jeudi 13 décembre 2012

Terra basca e liberdade

Texto de Jorge Pinheiro e fotos de Naira Di Giuseppe, de Hendaye, França 

A história do povo basco é coberta de mistério e alguns arriscam dizer que ocuparam uma única região da Europa por muito mais tempo que qualquer outro grupo étnico. 


Foto de Naira Di Giuseppe

A Europa é um espaco de conflito de ideias e projetos civilizatórios. É e sempre foi assim. Talvez, os motivos disso sejam a presenca de culturas e povos diferentes ai instalados, a plantação beligerante dos monoteismos, cujas mensagens de paz estão embainhadas na espada, e a dificuldade para se harmonizar tanta diversidade. E a gente é obrigado a pensar nisso quando chega a Hendaye, cidadezinha linda, com apenas quinze mil habitantes, um balneário para a alegria dos turistas que se bronzeiam na praia. Situada no meio do País Basco, às portas da Espanha, Hendaye é banhada por duas águas, aquelas do oceano Atlântico e as da baía de Txingudi. A cidade é point para os esportes náuticos. E para quem gosta de natureza preservada, há o complexo de Serge Blanco e o domínio d'Abbadia.

Como disse Naira, a partir de suas perambulações pela cidade, “Hendaye é diferente do que estamos acostumados a ver em nossas passagens pela Europa. As casas tem nomes, talvez até vejamos isso em algumas cidadezinhas brasileiras, mas aqui os nomes são de qualquer modo diferentes, estão numa língua estranha para mim, em basco. As placas e indicações da cidade também aparecem em basco, mas tambem em francês. Então tentei aprender esse novo idioma, deduzir pelo francês e pela repeticão dos termos, o que era, por exemplo, `karrika´, `rua´. Outra coisa interessante, além da arquitetura e das fachadas das casas, é que está próxima a cidades de praias famosas. Biarritz, por exemplo, me parece que não está muito longe daqui. Mas Hendaye nos leva à estaçao de esqui, pois está ao sopé da montanha, nos Pirineus. E vi gente com esquis nas mãos. É claro que nesta época do ano, verão, não há neve aqui em baixo, por isso achei meio estranho o pessoal com esquis – mas lá em cima é diferente. E você vai encontrar placas: Ongi etorri Euskal mendietarat! Bienvenue dans la montagne basque! Ou seja, bem-vindo à montanha basca. E as águas da baía de Txingudi formam um belo conjunto de paisagem com a montanha ao fundo”. 

Foto de Naira Di Giuseppe

Hendaye é uma comuna francesa. Comuna na França é uma unidade territorial grande, subdividida em arrondissement, departamento e região. No caso, Hendaye fica na região administrativa da Aquitânia, no departamento dos Pireneus Atlânticos. É uma cidade basca.

A história do povo basco é coberta de mistério e alguns arriscam dizer que ocuparam uma única região da Europa por muito mais tempo que qualquer outro grupo étnico. Estrabão, no século I, disse que a região onde hoje se localiza Navarra e Aragão, a leste da atual comunidade autônoma do País Basco, era habitada pelos vascones. Embora vascones lembre bascos, não se sabe se os vascones foram de fato os ancestrais dos bascos de hoje.

O movimento nacionalista basco nortista nasceu em 1963, teve uma atuação importante na região, mas nunca alcançou mais do que 15% dos votos. Conquistou, porém, uma vitória democrática importante quando, em 1997, a região basca na França foi reconhecida como “pais” e hoje recebe o nome de “Pays Basque", com direitos culturais, mas sem orçamento próprio. Atualmene, aqui na região, cerca de 22% da população é bilíngüe, 8% é francófona que entende basco, e o restante 70% só fala francês. 

Já no sul a situação foi bem diferente, por isso remonto à Guerra Civil Espanhola. Em 1937, na metade da guerra, as tropas do Governo Autônomo Basco, para nosso incômodo histórico, se renderam em Santoña às tropas italianas aliadas ao General Franco. Essa rendição partiu de um acordo: que a indústria pesada e a economia bascas não fossem atingidas. Para a esquerda isso foi uma traição, principalmente porque soldados bascos se uniram ao exército franquista no resto das batalhas no front norte.

Depois da guerra, Franco iniciou a consolidação da Espanha como estado-nação unificado. O regime introduziu leis contra as nacionalidades, e procurou acabar com a cultura e o idioma bascos. Considerou Biscaia e Guipúzcoa províncias traidoras, aboliu a autonomia, mas Navarra e Álava mantiveram pequenos privilégios.

A oposição a essas ações criou o movimento separatista basco e a Euskadi Ta Askatasuna/ ETA, que significa Terra Basca e Liberdade. A morte de Franco e a democratização espanhola levaram à criação da região autônoma, mas a luta separatista se manteve até 2005. Hoje, o País Basco no sul tem parlamento eleito, força policial, sistema educacional, e coleta de impostos. E mais que nada, cultura e idioma livres e reconhecidos.

Voltando à viagem. Saia de Coimbra de trem, cruze parte do norte de Espanha, que tem cidades lindas, e apeie em Hendaye. Fique aí uns dias. É uma maneira deliciosa de entrar na França. Bidai ona izan! Bon voyage! Boa viagem!

Moses Pinheiro e Shabbetai Zevi

PINHEIRO, Moisés (século XVII), nascido em Izmir. Contemporâneo de Shabbetai Zevi, Pinheiro estudou literatura talmúdica e cabalística com ele em sua juventude (1640-1650). Não há indícios reais de que tenha apoiado as reivindicações messiânicas de Shabbetai Zevi, em 1648. Por volta de 1650, deixou Izmir e se estabeleceu em Livorno, onde se tornou um mestre respeitado. Foi um discípulo e divulgador do pensamento de Shabbetai na Itália. E mesmo quando este se declarou Messias, causando grande alvoroço nas comunidades judaicas, não o abandonou, embora aparentemente não tenha concordado com ele, nesta questão que foi considerada apostasia pelo judaísmo. 

Como delegado da comunidade de Livorno, foi visitar Shabbetai Zevi, no verão de 1666, no auge das discussões. Lá, conversou com Shabbetai e Nathan de Gaza, e afirmou sua convicção do erro de Shabbetai. Em março de 1667, retornou à Itália com uma delegação de três outras comunidades. Nathan ficou na casa dele, em 1668. Pinheiro, que liderou o centro shabbateano em Livorno, manteve uma correspondência com o amigo e mestre ao longo dos anos e também com Abraão Cardozo. Tal como demonstrado pelas notas de Abraão Rovigo, na discussão sobre as questões shabbateanas (Ben-Zvi Institute, Ms. 2265), até 1690 Pinheiro foi considerado um homem de fiel ao judaísmo. Alguns, porém, afirmam que posteriormente caminhou em direção à apostasia messiânica de Shabbetai, mas disso não há informações precisas. 

Seu neto, por parte da filha, Joseph Ergas foi um conhecido rabino cabalista, que se manteve em silêncio sobre as ligações shabbateanas do avô. O rabino Malaquias ha-Kohen de Livorno, disse que Ergas, seu aluno, apesar de ser um inimigo declarado do movimento shabbateano, elogia Pinheiro por sua piedade e vida ascética no seu prefácio do seu livro Ergas responsa, Divrei Yosef (1742). Várias das memórias de Pinheiro sobre Shabbetai Zevi estão preservadas. 

BIBLIOGRAFIA 
Scholem, Shabbetai Zevi, índice; J. Sasportas, Ẓiẓat Novel Zevi (1954), índice; I. Tishby, em: Zion, 22 (1957), 31-33; idem, em: Sefunot, 3-4 (1960), 93, 107; Freimann, Inyenei Shabbetai Zevi (1912), 45, 95. 
[Gershom Scholem] 

Fonte: Encyclopaedia Judaica . © 2008 Grupo Gale. Todos os direitos reservados. 


PINHEIRO, MOSES 
The unedited full-text of the 1906 Jewish Encyclopedia 

One of the most influential pupils and followers of Shabbethai Ẓebi; lived at Leghorn in the seventeenth century. He was held in high esteem on account of his acquirements; and, as the brother-in-law of Joseph Ergas, the well-known anti-Shabbethaian, he had great influence over the Jews of Leghorn, urging them to believe in Shabbethai. Even later (1667), when Shabbethai's apostasy was rumored, Pinheiro, in common with other adherents of the false Messiah, still clung to him through fear of being ridiculed as his dupes. Pinheiro was the teacher of Abraham Michael Cardoso, whom he initiated into the Cabala and into the mysteries of Shabbethaianism. 

Bibliography 
Grätz, Gesch. 3d ed., x. 190, 204, 225, 229, 312. 


mercredi 12 décembre 2012

Lições de existência

Por Jorge Pinheiro, de São Paulo


As pessoas são tocadas pelo amor. Nada sensibiliza mais o ser humano. O livro "Cantares de Salomão" compara a força do amor à força da morte, já que são dois estados definitivos. Caso você já tenha estado apaixonado ou apaixonada sabe como é.


No domingo de manhã (16/01/2011) fiz um sermão na igreja onde sou pastor, que chamei de Lições de amor. Foi um gesto de gratidão ao Eterno, um jeito de dizer eu te amo. Na introdução do sermão, lembrei um filme de 2001, Uma lição de amor, que conta a história de um pai com deficiência mental e uma filha, de sete anos, que começa a ultrapassá-lo intelectualmente. No filme, a assistente social quer levar a menina para um orfanato, alegando que ele não tem condições de criar a filha. Aí, então, parei a história e levei a congregação a ler dois textos, um de Cantares (8.6), que diz ser o amor mais forte que a morte, e outro também belíssimo, de um profeta mal compreendido e meio abandonado, Oséias (2.14-23).

Na segunda-feira, o sermão ainda permanecia na minha cabeça. E eu fiz uma ponte entre ele – as lições de amor do Eterno – e minha paixão por Ele. Tinha iniciado um texto, que pretendia transformar em prefácio do livro de um amigo, a ser lançado em breve. Nesse prefácio discorreria sobre as minhas provas da existência do Eterno, que divido em três: o “Noturno Opus 9, no. 2” de Chopin, a roda e a raiz quadrada de menos 1. Talvez, você leitor esteja achando que sou louco, o que não é mentira, mas se tiver curiosidade e paciência, vai entender o caminho que trilhei. Embora não saiba se isso vai lhe servir para alguma coisa. O que também não importa nesse momento. Enfim, as lições de amor e as minhas provas da existência do Eterno se correlacionaram, eu diria, docemente, e culminaram num texto teológico sobre a teoria da existência.

