vendredi 16 mars 2012

A antropologia da imago Dei

Para os meus alunos de Teologia Sistemática II. Favor ler o texto abaixo e depois analisar o vídeo do Cordel do Fogo Encantado, "Chover".  Obrigado, JP.

A antropologia da imagem de Deus

O shemá era a oração que duas vezes por dia os judeus elevavam ao Eterno. Essa prece reconhece Deus como único e diz que deviam amá-lo com todo leb, com toda nefesh e com toda meod, conforme Deuteronômio 6.5.

Leb e lebab, que os gregos traduziram por cardia e nós por coração, nos falam dos movimentos do corpo humano. Leb e sua variante lebab ocorrem 858 vezes nas Escrituras hebraicas, das quais 814 se referem ao coração humano. Expressam a noção antropológica de que somos movidos por sentimentos e emoções que movimentam e dirigem nossos membros e corpo. Têm a realidade anatômica e as funções fisiológicas do coração enquanto expressões das atividades do ser humano, que levam às disposições de ânimo como alegria e aflição, coragem e temor, desejo e aspiração, e também às funções intelectuais como inteligência e decisão da vontade, que na cultura ocidental atribuímos ao cérebro. Nas passagens do livro de Gênesis que nos falam do leb constatamos que a antropologia se apresenta como uma psicologia teológica. Assim, leb tem um significado antropológico que fala daqueles aspectos que nos levam aos movimentos do sentir, do querer e do agir, que compõem a personalidade humana.

Meod, que os gregos traduziram por dynamis,ia. intensidade e abundituras judaicas, e traduz a id555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555 e nós por força, aparece trezentas vezes nas Escrituras hebraicas, e traduz a idéia de intensidade e abundância. Em alguns textos, como no caso do crescimento do povo hebreu no Egito, meod aparece ligado à idéia de reprodução, de muitos filhos, o que nos leva a uma compreensão diferente do termo dynamis em grego, que nos fala de uma força física externa ao ser humano. Em hebraico podemos entender meod como potência, aquela força, aquela energia que faz de nós seres criadores, tanto no sentido biológico como intelectual. Seria potência que identifica o ser humano, capacidade de gerar que faz o humano crescer e multiplicar-se.

Mas, nefesh, que os gregos traduziram por psyché, mas que significa garganta, respiração, fôlego, pessoa, vida e alma, [1] sem dúvida, nos fala da plenitude daquilo que é humano, conforme encontramos em Gênesis 2.7. Dessa maneira, nefesh possibilita um rico diálogo com o texto de Gênesis e nos permite uma reconstrução dos significados da natureza humana.

A expressão nefesh leva a uma concepção de exterior versus interior, [2] que tem por base Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte de Iaveh faz seu povo”. Mobiliza assim em diferentes níveis essa força criacional, que constitui uma parte de Deus. A matéria-prima utilizada por Deus na modelagem humana é ordinária, enquanto material pertencente a ordem comum de “ló nefesh”: inanimados e animais. É o sopro de Deus que faz especial essa matéria ordinária. Mas será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criacional de Deus transmite à matéria ordinária não somente vida, mas transfere intensidade e profundidade? De certa maneira, não é absurdo dizer que os seres celestiais são criaturas integralmente espirituais. Sua existência procede do exterior da força criacional de Deus. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criacional se dá através da palavra, da palavra criadora de Deus. Nesse sentido, nefesh procede da interioridade de Deus e por isso é conhecida como “ein sof”, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação anterior “façamos o ser humano” (Gênesis 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, dizemos que a natureza humana é superior à natureza angélica, porque procede da interioridade de Iaveh. Traduz ação mediadora e conjuntiva da força criacional. Donde, a natureza humana procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh entende-se e revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Da leitura de Gênesis 2.7 podemos constatar que o texto fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: ele não tem uma nefesh, ele passa a ser uma nefesh.

O texto e o pensamento literário dos hebreus são sintéticos. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele exige identificar com que parte do corpo o ser humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh, utilizando para isso textos que apresentam diferentes sentidos de nefesh. Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas Escrituras hebraicas e seja traduzida 600 vezes na Septuaginta por “psyché”, garganta e estômago podem ser tomados por paradigma e transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que “Iaveh Deus formou o ser humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o ser humano se tornou um ser vivente que necessita Dele para ser saciado”.

Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas a realidade das necessidades fundamentais e imprescindíveis da alma humana, que ao não serem ou não estarem preenchidas por Deus produzem alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. Mas como o sopro de Deus pode ter gerado um ser humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos a nefesh como o órgão das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Deus só podem ser saciadas por Ele.

Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência de Iaveh. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39 e seguintes.

No relato de Gênesis 2.7 o ser humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Quando integrado ao seu Criador, nefesh é transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Mas essa natureza também se vai constituir enquanto expansão dos significados da imagem de Deus, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial, garganta e boca, que possibilitam o sopro. Nefesh como substantivo ganhou vários sentidos, sendo garganta um deles, e assim é usado em Provérbios 23.2, quando diz “põe uma faca à tua garganta, se fores uma pessoa de grande apetite”. A garganta ou goela é por onde entra e sai a respiração, o ar. O ser vivente, então, ganhou a designação nefesh, ser respirador. No caso do humano refere-se basicamente à forma que o espírito e a inteligência, sem forma em si, assumiu ao animar o corpo.[3] Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade de Iaveh. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem destinação.

Esse é o destino do humano: ter sua nefesh integralmente saciada por seu Criador e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do Espírito de Deus, o que se traduz em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, conhecimento e abertura à transcendência. A ruptura dessa integridade produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. A antropologia da nefesh em Gênesis nos fala sobre a imagem de Deus e nos dirige a uma pesquisa teológica do humano, da humanidade, da pessoa e da comunidade, da pessoa e da ordem social, da pessoa enquanto excluído, da pessoa enquanto eleito, da humanidade e seu destino, ou seja, da vida para o mundo, do amor para o próximo e da criação para todos.

