mardi 25 mars 2014

Evangélicos, negros e eleições no Brasil

A pensar de novo um tema discutido fazem cinco anos
Jorge Pinheiro, PhD

Mais de três séculos de escravidão deixaram marcas profundas na sociedade brasileira, mas é comum ouvirmos falar apenas das heranças e contribuições do negro na cultura, culinária, música, etc. Pouco se trata das consequências sociais historicamente enraizadas deste processo, como o racismo e a acentuada discriminação social dos descendentes dos africanos para cá trazidos à força, que hoje se encontram incluídos nos extratos mais despossuídos de uma imensa maioria de pobres.

E quando se resgata a história da escravidão e a trajetória posterior do negro na sociedade brasileira, também é destinado um espaço pequeno para as formas de resistência e luta contra a opressão empreendidas por homens e mulheres que viveram sob os grilhões da privação da liberdade e continuam a sofrer com a discriminação.

Apesar de tudo, o povo negro no Brasil entrou o século XXI com mais conquistas do que em todas as outras épocas reunidas. Segundo levantamentos do Ipea, da Fundação Seade, e do instituto Grottera, divulgados pela revista Veja em outubro de 1999, o povo negro representava um terço da classe média brasileira e movimentava 50 bilhões de reais por ano. Segundo os estudos, de cada grupo de dez negros, quatro estão parados na pirâmide social e dos seis que se movimentam, cinco estão subindo. 

Ao mesmo tempo persistem fortes diferenças, como a salarial, a remuneração média dos negros é metade da que se oferece aos brancos. E a população negra economicamente ativa ocupa apenas 1% dos postos de trabalho estratégicos do mercado. 

Num país miscigenado, o preconceito racial não é discutido, em parte porque desde a abolição dos escravos nunca tenha se apresentado de forma explícita como em países que adotaram políticas de segregação. Por isso, as experiências com o racismo são vividas de formas muito diferentes por negros e mulatos. O escritor Lima Barreto denunciou e sentiu o peso da discriminação por toda a vida e terminou seus dias internado em um hospício, enquanto o igualmente mulato Machado de Assis passou a vida aclamado, sem jamais mencionar ou discutir sua origem racial. 

A Lei Afonso Arinos, de 1953, assegurou direitos, mas não garantiu o respeito e o direito à cidadania plena ao negro que, ainda hoje, carece de muitas conquistas. Apesar de tudo, cresce o número de negros e mulatos em governos estaduais e na máquina do governo federal e é cada vez maior o número dos que denunciam o preconceito - levando inclusive à cadeia os que o praticam. 

Artistas negros, especialmente no mundo da música, tiveram as portas da sociedade abertas e receberam tratamento diferenciado dos demais negros no Brasil ao longo do século. De Pixinguinha a Gilberto Gil e de Milton Nascimento a Carlinhos Brown e Alexandre Pires, a cultura foi uma das principais credenciais para a ascensão e aceitação do negro. A atriz e cantora Zezé Motta afirmou-se nos anos 70 como exemplo de beleza, talento e sensualidade, sem abrir mão das características de sua raça. 

Na área dos esportes, Edson Arantes do Nascimento, o “Rei” Pelé, foi o maior expoente brasileiro. Ao receber o prêmio de “Atleta do Século”, na categoria Futebol, em Viena, no mês de novembro de 1999, ele dedicou o troféu aos negros e lembrou os problemas raciais enfrentados em décadas anteriores por jogadores do esporte mais popular do País. 

O Brasil tem sido olhado pelos europeus como um modelo para os países em desenvolvimento. A política social é elogiada, embora haja certa incompreensão diante da aproximação do Brasil a países com o Irã. Isto porque os europeus desconfiam dos regimes teocráticos. Afinal, a liberdade de organização das religiões tem uma dimensão importante no seu relacionamento com o Estado. Esse relacionamento pode se dar de três formas, por fusão, união e separação. Um estado laico é leigo, neutro e separado da religião. 

O termo laico remete-nos a uma atitude crítica da interferência das religiões na vida pública da sociedade. Assim, a laicidade do estado é condição indispensável para a existência da democracia. Sem o respeito às crenças, às descrenças e à ausência de crenças, de neutralidade confessional, é impossível ao estado assegurar democracia religiosa e, inclusive, social. As teocracias, assim como as militâncias fundamentalistas, sejam elas cristãs, de descrença ou islâmicas, na modernidade que se esvai, ameaçam o respeito ao outro e geram discriminação e ódio. Esta seria a crítica de fundo às pressões islâmicas hoje e, em especial, ao desejo iraniano de chegar à tecnologia nuclear, já que sob regime teocrático o Irã não transmite confiabilidade ao mundo europeu.

E como os europeus olham o Brasil pentecostal? Vou partir de um artigo do Jean-Jacques Fontaine (Brésil, Le business des églises évangélistes, Le Petit Journal, 9/07/2010), para mostrar como os franceses vêem o movimento evangélico. Para eles, é muito difícil ter uma idéia exata do peso das igrejas evangélicas, porque elas são onipresentes em bairros onde os pastores têm influência, mas isso não se traduz em expressão social. Outra coisa que para eles chama a atenção é o envolvimento da Igreja com o narcotráfico no Rio de Janeiro e a extorsão financeira dos pobres.

Da mesma maneira, não entendem como o fundador de uma igreja, no caso a Universal do Reino de Deus, tenha uma rede de TV, mesmo quando investigado por lavagem de dinheiro e evasão fiscal.

Segundo Fontaine, em 1970, as igrejas evangélicas tinham oficialmente 4.800.000 fiéis. Em outubro de 2009, uma estimativa do instituto de pesquisa "Analisis" diz que hoje são para 23% da população, ou seja, 45 milhões de pessoas. Um crescimento de 10 vezes em 40 anos. Os evangélicos estão nos subúrbios pobres das grandes cidades, na região do Sudeste e na Amazônia. No Nordeste, a igreja católica consegue freiar a expansão evangélica.

Fato que para os franceses é inexplicável, é que os evangélicos, recrutados entre os setores mais pobres da população, pois são mais pobres que os fiéis católicos, dão mais dinheiro em dízimos e ofertas. E diz que as igrejas evangélicas levantam mais de 1 bilhão de reais por mês e que um crente dá em média 32 reais por mês para a igreja.

E Fontaine pergunta se não estamos assistindo a talibanização da sociedade brasileira. E expõe seus motivos para pensar assim: o destino do dinheiro arrecadado pelos pastores não é nada transparente: existe uma disparada na construção de templos. Mas isso é o que se vê, embora se saiba que o dinheiro vai para enriquecimento pessoal e financiamento de campanhas políticas. Basta ver que os evangélicos representam 23% da população, mas já ocupam 35% das cadeiras no Congresso nacional. 

Por isso, talibanização do Evangelho significa que antes havia o poder do Vaticano, que fez e desfez reis, agora, empresas da fé, monopolistas e neoliberais, impõe através de um marketing agressivo uma presença constante a fim de reverter as relações sociais e responsabilizar aqueles cujos comportamentos não seguem seus dogmas. Segundo Rosiane Rodrigues, da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, sem muito alarde, em junho de 2009, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa – CCIR - entregou relatório ao presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Martin Uhomoibai. O documento, além de relatar casos exemplares de perseguição religiosa, acusa a Igreja Universal do Reino de Deus, assim como outras denominações neopetencostais, de promover uma ditadura religiosa no Brasil, através de sua prática racista e discriminatória contra religiosos de matriz africana e minorias étnicas. Na época, a Folha de São Paulo, ao noticiar a entrega do relatório, entrevistou o sociólogo Ricardo Mariano, da USP, que discordou do viés racista da denúncia da CCIR e afirmou que “a atitude adotada pela Igreja Universal é motivada (apenas) por questões estritamente religiosas”, sem ter nenhuma correlação racial. Passado um ano, o relatório publicado pelo Grupo Internacional pelos Direitos das Minorias (Minority Rights Group International - MRG), amplamente noticiado pela imprensa mundial, constata que a intolerância religiosa é o novo racismo. 

Interessante observar que a constatação de Mark Lattimer, diretor da organização que elaborou o estudo europeu, confirma o que os religiosos brasileiros sabem há muito tempo: a intolerância religiosa é uma das faces do racismo. A questão é que praticar o racismo não é apenas segregar pela cor da pele ou origem étnica. É pretender impor a visão dominante (superior e civilizada) com o objetivo de aniquilar as concepções de mundo e identidade de grupos dissidentes (ou resistentes), tratados como primitivos e inferiores.

Outra recente pesquisa realizada pela Univer Cidade, coordenada pelo professor Bayard Boiteux, ouviu 800 pessoas, na cidade do Rio de Janeiro. O estudo pretendeu fazer um mapeamento do preconceito do carioca. Divulgada pelo Jornal O Dia, os dados revelaram que 40% dos entrevistados têm preconceito religioso, principalmente com as religiões de matriz africana. O número chama atenção por ser bem maior que o preconceito racial (30%) e a homofobia (20%).

Assim como a pesquisa da Univer Cidade, a divulgação do Relatório do MRG não chegou a causar frisson nas redações. É sabido que uma parte significativa da imprensa brasileira (e da Academia) faz um esforço hercúleo para classificar pretos, brancos, amarelos, vermelhos, judeus e ciganos como representantes de uma única raça, a humana. É uma discussão que só faz sentido para quem enxerga na desracialização do discurso uma forma de preservar os "diferentes" de ataques e perseguições. Essa fórmula já se mostrou ineficaz - haja visto os grupos neonazistas que continuam existindo em todo mundo - além de ensurdecer a sociedade para questões que precisam ser amplamente discutidas. Talvez tenha sido este o motivo da pouca repercussão do relatório europeu – noticiado até pela Rádio do Vaticano – por aqui. É o reflexo da banalização da discriminação religiosa num país que aprendeu que as expressões religiosas dos africanos, indígenas e minorias étnicas são “magia negra”, “macumba", "coisas do demônio” e “primitivas”. 

Não é difícil entender o quanto a afirmação de Lattimer pode estar afligindo as redações. Ela faz cair por terra teorias míticas da sociedade brasileira: 1) o Brasil é uma democracia racial, mesmo com todas as evidências da existência de um fosso abissal que separa os negros dos brancos; 2) O Brasil é uma democracia religiosa, mesmo com cadeias comunicacionais, políticas e econômicas, dominadas por neopentecostais, que perseguem acintosamente outras religiões; 3) As redações se habituaram a tratar a diversidade brasileira – étnica, cultural e religiosa - como folclore ou algo pitoresco. 

Outro dado que merece ser destacado no relatório da MRG é que "a marginalização econômica que sofrem certos grupos (...) levaram a uma crescente tendência à perseguição das minorias religiosas na maioria dos países da Europa Ocidental e da América do Norte". Se trouxermos esta afirmação para a realidade histórica do país, percebemos que fica fácil “fazer a ficha cair”. O Brasil, colonizado por portugueses e considerado hegemonicamente cristão, ao importar, em meados século XIX, imigrantes europeus e asiáticos como trabalhadores assalariados em detrimento dos descendentes de africanos, recém libertos pela Abolição da Escravatura, realizou uma política pública de “embranquecimento”. Isso significa dizer que para o trabalho escravo o africano serviu - e o seu tráfico foi uma das maiores fontes de renda da Coroa Portuguesa, por séculos. Mas, para o trabalho assalariado, com dignidade e reconhecimento, foram trazidos outros povos – italianos, alemães, poloneses, japoneses. 