Eternidade e amor estão entrelaçados, e eu vejo isso quando sou obrigado a pensar uma teoria da existência. E, metodologicamente, como teólogo, a primeira coisa que devo me perguntar é se uma coisa existe ou não existe. E isso significa trabalhar com variáveis: uma coisa existe; uma coisa não existe; uma coisa não existe, mas já existiu, deixou de existir e não existe mais, porém poderia existir.

Devo pensar também, e essa questão é um pouco mais complexa, que a existência existe. E ainda que eu diga que existência é espaço/tempo, como não temos espaço apenas, ou tempo apenas, a existência existe, é um em-si. Não dá para dizer que a existência não existe, ela é realidade no cosmo, produz diferença no mundo. Caso não existisse a existência, então, nada existiria.

Mas, outra questão deve ser colocada: se posso falar numa teoria da existência, preciso entender que posso apreendê-la enquanto atos de conhecimento. E ato de conhecimento é uma ação consciente sobre algo que existe ou uma realidade. Por isso, os atos de conhecimento nos remetem a pessoas que são conscientes e podem conhecer a existência através de seus processos e modos.

As pessoas são tocadas pelo amor. Nada sensibiliza mais o ser humano do que o amor. Por isso, Cantares compara a força do amor à força da morte, já que são dois estados definitivos. Caso você já tenha estado apaixonado ou apaixonada sabe como é. E Oséias contou que o Eterno disse (2.14-18): “Vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor. Ali, eu devolverei a ela as suas plantações de uvas e transformarei o vale da Desgraça em porta de esperança. Então ela falará comigo como fazia no tempo em que era moça, quando saiu do Egito. Mais uma vez ela me chamará de “meu marido”, em vez de me chamar “meu senhor” (meu baal). Nunca mais deixarei que ela diga o nome baal, nunca mais ela falará desse deus. Sou eu o Senhor quem está falando. Naquele dia, farei a favor dela uma aliança com os animais selvagens, com as aves, com as cobras, para que não ataquem a minha amada. Quebrarei as armas de guerra, os arcos e as espadas. Não haverá mais guerra e o meu povo viverá em paz e segurança. Israel, eu casarei com você, e para sempre você será minha legítima esposa. Eu tratarei você com amor e carinho, e serei um marido fiel. Então, você se dedicará a mim, o Senhor. Naquele dia, serei o Deus que atende: atenderei o pedido dos céus, os céus atenderão o pedido da terra, dando-lhe chuvas. E a terra responderá produzindo trigo, uvas e azeitonas. Assim, eu atenderei as orações do meu povo de Israel. Plantarei o meu povo na Terra Prometida para que eles sejam a minha própria plantação. E eu amarei aquela que se chama Não-Amada, e para aquele que se chama Não-Meu-Povo eu direi: “Você é meu povo” e ele responderá: “Tu és meu Deus”.

Agora, com calma, vamos desconstruir o texto de Oséias e relacioná-lo com a teoria da existência.

Deslumbrar, fascinar – Um desafio da existência

“Vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor”, disse o Eterno. A travessia do deserto foi para os hebreus um tempo de intimidade com a eternidade, uma porta de esperança, diferente do vale da desgraça, onde o soldado Acã foi condenado à morte por traição. (Josué 7.24-26).

Assim, nessa correlação entre eternidade e amor, vou começar a discutir a existência a partir dos noturnos de Frederico Francisco Chopin. Esses noturnos eram cantos livres, que traduziam as experiências pessoais de Chopin e expressavam sua espiritualidade. Diria que os noturnos de Chopin são o deserto do profeta Oséias, espaço/tempo de intimidade com a eternidade.

Particularmente, sou apaixonado pelo Noturno Opus 9 no. 2, que tem a propriedade de ser uma obra de criação e pertença de um humano sensível. É peculiar, diria inédita e exclusiva. E ao dizer essas coisas, afirmo não apenas que existe, mas sou obrigado a falar de sua natureza, de sua essência. Ou seja, saber que o Noturno Opus 9 no. 2 de Chopin existe, significa dizer que não existem outros Noturnos Opus 9 no. 2. Só existe esse.

Baal, îche – Um segundo desafio da existência

Mas no sermão Lições de amor voltei a Oséias: “Ela me chamará de meu marido”, disse o Eterno. E Isaías (54:4-5), que também citei, conta que o Eterno disse: “Não temas, porque não serás envergonhada; não te envergonhes, porque não sofrerás humilhação; pois te esquecerás da vergonha da tua mocidade e não mais te lembrarás do opróbrio da tua viuvez. Porque o teu Criador é o teu marido; o Senhor dos Exércitos é o seu nome; e o Santo de Israel é o teu Redentor; ele é chamado o Deus de toda a terra”.

E mais uma vez a correlação entre amor e eternidade me remeteu a outro processo da existência, que vou analisar a partir de uma das mais simples máquinas que construímos: a roda. Todos conhecemos as suas aplicações e sabemos que crescem a cada dia: vão do uso nos transportes à utilização nas mais diferentes máquinas mecânicas. Mas é simples: caracteriza-se pelo movimento de rotação em seu interior. Em mecânica diz-se que o seu fato mais importante é determinado pela a transmissão de força, velocidade e distância, que se dá pela a relação entre o diâmetro da borda da roda e o diâmetro do eixo.

Ora, a roda nos remete ao trocadilho que Oséias fez com a palavra baal, que era o deus da fertilidade dos cananeus, mas cuja palavra significava também senhor e marido. Oséias não quer que sua amada o chame de baal, mas de îche, homem, que por extensão poderia significar também marido e herói.

Esse exemplo, o da roda, nos ajuda a entender a questão da existência, que não é uma propriedade que pertence, mas é o pertencimento a uma propriedade. Pense na roda, no conceito roda e em todas que existem ou podem existir. A existência da roda consiste em participar de relações de predicados. Assim, a existência da roda significa que pertence a propriedades ou é parte de propriedades. Nesse sentido, a existência é sempre participação na relação de predicados. Como baal ou îche.

Celebrar a imagem que transcende – O terceiro desafio da existência

“E para sempre você será minha legítima esposa”, disse o Eterno sobre sua amada. Oséias utiliza esse recurso para falar de uma aliança que transcende os predicados definidos pela existência.

Ou como o eterno disse ao profeta Jeremias (31.33-34): “Quando esse tempo chegar, farei com o povo de Israel esta aliança: eu porei a minha lei na mente deles e no coração deles a escreverei; eu serei o Deus deles, e eles serão o meu povo. Sou eu, o Senhor, quem está falando. 34 Ninguém vai precisar ensinar o seu patrício nem o seu parente, dizendo: “Procure conhecer a Deus, o Senhor.” Porque todos me conhecerão, tanto as pessoas mais importantes como as mais humildes. Pois eu perdoarei os seus pecados e nunca mais lembrarei das suas maldades. Eu, o Senhor, estou falando”.

Aqui entra o meu terceiro exemplo dessa correlação entre eternidade e amor e os desafios de uma teoria da existência: a raiz quadrada de menos 1 (-1). Como vimos, as coisas que existem tem suas propriedades. Quando alguma coisa não tem condições de ter existência comprovada ou não tem pertença/predicados, ela fica fora das leis fundamentais da lógica e da existência dos atos de conhecimento. Por isso, em matemática falamos em unidade imaginária i, enquanto solução da equação quadrática: x2+1=0, da qual decorre x2=−1.

Ou, dessa séria questão existencial x=-1, onde a unidade imaginária é i=-1. Dentro da lógica matemática não posso dizer que este número exista, ele é imaginário porque é um recurso da minha imaginação, pois não há número real cujo quadrado seja negativo. É isso é um fato. Imagina-se, então, que haja números especiais, dotados de propriedades que satisfaçam essa exigência da imaginação. E assim a matemática criou uma classe de números: os imaginários, que não são reais.

E no final do sermão voltei ao filme. O que os amigos do pai deficiente mental entendiam, e a assistente social não, era que havia entre o pai e a filha uma aliança maior, que transcendia em muito suas deficiências intelectuais, uma aliança de amor.

Dessa maneira, nessa correlação tresloucada entre amor e eternidade digo que uma teoria da existência parte de três fundamentos: (1) diferença entre existir e não existir, e que essa diferença não é um atributo, não é uma propriedade; (2) a existência não faz parte da essência de cada coisa, mas cada coisa, todas as coisas mostram diferenças entre essência/natureza e existência; (3) a mente transcende, produz representações que agregam conhecimento e constroem sentido para a existência.

Por isso, na correlação eternidade/amor, a existência deslumbra e fascina; é baal e îche; transcende e cria a imagem que alucina. Quod erat demonstrandum.

22/1/2011

Fonte: ViaPolítica/O autor

mardi 11 décembre 2012

Reforma reformanda

"Ai dos que querem que venha o Dia do Senhor ! Por que é que vocês querem esse dia? Pois será um dia de escuridão e não de luz" (Amós 5:18).


O Brasil é um país capitalista economicamente dependente e com características peculiares neste seu capitalismo, que é ter parte de sua economia estatizada, uma industrialização desigual, mas importante para um país dependente, baseado principalmente em bens de consumo duráveis e com um crescimento relativo da indústria de base e transformação. Ao mesmo tempo, mantém uma agricultura de corte tradicional, em grande parte dirigida à exportação.

No plano social essas tendências estruturais ao nível da economia tendem a criar particularidades sui generis. Algumas delas são clássicas dentro de uma economia dependente, tais como uma burguesia nacional frágil, e sem grande expressão, tanto no cenário interno, como internacional. Participação importante e crescente das indústrias transnacionais na vida do país, e uma força de trabalho assalariada que aumenta de forma desequilibrada em relação ao próprio poder burguês (incluídos aí os setores nacional e transnacional). Outro fato social, que surge como fenômeno de estrutura, é a fuga das massas assalariadas rurais em direção aos grandes centros urbanos, em busca de trabalho. Na década de 80, no Brasil, a relação cidade/campo era de 3/1 habitantes, respectivamente. Hoje esta relação passou a ser de 4 para 1. Transformando isto em número de habitantes temos 150 milhões nas cidades e 50 milhões no campo.


"Será como um homem que foge de um leão e dá de cara com um urso; ou como alguém que entra em casa e encosta a mão na parede e é picado por uma cobra" (Amós 5:19).