Diante disso, devemos nos perguntar que princípios podem nortear tal pesquisa teológica? Sem dúvida, o princípio arquitetônico, enquanto revelação, fé objetiva, base e eixo da teologia. E logicamente o princípio hermenêutico, ou seja, a interpretação dos aspectos históricos e lingüísticos dessa revelação. Devemos partir, logicamente, da razão filosófica, que produz ordenação, mas não devemos esquecer a razão científica, enquanto leitura fenomenológica da natureza da antropologia e nem da razão ordinária, enquanto universalidade do senso comum. É bom lembrar, que toda análise metodológica, consciente ou inconscientemente, no correr da história da teologia, tem levado inexoravelmente a diferentes compreensões do fato teológico. Isto porque o princípio arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral da revelação e porque o princípio hermenêutico parte sempre de uma ou de múltiplas visões filosóficas que podem ser utilizadas como instrumentos de interpretação da história da revelação. Ou seja, quer queiramos ou não, a ideologia define a hermenêutica, pois o saber sempre está sob o risco de ser arrebatado pela ideologia, já que a ideologia permanece à espreita enquanto código de interpretação. Enquanto intelectuais temos amarras, pontos de apoio, somos transportados pela substância ética.[4]

Aqui reside a dificuldade, toda teologia é transitória. Reflete um momento de compreensão da revelação e de sua história. Mas, em nosso trabalho, utilizaremos a antropologia que as Escrituras nos oferecem como um instrumental hermenêutico para compreender o homo brasiliensis. Isto porque embora não seja antropologia, a teologia nos oferece um roteiro antropológico legítimo. No centro da fé cristã se encontra Jesus Cristo, Deus e ser humano, revelador do divino e do humano. E se a teologia fala da divindade, ela fala a homens e mulheres, fala sobre um Deus que encarnou e que ama os homens e mulheres. Está a serviço do humano.[5] Não podemos fugir a essa realidade, por isso, teologicamente, nosso objetivo é fazer a partir da própria compreensão do humano uma leitura da imagem de Deus que responda aos questionamentos e necessidades teológicas das brasilidades.

No livro das origens lemos: “agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”. (Gênesis 1.26). Ora, se todo o universo é o mundo do ser humano, conforme afirmam os dois relatos da criação e o salmo oito, em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus conferiu ao humano essa correspondência?

A partir da antropologia bíblica podemos ver que em primeiro lugar o homo sapiens é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de Deus. Ele recebe responsabilidade e poder de decisão. Em relação a esta discussão, considero elucidativa a exposição que apresenta a imagem de Deus através de três concepções: substantiva, ou seja, física e psicológica; relacional, ou seja, com um tropismo à transcendência e possibilidade de relacionamento com Deus; e funcional, que se dá através da ação cultural do ser humano. Acredito, porém, que privilegiar uma dessas concepções em detrimento das outras duas é perder a riqueza do ser humano enquanto imagem de Deus. Por isso, aqui correlacionamos as três concepções, já que formam uma totalidade. Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação. Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho, produção e administração. O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus. Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe sutil: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação. Imagem de Deus traduz também abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

Adão é um ser plural. Esse ser humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim, estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos homens. Ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade. Da mesma maneira, em Gênesis 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth,[6] tal explicação de Gênesis 1.27b, de uma humanidade formada por dois sexos, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”. Logicamente, há uma intenção para que o texto se aprofunde em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.

E para onde aponta o domínio? Todo o universo é o mundo do ser humano, por isso há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, nem animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar. E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através da necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres. Mas, o afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza. Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15, cf. 2Coríntios 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações...” (Mt 28.18).

(Texto extraído do livro de Jorge Pinheiro, Teologia Bíblica e Sistemática, São Paulo, Fonte Editorial, 2012. Adquira o seu numa boa livraria on-line).

[1] Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, Dicionário Hebraico Português & Aramaico Português, São Leopoldo/Petrópolis, Sinodal/Vozes, 1988. Verbete: vpn, p. 159.
[2] Raphaël Draï, La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1996, p. 414.
[3] L. Byron Harbin, Teologia do Antigo Testamento (apostila), São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1997, p. 32.
[4] Paul Ricoeur, Interpretação e Ideologias, RJ, Francisco Alves, 1990, pp.94-95.
[5] Antonio Manzatto in Teologia e Literatura, São Paulo, Edições Loyola, 1994, p. 41.
[6] Citado por Hans Walter Wolff, in Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975, p. 215.

samedi 10 mars 2012

O que é o capitalismo?

Uma conversa necessária [i]
Por Jorge Pinheiro [ii]
Texto publicado no site Evangélicos pela Justiça, em 12 de junho de 2010.
Mafalda e o futuro

Caros colegas, bom dia. Vamos começar essas reflexões sobre o capitalismo lembrando que ele tem defensores. Claro está que em relação ao feudalismo, modo de produção que caracterizou a Idade Média, ele significou um passo a frente. Mas, hoje, muita gente que defende o capitalismo, na verdade, não entende o que ele significa, já que é um sistema opaco e sua natureza exploradora não fica evidente.

Outros defendem o capitalismo porque são seus beneficiários e ganham dinheiro graças a ele. Há ainda os especialistas que, muitas vezes, são porta-vozes do sistema, como economistas, jornalistas, acadêmicos e representantes do pensamento único, que conhecem o sistema, mas por serem bem remunerados omitem determinadas questões em suas análises.

Por isso, antes de analisar o capitalismo propriamente dito, vamos ver alguns dados de documentos das Nações Unidas. São informações sobre a crise atual e quando analisadas por instituições como G20, FMI, OMC e BIRD, estas chegam à estranha conclusão de que a crise do capitalismo se resolve com mais capitalismo.

Mas, vamos aos números, sistematizados pelo Programa Internacional de Estudos Comparativos sobre a Pobreza, localizado na Universidade de Bergen, Noruega.

