lundi 10 octobre 2016

Berit, um pacto histórico

Um pacto histórico
Jorge Pinheiro


Os livros de Gênesis e Êxodo apresentam a fé israelita, enquanto construção, fundamentada em dois acontecimentos históricos. O primeiro é a escolha de um homem chamado Abrão, [1] que foi tirado da cidade de Ur e levado para Canaã, uma terra prometida a ele e sua descendência (Gn. 12.1-3; 13.14-17). Essa promessa foi selada com um acordo entre Deus e Abraão, conforme Gênesis 15.5-10. E o segundo fato histórico é a libertação dos descendentes de Abraão da escravidão do Egito, através de Moisés, e sua entrada na terra prometida (Ex.3.6-10).

Esses dois acontecimentos expressam a materialidade da aliança, que se traduz como escolha de Deus a favor de um homem, gerador de um povo, para uma missão definida. Realidade esta que foi reafirmada, centenas de anos depois, pelo príncipe dos profetas israelitas: “Ouvi-me, vós, que estais à procura da justiça, vós que buscais a Deus. Olhai para a rocha da qual fostes talhados, para a cova de que fostes extraídos. Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, aquela que vos deu à luz. Ele estava só quando o chamei, mas eu o abençoei e o multipliquei”. Isaías 51:1-2.

O pacto com Abraão foi selado com sangue, conforme os versículos 9 e 10 do capítulo 15 de Gênesis. Segundo os costumes semitas, o berit (pacto ou aliança) era feito através da degola de animais, geralmente um bezerro, que era dividido em duas partes, colocadas uma em frente à outra, e os contratantes passavam entre os pedaços (Jr.34:18-20) e diziam: “que a divindade corte em pedaços, como a estes animais, os violadores deste pacto”.[2] Daí as expressões, “karot berit”, imolar uma vítima para concluir um pacto; “bo ba berit”, entrar na aliança (Jr.34:10); “abor ba berit”, passar pela aliança (Dt. 39:2); “amod ba berit”, parar na aliança (2 Rs.23: 3). Tecnicamente, chamamos o acordo assim selado de pacto de suserania, que geralmente era assinado entre um rei e o chefe de um clã, onde o rei oferecia proteção ao clã e, em caso de guerra, o clã fornecia jovens para lutarem no exército do rei.

Assim, Deus deu a Abraão uma formalização do pacto. Ou seja, o próprio Deus selou o acordo com um costume humano, a fim de que a aliança pudesse ser visualizada por Abraão. E o Eterno, em seu amor pelo contratante mais fraco, passa no meio dos animais partidos (Gn. 15.17). O versículo seguinte agrega: “Naquele dia, o Eterno estabeleceu uma aliança com Abrão nestes termos: à tua posteridade darei esta terra”.

Aqui voltamos ao início de nossa análise: a idéia de teia de linhas-força fornece elementos para a compreensão do livro de Gênesis, do Pentateuco e de todas as Escrituras hebraico-judaicas. Em primeiro lugar porque o diálogo de Deus com Adão e Eva em Gênesis 3.15 aponta para um libertador. E em Gênesis 15 temos a primeira realização dessa promessa através da aliança com Abraão, que produzirá descendência com duas missões: ser testemunha entre as nações e ser a nação da qual nasceria o messias prometido. É importante entender que tal promessa iniciou uma relação entre Deus e Israel, uma relação selada por Deus, não exclusiva, mas íntima em seu ideal. Embora, na tradição judaica, o livro de Êxodo seja o livro da aliança, o conceito está presente e é desenvolvido no primeiro livro do Pentateuco.

Na aliança está embutida a idéia de salvação e de relacionamento pessoal com Deus. Esta realidade nova dentro do plano de redenção do homem está implícita na declaração de Deus a Abraão: “Estabelecerei uma aliança entre eu e você, e a sua raça depois de você, de geração em geração, uma aliança perpétua, para ser o seu Deus e o da tua raça depois de você”. Gn. 17:7. E como todo pacto, além do “berit milah” (pacto da circuncisão), Abraão e seus descendentes são chamados à responsabilidade moral (v.1) e à uma adoração permanente (vs.7 e 19). Elementos estes, que a partir de Moisés serão desenvolvidos, dando origem à religião de Israel, que tem por base, num primeiro momento histórico a primazia do culto e suas ordenanças e, num segundo momento, com o surgimento da profecia literária, da justiça social. Assim, é impossível fazer uma completa separação entre as promessas de Deus e o desejo de um reino. Este último será uma construção que tem como primeiro tijolo a relação pretendida por Deus com a universalidade dos seres humanos.