Ao nível político, a análise de estrutura nos dá fenômenos bem definidos, que surgem da relação das características estruturais entre fator social e fator econômico. Assim temos uma tendência estrutural a governos de tipo bonapartista que equilibram a instabilidade gerada pela crescente mão-de-obra assalariada em descompasso com a burguesia proporcionalmente frágil.




A análise de estrutura nos dá a essência, ou tipo de sociedade em que vivemos, mostrando tendências que em termos sociais são históricas, já que permanecem por décadas.


"O Dia do Senhor não será um dia de luz; pelo contrário, será um dia de trevas, de escuridão total" (Amós 5:20).

A estrela oculta do sertão


A Estrela Oculta do Sertão é um documentário de 2005, dirigido pela fotógrafa Elaine Eiger e pela jornalista Luize Valente. O tema central é a prática judaica mantida por algumas famílias do sertão nordestino,[1] juntamente com a busca de sua identidade religiosa por vários marranos[2] a partir do momento que tomam consciência de sua condição.

O documentário conta com consultoria e depoimentos da historiadora da USP Anita Novinsky, uma das maiores autoridades em inquisição no Brasil, o genealogista Paulo Valadares, e o antropólogo do Collège de France, Nathan Wachtel.

A idéia das diretoras em realizar o documentário surgiu em 2000, após ler uma matéria de jornal sobre uma vila, com menos de 800 habitantes, no extremo oeste do Rio Grande do Norte, chamada Venha-Ver. Segundo a reportagem, um rabino americano que havia estado na vila, constatou que a população mantinha costumes nem um pouco cristãos. Muitos desses hábitos já eram tão antigos que caíram em desuso há séculos dentro do judaísmo. Mantêm costumes notadamente judaicos, que acabam por denunciar sua verdadeira origem: são descendentes dos chamados cristãos-novos (marranos), judeus forçados a se converterem ao cristianismo durante o período da inquisição em Portugal, graças a um decreto do rei D. Manuel, estabelecido em 1497.

Durante a invasão holandesa ao Brasil, no século XVII, a Coroa holandesa que atuava na vanguarda do movimento de reforma do catolicismo, adota a política de acolher perseguidos religiosos de várias partes da Europa. A maioria dos judeus emigrantes que se estabelece no país vive na penúria. Com a tomada do Recife pela Holanda, esses grupos são atraídos pela oportunidade de progredir na mais rica capitania portuguesa da época, e navios fretados por judeus passam a chegar quase todo mês no Recife, evadindo-se posteriormente para o interior, após a retomada dos portugueses.

"A partir daí, começamos uma longa jornada que nos levou aos colonizadores do Brasil", afirmam as diretoras. Com 85 minutos,[3] o documentário se divide em duas partes: a primeira mostra diversos personagens como especialistas em cultura judaica, famílias que voltaram a praticar o judaísmo e famílias católicas com costumes judaicos, em diversas cidades principalmente da Paraíba e do Rio Grande do Norte.

mercredi 5 décembre 2012

Diálogo entre Carl Rogers e Paul Tillich

Revista da Abordagem Gestáltica / versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. v.14 n.1 Goiânia jun. 2008


Carl Rogers Dialogues1

Diálogo entre Carl Rogers e Paul Tillich2

(1965)


Introdução: Paul Tillich3


Paul Johannes Tillich nasceu na Prússia em 1886. Logo cedo, foi forçado a conciliar o Protestantismo tradicional de seu pai, que era ministro Luterano, com o treinamento em humanismo clássico que recebeu no gymnasia. Intrigado com essas questões, estudou teologia e filosofia nas Universidades de Berlim, Tübingen e Halle, entre 1904 e 1912. Tillich recebeu seu PhD em 1911 e foi ordenado ministro Luterano em 1912.


Depois de servir como capelão no exército alemão de 1914 a 1918 e receber a Cruz de Ferro por sua bravura, participou ativamente do movimento de criação de uma república alemã. Esse movimento desabou, no entanto, quando Hitler chegou ao poder. Como socialista religioso ativo, Tillich tentou conciliar o Cristianismo com um senso dialético de história e com questões sociais e políticas. Foi membro do corpo docente desde 1919 e professor de teologia a partir de 1924 em diversas universidades alemãs. Quando as atividades e escritos de Tillich ignoraram o regime nazista, foi despedido, em 1933, de sua cadeira de Filosofia na Universidade de Frankfurt. Ele disse posteriormente: Tive a honra de ser o primeiro professor não judeu a ser despedido de uma universidade alemã.


Seu amigo Reinhold Niebuhr estava na Alemanha neste período e convidou Tillich a juntar-se ao Union Theological Seminary, convite que Tillich aceitou prontamente, tornando-se cidadão americano em 1940. Ele permaneceu nesse seminário até a idade de se aposentar, em 1955. Em seguida, fez parte do corpo docente da Harvard University até 1963, e depois foi para a University of Chicago Divinity School, onde permaneceu até seu falecimento. Ao longo dos anos, Tillich escreveu aproximadamente 30 volumes de teologia, em alemão e inglês, incluindo diversas compilações dos seus sermões. Suas obras mais notáveis incluem: The Religious Situation (A situação religiosa, 1926; publicada em inglês em 1932); The Interpretation of History (A interpretação da História, 1936); The Protestant Era (A Era Protestante, 1948); sua magnum opus: Systematic Theology (Teologia Sistemática) em três volumes (1952, 1959, 1963), e The Courage to Be (A Coragem de Ser, 1952), que um crítico define como provavelmente sua obra-prima mais representativa e duradoura.


Ao analisar a sociedade ou o indivíduo, Tillich veio a acreditar que o conflito entre o autoritarismo religioso e a autonomia secular é, em última análise, transcendido por uma liberdade genuína fundamentada na profundidade religiosa. Ele disse em certa ocasião: As pessoas que me ouvem declaram que não entendem os símbolos cristãos que foram dados pela Igreja e sentem a necessidade de serem traduzidos para a linguagem moderna. Sua teologia buscou reconciliar as questões abstratas da religião com a experiência religiosa direta, isto é, a filosofia com a revelação. Também associou questões teológicas com disciplinas tão diversificadas como filosofia, arte contemporânea, teoria política, negócios e literatura. Um interesse antigo que se originava de sua carreira na Alemanha, e que foi mantido por toda sua vida, foi a relação entre psicanálise, existencialismo e religião. Um autor disse: Erich Fromm, Rollo May e Abraham Maslow são devedores a Tillich por alguns conceitos analíticos chave tais como a ansiedade existencial e o demônico.


Um filósofo gentil, baixo e de cabelo branco, Paul Tillich tem sido descrito como o teólogo contemporâneo mais expressivo, uma figura seminal do pensamento Protestante desse século, talvez o principal modelador do pensamento cristão moderno. Tem sido dito que o que Whitehead foi para a filosofia americana, Tillich foi para a teologia americana. Outros têm ressaltado que as filosofias de Tillich dizem respeito a todos os grupos religiosos, por que não estava apenas interpretando o Protestantismo, mas a existência humana e os inter-relacionamentos de amor, poder e justiça.


O diálogo entre Paul Tillich e Carl Rogers ocorreu em 7 de março de 1965, no estúdio de rádio e televisão da Faculdade Estadual de São Diego na Califórnia. Foi a última aparição pública de Tillich. Ele morreu em 22 de outubro de 1965.


Diálogo entre Carl Rogers e Paul Tillich



Rogers: A importância da auto-afirmação: acredito que essa é uma área onde temos a mesma opinião. Tenho ficado impressionado com o seu pensamento acerca da coragem do ser, porque encontro isso na psicoterapia; a coragem de ser alguma coisa, o risco que está envolvido no conhecer... Também gostei de sua frase a respeito do ato antimoral, discordando da auto-realização do indivíduo, e parece que ambos estamos buscando ir além de algumas tendências que são muito proeminentes no mundo moderno; a lógica positivista, a abordagem ultracientífica, a ênfase no ponto de vista mecanicista e altamente determinista que, como o vejo, torna o homem apenas um objeto tentando achar uma postura alternativa em relação à vida. Tenho curiosidade em saber se concorda que temos certa concordância quanto a questões desse tipo?4 *


Tillich: Sim, é claro. Concordo plenamente com todos esses pontos, e estou muito feliz que os enumerou para mim.


Rogers: Bem, talvez pudéssemos abordar algumas áreas em relação às quais não estou tão certo. Gostaria de saber qual é a sua opinião acerca da natureza do homem. Quando tenho sido perguntado acerca disso – acredito que alguns existencialistas entendem que o homem realmente não tem nenhuma natureza, mas para mim parece que ele tem – entendo que o homem pertence a uma espécie particular. Ele tem características da espécie. Acredito que uma dessas características é o fato de ser irremediavelmente social; entendo que ele tem uma profunda necessidade de relacionamentos. Penso que simplesmente pelo fato do homem ser um organismo, tende a ser direcional. Ele está se movendo na direção de atualizar-se5 a si mesmo. Pessoalmente, realmente sinto que o homem tem uma natureza descritível. Tenho me interessado, por exemplo, na sua discussão dos aspectos demônicos6 do homem. Não sei se você vê isso como parte de sua natureza – em qualquer nível eu estaria interessado em conhecer seu ponto de vista a respeito da natureza do homem.


Tillich: Sua pergunta é bastante ampla e requer uma resposta um pouco mais abrangente. O primeiro ponto que quero ressaltar é que o homem, definitivamente, tem uma natureza, e acredito que a melhor forma de provar isso é negativamente, ao mostrar que é impossível alguém sustentar que o homem não possui uma natureza. Penso no famoso existencialista francês, Sartre, que tem negado que o homem tenha uma natureza, e tem ressaltado que o homem é tudo que faz de si mesmo e isso é a sua liberdade. Mas, se ele diz que isso é a liberdade do homem de fazer a si mesmo, então isso, claramente, significa que ele tem a natureza da liberdade, que outras espécies não possuem. Fazer esse tipo de afirmação é – de algum modo – contraditório. Mesmo se atribuirmos ao homem o que a teologia medieval atribuía a Deus, isto é, de ser em si mesmo, e não estar condicionado a qualquer outra coisa, mesmo assim você não pode escapar da afirmação de que o homem tem uma natureza. Essa é a minha resposta para o primeiro elemento de sua pergunta, mas há mais duas e gostaria de abordá-las.