Segundo a instituição, a população mundial era de 6,8 bilhões de habitantes em 2009. Desses,
. 1,02 bilhão de pessoas sofrem subnutrição crônica (FAO,2009);
. 2 bilhões de pessoas não têm acesso a medicamentos (www.fic.nih.gov);
. 884 milhões de pessoas não têm acesso à água potável (OMS/UNICEF 2008);
. 925 milhões de pessoas não têm moradia ou residem em moradias precárias (ONU Habitat 2003);
. 1,6 bilhões de pessoas não têm acesso à energia elétrica (ONU Habitat, Urban Energy);
. 2,5 bilhões de pessoas não são beneficiadas por sistemas de saneamento, drenagens ou não têm privadas domiciliares (OMS/UNICEF 2008);
. 774 milhões de adultos são analfabetos (www.uis.unesco.org);
. 18 milhões de pessoa morrem por ano devido à pobreza, a maioria crianças menores de cinco anos de idade (OMS);
. 218 milhões de crianças e jovens, entre 5 e 17 anos de idade, trabalham em condições de escravidão, em tarefas perigosas ou humilhantes, como soldados da ativa atuando em guerras e/ou conflitos civis, na prostituição infantil, como serventes, em trabalhos insalubres na agricultura, na construção civil ou industria têxtil (OIT: “La eliminación Del trabajo infantil, un objetivo a nuestro alcance” 2006).

Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial reduziram sua participação no produto interno bruto mundial (PIB mundial) de 1,16% para 0,92%; enquanto os 10% mais ricos acrescentaram fortunas em seus bens pessoais passando a dispor de 6,4% para 7,1% da riqueza mundial.

Mas, o que é o capitalismo?

O capitalismo é um sistema econômico caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção, pela existência de mercados livres e trabalho assalariado. Na historiografia ocidental, a ascensão do capitalismo está associada ao fim do feudalismo, ocorrido na Europa no final da Idade Média. Mas, não podemos esquecer de outras condições também associadas ao capitalismo, como a existência de pessoas e empresas que investem em troca de um lucro futuro; o respeito a leis e contratos; a existência de financiamento, moeda e juro; e a ocupação para os trabalhadores a partir de um mercado de trabalho.
 Karl Marx
A palavra capital vem do latim capitalis, que vem do indo-europeu kaput, que quer dizer "cabeça", uma referência às cabeças de gado, medida de riqueza nos tempos antigos. A conexão léxica entre o comércio de gado e a economia pode ser vista em nomes de várias moedas e palavras que dizem respeito ao dinheiro. O primeiro uso da palavra capitalista foi em 1848 no Manifesto Comunista de Marx e Engels; porém, a palavra capitalismo não foi usada. O primeiro uso da palavra capitalismo foi feito pelo escritor Thackeray, em 1854, com a qual quis dizer "posse de grandes quantidades de capital", e não se referir a um sistema de produção.

Em 1867, Proudhon usou o termo capitalista para referir-se aos possuidores de capital, e Marx e Engels referiam-se à "forma de produção baseada em capital" e, n’O Capital, o capitalista é um possuidor privado de capital.

Mas nem Proudhon, Marx ou Engels usaram os termos em alusão ao significado atual da palavra capitalismo. A primeira pessoa que fez isso foi Werner Sombart em seu Capitalismo Moderno, de 1902. Max Weber, um colega de Sombart, usou o termo no seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de 1904.

O capitalismo moderno começou com a Revolução Industrial e as revoluções burguesas: na Inglaterra, com a independência dos EUA e com a revolução francesa. É importante entender que capitalismo não é sinônimo de propriedade privada, embora ela seja fundamental para a sua existência. A propriedade privada já existia, por exemplo, nas tribos de Israel. Os regimes teocráticos, baseadas em leis ditas entregues por Deus, seguiam um modelo próximo ao feudalismo, com as terras pertencendo ao rei e os súditos trabalhando nelas. Ou seja, a existência de propriedade privada é antiga como a própria história.

Um pouco de história

Foi com o crescimento da população, o desenvolvimento da agricultura, a criação das cidades e a multiplicação de trabalho, quando as pessoas passaram a viver em sociedades maiores, que se tornou necessária a organização da produção a partir de relações interpessoais. Assim, foram elaboradas leis para reger as relações interpessoais entre gente que não se conhecia.

Depois, com o desenvolvimento dos transportes terrestres e marítimos, e a existência de cidades com grandes populações, surgiu o comércio internacional. As nações comerciantes eram as cidades-estado, com destaque para Atenas na Grécia, que nos séculos V e IV antes de Cristo inventou o sistema bancário.

Contudo, a existência de escravos não permitiu o desenvolvimento da instituição da propriedade privada como no capitalismo moderno, pois a escravidão impossibilita o mercado livre e viola o direito de propriedade privada.

Assim, o Império Romano se caracterizou pela liberdade relativa do comércio e da produção até o final do século terceiro depois de Cristo. A partir dessa data a implantação de controles de preços pelos imperadores suprimiu a liberdade econômica do Império. A economia do Império Romano, segundo alguns historiadores, tinha instituições capitalistas quase tão avançadas quanto as da Inglaterra no início da revolução industrial. Mas com o declínio do Império Romano e as invasões dos povos que os romanos chamavam de bárbaros, a organização social voltou a tomar feições tribais.

Em seu período final, o feudalismo passou por uma crise devido à catástrofe demográfica causada pela epidemia da peste negra (peste bubônica) que dizimou 35% da população européia. Depois da crise econômica e demográfica, o comércio desenvolvido pelas cidades-estado italianas permitiu à Europa viver certo crescimento comercial e urbano, o que aumentou e aprofundou as relações de produção capitalistas. Mas, nem tudo foi tão fácil, pois no final do feudalismo e início da idade moderna, a realeza expandiu seu poderio econômico e político através do mercantilismo e do absolutismo. Ou seja, através de doutrinas e práticas anticapitalistas. Niccòlo Machiavelli foi um dos defensores dessa postura anticapitalista, ao afirmar que "a unidade política é fundamental para a grandeza de uma nação". Com o absolutismo e o mercantilismo, o Estado controlou a economia e buscou nas colônias a riqueza necessária para garantir o enriquecimento da metrópole.

E porque a propriedade privada necessita da liberdade de contrato para juntos formarem o sistema capitalista, no século XVI surgiu na Escola de Salamanca, alguns teólogos que apresentaram as primeiras ideias de uma economia capitalista liberal. Para eles, entre os quais estava Tomás de Aquino, a propriedade privada era olhada como moralmente neutra. Em última instância, antes dos protestantes, Tomás de Aquino já deixava aberta a idéia de que não era pecado ser capitalista.