O processo de dominação formulado pelos colonizadores - brancos, cristãos, europeus - incutiu na sociedade o entendimento que os negros e índios eram sujos, indolentes, trapaceiros e que praticavam rituais demoníacos, além de representarem um risco a mais por serem a maioria da população. Os imigrantes inegavelmente contribuíram para o enriquecimento da nossa diversidade, mas chegaram aqui em condições privilegiadas em relação aos africanos e, de certa forma, serviram para dar uma “clareadinha” no povo brasileiro, além de ajudarem a consolidar os padrões eurocêntricos de vários governos (já) republicanos. Desde o Império, os governantes tinham o objetivo essencial de aniquilar as identidades culturais, étnicas e religiosas trazidas pelos negros da África e perpetuada por seus descendentes, como forma de resistência. O mesmo processo, guardadas as devidas especificidades históricas e culturais, aconteceu com os índios e mais tarde com ciganos e outros grupos minoritários. 

Afirmação antropológica de Antonil, no século XVII, de que o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos, não é uma afirmação biológica. Aqui o céu é definido enquanto resultante da cultura relacional, onde o Mulato, termo pejorativo oriundo de mulo, já que era considerado animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Ou seja, não estamos diante de uma cultura dual, como aquelas de corte protestante e calvinista, que opõem bem e mal, deus e diabo. Aqui temos o intermediário, o mulato, a maioria, que representa uma cristalização trágica da cultura relacional, onde “Macunaima, um herói sem nenhum caráter”, de Mário de Andrade, é o exemplo por excelência.

Nos países de cultura protestante, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude enquanto tragédia. Assim, a cultura relacional esconde a injustiça social. Por isso, afirmamos que o Brasil foi formado por três raças: brancos, índios e negros, o que filtrado pela cultura relacional levou a uma ilusão, a uma mentira, de que brancos, índios e negros optaram pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram índios e escravizaram negros. Os códigos relacionais caminham a par com a questão racial. A solução relacional para a injustiça social é a miscigenação e para o preconceito cultural o sincretismo. A oposição entre cultura latina, cultura indígena e cultura negra não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma síncrese relacional, que é a cultura popular brasileira.

Essa cultura mestiça é entendida como a maneira do brasileiro viver a vida, no gosto pela festa, da música, da dança, da comida e do sexo. Essa síncrese é uma forma de viver porque não é cultura acabada e definida, mas vai-se construindo no concreto do dia vivido. Essa é uma característica muito especial da cultura relacional brasileira, tem de ser reelaborada a cada dia. Não é uma forma cultural fixa, mas vai-se modificando conforme se vai vivendo.

Este é um elemento muito importante para se entender a questão de identidade do brasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída, e os elementos externos e as pressões mais novas (i.e. globalizantes) vão sendo deglutidos, e vividos no hoje que se vive. Mas o dilema é assumir o racismo na sociedade brasileira. 

Setores da grande imprensa e da Academia, a partir de agora, precisam enfrentar este antigo dilema, reavivado por estas incomodas pesquisas: vai, obrigatoriamente, repensar suas linhas editoriais e de levantamento de dados para manter o “estabilishment”, ou correr o risco de ter que – necessariamente - admitir o óbvio: a) o Brasil vive uma das mais perversas práticas do racismo – que é o estrutural – há cinco séculos; b) que esta prática racista não se limita as fronteiras do tom da pele ou ascendência e, ainda hoje, tem como alvo os signos e símbolos utilizados pelas comunidades religiosas afro descendentes e outras minorias; c) que a marginalização econômica e social dos povos negros e indígenas – que são as bases da cultura do Brasil – fragilizou ainda mais essas populações; d) que o racismo estrutural é um dos motivos da desmobilização e invisibilidade social e cultural de negros e índios; e) que os neopentecostais se aproveitam do preconceito racial – que é latente e histórico na sociedade brasileira – para estruturarem seus discursos e práticas persecutórias e arregimentar cada vez mais fiéis, que se transformam em poderio político, eleitoral e comunicacional; f) que é comum – para governantes, jornalistas e formadores de opinião - a demonização e criminalização das religiões dos povos que foram escravizados e que são considerados primitivos e não civilizados; g) que a intolerância religiosa que assola o país e vitimiza milhares de homens, mulheres e crianças é o reflexo do racismo enraizado na sociedade. 

Bom, as redações e os pesquisadores podem também optar em nem sequer pensar sobre esses temas e manter a sujeira do racismo brasileiro – transfigurado em crescente intolerância religiosa - bem varridinho, para debaixo do tapete. Mas, depois da divulgação dos relatórios da MRG e da Univer Cidade, o tapete corre o risco de ter que crescer muito para abrigar um grande lixão. 

Assim, o lobby da fé evangélica investe pesado na mídia, especialmente rádio e televisão, que são as principais fontes de informação dos pobres. A estimativa trabalhada por Fontaine estima que 60% das estações de rádio e TV estão direta ou indiretamente ligadas aos evangélicos.

Mas por que isso funciona? Porque o discurso dos pastores evangélicos se baseia na lógica do dinheiro. Não há nenhuma preocupação com o paraíso depois da morte, a recompensa tem que ser tangível. A mensagem é moderna, pragmática e refere-se ao mundo dos negócios. E ele conta que um pastor, em seu programa de TV, argumentou que "tudo que você tem será comido pela crise do mundo. Precisamos salvar a sua propriedade, removendo-a do banco e deixá-la nas mãos de Deus”.

Fontaine acredita que os crentes evangélicos não se ofendem com a utilização de seu dinheiro para fins políticos. E afirma que os três últimos presidentes do Brasil, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva usaram a mesma estratégia para serem eleitos: a aliança com as oligarquias tradicionais do Nordeste e o acordo com os evangélicos nas periferias urbanas do sul- sudeste. E cita dois exemplos dessa presença política: o ex-vice-presidente José Alencar era evangélico, e Marina Silva, quase permanente candidata da presidência da República, também é.

Antes de tudo, as questões que envolvem religião e sociedade na França e demais países europeus são bem diferentes das nossas preocupações. Vejamos uma delas. Na França e alguns países europeus, estamos diante do fenômeno da cristalização da visibilidade do Islã. Mas esse fenômeno não é de hoje. Aparentemente, começou no 11 de setembro de 2001, mas, já em 1989, com a discussão sobre o uso ou não do véu nas escolas públicas, os franceses descobriram que a presença muçulmana era maciça no país.

Na verdade, os muçulmanos são a maior minoria em solo francês. A polêmica sobre o véu nas escolas públicas quase se transformou em luta interna contra o fundamentalismo islâmico, mas a lei acabou por ser aprovada. Os valores de liberdade, cidadania e democracia na França, assim como os valores universais do cristianismo, foram levados em conta, já que por ser uma sociedade laica, a França não podia optar por uma retaliação ao Islã. Era preciso que a sociedade francesa, sem se tornar refém da religião islâmica, possibilitasse sua expressão. E, ao mesmo tempo, se num Estado laico, as minorias cristãs não intervêm na máquina do Estado, mas tem o direito à existência, assim também deveria ser em relação à religião islâmica. Essa talvez tenha sido a grande e maior discussão política dos últimos anos em que as religiões se expressaram e que, de certa forma, quanto ao resultado final, prevaleceu a laicidade francesa. 

Vou responder essa questão a partir de uma reflexão sobre a situação atual. Diante de evangélicos corruptos, de votos mercadejados no púlpito, da palavra deturpada e enlameada por lobos travestidos de cordeiros, faço uma pergunta -- afinal, que relação existe entre o momento presente e o espírito crítico e transformador do movimento evangélico? Exorto homens e mulheres de boa vontade a uma reflexão sobre o que significa o atual momento enquanto desafio político para os evangélicos brasileiros. Falar do presente, em primeiro lugar, significa dizer que vamos de um momento em direção a outro momento diferente, que pode ser de qualidade inferior ou superior, mas nunca igual. O presente é sempre parte de uma situação mais geral e está enquadrado no caminhar de um processo. Mas, como disse o profeta Miqueias, "o Senhor já nos mostrou o que é bom, ele já disse o que exige de nós. O que ele quer é que façamos o que é direito, amemos uns aos outros com dedicação e vivamos em humilde obediência ao nosso Deus" (6.8). Na concepção progressista, também conhecida como esquerda, existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível aqui e agora debilita a esquerda e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se num progresso mitigado, em crítica desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade definitiva. Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim daquilo que é incondicional nas questões concretas. É o adversário do movimento evangélico radical. 

Conservadorismo e progressismo, esquerda e direita, estão entrelaçados na consciência do presente que estamos vivendo, que surge cheio de necessidades e pede transformação. E é esse entrelaçamento que leva a um terceiro caminho. E o terceiro caminho é a profecia, que é a visão ir a frente sob o comando da vontade de Deus para o povo. Sem o espírito profético não há protesto, nem crítica radical. O espírito profético quer responder às necessidades e transformar o tempo, mas temos também de nos lembrar que aquilo que é novo, que chega sem pedir licença, abala o próprio tempo e tudo que está nele. É por isso que muita gente se decepciona com a profecia.

Mas a idéia de que a situação presente nos coloca necessidades e pede transformação nasce da compreensão da profecia. Necessidades e transformação clamam pela irrupção de criatividade e novidade no tempo, cujo caráter é decisivo neste instante histórico. Mas, se criatividade e novidade respondem às necessidades e transformam o tempo concreto, é preciso ter consciência de que não existe um estado de perfeição no tempo, a consciência de que o ideal e perfeito nunca se fixam num presente eterno. Assim, toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há na busca permanente da justiça um choque entre necessidades e transformação, criatividade e novidade. Tal desafio não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais evangélica e radical que seja. O sujeito da transformação será, em última instância, o sujeito social, as massas em mobilização. Mas o evangelicalismo radical, assim como a intelectualidade protestante têm aí um importante papel a cumprir, além de qualquer esquerda e direita, serem voz e ação críticas para que o sonho de Amós aconteça no presente concreto brasileiro: que o juízo corra como as águas e a justiça como ribeiro perene. 

Donos de um quarto dos votos no país, os evangélicos se dizem mais dispostos a optar por José Serra (PSDB) do que por Dilma Rousseff (PT) na corrida presidencial, segundo entrevista de Bernardo Mello Franco na Folha de S. Paulo (26/04/2010). José Serra, por exemplo, tem o apoio das Assembleias de Deus e é amigo do líder da igreja, Pr. José Wellington; já Dilma Rousseff tenta se aproximar da Igreja Universal do Reino de Deus, mas enfrenta dificuldades em negociar com igrejas mais conservadoras, como as Assembleias de Deus. Porém, vou abordar essa questão a partir da laicidade do Estado brasileiro. Ao poder temporal da Igreja sobre o Estado, chamamos clericalismo. E, a partir daí, podemos dizer que não existe anticlericalismo sem clericalismo, nem liberdade sem laicidade. Por isso, a teocracia é a negação da democracia. E não vamos esquecer que a Constituição de 1824 estabelecia três vetores em relação à questão religiosa: (1) o catolicismo era a religião oficial do Império; (2) a permanência da Igreja Católica Apostólica Romana na condição de religião do Império, apesar de admitir o culto particular de outras religiões, desde que em casas para isso destinadas, sem forma exterior de templo; e (3) a permissão da elegibilidade para o Congresso apenas daquelas pessoas que professassem o catolicismo. Essa hegemonia foi superada, ao menos no texto, com a chegada da República. Dessa maneira, o Brasil é um estado laico desde a edição do Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 1890, que instaurou a separação entre a Igreja e o Estado. É uma vitória cidadã e democrática. Quebrar essa conquista é retrocesso que em última instância não favorecerá grupo algum. Exemplo disso foram as guerras de religião entre católicos e protestantes na Europa e a violência dos conflitos étnicos religiosos na Iugoslávia. No Brasil laico e democrático, nós protestantes devemos defender nossas convicções e agir em nome próprio, como cidadãos, e não enquanto representantes de instituição religiosa. Devemos nos associar livremente como qualquer grupo organizado da sociedade, para expor e propagar maneiras de ver e viver. A influência das igrejas protestantes pode ser muito positiva para a sociedade. A exposição de valores como a ética cristã, a solidariedade e a luta por melhor distribuição de oportunidades e possibilidades, podem fazer enorme diferença para o futuro da nação. 