O segundo ponto é que distingo, por assim dizer, duas naturezas no homem, ou seja, uma que corretamente chamamos de sua natureza, e a outra que é uma mistura de aceitação e distorção de sua verdadeira natureza. A primeira chamaria, com um termo bem vago, sua verdadeira natureza, mas para torná-lo menos vago, geralmente a chamo de sua natureza essencial. Se eu me expressar num vocabulário teológico, a chamo de natureza criada do homem, e você lembra que esse foi um dos pontos principais sobre o qual a igreja primitiva enfrentou grandes discórdias – a saber, que a natureza essencial ou criada do homem é boa. De acordo com a palavra da Bíblia: E Deus viu tudo o que tinha criado...7 . Há uma afirmação ainda mais filosófica, reformulada desse aspecto por Agostinho, que é: Esse qua esse bonum est, que quer dizer em inglês: being as being is good 8 . Agora, isso é o que chamaria de natureza essencial do homem e então, a partir disso, devemos diferenciar a natureza existencial do homem da qual, eu diria, que ela tem uma característica de ser alienada de sua verdadeira natureza. O homem, tal como é no tempo e espaço, na biografia e na história, esse homem não é simplesmente o oposto da natureza essencial do homem, porque então não seria mais homem. Mas sua natureza temporal, histórica, é uma distorção de sua natureza essencial, e ao tentar alcançá-la, pode estar contradizendo sua verdadeira natureza. É uma tremenda mistura, e para entender a verdadeira dificuldade humana, devemos diferenciar esses dois elementos. Acredito que em Freud, ele próprio, e em grande parte do freudismo e na psicoterapia em geral, não há uma clara distinção entre esses dois pontos. Esse foi seu segundo elemento. Agora devo também responder seu terceiro elemento...?


Rogers: Primeiro... deixe-me fazer um comentário a esse respeito. Descobri no meu trabalho como terapeuta, que quando consigo criar um clima de máxima liberdade ao outro indivíduo, posso realmente confiar nas direções que ele vai seguir. Ou seja, as pessoas às vezes dizem para mim: E se você criar um clima de liberdade? Um homem pode usar tal liberdade para se tornar completamente mau ou anti-social. Não acredito que isso seja verdade, e essa é uma das coisas que me fazem sentir que – não sei se essencialmente ou existencialmente – em relação à verdadeira liberdade, o indivíduo tende a ir em direção a, não somente uma auto-compreensão mais profunda, mas a um comportamento mais social.


Tillich: Sim, aqui eu colocaria um ponto de interrogação, e perguntaria em primeiro lugar: quem é livre o suficiente para criar essa situação de liberdade para os outros? E visto que chamo essa mistura de natureza essencial do homem e sua alienada natureza ambígua – o domínio da ambigüidade da vida – eu diria sob essa condição de ambigüidade, que ninguém é capaz de criar essa esfera de liberdade. Mas agora vamos supor que ela exista de alguma forma diferente. Posso abordar esse assunto mais tarde quando falarmos a respeito do demônico. Então continuaria dizendo que o indivíduo que vive em tal grupo social no qual a liberdade lhe é dada, permanece uma mistura ambígua entre ser essencial e existencial. Ele está, como a linguagem inglesa expressa de forma tão bela, in a predicament9 , e esse problema é uma alienação universal e trágica do verdadeiro ser de alguém. Portanto, não acredito que está no poder do indivíduo usar sua liberdade na forma como deveria – a saber, cumprindo suas próprias potencialidades essenciais, ou essencialidades; essas duas palavras aqui têm o mesmo significado. Então sou mais cético, tanto acerca da criação de tal situação quanto dos indivíduos que se encontram nessa situação.


Rogers: Eu concordo quanto à dificuldade de criar uma liberdade completa. Estou certo que nenhum de nós poderá criar isso para outra pessoa na sua integralidade... No entanto, o que me impressiona é que mesmo tentativas imperfeitas de criar um clima de liberdade e aceitação e entendimento parecem liberar a pessoa para mover-se em direção a alvos sociais. Não sei se é o seu pensamento acerca do aspecto demônico que faz com que coloque um ponto de interrogação aqui.


Tillich: Agora, deixe-me primeiro responder acerca do que você acabou de dizer, e aqui concordo plenamente. Eu diria que há atualizações fragmentárias na história e concordo especialmente com o profundo insight que obtivemos, em grande parte pela psicoterapia, acerca da tremenda importância do amor nas primeiras fases do desenvolvimento infantil. Então perguntaria: Onde estão as forças que criam uma situação na qual a criança recebe esse amor que dá a ela, posteriormente, a liberdade de encarar a vida e não de escapar dela por meio de neuroses e psicoses? Deixo essa questão em aberto.


Mas agora você está interessado acerca do demônico, e você não é o único. Eu mesmo estive interessado, e todos de certa forma, então me deixe relatar como cheguei a esse conceito. Escrevi no ano de 1926, quando ainda era professor na Universidade de Dresden, na Alemanha, um pequeno artigo, um pequeno panfleto, chamado O Demônico, e o motivo para não falar do homem caído ou do homem pecaminoso ou qualquer uma dessas frases era que via de dois pontos de vista estruturas que são mais fortes do que a boa vontade do indivíduo, e uma dessas estruturas era a estrutura neurótico-psicótica. Tive contato, depois da Primeira Guerra Mundial, desde 1920, com o movimento psicanalítico, vindo de Freud naquela época, mudando o clima do século inteiro – já na Europa daquele tempo. O segundo foi a análise dos conflitos da sociedade pelo movimento socialista e especialmente pelos escritos iniciais de Karl Marx, e em ambos os casos, encontrei um fenômeno para o qual esses termos tradicionais, como homem caído e homem pecaminoso, não são suficientes. O único termo adequado que encontrei foi o uso pelo Novo Testamento do termo demônico, que se encontra nas histórias acerca de Jesus: similar ao estar possesso. Isso significa uma força, debaixo de uma força, que é mais forte do que a boa vontade do indivíduo. Por esse motivo usei esse termo. Quero deixar bem claro que não me refiro a um sentido mitológico – como pequenos demônios ou o próprio Satanás correndo pelo mundo – mas me refiro a estruturas que são ambíguas, ambas, até certo ponto, criativas, mas, em sentido último, destrutivas. Essa é a razão por ter introduzido esse termo. Assim, em vez de falar apenas de uma humanidade alienada, e não usando a terminologia antiga casualmente, tive de achar um termo que abrangesse o poder interpessoal que se apodera dos homens e da sociedade; dos homens em estágios, por assim dizer, da embriaguez, ser um embriagado e não ser capaz de superá-la, ou produzindo uma sociedade na qual ocorrem conflitos entre classes ou, como ocorre hoje no mundo inteiro, conflitos de grandes ideologias, de grandes formas de crenças políticas que se debatem umas com as outras – e cada passo para superá-las geralmente tem como conseqüência, empurrar as pessoas cada vez mais para dentro delas. É isso que quero dizer com o demônico. Assim, espero que tenha deixado uma coisa clara: que não tinha em mente o antigo sentido mitológico que, é claro, precisa ser desmistificado.


Rogers: [...] E, certamente quando olho para algumas coisas que estão acontecendo no mundo do ponto de vista do poder e assim por diante, posso ver por que você poderia pensar em termos de estruturas demoníacas.


Gostaria de falar um pouco acerca da forma como vejo essa questão da alienação e do distanciamento. Parece-me que o infante não é alienado por si só. Parece-me que a criança é um organismo completo e integrado, gradualmente individual, e que a alienação que ocorre é algo que ela aprende – que para preservar o amor dos outros, dos pais geralmente, ela toma para si algo que experimentou por si próprio, o julgamento de seus pais: semelhante ao pequeno garoto que foi repreendido por ter puxado o cabelo da irmã e sai por aí dizendo: menino mau, menino mau. Enquanto isso, ele volta a puxar o cabelo dela novamente. Em outras palavras, ele fez uma introjeção da noção de que ele é mau, quando na verdade está gostando da experiência, e é essa alienação entre o que está experimentando e os conceitos aos quais está ligado com o que ele está experimentando que, me parece, constituem a alienação básica. Não sei se você quer comentar a esse respeito [...]


Tillich: Sim, eu gostaria. A criança é uma questão muito importante. Chamo isso em termos filosóficos, ou, melhor, psicológicos, o estado mitológico de Adão e Eva antes da Queda: a inocência sonhadora. Ainda não alcançou a realidade; ainda está sonhando. É claro, isso também é um símbolo, mas é um símbolo que está mais próximo da nossa linguagem psicológica do que a Queda de Adão e Eva, mas significa a mesma coisa, e significa que Adão, a saber, o homem – o hebraico Adão significa homens – esses homens, cada homem, está no processo de transição da inocência sonhadora para a auto-atualização consciente, e nesse processo, a alienação também toma parte, bem como a realização; esse é o motivo do meu conceito de ambigüidade. Concordo com você que há também naquilo que os pais costumavam chamar de menino mau ou menina má, um ato de auto-realização necessário, mas também há algo de anti-social nisso, porque isso machuca sua irmã e, por isso, precisa ser reprimido, e quer digamos menino mau, ou o impedimos de qualquer outra forma, isso é igualmente necessário, e essas experiências significam para mim o lento processo de transição da inocência sonhadora para a realização própria de um lado e auto-alienação do outro, e esses dois atos são ambiguamente mesclados. Essa seria a minha interpretação da situação das crianças.


Rogers: Bem, concordo com boa parte do que você disse. Gostaria de dizer um pouco a respeito do tipo de relacionamento em que, acredito, a alienação humana pode ser curada, de acordo com a minha própria experiência. Por exemplo, quando conversamos a respeito de – quando um de nós fala a respeito da coragem de ser ou da tendência de se tornar si mesmo, sinto que, talvez, isso só possa ser completamente alcançado em um relacionamento. Talvez o melhor exemplo do que estou falando é que acredito que uma pessoa somente pode aceitar o inaceitável em si mesma quando está em um relacionamento íntimo no qual experimenta aceitação. Isso, eu penso, é em grande parte o que constitui a psicoterapia – que o indivíduo percebe que os sentimentos dos quais tinha vergonha ou que não era capaz de admitir em sua consciência, são sentimentos que podem ser aceitos por uma outra pessoa; então ele se torna capaz de aceitá-los como parte de si mesmo. Não conheço muito bem a sua opinião acerca de relacionamentos interpessoais, mas gostaria de saber como isso soa para você.