Mas como dissemos acima, foi com as revoluções burguesas no início da Idade Moderna que o capitalismo se estabeleceu como sistema econômico nos países da Europa Ocidental. Algumas dessas revoluções foram a Revolução Inglesa (1640-60), a independência dos EUA (4 de julho de 1776) e a Revolução Francesa (1789-1799), que construíram o arcabouço institucional de suporte ao desenvolvimento capitalista.

A partir da segunda metade do século XVIII iniciou-se um processo de produção em massa, geração de lucro e acúmulo de capital. As sociedades superam os critérios da aristocracia, o privilégio de nascimento, por exemplo. Surgiram as primeiras teorias econômicas modernas: a Economia Política e a ideologia que lhe corresponde, o liberalismo. Na Inglaterra, o escocês Adam Smith publica Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações.

As fases do capitalismo

A primeira fase do capitalismo foi comercial. Predominou o produtor independente, artesão, mas generalizou-se o trabalho assalariado. A maior parte do lucro concentrava-se na mão dos comerciantes, não nas mãos dos produtores. Lucrava mais quem comprava e vendia a mercadoria, não quem produzia.

Depois veio o capitalismo industrial, quando o trabalho assalariado já instalado, em prejuízo dos artesãos, separou os possuidores de meios de produção e o exército de trabalhadores.

Na sequência tivemos o capitalismo financeiro, quando o sistema bancário e corporações financeiras passaram a controlar as demais atividades.

E, atualmente, vivemos sob o capitalismo em sua fase informacional, que sem deixar de ser financeiro e industrial, toma como característica a importância do conhecimento.
Gerados e nascidos na ideologia do capital

Um pouco de teoria

Em termos teóricos, dizemos que modo de produção é a forma de organização socioeconômica associada a uma determinada etapa de desenvolvimento das forças de produção e das relações de produção. Reúne as características do trabalho, seja ele artesanal, manufaturado ou industrial. São constituídos pelo objeto sobre o qual se trabalha e por todos os meios de trabalho necessários à produção – ferramentas, instrumentos, máquinas, oficinas, fábricas.

No correr da história existiram modos de produção, o antigo ou comunismo primitivo, o asiático, o escravista, o feudal, o capitalista, e o comunista, ainda um projeto a ser construído. Assim, um sistema econômico é definido pelo modo de produção no qual se baseia. O modo de produção atual, capitalista, é aquele sobre o qual se baseia a economia da maioria dos países do mundo.

Algumas pessoas enfatizam a propriedade privada do capital como sendo a essência do capitalismo, outros enfatizam a importância de um mercado livre como mecanismo para o movimento e acumulação de capital.

Karl Marx, em O capital, é crítico do capitalismo, e o olha através da dinâmica das lutas de classes, incluindo aí a estrutura de estratificação de diferentes segmentos sociais, dando ênfase às relações entre proletariado (classe trabalhadora) e burguesia (classe dominante). Para ele, a diferença de poder econômico entre as classes é um pressuposto do sistema, ou seja, a classe dominante acumulará riquezas por meio da exploração do trabalho das classes operárias.

Os defensores do capitalismo afirmam, no entanto, que num mercado livre existe competição e concorrência constante entre todos os integrantes do sistema, e se uma pessoa recebe em troca do seu trabalho menos do que ele produz, ele poderá mudar para o concorrente, pois este lucrará com o seu trabalho.

Devido à amplitude da expressão, surgiram controvérsias quanto ao capitalismo. Uma delas é se de fato o capitalismo é um sistema real, isto é, se ele já foi implementado em economias nacionais ou se ainda não se completou. Nesse caso, a pergunta é: que grau de capitalismo existe numa dada economia nacional. Outra questão é se o capitalismo é específico a uma época ou região geográfica particular ou se é um sistema universal, que pode existir através do tempo e do espaço.

Alguns interpretam o capitalismo como um sistema puramente econômico. Marx, no entanto, considerava que é um complexo de instituições político-econômicas que determinam as relações culturais, éticas e sociais.

No final do século XIX e início do século XX, época da Revolução Industrial, a economia capitalista vivia a fase do capitalismo competitivo, onde cada ramo de atividade era ocupado por um grande número de empresas, normalmente pequenas, que concorriam intensamente entre si. O Estado quase não interferia na economia, limitando-se apenas à manutenção e funcionamento do sistema.

A partir da Primeira Guerra Mundial, o capitalismo passou por mudanças, primeiro nos Estados Unidos, com o enriquecimento alcançado com a venda de armas aos países combatentes, ocupando, então, lugar de destaque no mercado mundial. Em alguns ramos de atividade, o capitalismo deixou de ser competitivo para se tornar monopolista. Essa transformação deu-se através de dois processos:

1. Empresas foram a falência, as maiores compraram as menores e outras se unificaram -- surgiu a sociedade anônima. As grandes empresas passaram a controlar um ramo de atividade.

2. Com as crises econômicas de 1929/1933, a Grande Depressão, o Estado passou a interferir na economia, exercendo influência em algumas atividades econômicas. Em vários países, o Estado passou a controlar os créditos, os preços, as exportações e importações, mas levando em conta os interesses das corporações e dos países que ocupavam o centro do sistema.

O capitalismo do século XX passou a enfrentar crises que se repetem a intervalos cada vez mais curtos. O desemprego, as crises nos balanços de pagamentos, a inflação, a instabilidade do sistema monetário internacional e o aumento da concorrência entre os grandes competidores levaram a essas crises cíclicas do sistema capitalista.

No final do século XX, os Estados Unidos e a Inglaterra passaram a difundir a teoria neoliberal. Segundo esta teoria, para evitar futuras crises a receita seria privatizar empresas estatais que pudessem ser substituídas com vantagens pela iniciativa privada, aperto fiscal no sentido de zerar o déficit fiscal, controle da inflação, câmbio flutuante e superávits em comércio exterior. Essa política passou por dois grandes testes: a crise dos países asiáticos e a crise da Rússia, que foram controladas com o auxílio do FMI, não sem antes destruir quase a metade de seus PIB's.