Prefiro discutir essa questão a partir do desafio da globalidade. Estamos diante de um sistema imperial de domínio, novo na história da humanidade, um domínio globalizante, que não pode ser encarado como totalidade que favorece a todos, nem como totalidade que prejudica a todos. Apresenta categorias dialéticas que regulam seu processo de existência e expansão. Vemos também que essa existência e expansão sofre uma oposição crescente, não somente política, mas também religiosa. E as oposições religiosas – tanto cristãs como muçulmanas – se levantam contra o domínio globalizante porque ele é concretamente destruidor da fé e um produtor de vítimas, que são todos aqueles excluídos dos acontecimentos globalizantes. Assim, quer queira ou não a Igreja se vê envolvida e confrontada por este domínio, porque ele ao impossibilitar a produção e reprodução da vida coloca a questão de outra globalidade, proposta pelo Cristo evangélico, que não se construa a partir da semeadura da fome, do terror e da morte. Cabe ao cristão levantar, então, a ética da vida enquanto recurso diante de uma humanidade em perigo. Ao cristão cabe a corresponsabilidade solidária, que parte do critério de verdade vida/morte. Sem dúvida, o cristão latino-americano está desafiado a caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade ética diante das vítimas e a paranoia fundamentalista. E esse é um tema para o púlpito. É política cristã que deve escorrer também para os valados da política partidária.

Se compreendermos que a laicidade e a democracia não são inimigas das crenças particulares, vamos entender que os protestantes têm o direito de exercer sua cidadania e se manifestar sobre aqueles temas que geram discussão e polêmica. E as pautas de discussão somos nós que as geramos. Devemos exigir de nossos candidatos que levantem e publicitem as questões que nos preocupam. As questões éticas em tempos de crise têm cobrem importância especial. Mas essas questões não podem ser encaradas apenas como questões religiosas, estritamente nossas, fechadas nas quatro paredes da igreja. Nosso protestantismo deve, permanentemente, abastecer a ética e influenciar nas decisões do País.

Em sua abordagem sobre o poder formativo do protestantismo, Tillich apresenta quatro princípios que balizariam a ética do protesto contra a idolatria: o religioso deve se relacionar com o secular; o que é eterno deve ser expresso em relação à presente situação; a realidade da graça deve ser expressa com ousadia e risco; e o poder formativo do protestantismo deve expressar o radicalismo da fé. 

Nesta obra, o autor foi buscar nos textos de juventude de Paul Tillich o material necessário para definir sua metodologia de trabalho. Esses textos em sua grande maioria foram escritos entre 1919 e 1931, época em que o socialismo teve um papel relevante na história da Alemanha. Paul Tillich, socialista e teólogo, viu-se colocado diante do desafio de pensar a realidade vivida. Por ser este o grande momento da produção teológica de Tillich sobre socialismo e ética, em tais textos o autor foi buscar a base metodológica para seu projeto. Convém notar que esses textos não se encontram traduzidos em português. O autor utilizou traduções francesas. Textos de maturidade também foram utilizados na composição metodológica do projeto. 

Na definição de sua metodologia, o autor analisou a relação entre teologia e socialismo em Tillich, focalizando questões como a ética do amor, ética e crítica social, ética e socialismo. 

Metodologicamente, a intenção do autor foi compreender a relação que Tillich construiu entre ética socialista e conceitos como espírito de profecia, autonomia e teonomia, e o papel das massas na transformação social.

A partir daí, a pesquisa entra objetivamente na realidade do final dos anos 70, quando setores não-religiosos, que traduziam a radicalidade da juventude, levantaram o discurso da ética socialista propondo o julgamento e a transformação da sociedade brasileira, então sob regime militar.

Viveu-se um movimento crescente, que num determinado momento envolveu parte da sociedade civil, com greves, manifestações públicas, organização das entidades de classe e participação nas eleições. Ao expor publicamente tal protesto, os líderes visíveis desses movimentos colocaram-se na situação-limite, correndo os riscos advindos de tal postura.

“A existência humana é a elevação do ser à dimensão da liberdade. O ser se liberta das cadeias da necessidade natural. Torna-se espírito e adquire liberdade de se questionar a si mesmo, o seu ambiente, de questionar a verdade e o bem e de decidir a seu respeito. Entretanto, há nessa liberdade certa falta de liberdade, pois somos todos compelidos a decidir. ‘Essa inevitabilidade da liberdade, de ter que decidir, cria profunda inquietude da existência; é por esse meio que a existência passa a ser ameaçada’. Tudo isso, porque somos confrontados por uma exigência incondicional de escolher o bem e de realizá-lo, na mesma medida em que isso não pode ser alcançado. Conseqüentemente, o ser humano, na sua dimensão espiritual carrega em si uma ruptura, que também se manifesta na sociedade. Não é possível fugir dessa exigência. Ao enfrenta-la jamais se reveste de segurança absoluta. Trata-se pois do que Tillich chama de ‘situação humana limite’: todas as seguranças que construímos são questionadas e as possibilidades humanas alcançam e descobrem seus limites”. James Luther Adams, O conceito de era protestante segundo Paul Tillich, in Paul Tillich, A Era Protestante, SBC, Ciências da Religião, 1992, p. 301.

O Brasil necessitava de uma ética, mas aparentemente estava longe dela. Na busca de soluções, Versus pergunta: quais as razões da mortalidade infantil e da criminalidade infanto-juvenil? Este é um problema muito discutido hoje, mas em 1979 Versus procurava respostas. E acaba por relacionar entre suas causas uma catastrófica distribuição de renda, miséria endêmica e racismo.

Em agosto de 1978, a assistente social Maria Benedita Salgado Arcas, já denunciava: “O problema não é o menor abandonado, mas as famílias abandonadas. O verdadeiro problema é a carência das famílias”. Funcionária lotada na Febem do Tatuapé, Maria Benedita tocara com profunda acuidade o cerne do problema, a má distribuição da renda regional e a péssima distribuição da renda individual.

Muitos juízes de menores, inclusive o ex-presidente da FEBEM, João Benedito de Azevedo Marques, acabaram afirmando então que era necessária uma “transformação da estrutura sócio-brasileira”

“Depois, como disse um menor no Rio de Janeiro, depois de fugir de uma das unidades da Funabem, para onde ir? Se for para a rua, disse ele, vou matar muito ou morrer rapidinho. Mas as unidades de amparo ao menor têm sido alvo das mais fantásticas fugas, tanto pela violência desencadeada, como pela audácia dos fugitivos e pela sua periodicidade. As fugas são resultado dos maus tratos físicos, das torturas, homossexualismo, e mau tratamento carcerário, como no Rio, onde havia uma solitária medindo aproximadamente 2,10 metros por 1,10 com um colchão no chão, e um vaso sanitário sem descarga. Procurou-se uma solução (paliativo?) lançando-se uma campanha, para a adoção de crianças. Mas como 65 por cento das crianças são negras segundo dados fornecidos por Gilcéria Oliveira, ex-presidente da Associação Cultural do Negro, ninguém apresentava-se disposto a fazer alguma adoção. Foi quando Paulo Rui de Oliveira, vereador pelo MDB, dizendo-se representante da comunidade negra, veio apelar a esta que ajudasse nossos irmãos da Febem. Isto acarretou uma discussão acalorada entre o vereador e os jornalistas Hamilton Bernardes Cardoso, editor de Versus, e Neusa Pereira, militante do Movimento Negro. Tudo isto tendo como veículo o Jornal da Tarde. Paulo Rui argumentava dizendo ser da responsabilidade da comunidade negra os negrinhos que estavam na Febem, e Hamilton Bernardes Cardoso e Neusa Pereira lembravam ao vereador a condição sócio-econômica do conjunto da comunidade negra. Enquanto isto, o Juiz Nilton Silveira nega que havia racismo na adoção das crianças, ao mesmo tempo em que se contradizia, afirmando que já havia 80 famílias negras esperando a adoção. Sem levar em conta a rigidez do protocolo para adoção, é bom lembrar as palavras do sociólogo Clóvis Moura: Existem em São Paulo 150 famílias negras que podem ser consideradas (sic) de classe média... Estas 80 realmente são intrigantes”. 

Versus analisou, então, até que ponto o racismo é um sério entrave para uma política social. 

Mas ao colocar a questão racial na adoção das crianças, Paulo Rui deixou aberta a porta de um raciocínio mais abrangente. Voltemos a alguns dados acima. A população baiana tem um índice de mortalidade que triplica o índice de Angola, mesmo considerando a sua densidade demográfica. Os maiores índices de mortalidade infantil ocorrem nos estados de maioria negra, ao contrário dos estados do Sul e Sudeste. Todos os números apresentados, de desnutrição, doenças, retardamento mental dizem respeito muito mais aos negros destes estados que ao número de brancos, em sua maioria situados abaixo do Trópico de Capricórnio. As unidades de “bem estar social” são guetos estruturalmente construídos com um capricho superior ao das prisões, mas não lhes fica devendo nada em relação ao tratamento dispensado.

No Brasil vê-se a questão do racismo individual, quando este é uma versão cuja consequência brutal é institucional, gerando o desemprego, a criminalidade e a morte de milhões de negros. O sonho de “embranquecimento” do Brasil, vai, enquanto isto, à todo vapor, pois aliado a imperiosidade de miscigenação, vai se diluindo a população negra no Brasil.

“Observamos aqui um dos aspectos mais originais e notáveis da doutrina da justificação em Tillich. Lutero aplicava essa doutrina apenas à vida religiosa-moral. O pecador, não obstante ser injusto era ‘justificado’. Tillich aplica a mesma doutrina igualmente à esfera religiosa-intelectual. Nenhuma autoridade tem o direito de exigir, na verdade, a aceitação de qualquer crença ‘correta’ de quem quer que seja. A devoção à verdade é suprema; é devoção a Deus. Existe sempre um elemento sagrado na integridade que conduz à dúvida mesmo sobre Deus e a religião. Na verdade, se Deus é a verdade, Ele é a base e não o objeto das questões a seu respeito. Qualquer lealdade à verdade será sempre religiosa, mesmo quando acabar constatando a falta de verdade. Parafraseando Agostinho, a pessoa que duvida com seriedade terá de dizer: ‘Duvido, logo sou religioso’. O divino se faz presente até mesmo na dúvida. O ateísmo absolutamente sério pode se dirigir ao incondicional; pode ser uma forma de fé na verdade. Vê-se aqui a conquista da falta de sentido pela consciência da presença paradoxal do ‘sentido na própria falta de sentido’. Assim é ‘justificado’ aquele que duvida. A única atitude fundamentalmente irreligiosa é, então, a do cinismo absoluto com sua completa falta de seriedade”. James Luther Adams, idem, op., cit., pp. 302-3.