Tillich: Acredito que você está absolutamente certo ao dizer que a experiência mútua de perdão, ou melhor, de aceitação do inaceitável, é uma precondição necessária para a auto-afirmação. E você não consegue perdoar a si mesmo, você não pode aceitar a si mesmo. Se olhar no espelho espiritual, então você está muito mais propenso a odiar a si mesmo e a estar aborrecido consigo mesmo. Assim, acredito que todas as formas de confissão nas igrejas, e as confissões entre amigos e pessoas casadas – e igualmente a confissão sacro-analítica dos níveis mais profundos de uma pessoa que se tornam acessíveis ao analista – que sem essas coisas, não há possibilidade de experimentar algo que pertence em última instância a uma outra dimensão: a dimensão do fim último, se me permite chamá-la preliminarmente assim. Mas eu diria, com você, que somente a aceitação correta é o ambiente pelo qual o homem necessariamente tem de passar – do homem para o homem – antes que a dimensão do fim último seja possível. Posso acrescentar aqui que tenho evitado usar a palavra perdão, porque ela, com freqüência produz uma superioridade nociva naquele que perdoa e a humilhação daquele que é perdoado. Por isso, prefiro o conceito da aceitação. Se você aceitar essa aceitação, então acredito que posso confessar que a tenho aprendido da psicanálise. Tenho aprendido a traduzir um conceito ideológico que já não mais comunica e o tenho substituído pela forma pela qual o psicanalista aceita seus pacientes: não julgando-os, não dizendo em primeiro lugar que deveriam ser bons, diferentemente não posso aceitá-lo, mas aceitando-o exatamente porque não é bom, mas ele tem alguma coisa dentro dele que quer ser bom.


Rogers: Certamente em minha própria experiência, o potencial de aceitação da outra pessoa tem sido demonstrado repetidas vezes, quando um indivíduo sente que ele é tanto plenamente aceito em tudo que é capaz de expressar como ainda é estimado como pessoa. Isso tem uma influência muito grande sobre a sua própria vida e seu comportamento.


Tillich: Sim, acredito que esse aspecto é realmente o centro do que chamamos de boas novas na mensagem cristã.


[Pausa]


Tillich: O ministro, que representa o sentido supremo da vida, pode ter muita habilidade inconscientemente, embora seja não seja especialista, e mesmo assim não deve considerar-se um psicoterapeuta de segunda linha. Isso me parece ser uma regra muito importante. Caso contrário, a cooperação redundaria em pequenas catástrofes e chegaria a um fim.


Rogers: Bem, isso provoca em mim uma questão mais profunda. Compreendo muito bem que eu e muitos outros terapeutas estamos interessados em questões que envolvem o trabalhador religioso e o teólogo, e mesmo assim, para mim, prefiro pensar nessas questões em termos humanísticos ou abordar essas questões através dos canais da investigação científica. Acho que tenho uma verdadeira afinidade com o ponto de vista moderno que é simbolizado de certa forma na frase que diz Deus está morto; ou seja, que a religião já não mais fala às pessoas no mundo moderno, e estaria interessado em saber por que você tende a fundamentar seu pensamento – que é certamente apropriado a um bom número de psicólogos hoje em dia – em uma terminologia religiosa e uma linguagem teológica.


Tillich: Acredito que essa é uma questão muito complexa [...]


Rogers: Sim, certamente [...]


Tillich: [...] e poderia tomar todo o nosso tempo, por isso gostaria de me ater a apenas alguns pontos. Em primeiro lugar: aqui o ponto fundamental é que eu acredito, falando de maneira metafórica, que o homem não vive apenas na dimensão horizontal, isto é, o relacionamento dele mesmo como ser finito com outros seres finitos, observando-os e lidando com eles, mas ele também tem algo em si mesmo que chamo, metaforicamente, de linha vertical; uma linha não para um céu com Deus e outros seres nele; mas o que quero dizer com a linha vertical está relacionado com algo que não é transitório e finito; algo que é infinito, incondicional, último – geralmente digo isso. O homem tem uma experiência em si mesmo que é mais do que um pedaço de objetos finitos que vêm e vão. Ele experimenta algo que vai além de espaço e tempo. Não falo aqui – preciso ressaltar isso em palestras repetidas vezes – em termos de vida após a morte, ou em outros símbolos que não podem mais ser usados dessa forma, mas falo da experiência imediata do temporal, do eterno no temporal, ou do temporal invadido pelo eterno em alguns momentos de nossa vida e da vida junto com outras pessoas e da vida em grupo. Essa é para mim a razão pela qual procuro continuar interpretando os grandes símbolos religiosos tradicionais como relevantes para nós: porque eu sei, e esse foi o outro ponto que você mencionou, que eles se tornaram em grande parte irrelevantes, e que já não podemos mais usá-los como são usados, em larga escala, nas pregações, no ensino religioso e nas liturgias, por pessoas que conseguem viver de acordo com esses símbolos, que não são alienados deles por uma análise crítica, mas para o grande número de pessoas, que você chama de humanistas, precisamos de uma tradução e interpretação desses símbolos, mas não, como você parece indicar, uma substituição. Não acredito que a linguagem científica seja capaz de expressar a dimensão vertical de maneira adequada, porque está presa ao relacionamento de coisas finitas entre si, mesmo na psicologia e certamente em todas as ciências físicas. Essa é a razão porque penso que precisamos de outra linguagem e essa linguagem é a linguagem dos símbolos e mitos; é uma linguagem religiosa. Mas nós pobres teólogos, em contraste com vocês, psicólogos venturosos, estamos diante da desagradável situação, de sabermos que os símbolos com os quais lidamos precisam ser reinterpretados e até mesmo radicalmente reinterpretados. Mas tenho tomado esse pesado jugo sobre mim e decidi há muito tempo continuar com ele até o fim.


Rogers: Bem, percebi que, enquanto você falava, eu possuo uma sorte de fantasia dessa dimensão vertical, em que não vou subindo, mas descendo. O que quero dizer é o seguinte: eu sinto, por vezes, que quando estou realmente ajudando um cliente meu, em um daqueles raros momentos quando existe uma aproximação da relação Eu-Tu entre nós, e quando sinto que algo significante está acontecendo, então sinto que estou de alguma forma, afinado com as forças do universo ou que as forças estão operando através de mim nesse relacionamento de ajuda que – bem, acho que sinto um pouco daquilo que o cientista sente quando é capaz de dividir o átomo. Ele não o criou com suas pequenas mãos, mas ele, não obstante, colocou-se na fila com as forças significantes do universo e, dessa forma, foi capaz de precipitar um acontecimento significativo. Acredito que meus sentimentos, muitas vezes, são semelhantes, ao lidar com um cliente, quando realmente estou sendo útil.


Tillich: Estou muito grato com o que acabou de dizer. Agora, as primeiras palavras foram especialmente interessantes para mim, quando disse que uma linha vertical sempre tem um movimento para cima e para baixo. E talvez se surpreenda em ouvir de mim que sou acusado com freqüência, por meus colegas teólogos, que falo demais acerca do movimento para baixo, em vez do movimento para cima; e isso é verdade. Quando quero dar um nome a algo com o qual estou, em última instância, preocupado, então o chamo de o fundamento do ser e fundamento é, claro, para baixo, e não para cima – assim, vou com você para baixo. Agora a pergunta é: Para onde vamos? Aqui novamente senti que poderia ir longe com você quando usa o termo universo, forças do universo, mas quando falo de fundamento do ser, não entendo essa profundidade do universo em termos de um acréscimo de todos os elementos no universo, de todas as coisas singulares, mas, como muitos filósofos e teólogos fizeram, o fundamento criativo do universo, de onde todas essas formas e elementos surgem: chamo isso de fundamento criativo. E esse foi o segundo ponto que me deixou feliz. Esse fundamento criativo pode ser experimentado em tudo que é enraizado no fundamento criativo. Por exemplo, em um encontro pessoa-a-pessoa – e eu tive sem ser um analista, mas em muitas formas de encontro com seres humanos, experiências muito similares com aquelas que você teve – existe algo presente que transcende a realidade limitada do Tu e do Ego do outro e do meu, e eu, às vezes, o chamei, em momentos especiais, de a presença do sagrado, em uma conversa não-religiosa. Isso eu posso experimentar e, de fato, experimentei, e eu concordo com você.


Finalmente, havia um terceiro ponto acerca dos cientistas e, com freqüência, digo a meus amigos cientistas que eles seguem piamente o princípio formulado por Tomás de Aquino, o grande teólogo medieval: se você sabe alguma coisa, então sabe algo acerca de Deus. E eu concordo com essa afirmação – e, portanto, esses homens também têm uma experiência do que gosto de chamar de linha vertical, para baixo e talvez para cima, embora o que eles fazem ao dividir átomos é descobrir e lidar com relações finitas entre si.


Rogers: Gostaria de mudar para outro tópico que tem sido de meu interesse e suspeito também possa ser do seu interesse. É a questão do que constitui uma pessoa ótima10. Em outras palavras, qual é o nosso objetivo quando estamos trabalhando, quer na terapia ou na religião? Pessoalmente, tenho uma definição bastante simples, mas que acredito ter diversas implicações positivas. Sinto que estou satisfeito em meu trabalho de terapeuta quando descubro que meu cliente e eu, também, estamos – se ambos estamos nos dirigindo para o que penso ser uma maior abertura à experiência. Se o indivíduo se torna mais capaz de ouvir o que está acontecendo dentro dele, mais sensível às reações que está tendo em determinada situação, se tem uma percepção mais aguçada do mundo ao seu redor – tanto do mundo da realidade quanto do mundo dos relacionamentos – então acredito que meu sentimento será de satisfação. Essa é a direção que gostaria de estar indo, porque então ele estará no processo – em primeiro lugar, estará no processo o tempo todo. Isso não é um alvo do tipo estático para um indivíduo, e ele estará no processo de se tornar mais completo a si mesmo. Ele também se tornará realista, no melhor sentido do termo, quando for realista em relação àquilo que está acontecendo dentro dele mesmo, bem como realista acerca do mundo, e acredito que ele também estará em processo de se tornar mais social simplesmente porque um dos elementos que certamente ocorrerá nele mesmo é a necessidade e o desejo por relacionamentos humanos mais próximos; assim, para mim, esse conceito de abertura para a experiência descreve em boa parte o que gostaria de ver na pessoa ótima, quer estejamos falando da pessoa que emerge da terapia, ou do desenvolvimento de um bom cidadão, ou um outro cenário qualquer. Gostaria de saber se você teria algum comentário a esse respeito, ou seu próprio ponto de vista nessa área.