Apesar dos avanços macroeconômicos, a pobreza e a desigualdade continuam altas na América Latina, onde cerca de uma em cada três pessoas (165 milhões no total) vivem com menos de dois dólares por dia. Aproximadamente um terço da população não tem acesso à eletricidade e ao saneamento básico, e estima-se que 10 milhões de crianças sofram de desnutrição. Esses problemas não são novos. A América Latina já era a região com maior desigualdade econômica do mundo na década de 1950.

No consenso de Washington, os Estados participantes, em uma assembléia presidida pelos Estados Unidos, escolheram o capitalismo como sistema econômico legítimo, por representar os interesses liberais das empresas. Este fato está conectado ao avanço da globalização, que é a expressão dos interesses da classe empresarial dominante representada pelas multinacionais.

Assim, no final do século XX e início do século XXI, com o advento da globalização, algumas empresas que exerciam monopólio ao nível regional, começaram a enfrentar concorrência global e pressões maiores para se tornar atores do mercado globalizado. Em razão dessa concorrência surgiram fusões, onde empresas de atuação regional se fundiram para enfrentar a concorrência global. E em reação às fusões regionais, empresas globais adquiriram empresas regionais, como forma de entrar rapidamente em mercados locais.

Frutos aparentemente positivos desse processo de globalização é que empresas passaram a oferecer benefícios a seus empregados, antecipando a ação de sindicatos e governos. Benefícios como redução da jornada de trabalho, participação nos lucros, ganhos por produtividade, salários acima da média do mercado, promoção à inovação, jornada de trabalho flexível, flexibilização de jornada para mulheres com filhos, participação societária para produtos inovadores desenvolvidos com sucesso, entre outros.

Ao contrário do princípio do capitalismo, quando se acreditava que a redução de custos com recursos humanos e sua consequente exploração, traria o maior lucro possível, passou a vigorar a tese de que é desejável atrair os melhores profissionais do mercado e mantê-los motivados já que isso tornaria a empresa mais lucrativa. No entanto, o número de funcionários que se enquadram nesse modelo é insignificante diante da massa dos trabalhadores do mundo, que operam em condições precárias e recebem baixos salários.

O tratado de Veneza (1987) que abordou o investimento do Estado enquanto empresa, foi bem recebido por países do hemisfério sul e favoreceu o surgimento de alianças econômicas entre países. Além de identificar a necessidade de desenvolvimento econômico da América Latina, defendeu o término do monopólio de algumas cadeias, como a indústria automobilística, alimentícia, de tecnologia da informação e, inclusive, da produção cafeeira. A conclusão foi expandir a relação entre Estados que pouco se conectavam, como o Brasil e seus vizinhos, e criar vínculos de comércio direto e livre. Os projetos de comércio e integração do cone sul latino-americano tem no tratado de Veneza uma de suas bases.

Mas, muitos consideram que há ainda um capitalismo verde, cuja proposta é de preservar o ambiente, ser socialmente responsável e interagir na comunidade em que a empresa está inserida, o que diferenciaria a empresa em relação a concorrência e ampliaria os lucros. Há uma tendência para adoção deste modelo em empresas ocidentais, desde que tais medidas não prejudiquem a economia global, independentemente do mal que a degradação ambiental possa causar ao planeta.

É importante ver que hoje o país capitalista em maior expansão, mantendo aí todas as críticas que se faz ao capitalismo, é a República Popular da China. Mas, ao contrário das outras economias capitalistas, principalmente as ocidentais, que utilizam o livre mercado com pouca intervenção do Estado na economia, a China desenvolve uma política de intervenção na economia, restrições ao capital estrangeiro, e tem uma economia parcialmente planificada. O que nos leva a falar da China como um capitalismo de Estado.

Depois de 500 anos, é o caso de perguntar: é isso o que o capitalismo tem a nos oferecer? Por isso, voltamos ao princípio dessas reflexões. Diante dos resultados práticos do capitalismo, pense: se houvesse a possibilidade de redistribuir o enriquecimento adicional produzido entre 1988 e 2002 dos 10% mais ricos do planeta, mesmo sem tocar nas suas fortunas, teríamos duplicada a renda de 70% da população mundial.


[i] Na elaboração desse texto utilizei análise de Atílio Borón, do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO); Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo; André Comte-sponville, O capitalismo é moral?; Jeffry A. Frieden, Capitalismo global, história econômica e política do século XX; e material próprio utilizado em sala de aula.
[ii] Jorge Pinheiro é cientista da religião para as áreas de Política e Religião.

jeudi 8 mars 2012

De loiras, mulatas e negras


Há dois anos escrevi...
Por Jorge Pinheiro, de São Paulo

A marcha das mulheres explodiu estereótipos, mitos sexuais, definiu novos comportamentos e construiu cosmovisões. Essa é a mulher deste século XXI. Dilma Rousseff faz parte dessa história.

Veja o vídeo
http://www.youtube.com/watch?v=porOx00eXLg 


Colagem de Luiz Rosemberg Filho
A eleição da presidenta Dilma Roussef me levou ao passado. Ao início da alta-modernidade, expressão que prefiro ao invés de pós-modernidade, porque apesar das revoluções vividas ainda não fomos além da modernidade. E por causa da eleição da presidenta, resolvi fazer uma viagem às três últimas décadas do século XX, tempo do movimento da contracultura feminina, definidor de comportamentos e cosmovisões. E parto daí, porque foi em 1975 que a ONU instituiu o Ano Internacional da Mulher, dando força a grupos e publicações feministas, que discutiam o papel secundário que era atribuído à mulher na sociedade.

Foi a acumulação, expressão daquilo que despontava no campo de gênero, que nos deu o novo. Foi época do fazer e pensar o movimento de mulheres, agregando a participação de diferentes setores sociais, trabalhadoras da cidade, e depois do campo, intelectuais, negras, ecologistas, portadoras de deficiência, lésbicas, lideranças comunitárias e donas de casa.