A análise da situação das crianças abandonadas levou o Versus a enfrentar-se com a realidade da discriminação racial no Brasil. Mais uma vez, tal questão poderia ter sido encarada apenas como mera questão técnica. Mas aqui o amor tem uma outra tradução: justiça.

Para Tillich, quando tomamos o conceito de justiça, concretamente, significa a lei e as instituições portadoras do amor em situações especiais. Para o socialismo, a justiça deve representar, na sociedade futura, plena de sentido de vida, o sistema de leis e formas capaz de manter e de desenvolver a segurança necessária para todas as pessoas (A Era Protestante, op. cit., p. 179). Por ora, por não existir tal sociedade, a justiça, mesmo como princípio secundário, que traduz um momento do amor, deve ser buscada.

Fica, no entanto, uma constatação colocada por Tillich: o amor é a própria vida em sua unidade concreta. As formas e estruturas do amor são as formas e as estruturas que possibilitam a vida, nas quais as forças destrutivas são superadas. Este é o sentido da ética: expressar as diferentes maneiras da concretização do amor e da manutenção e salvação da vida. (A Era Protestante, op. cit., p. 180).

lundi 24 mars 2014

Amar e ser amado

ou... Canções do amor ausente
Jorge Pinheiro, PhD


"Ai flores, ai, flores do verde pio,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?"
[Julião Bolseiro, Cantiga de amigo, do cancioneiro de Dom Diniz].

O Cântico dos Cânticos é o único livro da Bíblia que tem o amor como seu tema exclusivo. Seu título poderia ser traduzido como A mais bela das canções, o que faz juz a esta que é uma das mais bem escritas estórias de amor de toda a literatura universal. Ao traduzir a rica imaginação oriental, o texto fala de amada e amante, interligando os quadros com coros e falas de grupos de personagens, como as filhas de Jerusalém e os guardas.

O texto tem forte conteúdo erótico, parte da realidade vivida por uma jovem camponesa, mostrando que estamos diante de um exemplar da dramaturgia do período áureo da literatura poética hebraica. Várias interpretações têm sido apresentadas para O Cântico dos Cânticos. 

Aqui, faremos a leitura do Cântico dos Cânticos partindo de um conselho do intelectual inglês Daniel de Morley em suas memórias de viagens, no século 12, conforme citado por Jacques Le Goff (Os intelectuais na idade média, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1973, pp. 25-26).

Morley conta que seguiu "as Artes, que esclarecem as Escrituras, em vez de as saudar à passagem ou de as evitar, fazendo resumos. Então, como nos dias de hoje é em Toledo que o ensino dos Árabes, que consiste, quase exclusivamente nas artes do quadrivium, é dispensado às multidões, apressei-me a partir, para aí ouvir as lições dos mais sábios filósofos do mundo. Tendo alguns amigos pedido para eu voltar e tendo sido convidado a deixar a Espanha, vim para Inglaterra com uma preciosa quantidade de livros".

"Que ninguém se indigne se, tratando da criação do mundo, eu invoco o testemunho não dos Padres da Igreja, mas de filósofos pagãos, porque, ainda que estes não figurem entre os fiéis, algumas das suas palavras, desde que sejam cheias de fé, devem ser incorporadas no nosso ensino. Nós que também fomos misticamente libertados do Egito, o Senhor ordenou-nos que despojássemos os Egípcios dos seus tesouros, enriquecendo com eles os Hebreus. Despojemos, pois, conforme o desejo do Senhor, e com a sua ajuda, os filósofos da sua sabedoria e da sua eloqüência, despojemos esses infiéis de modo a enriquecermo-nos com os seus despojos na fidelidade". 

Queremos aprender com as cantigas de amigo, do medieval ibérico, por terem semelhanças que podem nos ajudar a entender a poesia de Cantares. As cantigas de amigo eram de autoria masculina, assim como Cantares e, também, apresentavam um eu lírico feminino.

Para entender esta questão do eu lírico feminino, é bom ler Magadelene Luise Frettloeh, O amor é forte como a morte: uma leitura de Cânticos dos Cânticos com olhos de mulher (in: Fragmentos de Cultura, Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás, IFITEG, Goiânia/GO, Brasil, 2002, vol.12, no. 4, pp .633-642).

Ela explica que é necessário ler Cântico dos Cânticos em perspectiva de gênero, pois neste livro canta-se o amor espontâneo entre uma mulher e um homem, um amor que é forte como a morte.

E que nos poemas do início e do final do livro há um protagonismo feminino: "no decorrer da história da interpretação tentou-se soterrar essa herança; hoje importa redescobri-la". 

Assim, encontramos tanto no Cântico dos Cânticos como nas Cantigas de Amigo a questão do amante ausente: a amada estava a espera dele ou tinha sido abandonada. Ambas poéticas traduzem a força do Eros humano. Outra característica marcada das cantigas de amigo era o fato de estar dirigida às amigas, a mãe ou irmãs, ou as forças da natureza e, em alguns casos, a Deus. A ambientação, rural ou urbana, estava sempre distante do castelo do senhor feudal.

Um dos maiores cancioneiros do medieval ibérico foi Julião Bolseiro e um de seus poemas, que intercala este artigo, expressa esse eu lírico feminino, que se lamenta porque o amante desapareceu e ela não sabe onde se encontra.

O amor entre os dois, diferentemente do amor cortês, vigiado, expressa a força do natural e espontâneo no amor humano, pois a cantiga parece insinuar que houve um relacionamento físico entre os amantes.

Nesta cantiga de amigo, a ambientação é rural, e não somente distante do castelo do senhor feudal, mas com presença marcante da natureza.

"Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss' amigo?
E eu ben vos digo que é são e vivo:
ai, Deus, e u é?"

Uma interpretação, quase unânime entre antigos rabinos e os pais da Igreja, considera o rei Salomão o herói da estória. Dentro desta perspectiva, o roteiro seria mais ou menos assim: o rei possuía um vinhedo na região de Efraim, 80 quilômetros ao norte de Jerusalém (8:11). Essas terras estavam arrendadas (8:11) a uma viúva e seus quatro filhos (dois rapazes e duas moças -- cf. 6:13, 1:5 e 6). A Sulamita, a mais bonita das filhas, era responsável pela casa e também cuidava dos rebanhos (1:8).

Certo dia, o rei, disfarçado para não ser reconhecido, visitou o vinhedo e ficou impressionado com a beleza da moça. Ela tomou Salomão por um pastor de ovelhas e este lhe dirigiu palavras de amor, prometendo voltar no futuro e lhe trazer presentes (1:8-11). À noite, a moça sonhava com a volta do amado, chegando mesmo, em determinado momento a pensar que ele estava chegando (3:1). Mais tarde, ele volta. Mas, agora, não como camponês e sim como rei de Israel (3:6 e 7). Segue-se, então, o casamento e seus desdobramentos.

Partindo desse roteiro temos cinco poemas: 

Título e prólogo - Cap. 1:1 a 1:4
1. O desejo e a satisfação da jovem camponesa - Caps. 1:5 a 2:7
2. A visita do amado e o sonho da moça - Caps. 2:8 a 3:5
3. A festa de casamento e as canções do rei - Caps. 3:6 a 5:1
4. A tardia recepção da amada e sua busca prolongada - Caps. 5:2 a 6:3
5. Sulamita e seu amado conversam - Caps. 6:4 a 8:4.
Epílogo e últimas adições - Cap. 8:5 a 8:14.

Para o teólogo chileno Samuel Fernández Eysaguirre, "A manifestis, ad occulta, Las realidades visibles como único camino hacia las invisibles en el comentario al Cantar de los Cantares de Orígenes" (in: Anales de la Facultad de Teología. Universidad Católica - Campus Oriente, Santiago, Chile, 2000, vol. 51, no. 2, pp.135-159) a leitura literalista levou os teólogos da Igreja antiga a um beco sem saída:

"Una lectura meramente literal del Cantar de los Cantares presentaba graves dificultades a la sensibilidad religiosa de la antigüedad. El libro exalta, al menos en su sentido inmediato, el amor humano y abunda, como pocos textos bíblicos, en descripciones de los miembros del cuerpo.

Y por otra parte, el Cantar no menciona explícitamente a Dios. El sentido literal del texto no parecía edificar moralmente a sus lectores. Era posible preguntarse ¿qué hace en las Escrituras un libro que no habla de Dios? Las serias dificultades que presentaba su lectura literal, sumadas al carácter poético del Cantar, favorecían fuertemente una interpretación de tipo simbólica, interpretación que se impuso tanto en el ámbito judío como cristiano. Las dificultades recién descritas llevaron a algunos rabinos a dudar de la canonicidad del Cantar...".

"Vós me preguntades polo voss' amado?
E eu ben vos digo que é viv' e são:
ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é são e vivo
e seerá vosc' ant' o prazo saido:
ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv' e são
e s[e]erá vosc' ant' o prazo passado:
ai, Deus, e u é?"

Outra interpretação, formulada pelo teólogo Heinrich Ewald, no século 19, vê no amante um pastor de quem a jovem estava noiva, antes de ser capturada e levada para o harém de Salomão, por um de seus servos. Depois de ter resistido com sucesso a todas as tentativas do rei para conquistar sua afeição, ela é libertada e se reúne a seu amado, com quem aparece na cena final. 

A jovem relembra o amado (1:2 e 3). Pede que ele a leve de volta logo, pois o rei a introduziu nas seduções da corte (1:4). Suas recordações do amado a perturbam (1:7). O rei tenta seduzi-la com jóias (1:11) e perfumes (1:12), mas ela prefere o cheiro do campo que lembra o corpo do amado (1:13 e 14). A moça se recorda de uma visita feita por ele e de um sonho que se seguiu (2:8 - 3:5). Depois disso, ela é novamente visitada e louvada por Salomão (3:6 - 4:7). Diante da persistente ofensiva do rei, antecipa seu casamento com o jovem camponês (4:8 - 5:1). Sua vida e seus sonhos estão impregnados com as lembranças do amado (5:2 - 6:3). Salomão mais uma vez tenta conquistar Sulamita (6:4 - 7:9). Ela, no entanto, mantém sua fidelidade ao pastor e resiste às tentativas do rei (7:10 - 8:3). Diante disso, Salomão a liberta, verificando que é impossível conquistar a moça.

Dentro desta perspectiva, é interessante ler "Cântico dos Cânticos, O fogo e a ternura" de Ney Brasil Pereira e Pablo Andiñach (Col. Comentário Bíblico, Petrópolis/São Leopoldo, Editora Vozes/Editora Sinodal, 1998, 128p., in: Estudos Bíblicos. Editora Vozes, Petrópolis/RJ, Brasil, 2000. no. 65, p9.81-84).

Para os dois teólogos, os poemas do Cântico foram escritos, em sua redação final, por uma mulher. Seria, portanto, o único livro da Torá, de uma autora. Isso dá ao comentário um cunho especial, uma vez que se assume que ela, a autora, tenha deixado nos poemas sua marca feminina e seu modo peculiar de viver a sexualidade e a vida. Ao mesmo tempo, a autora teria feito uma crítica sutil, mas firme, ao modelo salomônico de sexualidade, marcado pela frivolidade e a poligamia.