Tillich: Sim, gostaria de salientar dois aspectos. O primeiro é o caminho – isto é, abertura – e o outro é o propósito. Esse, é claro, não é um propósito estático, nem um propósito dinâmico, mas é um objetivo. Permita-me falar acerca desses dois aspectos: a abertura é uma palavra muito familiar para mim porque há muitas questões feitas a um teólogo e que somente podem ser respondidas através do conceito de abertura, ou de um abrir-se. Vou dar dois exemplos. Um primeiro exemplo é a função de símbolos clássicos e dos símbolos em geral. Eu sempre costumo dizer: Símbolos abrem, eles abrem uma realidade e abrem algo em nós. Se essa palavra não fosse proibida na universidade dos nossos dias, eu a chamaria de algo em nossa alma, mas você sabe como psicólogo, como alguém que lida com a alma, que a palavra alma é proibida nos contextos acadêmicos. Mas é isso que os símbolos fazem, e eles não o fazem somente a indivíduos, mas também a grupos e geralmente somente por meio de grupos aos indivíduos – então essa é uma das maneiras que eu uso a palavra abrir. Essa parece ser para mim uma das principais funções, talvez a principal função dos símbolos – ou seja, abrir. O outro uso da palavra abrir é quando me perguntam: O que eu posso fazer para experimentar Deus ou receber o Espírito Divino? ou perguntas desse gênero. Minha resposta é: A única coisa que vocês podem fazer é manter-se a si mesmos abertos. Vocês não podem forçar Deus a descer, nem podem produzir o Divino Espírito em vocês mesmos, mas o que vocês podem fazer é abrir-se, manter-se abertos para Isso. Isso é, na sua terminologia, uma experiência particular, mas devemos nos manter abertos a todas as experiências. Assim, eu concordaria plenamente com a sua forma de descrever esse aspecto. Eu até acreditaria que em todas as experiências, existe a possibilidade de se ter uma experiência última.


Então, o propósito: o propósito são os múltiplos desdobramentos que discutimos. Talvez pudéssemos concordar acerca da compreensão do nosso verdadeiro eu, trazendo para a realidade o que é essencialmente dado a nós; ou, quando falo em simbolismo religioso, poderia dizer: Tornar-se da forma como Deus nos vê, em todas as nossas potencialidades. E agora, de forma prática, vem a próxima e muito importante questão. Você também indicou algo a esse respeito: a saber, de se tornar social. Acredito que isso é parte de um conceito mais amplo. Eu o chamaria de amor, no sentido da palavra grega ágape, que é uma palavra singular no Novo Testamento e que significa o amor descrito por Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios 13, e que aceita o outro como uma pessoa e então busca reconciliar-se com ela e a vencer as barreiras da separação, da separação existencial, que existe entre as pessoas. Com esse propósito, eu certamente concordaria; mas acrescentaria, é claro, visto que falo também em termos de dimensão vertical, que é o ater-se a essa dimensão de manter na fé voltada para um sentido último de vida, e a absoluta e incondicional seriedade quanto à direção desse objetivo de vida último. Então, se eu puder agora falar em termos populares, o que é sempre muito perigoso, eu diria: fé e amor são os dois conceitos que são necessários, mas fé não no sentido de crenças, mas no sentido de estar relacionado à dimensão do último, e amor não no sentido de qualquer sentimentalismo, mas no sentido de afirmar a outra pessoa e mesmo a nossa própria pessoa, porque eu concordo com Agostinho, Erich Fromm e outros, que há uma justificada auto-afirmação e auto-aceitação. Pessoalmente, não usaria o termo amor próprio – isso é muito difícil – mas auto-afirmação e auto-aceitação, um das coisas mais difíceis de alcançar.


Rogers: Bem, percebo que gosto mais quando você se torna concreto; isto é, quando o coloca em termos de fé e amor. Esses podem ser conceitos muito abstratos, que podem ter diversos significados, mas colocar isso de forma concreta – sim, realmente sinto que a pessoa de fato poderá obter uma verdadeira apreciação de si mesmo, caso venha a afirmar-se de uma forma saudável e útil. Há mais um corolário para essa noção de ser aberto à experiência que podemos explorar brevemente. Para mim, o indivíduo que é razoavelmente aberto à sua experiência está envolvido em um processo contínuo de avaliação; isso é, penso que – percebo que deixei de lado a noção de valores no sentido convencional de existirem certos valores que você poderia enumerar, e esse tipo de coisa – mas, me parece que o indivíduo que está aberto para sua experiência está continuamente avaliando cada momento e avaliando seu comportamento a cada momento, percebendo se está relacionado com sua própria auto-satisfação, sua própria atualização, e que é esse tipo de processo de avaliação que para mim faz sentido em uma pessoa madura. Isso também faz sentido em um mundo onde toda situação está mudando tão rapidamente que sinto que listas comuns de valores estão provavelmente não mais tão apropriadas ou significativas como eram em períodos passados.


Tillich: Sim. Agora sou um crítico sincero da filosofia dos valores, assim, certamente concordo com você. Substituo essa coisa pelo meu conceito de ágape, ou amor – ou seja, o tipo de amor que escuta. Eu chamo-o de amor ouvinte, que não segue avaliações abstratas, mas está relacionado com a situação concreta e no escutar desse mesmo instante, ele ganha decisão para ação e seu sentimento interior de satisfação e até mesmo alegria ou descontentamento e má consciência.


Rogers: Gosto daquela frase porque acho que poderia ser uma escuta interior, uma escuta a si mesmo, bem como um amor que escuta o outro indivíduo...


Tillich: Sim, quando eu disse sobre escutar a situação, quero dizer que a situação é constituída de tudo ao meu redor e de mim mesmo; então, o amor ouvinte está sempre ouvindo as duas posições.


Rogers: Sinto que não estamos muito distantes em nossos pensamentos acerca dessa abordagem do valor; eu achei que poderíamos estar mais distantes do que parecemos estar. Mas, uma outra questão: eu sinto que a pequena criança é um bom exemplo do processo de avaliação que está acontecendo continuamente. Ela não está perturbada pelos conceitos e padrões que têm sido criados para adultos, e ela está continuamente avaliando sua experiência seja para seu melhoramento ou estando oposto a essa atualização.


Tillich: Agora, essa avaliação, claro, não seria uma avaliação intelectual, mas uma avaliação com todo seu ser.


Rogers: Eu penso nisso como um processo de avaliação organísmica.


Tillich: Isso significa uma reação de todo seu ser, e certamente acredito que isso é uma descrição adequada.



Tradução: Marcos Ricardo Janzen

Revisão Técnica: Gustavo Vieira da Silva e Adriano Holanda


1 Nossos mais sinceros agradecimentos aos editores Howard Kirschenbaum e Valerie Land Henderson, bem como a Natalie Rogers, pela gentileza de autorizar a tradução do presente diálogo.
2 Originalmente publicado em Carl Rogers: Dialogues, Edited by Howard Kirschenbaum & Valerie Land Henderson, Houghton Mifflin Company, Boston, 1989 (pp. 64-78).
3 Introdução dos editores na publicação original (Nota de Tradução).
4 Paul Tillich and Carl Rogers: A Dialogue, Pamphlet. San Diego, California: San Diego State College, 1966. O panfleto aparenta ter sido levemente revisado, uma vez que os começos e os términos são um tanto abruptos (Nota no original em inglês).
5 Tanto Paul Tillich quanto Carl Rogers fazem uso do verbo inglês actualize em suas construções teóricas. Nas traduções de Rogers feitas no Brasil convencionou-se traduzir tal termo por atualizar, o que na tradição humanista vai desembocar em atualização ou auto-atualização. Já no caso das traduções de Paul Tillich são encontradas duas possibilidades de tradução: atualizar ou efetivar. Esta última opção é encontrada, por exemplo, na última tradução de sua Teologia Sistemática (2005, São Leopoldo: Sinodal) (Nota de tradução).
6 A tradução do termo demonic por demônico é uma convenção empregada nas traduções das obras de Paul Tillich para o português. Este termo é utilizado com um significado bastante próprio na teologia de Tillich e será melhor explicado na continuidade deste diálogo (Nota de tradução).
7 Gênesis, 1:31 (Nota de tradução).
8 Ser como ser é bom (Nota de tradução).
9 Em apuros (Nota de tradução).
10 Aqui Rogers utiliza a expressão optimal person, que designa o que chama de funcionamento pleno ou pessoa em funcionamento pleno. Refere-se a um funcionamento ótimo da pessoa, sendo que o qualitativo ótimo, aqui, não representa uma idealidade, mas uma possibilidade objetiva da terapia (Nota de tradução).


Nota Biográfica


Paul Tillich (1886-1965) era teólogo de origem alemã, contemporâneo de Karl Barth e um dos mais influentes teólogos protestantes do século XX. Em 1933 emigra para os Estados Unidos, onde leciona em diversas instituições, como o Union Theological Seminary e a Columbia University. Dentre sua vasta obra, alguns títulos estão traduzidos para o português, como seus textos mais conhecidos A Coragem de Ser (São Paulo: Paz e Terra) e Teologia Sistemática (São Leopoldo: Sinodal). Outras traduções: Paul Tillich. Textos Selecionados (São Paulo: Fonte Editorial); Dinâmica da fé (São Leopoldo, RS: Editora Sinodal); História do pensamento cristão (São Paulo: ASTE); Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX (São Paulo: ASTE); A Era Protestante (São Bernardo do Campo: Traço a Traço Editorial); e Amor, poder e justiça (São Paulo: Novo Século).


Carl Ramson Rogers (1902-1987) era psicólogo, humanista e cientista brilhante. Criador da terapia centrada no cliente, fez com que seu pensamento transcendesse as fronteiras da clínica psicoterapêutica, constituindo-se nos mais diversos campos de aplicação. Com isto, criou os Grupos de Encontro, o Ensino Centrado no Estudante, até sua abordagem ser conhecida por Abordagem Centrada na Pessoa. Seu interesse por Teologia se deve ao fato de haver seguido cursos no Union Theological Seminary, onde Tillich lecionou, entre 1924 e 1926, de onde migra para o Teachers College da Columbia University. Grande parte de sua obra está traduzida para o português, com destaque para seu livro mais conhecido Tornar-se Pessoa (São Paulo: Martins Fontes). Temos ainda as seguintes traduções: Grupos de Encontro; Psicoterapia e Consulta Psicológica; Sobre o Poder Pessoal; O Tratamento Clínico da Criança-Problema e Carl Rogers. O Homem e suas Idéias (pela editora Martins Fontes, São Paulo); Um Jeito de Ser e A Pessoa como Centro (pela E.P.U.); além de Em Busca de Vida (Summus); Quando Fala o Coração (Vetor); Novas Formas de Amor (José Olympio); Abordagem Centrada na Pessoa (Editora da UFES); O Homem e a Ciência do Homem; Psicoterapia e Relações Humanas e Liberdade para Aprender (Interlivros) e Liberdade para Aprender em Nossa Década (Artes Médicas).