E eu lembrei das loiras, mulatas e negras, que durante a ditadura militar estavam reunidas em torno da luta pela volta da democracia, por melhores condições de vida e pela alteração da condição desigual das mulheres.

Teresinha de Jesus/ Deu a queda foi ao chão/ Acudiram três cavaleiros/ Todos três, chapéu na mão. 

Uma das maneiras de se conhecer as representações que a sociedade tem da mulher, disse Rose Marie Muraro, é a análise de seus mitos sexuais. E, se quisermos compreender os mitos sexuais brasileiros, vale a pena compará-los com os de outras sociedades, como a estadunidense. Afirmava Muraro: “Quando falamos de mitos sexuais brasileiros, dois nomes nos vêm à memória: Xuxa e Vera Fischer. Xuxa, mais do que qualquer outro símbolo sexual no Brasil é a megastar no sentido americano do termo. Construiu uma imensa fortuna em cima de um império baseado no consumo de sua imagem pelas crianças brasileiras.”

E analisava tal imagem, elaborada pela TV Globo, a da boneca loura, infantil e erótica. Uma imagem que para as meninas era o modelo de feminilidade disponível e que não deixava lugar para outra alternativa, pois ocupou por anos, o espaço matinal de entretenimento nas casas brasileiras.

E como essa imagem da Xuxa (Santa Rosa, 27/03/1963) não foi construída para agradar somente às crianças, mas para ser modelo de sexualidade feminina, o fenômeno criou vetores. Os meninos ao desejá-la procuravam parecer homens maduros, absorvendo a mensagem de que a sexualidade precoce é o caminho para a masculinidade.

Se juntarmos essa imagem à de Vera Fischer (Blumenau, 27/11/1951), também loura, mas de apelo sexual adulto, podemos ver como definições começaram a ser construídas.

Ambas eram louras e, no Brasil, isso lembrava as atrizes do cinema estadunidense. E as consequências para a mulher brasileira passaram a ser muito ruins. Quase nenhuma brasileira da época tinha condições para se identificar com essas modelos e isso rebaixou a autoestima, diminuindo no imaginário seu valor no mercado sexual. Aliás, segundo Muraro, os símbolos sexuais são feitos para isso mesmo, para diminuir o valor das mulheres como mercadoria e manter intacta a dominação masculina.

Outro ponto importante na construção desse imaginário feminino era a obsessão pela juventude. Xuxa tinha pavor de envelhecer e Vera Fischer também. Esta última procurou formas perigosas de escape, quando acreditou que a juventude ia declinando. Aliás, depois dos quarenta as mulheres começavam a se sentir inseguras, porque o símbolo sexual é sempre um objeto descartável, sem vida e sem identidade.

O primeiro foi seu pai/ O segundo seu irmão/ O terceiro foi aquele que a/ Teresa deu a mão

Por isso, Xuxa, em entrevista a Regina Rito, disse que “nenhum fã perdoa quando um ídolo envelhece”. Ela tinha começado sua carreira na televisão em 1983, quando foi convidada por Maurício Sherman para apresentar o Clube da Criança, na Rede Manchete. Nessa época, trabalhava como modelo em Nova York e gravava o Clube nos finais de semana. Em 1986 estreou o primeiro programa diário com seu nome: O Xou da Xuxa, na Rede Globo.

É bom lembrar que as mulheres que se tornaram símbolos sexuais, pin-ups, dificilmente aceitavam retornar ao status de ser humano. Jean Harlow (Kansas City, 03/03/1911), Judy Garland (Grand Rapids, Minnesota, 10/06/1922), Marilyn Monroe (Los Angeles, 01/06/1926), por exemplo, acabaram morrendo nessa busca tresloucada de meios de escape à depressão causada pelo envelhecimento.

Assim, o culto da adolescência e da juventude teve papel relevante na manutenção do status quo, ou seja, do controle da experiência e do conhecimento acumulados pelas mulheres mais maduras.

E esse movimento contrarrevolucionário à emancipação feminina foi tão forte e racista que, nesses anos, quase não encontramos mulheres mulatas e negras que tivessem conquistado status de símbolo sexual. As mulatas das escolas de samba, ou mesmo Taís Araújo (Rio de Janeiro, 25/11/1978), a Xica da Silva, eram símbolos de menor força para o marketing padronizado pela mídia.

Diferente desse panorama era o que começava a acontecer nos Estados Unidos. Lá, Madonna (Bay City, 16/08/1958) criou a imagem de transgressora dos valores puritanos e de independência em relação aos desejos masculinos, que ela manipulou publicamente sem inibição. E num ritmo acelerado, tão famosas quanto Madonna despontaram duas jovens negras: a cantora e atriz Whitney Houston (Newark, 09/08/1963) e a modelo Naomi Campbell (Londres, 22/05/1970), que fez par com a loura Cláudia Schiffer (Rheinberg, Nordrhein-Westfalen, 25/08/1970) .

Quanta laranja madura/ Quanto limão pelo chão/ Quanto sangue derramado/ Dentro do meu coração. 

Assim, nos Estados Unidos foram sendo criadas alternativas de identificação feminina, com identidade própria, que rompiam os padrões patriarcais de beleza e moralidade. Esse fenômeno, em relação à mulher negra, era previsível, pois os negros emergiam como nova classe média, apesar de, na época, 25% dos homens negros acabarem presos ou assassinados, vítimas do racismo. Ainda assim, o povo negro começava a impor valores por meio da luta por direitos civis, mas também por sua potencialidade de consumo.

E as mulheres norte-americanas exerceram pressão sobre as estruturas. Em poucos anos abraçaram a causa da liberdade feminina, como forma de enfrentar a competição do mercado de trabalho. Nas universidades surgiram centenas de centros de estudos da mulher, que fizeram das questões de gênero categorias do debate teórico acadêmico. Ocuparam espaços políticos, foram eleitas para governadoras de Estado, prefeitas, e escolhidas como secretárias de Fazenda e, inclusive, secretária de Estado.

E no Brasil, derrubada a ditadura, a pressão por espaço político também cresceu. Surgiram os conselhos estaduais e municipais da condição feminina e, em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, que elaborou ações de governo em relação às mulheres.