A partir dessa interpretação temos outro roteiro: 

1. No palácio, a moça relembra o amado e é assediada por Salomão - Caps. 1:1 a 2:7
2. Lembra-se de uma visita do jovem e de um sonho - Caps. 2:8 a 3:5
3. Sulamita mais uma vez é visitada e elogiada por Salomão - Caps. 3:6 a 4:7
4. Resiste às investidas do rei e antecipa seu casamento - Caps. 4:8 a 5:1
5. A moça relata outro sonho e descreve seu amado - Caps. 5:2 a 6:3
6. Salomão mais uma vez tenta conquistar Sulamita - Caps. 6:4 a 7:9
7. Saudosa e fiel, a moça anseia a companhia do amado - Caps. 7:10 a 8:3
8. Enfim, recebe alforria, e retorna para casa com seu esposo - Cap. 8:4 a 8:14.

Em meio às várias interpretações, é bom relembrar, como diz Isidoro Mazzarolo, Cântico dos Cânticos - "Uma leitura política do amor" (1a. ed., Mazzarolo Editor, Rio de Janeiro/RJ, Brasil, 2002. 249 p.), que "o livro dos Cânticos está entre as grandes obras da sabedoria bíblica ao propor uma visão do ser humano, homem e mulher, como duas criaturas colocadas no universo e dotadas de liberdade e dignidade". 

Assim, a mensagem de amor permanece. E talvez possamos dizer, como as Cantigas de Amigo nos lembram, que esta é a grande mensagem do livro.

Os cristãos-novos em Minas Gerais

A Influência dos judeus “cristãos-novos” na cultura mineira
Rita Miranda Soares em 26/07/2012

O povo brasileiro é fruto e fonte criadora de pluralidade cultural. A presença de outros povos em território nacional ajudou a moldar algumas de nossas principais características culturais, desde o desembarque de Cabral na terra que viria a ser o Brasil.

Essa diversidade deve ser reconhecida, respeitada e valorizada. Pois um povo que não conhece suas raízes, é um povo sem identidade. Pensando nisso, procuramos resgatar nesse estudo a influência da cultura judaica sefaradim na civilização brasileira, especialmente em Minas Gerais, que é o tema central da nossa pesquisa. Consideramos importantíssimo marcarmos essa influência e nos lembrarmos da vertente judaica junto com o índio, junto com o negro, junto com o português, e com vários outros povos – italianos, sírios e libaneses, poloneses, japoneses, etc. – que aqui vieram compartilhar conosco da sua cultura.

Resgatar esses valores é resgatar a própria cultura mineira, a qual está intrinsecamente ligada à tradição milenar desse povo. Tradição que se viu camuflada, esquecida em muitas casas, simplesmente para que as famílias pudessem fugir às mãos de ferro da Inquisição. Quantos jovens e crianças não tiveram de renegar seu sangue, sua crença, sua família? Quantos homens e mulheres não se viram obrigados a deixar seus lares, suas terras e seus parentes, jogados numa aventura de futuro incerto, em frágeis naus, a fim de virem para uma terra estranha, sem saber o que os aguardava?!

A Península Ibérica (Portugal e Espanha) contribuiu, de maneira avassaladora, durante a Inquisição que durou cerca de três séculos, se não para o genocídio, pelo menos para o abafamento de boa parte da cultura, religião e arte de um povo de tão rica formação humanística. A assimilação deles em nossa cultura foi imposta pela Inquisição, sob pena de expatriação ou morte, deixando muitas características judaicas no substrato dos brasileiros. O estudo não pretende ser histórico nem profundo, apenas aborda e defende que muitos costumes, hábitos ou tradições do interior mineiro sofreram influência marcante dos judeus sefaraditas portugueses que vieram para Minas fugindo da Inquisição no nordeste brasileiro.

Após o batismo forçado pela Inquisição de Portugal, esses judeus ficaram conhecidos como “cristãos-novos”, para diferenciá-los dos “cristãos-velhos”. Muitos continuaram a praticar a sua religião secretamente e, por isso, eram constantemente vigiados e denunciados ao “Santo Ofício” como judaizantes; estes tinham todos os seus bens confiscados, além de viverem humilhados e confinados naquele país, isso quando não eram torturados e queimados vivos nas fogueiras.

O descobrimento do Brasil em 1500 foi uma porta que se abriu para esse povo perseguido. Milhares de “cristãos-novos” vieram para o Brasil na época da colonização já em 1503 (GUIMARÃES, 1999). Mais tarde, com a atuação do Tribunal do Santo Ofício na Bahia em 1591/93, e em Pernambuco em 1593/95 e novamente na Bahia em 1618, os judeus que, a princípio, se encontravam nessas duas capitanias, dispersaram-se por todo o Brasil, principalmente para o Sul e Sudeste (LOURENÇO, 1995). Com a descoberta do ouro nas capitanias de Minas em fins do século XVII, ocorre um movimento em direção ao território mineiro. Segundo a historiadora FERNANDES (2000), a maioria era formada por cristãos-novos que se estabeleceram na região, em atividades econômicas e no comércio.

Mas que marcas eles deixaram na formação do povo mineiro? Que costumes, hábitos ou tradições podemos identificar em Minas como sofrendo influência daqueles judeus cristãos-novos? Que influência exerceram na formação da nossa identidade?

A este grupo étnico que ajudou a povoar o Brasil nos três primeiros séculos do descobrimento e a seus descendentes que ora representa o grosso da população brasileira, devemos esta grande similitude com os sefaradins ibéricos. A alma profundamente quebrantada pela fé em D’us, o espírito pacífico e de bom humor, um povo amante da paz com uma grande capacidade para viver e sair de situações difíceis e adversidades seculares – o famoso “jeitinho” brasileiro – , uma tendência universalista para as coisas filosóficas, as habilidades com o comércio, etc. Em suma, um povo apaixonado e obstinado, uma raça bonita e sábia, apesar de seus defeitos e mazelas.

Analisando estas e outras características, percebe-se claramente que o povo do interior do estado de Minas Gerais parece ser o retrato mais fiel dos judeus portugueses do século dezesseis a dezoito que vieram povoar este país.

O temperamento do homem dessas regiões, seu aspecto físico, os costumes em vigor até bem pouco tempo, herdados dos antepassados povoadores, indicam influência preponderante desses judeus ibéricos. Também os registros de nomes demonstram uma concentração de judeus cristãos-novos nessa região do interior mineiro, proporcionalmente entre as mais densas do mundo.

O cancioneiro popular de Minas exprime bem o espírito mineiro. Aqui as coisas são feitas sem pressa, para durar – o tempo pouco importa. Diz-se que o mineiro é “fechado” como sua terra. Esse fechamento traduz-se numa sobriedade evidenciada no seu modo de ser – no comer, no vestir, no falar. O mineiro escuta muito mais do que fala e não demonstra facilmente seus sentimentos. “Não desperdiça gestos, como não desperdiça nada”(Alceu Amoroso Lima).

Certamente aprendemos com nossos antepassados a não desperdiçar, pois seus bens tinham sido espoliados pela Inquisição e vieram para o Brasil sem nada para aqui construírem suas vidas. Daí o conceito de que o mineiro é “pão-duro”, em outras palavras, “econômico”. O mineiro “calado” aprendeu com seus ancestrais a esconder seus sentimentos e crenças para não ser vítima dos “deduradores” ou “espiões” da Inquisição. Tanto é assim, que quando alguém está fazendo perguntas demais, diz-se que ele está inquirindo muito (inquisição = ato ou efeito de inquirir).

E o tradicionalismo mineiro? Quando se fala na “tradicional família mineira” associa-se logo a idéia a uma atitude ultraconservadora. O sistema patriarcal mineiro tem suas raízes nos colonizadores cristãos-novos vindos na época da mineração – aqui chegaram com seus valores tradicionais intactos, plantando-os em Minas. O mineiro é triste, repete-se constantemente. De uma tristeza guardada, que transparece em sua arte e só se denuncia sutilmente, em gestos discretos. De onde viria essa tristeza? Talvez da saudade que se perdeu no tempo. Saudade que os judeus sentiram quando deixaram a terra onde viveram por tantos séculos – a península ibérica – e emigraram para o Brasil. Também da tristeza de se saber perseguido e vigiado por onde quer que vá.

É em Minas também que se encontram as primeiras expressões de nacionalidade e de justiça. E de reivindicações pelos direitos adquiridos, presentes nos motins e revoltas do século XVIII. A circulação do ouro e de diamantes levava, em seu bojo, a circulação das idéias, suscitando rebeliões que, hoje, são reconhecidas como sementes de nossa independência nacional e de nosso acesso à modernidade. A sucessão de rebeliões impressionou o governador, conde de Assumar, que, queixando-se ao rei pela sublevação de Felipe dos Santos, Vila Rica (1720), afirma: “O espírito de rebelião é quase uma segunda natureza das gentes de Minas” (FERNANDES, 2000).

O que era rebelião para o reino português, significava justiça para o povo mineiro. Foi a dominação e a insubmissão, a coragem e o medo, a desconfiança e a luta, a saudade e a esperança, a discrição e o apego à liberdade, que fizeram um povo mineiro profundamente ligado ao seu berço, à sua gente e à sua terra. A descoberta do ouro em Minas que, segundo alguns autores se deveu ao cristão-novo Antônio Rodrigues Arzão, em 1693, acarretou forte movimento migratório, vindo da própria Colônia ou da Metrópole para o interior. Na primeira metade do século XVIII, segundo Neusa FERNANDES (2000), estima-se que a corrida do ouro levava para as Minas, oito a dez mil pessoas por ano.

Em pouco tempo, a capitania de Minas Gerais tornou-se a mais populosa da Colônia, suplantando a da Bahia e a do Rio de Janeiro. Vila Rica, uma das primeiras vilas surgidas, foi o centro comercial da capitania, onde atuaram a maioria dos cristãos-novos processados pela Inquisição em Minas. No meado do século, uma grande comunidade judaica tentou fundar uma irmandade clandestina na cidade. O historiador Elias José LOURENÇO (1995, p. 73-77) nos conta com maior clareza este fato e narra os costumes que ele encontrou ali e em outras regiões próximas:

“Em Vila Rica, meados do século dezoito, havia uma comunidade judaica muito bem disfarçada, que tentou organizar-se numa falsa irmandade, com o título de “fiéis de Deus”. Como se sabe, assim se intitulavam os seguidores do profeta Eliseu, que em meio da idolatria de Israel, proclamava sua fidelidade a Yaveh. Chegaram a ocupar uma casa junto da atual capela do Bom Jesus dos Perdões, então em construção, e enganaram o bispo de Mariana, que somente depois de muito tempo desconfiou dessa confraria e resolveu dissolvê-la. Esse e outros fatos, que seria longo enumerar, explicam os costumes que ainda encontrei em minha infância e mocidade e que perduram no interior de Minas.[...] Os filhos e netos de judeus, perdida a lembrança religiosa, adotaram a prevenção contra os do seu sangue e acometiam contra eles com frases que os depreciavam. [...] O sujeito econômico, “unha de fome”, como se dizia, era apelidado de somítico, isto é, semítico. Fazer sofrer alguém, prejudicar, ofender, etc., era “judiar”… Afirma-se que quando um judeu disfarçado, ou seja, marrano, estava para morrer, a fim de evitar que novamente ele se revelasse adepto da lei de Moisés, comprometendo os demais, era logo chamado o “abafador”, isto é, um sujeito que tinha por missão estrangular habilmente o doente. Isso permaneceu em nossos costumes com os conhecidos personagens que “ajudavam a morrer”. Quando alguém definhava em moléstia longa, diziam que “estava tão fraco que nem tinha força para morrer”. Chamando o abafador, ele afastava do quarto do doente as pessoas da família, encostava a porta e começava a operação. Punha um crucifixo nas mãos do doente, passava os braços pelas costas e aplicava o joelho contra o tórax… À medida que ia aumentando a compressão contra o peito do moribundo, asfixiando-o, em voz alta, para ser ouvido de fora, ia dizendo: – Vamos, meu filho! Nosso senhor está esperando! Quando o paciente exalava o último suspiro, o abafador compunha o corpo, chamava as pessoas da família e lhes comunicava que o fulano havia morrido “como um passarinho”, isto é, suavemente [...] Esses homens que “ajudavam a morrer” ainda existem em distantes povoados de nosso interior. “Lamparina” é um ritual judaico e persiste no interior do estado. Ainda de uso doméstico, acendia-se a lamparina de azeite no quarto da parturiente porque a criança, antes de ser batizada ou passar pela circuncisão, não pode ficar no escuro. [...]. Aos sábados, acendia-se diante do oratório uma vela, que deveria arder até o fim do dia, costume judaico que se cristianizou [...]; os sábados eram ainda os dias de vestir “roupa lavada”. O sinal de hospitalidade mais sensível, revelador de especial atenção para com um viajante, e a primeira coisa a fazer antes de qualquer alimento, era mandar-lhe ao aposento uma bacia de água morna para lavar os pés. Recordação milenar dos desertos da Ásia, transformada em cortesia. Em Minas, em São Paulo e creio que em quase todo o Brasil de povoamento antigo, ninguém comia carne de animal de sangue quente que não tivesse sido “sangrado”(ex.: a galinha). Este uso é de uma importância transcendente para o judeu, e como tal ficou arraigado em seus descendentes como costume irrevogável.[...]. Do mesmo modo, apesar da riqueza piscosa de nossos rios, ela nunca constituiu base de alimento para nossas populações, salvo as forçadamente ribeirinhas. Era colossal o consumo de peixe salgado que vinha para Minas, em lombo de burro, no período colonial, substituído depois pelo bacalhau. É que os peixes mais abundantes em nossos rios são “peixes de couro”, expressamente proibidos pelo livro de Levítico”.

Com o passar do tempo, passando a febre do Eldorado, os cristãos-novos se segregaram, por assim dizer, entre as montanhas de Minas, longe dos litorais e portos marítimos, distantes de outras correntes migratórias, dando ao povo mineiro peculiaridade étnica e cultural com características bastante definidas. No começo, famílias como os Leões, os Fortes, os Henriques, os Carneiros, os Campos, etc., chegaram a constituir povoados, verdadeiros “guetos”, que ainda hoje se reconhecem por não terem capelas em suas ruínas, em constraste com os fundados por cristãos-velhos, onde a igreja era uma das primeiras edificações (LEAL, 2000). Em Paracatú, Serro Frio, Sabará e imediações e em Pitanguí tinham suas maiores aglomerações. Eram numerosos também nos arraiais que cercam Ouro Preto e Mariana e ao longo do caminho do Rio Grande e da Bahia. Havia, porém, cristãos-novos espalhados por todo o território mineiro: nas estradas, nas entradas das vilas e nos caminhos de “ir-e-vir”.

Considerando-se o trabalho desbravador que esses cristãos-novos realizaram e os movimentos comerciais que inovaram, pode-se dizer que a eles se deve a realização dos primeiros contratos, a criação dos primeiros empregos, promovendo negócios e instrumentos que revertiam para a Coroa portuguesa, ficando, porém os lucros e parte da riqueza em mãos dos moradores. A historiadora Neusa FERNANDES (2000) nos relata que a terceira década do século XVIII foi o período em que a ação inquisitorial tomou maior impulso em Minas. Num espaço de dez anos, foram presos em Minas cerca de 30 cristãos-novos, todos acusados de judaísmo. Ao ler os processos analisados pela historiadora em seu livro, percebemos que muitos deles foram criados na religião católica, até a idade de 11, 12, 13, 19 ou mesmo 20 anos, quando então abraçavam o judaísmo, persuadidos ou influenciados pela avó, ou pela mãe. Sabemos que no judaísmo é a mulher quem educa as crianças, cabendo-lhe a tarefa de ensinar-lhes todas as tradições e costumes. Esse hábito está ainda presente nas famílias mineiras, onde à mulher cabe a tarefa de educar os filhos, discipliná-los e iniciá-los na religião, ficando o marido apenas com a incumbência de trabalhar e suprir a casa.

Além disso, a “religião de verniz” ou o “ir para a igreja sem convicção interior”, atribuída pelo clero católico aos brasileiros em geral, é originária, talvez, do comportamento dos cristãos-novos que, por circunstâncias ou displicência, ficavam anos embrenhados nas matas, sem comungar e confessar. A posição espiritual do brasileiro, que se mantém relativamente indiferente nas discussões religiosas, pode ser fruto do conturbado ambiente sócio-religioso-colonial (MIZRAHI, 1999) da época. Os três séculos de perseguição, movidos pela Inquisição aos cristãos-novos luso-brasileiros levaram o grupo ao inconformismo. Vivendo numa “marginalidade interior”, “homem dividido” segundo a historiadora Anita Novinsky, temendo sempre possíveis denúncias, o cristão-novo tornou-se permeável e atraído para idéias e movimentos de oposição ( Como prova a Inconfidência Mineira).

O cristão-novo se sentia em permanente transgressão. Não era católico nem judeu. Praticava um dualismo religioso, apresentando-se exteriormente como cristão-novo e praticando os ritos judaicos dentro de casa ou da prisão, sempre com a preocupação de se ocultar para não despertar suspeitas nos vizinhos. Essa situação é bem expressa no romance “A saga do marrano” (AGUINIS, 1996):

“A nós foi aplicada e continuam a aplicar a violência. O efeito é trágico: somos católicos na aparência para sobreviver na carne, e somos judeus por dentro, para sobreviver no espírito” .

A influência mais forte dessa ambigüidade, desse dualismo, talvez esteja no “fechamento dos mineiros”, no seu jeito calado, na sua resistência em falar das suas crenças mais íntimas. Guardados nas montanhas de Minas, estão até hoje muitos traços dos cristãos-novos e seus descendentes, expressos no que se chama hoje de: conservadorismo mineiro, política mineira ao pé do ouvido, pão-durismo mineiro, humor mineiro, desconfiança mineira, o jeito amaneirador do povo mineiro, a superação de obstáculos, o apego à justiça, enfim, toda “mineirice” se identifica muito com os judeus portugueses dos séculos XVI, XVII e XVIII.

A seguir, procuramos listar alguns costumes judaicos incorporados à tradição mineira, a maioria do livro do LEAL (2000) , outros tirados da informação verbal e da tradição oral:

• Passar a mão na cabeça: isto é, relevar, perdoar, acarinhar, ignorar uma falta de alguém. É a bênção judaica.

• Sefardana: Para o historiador Augusto de Lima, a expressão insultuosa de Sefardana é deturpação intencional dos nomes “Sefarad” [1] e “Sefaradins”.

• Jurar pelo eterno descanso de um morto querido: juro pela alma do meu pai, ou da minha mãe, e assim por diante. É resíduo de um rito judaico.

• Deus te crie: ante o espirro de uma criança. Herança da frase hebraica – Hayim Tovim.

• Amuletos: usado muito no interior, os signos de Salomão ou de David (a estrela de seis pontas) e até mesmo nas porteiras e muros das casas, embora para o judeu não seja amuleto, mas seu significado foi deturpado entre os descendentes assimilados.

• Varrer a casa: da porta para dentro das casas, costume arraigado até os dias de hoje.

• Passar mel na boca: quando da circuncisão, o Rabino passa o mel na boca da criança para evitar o choro. Daí a origem da expressão: “Passar mel na boca de fulano”.

• Siza: vem do hebraico “Sizah”, quando vai pagar o imposto. Pagar a siza.

• Massada: palavra muito usada pelos mineiros para explicar uma tragédia: “foi uma massada”. A fortaleza de Massada, perto do Mar Morto, foi destruída pelos romanos nos anos 70 d.C., quando pereceram mais de 800 judeus, segundo afirma Flávio Josefo.

• Lavar os mortos: largamente usado no interior das Minas Gerais. Usado ainda, em algumas regiões. Está bem desaparecido.

• Para o santo: o hábito sertanejo de, antes de beber, derramar uma parte do cálice, tem raízes no rito hebraico milenar de reservar, na festa do pessach (páscoa), copo de vinho para o profeta Elias (representando o Messias que ainda virá).

• Punhado de terra: costume de jogar terra no caixão quando ele é descido na sepultura.

• Mezuras: fazer mezuras, reverências. Talvez venha do Mezuzah [2]hebraico colocado nas portas, ao qual os judeus antes de entrar fazem uma reverência.

• Carapuça: a expressão “fulano de tal pôs a carapuça”, ou “esta carapuça não serve para mim”, vem dos tempos da Inquisição, quando o réu era obrigado a colocar uma carapuça sobre a cabeça, assumindo a culpa..

• Judiar: termo/dito-popular que vem dos tempos da Inquisição, em que se maltratavam e perseguiam os judeus – significa atormentar e torturar os judeus.

• Mesa de mineiro tem gaveta para esconder a comida quando chega visita:esse costume, conhecido dos mineiros e relacionado à sovinice, tem outra raiz. É o costume que tinham os cristãos-novos e que passou aos seus descendentes, de guardar a comida que estavam comendo quando chegava um visitante – normalmente um cristão-velho. Para isso, as mesas da copa tinham gavetas. A raiz desse costume é que muitos cristãos-novos, apesar do batismo forçado, continuavam praticando secretamente a sua religião. E no judaísmo, a comida deve ser kasher, ou seja, a comida recomendada pela Torah, na qual existem alimentos proibidos aos judeus – Levíticos 11 – como, por exemplo, a carne de porco, peixe sem escama, etc. Dentro desse preceito, há receitas tipicamente judaicas. E se um cristão-velho chegasse de repente à casa e visse essa comida típica, fatalmente o cristão-novo seria reconhecido e denunciado. Por isso, eles guardavam o que estavam comendo nas gavetas, e ofereciam outra coisa ao visitante, como o queijo minas, por exemplo. Esta é a raiz desse costume, que muitos mineiros até brincam a respeito, mas que não está relacionado à sovinice e sim ao medo da delação (MENDA, 2000) [3].

• Lenda da Verruga: como se sabe, o dia no judaísmo começa na véspera. Então, o “shabat” – descanso judaico no Sábado, começa na véspera com o nascimento da primeira estrela. Se um judeu apontasse para o céu quando visse a primeira estrela para anunciar o início da festa do Shabat, como cristão-novo ele estaria se denunciando. O adulto poderia se controlar, mas o que se diria para as crianças? “- Não aponta que se nasce verruga”. Era a única maneira de poder controlá-las, para que a família não fosse descoberta e perseguida pela Inquisição (MENDA, 2000).

• Ficar a ver navios: era a época de ouro da Península Ibérica. O rei Dom Manuel precisava dos judeus portugueses, pois eram toda a classe média e toda a mão-de-obra, além da influência intelectual. Se Portugal os expulsasse logo como fez a Espanha, o país passaria por uma crise terrível. Então o rei fingiu marcar uma data de expulsão, que era a Páscoa. No dia marcado, estavam todos os judeus no porto esperando os navios que não vieram. Todos foram convertidos e batizados à força, em pé. Daí a expressão: “ficaram a ver navios”. O rei então declarou: não há mais judeus em Portugal, são todos cristãos (cristãos-novos). Era 1492. Durante mais ou menos 30 anos eles continuaram praticando o judaísmo por debaixo do pano, às escondidas, mas com tolerância portuguesa, até a chegada da Inquisição. Com a Inquisição, veio a vigilância, a perseguição, a intolerância, e foi aí que muitos vieram para o Brasil fugindo dela(MENDA, 2000).