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mardi 27 novembre 2012

Até naqueles dias

Por Jorge Pinheiro

Uma das temáticas do humano é a presença do Espírito e sua correlação com o Cristo, pois a humanidade é emancipada por esta correlação. Temos, através do Espírito, uma humanidade emancipada, esperançosa e exultante. Traçado o curso da humanidade, no qual o presente triunfa, os humanos experimentam o livramento da alienação. Ou como canta Maciel Melo, em “Até Naqueles Dias”.

“Eu não consigo viver sem seu dengo, meu amor
É bom demais estar com você
Acho bonito, acho muito lindo
Ver você sorrindo, ouvir você dizer
Que eu sou dengoso e meio desligado
Que sou descarado e não sabe o porquê
Me ama com tanto xamego”.

O desejo de Eterno pode ser sintetizado na ceia do Cristo, no seu sofrimento, mas também na alegria da ressurreição. Quando o humano cresce no presente se reveste de semelhança. Comer o pão juntos, na comunidade da fé, é ato afetivo e de cuidado com a humanidade machucada. Por isso, quando o Cristo olhou a humanidade, ficou com misericórdia porque ela estava abandonada e aflita. Daí que vamos bailar algumas idéias sobre a ceia do Cristo.

A teologia diz que há salvação para aqueles que estão no Cristo. O Espírito da vida no Cristo é a vida liberta do destino de acabamento e alienação. De fato, o Eterno enviou o seu Cristo em humanidade semelhante a nós e disse não à alienação no humano, a fim de que um novo destino se cumprisse no humano segundo o Espírito. Com efeito, os humanos que vivem no Espírito amam as coisas que são do Espírito.

Daí o amor-serviço para fazer o bem bom sem olhar se judeu ou grego, pois o Eterno mostrou o seu prazer: Cristo se acaba quando o humano dorme e acorda na alienação. O amor-serviço fala com os que estão caídos e diz que Cristo preferiu não estar assentado, mas entregou a vida pela humanidade. O amor-serviço traz paz aos caídos, porque não pesa a mão, ao contrário quer pessoas novinhas em folha. Sigam os meus pés, manejem e treinem do meu jeito, porque tenho amor-serviço e estou agachado, só assim vocês vão dormir folgados, disse o Cristo. É isso mesmo, no Cristo o humano não vive no rabo de arraia, mas na sapiência. É mestre sim, mas do bem, de delicadeza.

Temos, então, um alinhamento igual à esquerda e à direita pela certeza, a exclusão temporal de alguns e a inclusão da humanidade. Ao analisar o alinhamento igual à esquerda e à direita vemos que o ir além do humano repousa sobre a certeza, proveniente do presente em Cristo. Essa misericórdia do Eterno não depende do escrito, porque o humano não tem como responder às exigências do escrito, que expressa o Eterno que está do outro lado. Assim, o presente chega com o Cristo, que na sua dor e prazer dá o indulto às alienações humanas. A liberdade diante do escrito não depende do humano aqui, mas do humano para lá de humano. Assim, há um ir além nessa correlação entre o escrito e o presente. 

“Me chama de nego, quando quer xodó
Aí começa aquela agonia
Que faz a gente levantar do chão
A gente esquece a hora e passa o dia
E a noite vem sem prestar atenção
Que prós amantes, tanto faz
O que importa é o impulso, é o desejo, é a paixão”.

Uma toada linda é a animação, que não pisa a fraqueza da humanidade. Quando alguém é apanhado com a faca na mão, no momento do golpe vil, humanos desarmam, mas não esquecem a amor-serviço do Espírito. Ajudam e obedecem à lei do Cristo. Por isso desobriga e é desobrigado pelo Eterno. A desobrigação da pena foi cantada por Cristo, porque esquecer o dinheiro que foi levado é difícil, mas é o que Eterno faz comigo e você. E é o que nos leva à rede, na varanda, no fresco da tarde. É resultado do amor-serviço, da desobrigação e do gozo, quando a comunidade da certeza acende o farol alto e mostra à humanidade que a rede e a taba são possíveis, mesmo quando o mar não está para peixe.

Cristo fala de liberdade. Para ser livre não basta a certeza, é necessário permanecer. Mas o que é isso? É continuar na certeza. No humano para lá de humano não deve haver cera. Permanecer é constância e ser humano no Cristo. Mas para ser livre é preciso também conhecer o axioma. E o que é conhecer? É gostar de dormir com, mesmo que tenha que comer sal juntos. Depois, então, é que se vai descobrir, inteirar. É a partir daí que o humano caminha em direção à liberdade. E a liberdade passa a ser a vida distante da azáfama da alienação.

O eterno acorda e dorme no partir do pão. Gente é parecença chamada a viver a experiência humana como comunidade da certeza. Pode beber e comer bênçãos nas celebrações de todos juntos. Gente é convocada a conviver na consistência do Cristo.

“Eu te amo quando é de manhã
Eu te amo quando é meio-dia
Eu te amo quando é de noite
Eu te amo todo santo dia
Eu te amo de qualquer maneira
Eu te amo até naqueles dias
Que por qualquer besteira você briga
E se intriga sem qualquer razão
Eu te amo, eu te quero, te desejo
Eu te dou meu coração”.

Liberdade no Cristo é ir para a cama sem a faina da alienação, das coisas que amarram e impedem o movimento do Espírito. Descobrir o significado de duas toadas, conhecer e ficar, na celebração do Cristo leva ao axioma e ao livramento da azáfama da alienação, acabamento e escombros.


Maciel Melo, compositor e cantor, no Programa Estação Nordeste,
na Rede Globo, em 04/julho/2009, cantando a música "Até Naqueles Dias".

lundi 26 novembre 2012

O punhal de Abraão

Por Jorge Pinheiro


“Quando chegaram ao local que Deus havia indicado, Abraão fez um altar e arrumou a lenha em cima dele. Depois amarrou Isaque e o colocou no altar, em cima da lenha. Em seguida pegou o punhal para matá-lo". Gênesis 22.9-10.


Eis um dos textos mais desnorteadores do Antigo Testamento. Abraão, em obediência a Deus, se prepara para sacrificar seu filho. Neste artigo vamos fazer a leitura desse texto a partir de um ensaio teológico, "Temor e tremor", escrito por Sören Kierkegaard, em 1843.


O sacrifício de Isaac por Alonso Berruguete, 1526


Sören Kierkegaard (1813-1855), dinamarquês, é fundador da teologia da existência. Ele recusou o ideal de um saber intelectual e universal, defendido por Hegel, e mostrou o caráter voluntário e singular da vida cristã, que se consubstancia no ato de fé.


Kierkegaard foi conhecedor dos clássicos. Amou a música e a literatura, a filosofia clássica e moderna. Fruto dessa paixão, construiu uma teologia da existência que teve o objetivo de confrontar idéias e experiências à luz do cristianismo.


Sua teologia baseou-se em conhecimento e experiências sentimentais. A partir de problemas pessoais procurou explicação para a existência. Não se contentou em analisar o conteúdo da consciência e daí construir uma teologia da existência. Relacionou conhecimento e experiências e estabeleceu entre elas uma dialética. É através da dialética que percebe as experiências da existência: estética, ética e experiência da fé.


Experiências da existência


A experiência estética é básica na realidade humana. Os valores estéticos estavam presentes no romantismo e influenciaram artistas e intelectuais do século XIX. É difícil definir essa experiência, porque é diversificada, embora sempre tenha uma característica comum: o desejo. O desejo produz satisfação afetiva, emocional e material, e a principal experiência estética é o desejo erótico.


Mas, a experiência estética não nos realiza plenamente. Muitas vezes, os objetivos não são claros e se perdem por não haver plena satisfação.


Há uma outra experiência humana que, ao contrário da experiência estética, é de mais fácil definição: a experiência ética. Isto porque é marcada por uma vida governada por normas morais. O herói da experiência ética é o marido fiel.


Kierkegaard combina a teoria do amor romântico com a teoria do acordo matrimonial, na forma de amor cristão entre duas pessoas que reconheceram em Deus o responsável por esta união. O casamento cristão, indissolúvel, pleno de companheirismo, é um discurso de exaltação ao amor. O casamento é o meio através do qual homem e mulher fazem uma opção, tendo Deus como testemunha. É aqui que se evidencia a experiência ética: os dois terão que resistir aos dias maus para manter a vida conjugal.


Assim, casamento é risco, mas, ao mesmo tempo, a mais profunda experiência para se atingir tal sentido de vida. O casal deve entender que o heroísmo moral da vida cotidiana é a única forma de desviá-los dos caminhos que comprometem a relação conjugal. Só o heroísmo ético, aliado à ajuda de Deus, pode salvar a vida conjugal e a vida moral.


Mas o casamento não é a única e derradeira experiência humana. A fé é uma fonte de inspiração e um espaço de reflexão e existência.


O cristianismo de Kierkegaard era composto por duas realidades marcantes: por um lado, o cristianismo com suas doutrinas e seus paradoxos, e, por outro, a tensão psicológica com que ele recebia essas doutrinas e paradoxos em meio aos problemas existenciais.


Nesse sentido, "Temor e Tremor" é uma introdução ao mundo cristão de Kierkegaard. O objetivo do livro é mostrar, através da história do patriarca Abraão, que a experiência ética não é absoluta, fica ofuscada diante das exigências da experiência da fé.


Abraão não hesitou em sacrificar Isaque e esta entrega lhe deu o filho de volta. A experiência da fé é entrega ao Deus que não vemos e comunica-se através do silêncio. As duas primeiras experiências, estética e ética, não podem existir sem a experiência da fé. A fé deve estar presente tanto na experiência estética quanto na ética. A fé é uma experiência que desestrutura experiências e possibilita o encontro com a realidade da vida cristã.