Nas eleições de 1986, 26 mulheres foram eleitas para a Assembléia Nacional Constituinte. E, independentes de seus partidos, encaminharam propostas vindas das mulheres de todo o país para inclusão ou alteração do texto constitucional. Dessa maneira, 85% das reivindicações apresentadas pelo movimento de mulheres entraram na Constituição de 1988, ampliando como nunca antes se vira a cidadania feminina.

E, em 1996, realizou-se no Brasil uma eleição que incluiu o princípio de quotas, a fim de neutralizar a discriminação sofrida pelas mulheres nos partidos. Dessa forma, foi definido o mínimo de 20% das vagas de cada partido para candidatas mulheres.

Essa marcha explodiu estereótipos e mitos sexuais. A mulher definiu comportamentos e construiu cosmovisões. Essa é a mulher deste século XXI. Dilma Rousseff faz parte dessa história.

Dá laranja quero um gomo/ Do limão quero um pedaço/ Da menina mais bonita/ Quero um beijo e um abraço. 


Parabéns pelo 8 de março, meninas!

13/11/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor

Fontes

José Agripino de Paula, Lugar Público, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.
Sérgio Sant’Anna, A Utopia de José Agripino, Folha de S. Paulo, 23/02/1997, caderno Mais.
Terra em Transe, direção de Glauber Rocha, com Jardel Filho, Paulo Autran e José Lewgoy no elenco. O filme recebeu dois prêmios no Festival de Cannes, o da Crítica Internacional e o Buñuel.
Rose Marie Muraro, A Mulher Combate Seus Mitos, Folha de S. Paulo, 6/04/1997, caderno Mais. 

lundi 5 mars 2012

Sete anos atrás

Cinco de março... 
Há sete anos eu estava em Montpellier, onde comemorei meus 60 anos. 
Hoje, agradeço ao Eterno por estes 67 anos. 
Faça essa viagem de memórias, comigo. 
Abraços e gratidão eterna a todos amigos e amigas que estão juntos na caminhada. 
E mais que nada, aqui cabe uma declaração protestante fundante: A Deus toda a glória!

Sessenta anos em branco

Vocês sairão alegres da Babilônia, serão guiados em paz para a sua terra. As montanhas e os morros cantarão de alegria; todas as árvores baterão palmas. Onde agora só há espinheiros crescerão pinheiros, murtas aparecerão onde agora só cresce o mato. Isso será para vocês uma testemunha daquilo que eu fiz, será um sinal eterno, que nunca desaparecerá.” (Isaías 55. 12-12).

O carro era um Renault Modus, 2005, placa 420AMW60, e o patrocinador o Toninho, nosso padrinho de casamento, meu e da Naira, pelo meu aniversário de 60 anos, completados no sábado dia 5 de março. Obrigadão, padrinho!

Partimos de Montpellier, no litoral do Mediterrâneo francês em direção ao Parque Nacional de Cèvennes, às 8 da manhã de sábado, chegamos em Anduze, cidade que dá entrada à região de Cèvennes, por volta das 10 da manhã. Depois de dois cafezinhos para nós e um chá para a Paloma, para esquentar o frio, começamos a atravessar o parque, zigzagueando o vale e margeando o rio Gard.

Cenário do campo da região de Languedoc, com seus castelos, não muitos, suas fazendas e vinhas.

Arquitetura medieval em pedra, cidades que se cruza em minutos. Estradas secundárias, mas em ótimas condições. Uma delas com um aviso, «chaussées deformées», para dizer que a pista não era muito boa. Fiquei esperando buracos e desvíneis, mas nada... Apenas não era lisa como as anteriores.

Quando o vale ficou para trás e iniciamos a subida da montanha numa estrada sinuosa com precipícios à direita, Paloma teve sua primeira grande experiência deste inverno, nevava levemente. Mas, conforme subíamos, maior umidade e neve mais forte. Não houve como resistir, descemos do carro e fizemos nossa primeira guerra na neve. Foi a glória. Naira e Paloma pareciam duas crianças. A maior farra. Preocupado com a possibilidade das meninas se resfriarem, fiz as duas voltarem ao carro. Estávamos na maior alegria.




Seguimos viagem debaixo de neve e da beleza das estradas emolduradas... E logicamente os pinheiros verdes, cobertos... Como nos cartões postais de Natal. Chegamos a Florac, já lá em cima, no meio de uma nevada que caía quase forte. Entramos num restaurante muito simpático, cheio de hippies, o que parecia estranho e fora de época, afinal estamos em 2005. Tomamos chocolate quente e voltamos para o carro. Estacionei numa pequena praça e dentro do carro almoçamos. Naira tinha preparado coxa de peru assado com batatas, suco de maça e pão, que aqui é sempre um capítulo à parte. Amamos «les baguettes».

Depois do almoço, ainda em Florac, fomos visitar um castelo que no século XVII fez parte da resistência protestante. Atenção, toda a região de Cèvennes no século XVII foi um pólo das lutas pela liberdade religiosa, de pensamento e de expressão, com a presença dos primeiros huguenotes.

Nevava forte e a história cedeu lugar a uma nova e aguerrida batalha na neve, agora sem mediação ou armistício. Naira, a mãe, foi atacada sem dó nem piedade. E em nenhum momento reclamou das boladas recebidas. Reagiu à altura, sem complacência. Por fim, voltamos ao carro e seguimos viagem para Barre de Cèvennes, outra região histórica, onde o protestantismo nascente produziu «camisards» e profetas.




Mas aí tivemos o prazer de entrar na cidade debaixo de uma nevada muito forte. Em poucos minutos a neve cobriu o carro. Descemos e fomos visitar uma igreja protestante do século XVII. Eu estava emocionado pelo momento sublime do encontro com o passado heróico da fé protestante, mas também, como Naira e Paloma, inebriado pela beleza da nevasca, soprada por ventos fortes.

Assim como a neve...