Além dos costumes e expressões mencionadas acima, há um outro aspecto que gostaríamos de mencionar, embora seja tema para outro estudo mais amplo. É a questão dos sobrenomes.

Até a época de Napoleão, o judeu não tinha sobrenome: era “fulano filho de fulano” – não tinha identidade civil. Com a conversão forçada, eles têm de assumir um sobrenome e adotam nomes de famílias tradicionais cristãs, ou nome de um local, ou de uma árvore, ou da sua profissão, ou de um animal, ou de um português ilustre.

Os arquivos da Inquisição da Torre do Tombo, em Lisboa, pesquisados por WIZNITZER (1996, p.35), traz os nomes de 25 judaizantes brasileiros processados na Bahia, dos quais citaremos apenas alguns sobrenomes: Antunes, Costa, Duarte, Gonçalves, Fernandes, Lopes, Mendes, Miranda, Nunes, Rois, Souza, Teixeira, Ulhoa e outros.

Outros sobrenomes de pessoas processadas no Brasil pela Inquisição, devidamente documentados, são (GUIMARÃES, 1999): Abreu, Andrade, Barros, Borges, Cardozo, Carvalho, Coelho, Carneiro, Cunha, Ferreira, Figueira, Gomes, Henriques, Leão, Lemos, Machado, Miranda, Moura, Nogueira, Oliva, Oliveira, Paes, Pinheiro, Pires, Ramos, Rios, Reis, Serra, Sylva, Simões, Soares, Tavares, Telles, Valle, Vaz, etc.

Acompanhando a história dessas famílias, nota-se que grande parte delas se dirigia em direção ao Sul, fixando residência nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Outros subiam em direção ao norte do país, especialmente Pernambuco e Pará (GUIMARÃES,1999). Esses estados também foram muito influenciados por uma série de costumes judaicos, que não abordaremos nesse estudo. Ressaltamos que não podemos afirmar que todo brasileiro, cujo sobrenome conste desta lista seja necessariamente descendente de judeus portugueses. Para saber-se ao certo precisaria de uma pesquisa mais ampla, estudando a árvore genealógica das famílias, o que pode ser feito com base nos registros disponíveis nos cartórios.

Apesar disso, o que queremos frisar é que há uma grande concentração desses sobrenomes em Minas (e outros que não citamos por questão de espaço), mostrando a descendência dos cristãos-novos. A influência histórica judaica-sefardita é inegável.

A história da formação do povo mineiro e do povo brasileiro em geral, estará mutilada até que se faça um profundo estudo sobre os cristãos-novos e seus descendentes da Península Ibérica, e da grande influência que exerceram na vida do povo mineiro e brasileiro espalhado por esse imenso país.

Essa história está muito próxima de nossos olhos, de nosso tato, de nossos costumes, portanto é muito reveladora e com fatos muito evidentes. Basta escrevê-la sem tendências e nem preconceitos.

Orgulhemo-nos, como mineiros, da nossa herança cultural. Afinal, um povo para crescer, precisa da sua identidade, e para um povo conhecer sua identidade, precisa conhecer e resgatar suas raízes o mais profundo que puder.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. AGUINIS, Marcos. A saga do marrano. São Paulo: Scritta, 1996. 486 p.
2. FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2000. 204 p.
3. GUIMARÃES, Marcelo Miranda. Você sabia que muitos brasileiros são descendentes de judeus? Revista de estudos judaicos. Belo Horizonte: v.2, n.2, p.42-47, dez.1999.
4. LEAL, Waldemar Rodrigues de Oliveira. Os judeus em Minas Gerais: “cristãos-novos”. Belo Horizonte: Luciana Leal Ambrosio, 2000. 36 p.
5. LOURENÇO, Elias José. Judeus: os povoadores do Brasil colonia. Brasília: ASEFE, 1995. 88 p.
6. MEGRICH, José. Quinto centenário do descobrimento do Brasil e dos primeiros judeus refugiados. Menorah. Rio de Janeiro, v.38, n.480, p.21, maio/junho 1999.
7. MENDA, Nelson, KUPERMAN, Jane. Programa Jô Soares: entrevistas.Direção Globo. Filme VHS, 2000, 22min., color. (Fita de vídeo, gravação particular da TV).
8. MINAS Gerais: berço da riqueza do Brasil. São Paulo: Três, 1994. 99p.
9. MINAS Gerais: mapa econômico. In: A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Neusa Fernandes. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2000, p. 91.
10. MIZRAHI, Rachel. Os 500 anos da presença judaica no Brasil.Revista de estudos judaicos. Belo Horizonte, v.2, n.2, p. 59-65, dez. 1999.
11. SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos-novos, jesuítas e Inquisição. São Paulo: Pioneira, 1969. 222 p.
12 .________. Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro(1695-1755): relações com a Inglaterra. São Paulo: Pioneira de Estudos Brasileiros, 1992. 197 p.
13. ________. Os cristãos-novos: povoamento e conquista do solo brasileiro, 1530-1680. São Paulo: Pioneira, 1976. 406 p.

BIBLIOGRAFIA

1. FALBEL, Nachman. Estudos sobre a comunidade judaica no Brasil. São Paulo: Federação Israelita do Estado de São Paulo, 1984. 197 p.
2. SARAIVA, Antonio José. Inquisição e cristãos-novos. 4 ed. Porto: Nova Limitada, 1969. (Coleção Civilização Portuguesa – v. 2) 317 p.
3. WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. São Paulo: Pioneira, 1966. 217 p.
4. WOLFF, Egon e Frida. Judeus nos primórdios do Brasil-república. Rio de Janeiro: Biblioteca Israelita H.N. Bialik / Bloch, 1982. 384 p.
___________________[

1] Sefarad – quer dizer “Península Ibérica” em hebraico.
[2] Mezuzah – pedaço de madeira ou metal ôco por dentro que contém dentro dela um pequeno rolo escrito em hebraico o texto de Deuteronômio 6:4-9. A mezuzáh é pregada em cada porta da casa de um judeu para lembrá-lo de que D’us é único e de que ele deve cumprir e obedecer seus mandamentos.
[3] MENDA, Nelson, KUPERMAN, Jane. Casal de origem sefaradita que pesquisa a influência da cultura judaica sefaradita na vida dos brasileiros, entrevistado pelo Programa Jô Soares, nov.2000.

Fonte
http://anussim.org.br/a-influencia-dos-judeus-cristaos-novos-na-cultura-mineira/

Judeus desconhecidos

Sobrenomes - Os judeus desconhecidos 

Teodosio Muñoz Molina* 

Eram tão orgulhosos, por exemplo, que cada família pintava a casa da mesma cor que seus pais. E não sabiam que a cor das casas era uma alusão às suas origens, o sangue que haviam herdado de seus antepassados junto com as casas. Não sabiam que, muitos séculos atrás, os normandos tinham por costume pintar as casas de branco, enquanto os gregos utilizavam sempre o azul, e os árabes distintos tons de rosa e de vermelho. Os judeus por sua vez usavam o amarelo. Contudo, todos eles se consideravam sicilianos. Os sangues haviam sido tão mesclados no decurso dos séculos que já não se podia identificar o proprietário de uma casa por suas feições e, se alguém tivesse dito ao dono de uma casa amarela que tinha antepassados judeus, poderia terminar com uma navalhada no ventre.

O texto acima, de “O siciliano”, de Mário Puzzo, parece nos comprometer a todos. “Os sangues se mesclaram tanto no decurso dos séculos" que escassos mortais sabem quem foram os seus antepassados em 1512, e muito menos em 1250, e nem falar de 711.

Teria reagido Mussolini também com uma navalha se alguém se atrevesse a recordar-lhe que no século XIII, em Veneza, existiu um judeu de nome Mussolini? Na relação de sobrenomes judeus, publicada na Itália durante o fascismo, não figura nenhum Hitler, mas vários Heitler e Hittler, nenhum Goebbels, mas sim um Goebel e sem deformação ortográfica alguma, outros judeus cujos sobrenomes coincidem com os de vários chefes do nazismo: Rosenberg, Frank, Naumann, Schroeder, Pohl (general das SS), e Wolf (outro de idênticas funções).

E como haveria reagido Hitler de ter-se inteirado de que em 1933, um judeu polonês chamado Moisés Hitler decidiu mudar seu sobrenome para evitar a mínima coincidência com o verdugo de seu povo? A lista não se esgota aí. Teríamos que estar muito atentos à reação de muitos (e não é raro que militem no anti-semitismo) ainda que não sejam sicilianos, se recorressem ao rápido argumento da navalha ou do revólver caso lhes lembrássemos dos seus antepassados das doze tribos. Para que ninguém se sinta tentado a jogar a primeira pedra, é conveniente recordar nomes que alguma vez tiveram a ver com a lei mosaica: Álvarez, Ibañez, Gómez, Fernández, Estévez, Díaz, Heredia, López, Hernández, Méndez, Menéndez, Míguez, Láinez, Nuñez, Suárez, Rodríguez, Ruiz, Pérez, Velázquez, Jiménez, etc.

A relação continua com os nomes de batismo que figuram como patronímicos em qualquer das nações européias e se iniciou com o costume dos judeus que se batizavam ao adotar o nome do padrinho cristão. As águas batismais aumentavam o número de cristãos, mas eram incapazes de apagar a origem do converso. Estes nomes individuais podem vir precedidos ou não da preposição "de": Diego, Nicolás, Miguel, Frank, Franco, Martín, Martino, Albert, Alberti, Michele, Michelet, Micheletti, Michelin, Pierleoni, Pierangeli, Gaspar, Jacob, Michaelis, Benedetto, Benedetti, Guglielmo, Guglielmi, Guglielmini, Jacquart, Jacquet, Bernhardt, Bernardi, Robert, Roberts, Alessandri, Alexander, Giacomo, Giacometti, Simón, Simone, Mattei, Mateos, Matteis, León, Vicente, Vincenti, Daniel, Danielou, Bertrand, Giovanni, Giovanelli, etc.

Para assegurar-se de um novo protetor no céu, também era muito freqüente entre os judeus conversos, agregar ao nome individual o de algum santo: Santangel, Santa Maria, San Martin, Santa Marina, São José, Saint-Saëns, Saint Chamas, Saint Pierre, Saint Jean, San Juan, etc.

Muitíssimos gentílicos podem remeter também a sobrenomes judaicos desconhecidos ou não: Scott, Langlais, Lallemand, Alemán, Francés, Espanhol, Spagnuolo, Spagnoletti, Catalano, Catalani, Tedesco, Tedeschini, Veneziano, Breton, Lebreton, Lombard, Lombardo, Lombardi, Schweitzer, Pollack, Pohl, Wiener, Berliner, Frankfurter, Hamburger, Ascolelese, Ascolesi, etc.