Mas fé implica fazer escolha, já que é solitude e colocar-se sob o olhar atento de Deus. Esse estar só no sofrimento nos leva ao sentido da subjetividade e da existência. Em 1848, Kierkegaard passou pela experiência de conversão e registrou em seu Diário: "A totalidade do meu ser está transformada... Mas a crença no perdão dos pecados significa crer que aqui no tempo o pecado é esquecido por Deus, que é realmente verdade que Deus o esquece".


E, em 1850, escreveu em seu Diário: "A peculiaridade da raça humana é: justamente porque o indivíduo é criado à imagem de Deus, o 'indivíduo' está acima da raça. Isto pode ser entendido erroneamente (...) reconheço. Mas isso é o cristianismo. E é aí que a batalha deve ser travada".


Deus é subjetividade infinita. O cristianismo é uma fé histórica, mas como os resultados dos fatos históricos são incertos, o importante é a escolha. Crer em Deus é um salto de fé, um compromisso com o absurdo. A pessoa faz uma escolha por aquele fato histórico porque significa tanto que arrisca a vida por ele. "Então vive; vive inteiramente cheio da idéia, e arrisca sua vida por ela; e sua vida é a prova de que crê".


Não precisa haver provas para a pessoa crer e viver a fé. Sem riscos não há fé. Por isso, há no pensamento de Kierkegaard, uma palavra chave: o amor. É por amor que Deus decide agir, mas como seu amor é a causa, seu amor também é o fim. Deus quer estabelecer relações com o ser humano.


"Deus encontra sua alegria em vestir ao lírio com mais esplendor que Salomão" (Fragmentos Filosóficos, p. 59).


O amor de Deus ensina, mas também leva a um novo nascimento, passando do não ser ao ser, pois "o fazer nascer pertence a Deus cujo amor é regenerador" (Fragmentos, p. 68).


Deus busca transformar o não ser do ser humano. Assim, "para obter a unidade, Deus deve se fazer igual ao seu discípulo", e para isto toma a forma de servo. Deus sofre a fome, o deserto, tudo experimenta por amor ao ser humano. Kierkegaard afirma que só Deus pode salvar o indivíduo do desespero.


O salto da fé


O sentido estético da existência nos é dado, também, pela busca da realização profissional e pelo consumo e posse de bens. Abraão fez essa experiência estética, mas ela não bastou. Por isso disse a Deus: "Ó Senhor! Ó Deus Eterno! De que vale a tua recompensa?" O sentido ético na vida do patriarca não foi dado por sua relação com Sara, pois não foi um marido exemplar (cf. Gênesis 12.13; 20.2), mas pelo nascimento de Isaque. O filho prometido possibilitou a Abraão essa experiência ética, mas, ainda assim, faltava ao patriarca a experiência da fé, a entrega a Deus daquilo que lhe era mais caro.


Abraão não está na situação do herói que deve escolher entre valores subjetivos e objetivos. Deus não está testando a sabedoria de Abraão. A força de sua fé fez com que Abraão optasse por Deus. Caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão não teria como justificá-lo à luz de uma ética humana. Seria o assassino de seu filho. Permaneceria toda a vida indagando acerca das razões do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvida permaneceria para sempre.


No entanto, Abraão não hesitou: a fé fez com que ele saltasse da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Abraão ilustra na sua radicalidade o desafio da fé. A fé representa um salto, a ausência de mediação humana, porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A fé é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor.


Por isso, o punhal de Abraão é o símbolo desse salto. É desespero e angústia. Mas o movimento da lâmina, que aparentemente antecede a morte, conduz ao grito de Deus: Abraão! O movimento da lâmina leva a um renascer, a um novo sentido de vida, ao encontro com o filho amado.

O sacrificio de Isaac por Marc Chagall, 1966


Tudo o que a existência envolve de afirmação da fé não pode ser explicado pelo pensamento enquanto representação e significação. O conceito jamais dá conta das tensões e contradições que marcam a vida pessoal. Existir é existir diante de Deus, e a incompreensibilidade da infinitude divina faz com que a consciência vacile como diante de um abismo. Não podemos apreender racionalmente a contemporaneidade do Cristo, que faz com que a existência cristã se consuma num instante e ao mesmo tempo se estenda pela eternidade.


Essa virtude teologal traduz adesão pessoal a Deus e combina reflexão e êxtase. É procura infindável e visão instantânea da verdade. É paradoxo: a alienação é condição da perdição, mas Cristo veio ao mundo para resgatar o ser humano. Qualquer teologia que não leva em conta essas tensões, derivadas de estar o finito e o infinito em presença um do outro, não constitui fundamento adequado da vida.


O duplo movimento do infinito


Quando nos colocamos diante de nós próprios e de nosso destino, olhamos um fato que nenhuma lógica pode explicar: a fé. Esta não é substituição afetiva provisória que dura enquanto não se fortalecem as luzes da razão. É um modo de existir. E esse modo nos situa em relação ao absurdo e ao paradoxo. O paradoxo de Deus feito ser humano e o absurdo das circunstâncias do advento de Cristo.


Cristo, Deus tornado ser humano, é o mediador. É por meio de Cristo que o ser humano se situa existencialmente perante Deus. Cristo é o fato primordial para a compreensão que o ser humano tem de si. Não há mediação conceitual, prova racional que nos transporte à compreensão da divindade. A mediação é o Cristo vivo, histórico, é o fato do sacrifício do cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.


Aqui se situam as circunstâncias que fazem da encarnação de Cristo um absurdo: a verdade não nos foi revelada com as pompas da representação e significação do objeto pelo pensamento. Ela foi vivida pelo Filho de Deus, que morreu na cruz como criminoso. O acesso à verdade depende da crença no absurdo, pois, como afirma o apóstolo Paulo, "Deus pega os sábios nas suas espertezas". É o absurdo que possibilita a verdade. Caso permanecesse a distância infinita que separa Deus e o ser humano, jamais teríamos acesso à verdade. É a mediação do paradoxo e do absurdo que nos coloca em comunicação com Deus. Por isso devemos dizer: creio porque é absurdo. Este é o caminho do encontro com Deus.


Em seu Diário, Kierkegaard escreveu em maio de 1843, época em que trabalhava no texto de Temor e tremor: "A fé, portanto, tem esperança nessa vida igualmente, mas apenas em virtude do absurdo, não por causa da razão humana; do contrário, seria meramente sabedoria mundana e não fé".


Assim, estamos diante do "duplo movimento do infinito", que nos leva a romper com a finitude, mas possibilita, por meio da fé, recuperá-la. É possível tornar a vida compatível com o amor de Deus. A renúncia nos conduz a uma relação negativa com o mundo, mas a fé nos traz para uma nova relação com o mundo, agora construtiva.

mardi 20 novembre 2012

Violência, uma raiz sem raízes

Por Jorge Pinheiro, de São Paulo

Uma leitura ontológica do espírito, da consciência e da matéria, a base de ser e estar violento: “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. (1)

A violência estabelece uma proposição: um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana. Parece estar além da razão: é impensável. 

  Caim mata Abel

Podemos, no entanto, partir do postulado de que há uma violência ontológica, que antecede toda violência manifesta. Esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é violência. Despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com a violência expressa. É a violência que é e está além da razão de ser violento.

Há uma bomba nuclear de efeito retardado nas grandes cidades brasileiras, que tentam esconder, mas que dá sinais de que está pronta para explodir, agora. E também na Palestina.

O que é violência está simbolizado no ser violento sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. Por outro lado, a violência incondicionada é dinâmica. A consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. Tal aspecto da violência é simbolizado na ideação“multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. Um símbolo gráfico da violência presente no parir a vida. Este axioma fundante da violência, ontológico, remete àquilo que podemos simbolizar como características trinitárias da violência.

A natureza da causa da violência, derivada de causa aparentemente sem causa, aflora como consciência da violência, impessoal, que permeia a natureza. Esta causa da violência é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é um símbolo condicionado. Mas, ao atravessar pela negação a dualidade entre existência e consciência, sobrevém a tríade da violência: o espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência.

Você vê meninas anos grávidas, garotos que dizem abertamente: morrer, para mim, é lucro. Não têm autoestima, nenhuma perspectiva de futuro, e ninguém faz nada, nem escola, nem governo, ninguém está preocupado com eles. Nas grandes cidades brasileiras e tanbém na Palestina.

Espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência devem ser consideradas não como independentes, mas correlações que constituem a base do ser ou estar violento. Considerada esta trindade ontológica da violência como a raiz da qual procedem todas as manifestações violentas, a expressão“multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. Ela é a fonte da força de toda violência individual e social e fornece os elementos para a análise da violência que perpassa o humano e sua história. Tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base da violência objetiva. Tal ideação do porvir humano é a raiz da violência individual e social, porque a substância pré-humana é o substrato da matéria violenta em seus diferentes graus.

A correlação dos aspectos da violência ontológica, de origem, é fundante da existência enquanto violência manifesta. A ideação da humanidade, separada de sua substância, não se manifesta como violência individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que a violência aflora como violência que é, como ato alienado que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. Da mesma forma, a substância do humano, separada da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual a violência não poderia emergir. A violência-manifesta, assim, é permeada pela correlação, que é fundamento de sua existência como violência que se manifesta.

A repressão deixa um rastro de insegurança e de prejuízo na comunidade, comércio fechado, escolas sem aulas, população com medo. E esta não é uma situação apenas das grandes cidades brasileiras, mas também da Palestina. Os maiores consumidores de violência estão nos Estados Unidos...

As correlações entre violência-manifesta, espírito e matéria da violência são símbolos da violência ontológica, presentes no universo manifestado da violência. Essa correlação é alienação existencial, a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza da violência, presentes na forma de leis da natureza e da sobrevivência do humano. A alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação.

Ou como disse Lameque, ser violento mítico consciente do ciclo da violência, apresentado nas escrituras hebraicas: “Ada e Zilá, ouçam a minha voz. Escutem, mulheres de Lameque, as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. E um jovem, porque me pisou. Se são mortas sete pessoas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”. (2)

Assim, a consciência humana procede também da ideação da violência, e fornece os meios que possibilitam à violência individualizar-se como substância do humano. A alienação em suas manifestações é o elo entre o espírito e a matéria da violência, presença que, dialeticamente, equilibra vida e morte, permanência e destruição.

24/10/2009

Fonte: ViaPolítica/O autor

Referências
1. Gênesis 3.16.
2. Gênesis 4.23-24.