A cidade inteira estava branca. Tudo branco. Guerra de neve era pouco, o momento exigia algo mais grandioso. Lembrei-me de Isaías 55, quando Deus diz que assim como desce a neve dos céus e para lá não volta, mas rega a terra, a faz produzir, brotar, dar semente ao semeador e pão ao que come, assim é a palavra Dele, que não volta, mas faz o que Ele quer e prospera no objetivo para a qual foi enviada. Agradeci a Deus pela vida, por meu ministério e pela eternidade com meu Senhor e Deus.

Um grupo de rapazes passou por nós, no meio da rua, cantando, gritando, alucinados pelo momento. Foi difícil deixar Barre de Cèvennes. Mas tivemos que fazê-lo. Eu não queria dirigir nas montanhas, à noite, debaixo de neve.

No caminho, Naira viu um mirante, grande, que se debruçava sobre o vale. Paramos mais uma vez.


Desta vez, Paloma fez o anjo. Para quem não sabe, consiste em se jogar de costas na neve de braços abertos e deitada fazer movimentos com os braços para marcar a neve. Depois, de pé, olhar e ver no branco, em branco, um anjo com suas asas abertas. E fez outro anjo... e por fim num gesto solidário, juntos, fizemos nosso primeiro boneco de neve. Na verdade, boneca, porque vestiu o gorro e o cachecol rosa da Paloma. Não era uma boneca enorme, mas muito simpática.



E lá seguimos nós, parando mais uma vez num pequeno hotel e depois fazendo o caminho de volta. Retornamos ao vale, passamos de novo por Anduze, e seguimos para Nîmes, cidade construída pelos romanos, que tem no centro uma arena, um coliseu, onde ainda se realizam corridas de touro. Quando chegamos estava acontecendo uma. Mas levei as meninas a Nîmes só para uma rápida olhada. Voltamos, já à noite para Montpellier.

Chegamos às 20h30. E como li a placa do Renault que aluguei, ao bater os olhos nela, como «60 Attends à Merveilleux Week-end 60», agradeci a Deus pelo gostoso sábado branco de meus sessenta anos, que, tocado pelo anjo nevado da Paloma, Toninho nos proporcionou. E a Deus toda a glória, pois diz: quem espera nele renova a sua força, sobe com asas como águias, corre  e não se cansa, caminha e não se fatiga

jeudi 1 mars 2012

Embaixador do Brasil no Irã pede pela vida do Pr. Youcef

Brasil intercede por pastor
A ministra-chefe da Casa Civil do governo federal Gleisi Hoffmann, informou que o embaixador do Brasil no Irã Antonio Salgado tem efetuado contatos com assessores próximos ao líder supremo do Irã, o Aiatolá Ali Khamenei, reivindicando a libertação do pastor Youcef Nadarkhani, preso e condenado à execução pelo crime de apostasia.
Mas as autoridades iranianas permanecem reticentes sobre o assunto e postergando as decisões, alegando que a questão da prisão do pastor é um problema de natureza estritamente interna ao país.
A informação foi dada pelo deputado Marco Feliciano (PSC/SP), que vem conversando com autoridades brasileiras para que elas intercedam junto ao governo iraniano em favor da libertação de Nadharkani. O Brasil tem sido apontado com uma das nações que podem intervir junto ao país do Oriente Médio por gozar de boas relações diplomáticas.
O deputado da bancada evangélica vem realizando um trabalho de mobilização desde outubro de 2010 com o governo em favor do líder religioso que sofre intensa perseguição em seu país de origem.
O sistema jurídico iraniano acrescentou à acusação de apostasia atribuída inicialmente a Nadarkhani, outros crimes de natureza sexual e consumo de álcool, o que fornece agravantes à sua situação.
Segundo a comunicação da Casa Civil, é difícil a avaliação quanto ao tempo para o desfecho do processo do líder religioso, pois os crimes atribuídos a ele são naquele país punidos com sentença de morte.
A exemplo de Sakineh Ashtiani, que em 2006 foi condenada à morte por apedrejamento pelo crime de adultério, “casos como este, que despertam repercussão internacional, costumam ter seu desenvolvimento protelado pelas autoridades judiciárias do país”, diz o comunicado eletrônico da Casa Civil.
Não é a primeira vez que o Irã adia decisões sobre execução de presos que conseguem, por meio de repercussão e pressão internacionais, ter sua pena postergada.
Sakineh Ashtiani, a iraniana condenada à morte por apedrejamento por adultério pelas autoridades iranianas foi um dos casos que provocaram indignação internacional. Sakineh permanece presa e sua sentença poderá ser mudada para enforcamento.
Na época, o então presidente Luis Inácio Lula da Silva ofereceu asilo à iraniana. O Irã decidiu suavizar o tom em relação à condenada e anunciou que poderia suspender a pena devido a “reservas humanitárias”, sem, no entanto, afastar a hipótese de execução.
A intervenção brasileira vem se somar a outras manifestações de organismos internacionais como a Casa Branca, o Departamento de Estado do EUA, a União Europeia e o secretário de Relações exteriores britânico, William Hague, que da mesma forma vem apelando pela libertação do líder religioso.
Na segunda-feira (27) foi divulgada uma declaração do porta-voz da Alta Representante da União Européia para Relações Exteriores, Catherine Ashton, pedindo a imediata libertação do pastor Nadharkani e pela suspensão de sua execução.
Veja a íntegra da declaração:
A Alta Representante expressou, em diversas ocasiões, sua séria preocupação em relação às execuções no Irã e instou o Irã a libertar o pastor iraniano Youcef Nadarkhani e outros iranianos condenados à morte por crimes que, de acordo com padrões internacionais, não deveriam resultar na pena capital. A Alta Representante está, por conseguinte, extremamente preocupada em relação a notícias de que a execução do pastor iraniano Youcef Nadarkhani, em Rasht, província de Gilan, poderia ser iminente. A execução do pastor Nadarkhani por acusação de apostasia seria outro exemplo da deterioração da situação das minorias religiosas na República Islâmica do Irã. Portanto, a Alta Representante insta a República Islâmica do Irã a respeitar seus compromissos internacionais de direitos humanos. Ela insta firmemente o Irã a não executar o pastor Nadarkhani. Ele deveria ser libertado imediatamente.”
Fonte: Christian Post