Como se isto fosse pouco, há que acrescentar os nomes relacionados com as plantas: Cepeda, Cardoso, Espinosa, Carballo, Carballal, Carbajales, Robles, Robledo, Peral, Pereira, Perales, Manzano, Manzanero, Manzanedo, Moreira, Silva, da Silva, Silveira, Pino, Pinedo, Pineda, Piñeiro, Pinheiro, Dupin, Olmos, Olmedo, Noceda, Nocedal, Noguera, Nogueira, Noguerol, Blum, Blumenfeld, Rosenberg, Rosenthal, Lilienthal, Blumenthal, Lafleur, etc. Com preposição ou sem ela, também parecem relacionar-se com a estirpe judaica: Alcalá, Zamora, Berlín, Zaragoza, Meneses, Novara, Paredes, Castro, Ferrara, Sevilla, Montes, del Monte, Delmonte, Belmonte, Montijo, Montejo, Montaña, Montagna, Montanha, Berg, Bergson, Bergmann, Costa, Acosta, Da Costa, Lacoste, Medina, Ríos, del Río, Torres, Torquemada, Aragno, Ascoli, Bassano, Bassani, Fermo, Fermi, Luzazatto, Luzzatti, Mondolfo, Modigliani, Segni, Ravenna, Tolentino, Veroli, Pontecorvo e Tívoli.

Tampouco se livram as particularidades físicas: Moreno, Brun, Lebrun, Brown, Roth, Rojo, Bermejo, Vermelho, Blanco, Branco, Blank, White, Green, Roux, Leroux, Rosso, Rossi, Rousseau, Roussel, Weiss, Black, Nero, Neri, Negro, Braun, Tostado, Crespo, Crespi, Browning, etc.

Muitos irão resistir a aceitar que seu sobrenome, do qual se sente legitimamente orgulhoso, se relacione de alguma forma com o povo de Israel e até poderão perguntar de onde sai tanta conversa mole. Pois bem, nem tanto para tranqüilizá-lo, mas ao contrário, podemos responder-lhe que nenhum dos sobrenomes citados no presente capítulo foi tirado a esmo, sem mais nem menos, e que se quiser convencer-se, pode pesquisar por sua conta, para o que lhe facilitamos as fontes onde pode convencer-se:

Há listas de nomes judaicos de Palermo publicados em 1237. Há listas dos judeus de Paris no século XII. Há uma lista dos judeus de Marselha do ano 1367. Há uma lista de cristãos novos de Provença do ano 1512. Há uma lista dos judeus de Barcelona do ano 1392. Há uma lista dos judeus de Bordeaux do ano 1806. Há um documento que o cardeal de Mendoza apresentou ao rei Felipe II da Espanha que, com o título de “El tizón de la nobleza española” [O tronco da nobreza espanhola], da conta de que há só 48 famílias nobres (e não as mais elevadas) que podem alegar pureza de sangue.

Em princípios do século XX foi publicado na Alemanha um livro chamado “Gotha”, que citava os sobrenomes das casas reinantes, ou que em alguma época haviam reinado. Mas no ano de 1912 também se publicara o “Semi-Gotha”, ou seja, o “Gotha” semítico, onde se informava dos sobrenomes da nobreza européia relacionados com a etnia de Sem. Ao que parece, a intenção de Guilherme II era favorecer as bodas de pessoas da nobreza com judeus, ou judias.

Existem também, em inglês, dois catálogos intitulados “Who is who in the world jewry” [Quem é quem no judaísmo mundial] e “Anglo-jewish Notabilities” [Anglo-judeus de notabilidade], onde, por exemplo, aparecem sobrenomes como Belasco, Franco, Green (nada menos que 15, entre eles um rabino) e mais de 25 Alexander.

E sem pretender o esgotamento da bibliografia, podem ser consultados ainda “La France juive” [A França judaica], de Drumont; “Noms israelites en France” [Nomes israelitas na França], de Paul Lévy; “Los judíos”, de Hilaire Belloc; e “Los judíos”, de Roger Peyrefitte.

Somos então todos judeus desconhecidos? Como sabê-lo? Se alguém ignora quem foram seus tataravôs e os tataravôs de seus tataravôs, é provável que esteja na mesma situação dos sicilianos que pintavam sua casa de amarelo. Os outros, os da nobreza ou das casas reinantes, que têm um minucioso registro de cada ramo da sua árvore genealógica, sabem muito bem que, em mais de uma oportunidade, as alianças matrimoniais os aparentaram com o povo de Israel.

O mais prudente é ter uma atitude precavida, a não ser que, se padecemos da paixão doentia do anti-semitismo, surja alguém que ao recordar algum próximo ou distante antepassado nosso, pretenda exercer em nós essa mesma paixão enferma. Para curar do espanto aos melindrosos da linhagem, creio ser oportuno citar um texto de Roger Peyrefitte, do seu livro “Los judíos”.

O primeiro de janeiro de 1963, festa da Circuncisão de Nosso Senhor, o general De Gaulle não pensava sem dúvida em seus antepassados, os judeus Kolb. O chanceler Adenauer em seus antepassados, os judeus Adenauer, o presidente da República italiana em seus antepassados, os judeus Segni, o rei da Suécia em seu antepassado, o semi-judeu Bernardotte, o ex-rei da Itália em seus antepassados maternos, os judeus montenegrinos Petrovich Niegoch, o arquiduque Otto de Habsburgo em sua antepassada, a judia Enriquez, mãe de Fernando o Católico, o rei dos belgas em sua antepassada, a judia Pereira, de quem descende sua bisavó Bragança, o príncipe Bernhard dos Países Baixos em sua antepassada a judia Pacheco, a rainha Isabel em seus antepassados maternos, os judeus Bowes-Lyon, o duque de Edimburgo em seus antepassados, os judeus Haucke, o presidente Kennedy não pensava em seus antepassados, os judeus Kennedy, e o vice-presidente Johnson em seus antepassados, os judeus Johnson. Era igualmente duvidoso que, em Louveciennes, o conde de Paris pensasse na judia Pierleoni, de quem descende pelos Bourbons e por Juana de Albret, na judia Älvarez de Toledo, de quem descendem pelos Médicis, e na judia Henríquez, de quem descendem também por Ana da Áustria, nem que a condessa de Paris pensasse na judia Pereira, de quem descende ela também pelos Bragança. Em Havana, Fidel Castro não pensava provavelmente ele tampouco em seus antepassados os judeus Castro; nem em Madrid, o general Franco em seus antepassados, os judeus Franco, nem em Lisboa, o presidente Salazar em seus antepassados, os judeus Salazar. Junto a estes ilustres personagens, glória da conservação do prepúcio, o chefe do Estado de Israel, Ben Zvi, parecia uma figura insignificante e sobretudo fazia o papel de desmancha-prazeres, pois podia dizer a cada um: Acorda!".

* Teodosio Muñoz Molina é o autor do livro: "El enigma de los nombres y apellidos. Su origen y significado", Lidium, Buenos Aires, 1996. O texto é o Cap. II "Entre los judíos", págs. 25 a 28, e foi enviado por Leonardo Cherniak, de Buenos Aires, Argentina, e José Zokner, de Curitiba. Traduzido por Szyja Lorber para o jornal Visão Judaica.

Fontes
http://www.geneall.net/P/forum_msg.php?id=259060&fview=e
http://www.visaojudaica.com.br/Outubro2005/artigos/17.html

jeudi 20 mars 2014

Pentateuco -- um roteiro preliminar

Roteiro para estudo do Pentateuco
Jorge Pinheiro

1. Diversidade

I. Diversidade de material: histórias, episódios, leis, rituais, regulamentos, cerimônias, registros cronológicos, exortações.

II. Blocos que formam o Pentateuco: promessa e eleição (Gn 12.1-2), livramento (Dt 6.21; 26.5), aliança (Gn 15.18; Ex 19.5-6), lei (Ex 20.1-17; Dt 28.1) e terra (Dt. 6.23).

2. Complexidade

I. Evidências literárias: lei e história > blocos de conteúdo legal integrados à narrativa. Ex. Gn 4.26 e 5.1; Gn 2.4 – 4.26 interrompe a linha do relato de 1.1-2.4; 5.1ss. Descontinuidade Gn 19.38 e 20.1, assim como Ex 19.25 e 20.1. Os 10 mandamentos (20.1-17) distingue-se da narrativa do seu contexto literário (19.1-25; 20.18-21). Os códigos legais não estão agrupados sob nenhuma ordem lógica.

II. Diversidade de material = diferenças de vocabulário, estilo e de composição. Exemplo entre os códigos de leis de Levítico e Deuteronômio.

III. Uso variável dos nomes Iaveh e Elohim, de Gn 1 a Ex 6.

IV. Duplicação ou triplicação do material do Pentateuco. Abraão e Sara (Gn 12 e 20), Isaque e Rebeca (26.6-11); berseba (poço do juramento), Abraão e Abimeleque (Gn 21.22-31), Isaque e Abimeleque (26.26-33); animais puros e impuros (Lv 11.1-47, Dt 14.3-21); escravos (Ex 21.1-11, Lv 25.39-55, Dt 15.12-18).

V. Expressões posteriores à época de Moisés. Ex. cananeus (Gn 12.6, 13.7), Canaã (Ex 16.35), Abraão perseguiu os seqüestradores de Ló até Dã (Gn 14.14, 19.47, Jz 18.29).

VI. Autoria e origem. É uma obra anônima. Moisés não é mencionado com seu autor, assim como ninguém em especial. Essa é a prática geral do AT. Autor no AT é aquele que preserva o passado. E a literatura era uma propriedade comunitária. Moisés aparece recebendo ordens de redigir determinados fatos históricos (Ex 17.14; Nm. 33.2), leis ou trechos de códigos de leis (Ex 24.4, 34.27) e um poema (Dt. 31.22). Somente nos escritos pós-exílicos (Crônicas, Esdras, Neemias, Daniel) as referências ao Pentateuco como texto escrito sob autoridade de Moisés têm destaque marcante. Nos livros históricos do pré-exílio (Josué, I e II Samuel, I e II Reis isso não acontece. Aí Moisés aparece com referências ao Deuteronômio. Da mesma maneira nos profetas do pré-exílio não há referências a Moisés como autor do Pentateuco.

VII. Implicações.

A – Moisés escreveu literatura narrativa, legislativa e poética.

B – É uma obra complexa, composta dentro de uma longa e intrincada história de transmissão e crescimento. Temos que levar em conta a tradição oral, as compilações de épocas históricas diferentes, como êxodo, peregrinação, a confederação tribal, a monarquia, o fracionamento do reino e o exílio. Sem colocar em dúvida a canonicidade do texto, é justo dizer que sua redação final pode ter estado sob orientação direta de Esdras, no período da restauração. Esdras foi um escriba versado nas leis de Moisés (Ed 7.6 e 11ss), mestre e pastor responsável pela observância da Lei em Jerusalém e Judá (v. 14 e 25ss). Dentro da tradição judaica é atribuída a ele a redação final da Torah.

3. Unidade estrutural

I. Apesar de seu caráter complexo, há uma unidade estrutural no texto do Deuteronômio, que coesiona suas partes. Assim, o que predomina é o equilíbrio e a unidade

II. O texto deve ser analisado como um fim em si, que estuda a forma e a função do texto dentro do contexto da comunidade da fé. Essa é a abordagem da crítica canônica, em oposição à crítica literária que predominou nos últimos 150 anos. A crítica canônica concentra-se na interpretação intertextual (ou exegese intrabíblica), analisando como os autores bíblicos usam os materiais uns dos outros. Esse método defende uma “alternativa pós-crítica”, que procura determinar a função que a forma canônica exercia na fé de Israel. Assim, a melhor maneira de estudar o Pentateuco é deixar que ele se apresenta como é: o testemunho essencial de como trouxe à existência a nação de Israel.