ser humano. Mas, o êxito nesse processo depende das condições de possibilidade, donde é impossível separar teoria e práxis. Por isso, os cristãos sociais num partido de trabalhadores devem propor a integração dos princípios na escolha de fins que permitam levar à práxis de libertação aqueles que estão excluídos. E diante da crise, o cristianismo social deve chamar pessoas e comunidades à co-responsabilidade pela construção de uma nação com identidade própria, e estimular os cristãos, em nome da sua fé, a se engajaram na política, pois vale a pena servir a uma causa que ultrapassa o momento da crise: tal política é um exercício de amor.

Jorge Pinheiro, Teologia e política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a experiência brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2005.

Referências bibliográficas

[1] Enrique Dussel, “Para una fundamentación analéctica de la liberación latinoamericana” (Apéndice 4), Método para una Filosofía de la Liberación, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974, p. 281.
[2] Gildardo Díaz Novoa, “O Método Analético”, in Enrique Dussel en la Filosofía Latinoamericana y frente a la Filosofía Eurocéntrica, Valladolid, 2001, pp. 151-152.
[3] Frei Betto, “Política e religião”, João Pessoa, U. Federal da Paraíba, Campus I, (03.02.1999). WEB: www.dhnet.org.br/direitos/militantes/freibetto (Acesso 06.12.2005).

mercredi 29 décembre 2010

Um canto de vitória

Sou um pastor. Essa pequena palavra define o chamado: o serviço a Deus no cuidado de suas ovelhas. Tudo o mais é um acréscimo, importante, mas não essencial. Deus me deu dons, capacidades, que devo e posso exercer para enriquecer o meu chamado, o exercício do magistério teológico, o amor pelo estudo e pela pesquisa acadêmica, mas isso não é o essencial.

Hoje é 29 de dezembro de 2010 e são 4h51 da manhã. Deus falou, eu ouvi, conversamos. Estou diante do computador escrevendo algo da conversa.

O ministério pastoral é o exercício de um chamado de Deus. É um privilégio, é um desafio, é uma cruz.

Às vezes, com o correr dos anos, nós pastores nos esquecemos de que em algum momento fomos escolhidos por Deus para exercer esse ministério tão especial. Talvez o mais especial entregue por Deus aos homens. Esquecemos do chamado e o pastorado vira profissão, apenas função. E nesse momento e a partir daí transforma-se em peso.

Foi sobre isso que conversamos nessa madrugada. Sou um privilegiado e esse privilégio pode ser compreendido naquele convite solene que Deus faz em Isaías 55.6-13. Buscai ao Senhor. Ridderbos, em seu comentário, diz que a expressão significa o movimento do coração, com suas afeições e expressões, na direção do Senhor. Esse é o privilégio: ser chamado tem um correlato magnífico, a busca apaixonada, movimento do coração em direção ao Eterno, que define afeições e expressões do ser pastor.

Mas é um desafio, desafio de ser sábio no serviço. E a primeira característica desse desafio é a constância. E aí me remeto ao livro de Provérbios e vejo essa constância no serviço como ação fraterna, amor, amizade verdadeira pelas ovelhas. Sabemos que quando as coisas caminham bem todos têm amigos, mas o livro de Provérbios (18.24) nos diz que existem amigos mais chegados que um irmão, que amam a qualquer tempo (17.17). Esse é o desafio. Você foi chamado para cuidar de gente, sempre. 

E, sem dúvida, é cruz. E é cruz porque é Deus quem escolhe a bebida e o cálice. Oramos... Senhor afasta de mim este cálice... Mas seja feita a Tua vontade. E o cálice é entregue e somos convidados a beber dele até a última gota. E aí a vontade de desistir nubla o movimento do coração, com suas afeições e expressões na direção do Senhor.

Mas nessa conversa na madrugada, quando expunha dores, fraquezas e sofrimentos, Ele remeteu meu coração a um trecho do apóstolo Paulo na sua primeira carta aos Coríntios (15.20-28), as consequências da ressurreição de Cristo. É isso mesmo: Cristo ressurgiu dos mortos! A cruz pode ser cálice amargo, mas foi e é caminho de obediência. E a ressurreição de Cristo é para a vida que não conhece a morte e, nesse sentido, segundo Morris, Ele é o primeiro, o precursor de todos os que haveriam de estar nele.

Este canto é o testemunho de uma conversa, de um momento de oração, onde Deus falou ao meu coração e tive consciência de que o chamado é para a vida, durante a vida, toda ela, não um pedaço. Por isso, meu canto de vitória sobre a morte, para além de qualquer sentido apenas material. Agradeço a Deus. E, assim, retorno ao primeiro parágrafo:

Sou um pastor. Essa pequena palavra define o chamado: o serviço a Deus no cuidado de suas ovelhas. Tudo o mais é um acréscimo, importante, mas não essencial.


Referências bibliográficas
Kidner, Derek, Provérbios, introdução e comentário, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1992, p. 43.
Morris, Leon, ICoríntios, introdução e comentário, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1997, p. 171.
Ridderbos, J., Isaías, introdução e comentário, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1995, p. 454.