E porque a promessa remetia ao reino, a questão da terra a partir de Abraão permanecerá como promessa para os patriarcas, tornando-se objetivo mítico de seus descendentes. Por isso, a importância de Moisés, que antes de ser visto como legislador, deve ser compreendido como libertador. E é nesse misto do papel libertador/legislador que formatará as condições para a invasão da Palestina.

Assim, enquanto caminhavam pelo deserto, os hebreus contavam a seus filhos uma velha história. Há quatrocentos anos - diziam eles - um homem chamado Abrão desceu lá do norte, da cidade de Ur, na Caldéia, e com toda a sua família dirigiu-se para o sul da Palestina. Era uma ordem de Deus.

Ele receberia por herança uma terra, teria uma descendência tão grande como as estrelas do céu, e através dele todas as famílias da terra seriam abençoadas. Era uma estranha promessa, afinal Abrão não tinha filhos e seu clã[3] era nômade. Mas ele acreditou na promessa de Deus. Anos mais tarde, Deus trocou seu nome para Abraão, que quer dizer pai de uma multidão de nações, fez um pacto especial com ele e lhe deu um filho, que foi chamado Isaque.

Como líder, Moisés tinha certeza que o acordo feito com Abraão estava sendo cumprido. Deus dissera que a terra prometida era Canaã, e que seus limites iriam do Egito até o rio Eufrates. Explicou também que Canaã estava ocupada por dez povos guerreiros: queneus, queneseus, cadmoneus, heteus, periseus, refains, amorreus, cananeus, girgaseus e jebuseus. Mas eles seriam arados da terra, como mato bravo arrancado para permitir a semeadura.

 

Durante os anos de caminhada pelo deserto, Moisés foi formando uma liderança que julgou capaz de dirigir a invasão da Palestina. Entre seus homens de confiança havia um jovem chamado Josué. Tinha sido seu assistente pessoal e quando grupos de assaltantes amalequitas começaram a ameaçar a segurança dos hebreus, Josué liderou um grupo de combatentes. Era disciplinado, ousado e muito corajoso.

Em hebraico Josué quer dizer Deus é a salvação. Era do clã de Efraim, filho de Num, e esteve com Moisés durante toda a peregrinação no deserto. Quando Moisés subiu ao monte Sinai, para receber de Deus os Dez Mandamentos, Josué subiu com ele. Foi quem avisou a Moisés que lá embaixo estava uma barulheira incrível, como um alarido de guerra. Mas o que ele ouvia era o povo dançando e cantando em adoração ao deus Ápis, o deus touro dos egípcios.

Como dirigente militar recebeu de Moisés uma missão especial: fazer parte de um grupo de espiões que deveriam se infiltrar em Canaã. As ordens eram precisas: observar a terra, o que produzia, se os campos eram férteis, como era o povo, se era organizado, numeroso, e se haviam fortalezas. Deviam também trazer frutos da terra.

Os espiões chegaram até as proximidades de Hebrom, que fica ao sul de Jerusalém, e depois de dias trouxeram a Moisés um relatório terrível:

-- É, na verdade, uma terra que produz leite e mel em abundância. Vimos cachos de uvas que tinham que ser transportados numa vara por dois homens, de tão grandes. Mas o povo que habita na terra é muito poderoso, as cidades são grandes, fortificadas. Vimos gigantes e nos sentimos como se fôssemos gafanhotos, de tão pequenos diante deles.

Excluindo Josué e Calebe, os outros espiões estavam em pânico. E o medo que tinham foram transmitindo ao povo, que então se rebelou contra Moisés.

-- Foi para isso que você nos tirou do Egito, para a gente morrer aqui, no deserto, para sermos massacrados a espada, nós, nossas mulheres e nossos filhos?

Josué e Calebe ainda tentaram reverter a situação. Explicaram que a terra era excelente e que se era da vontade de Deus a terra prometida seria entregue na mão deles, não importava a força dos povos ocupantes, pois “a sombra protetora de Deus lhes foi tirada”. Mas a mentalidade escrava do povo prevaleceu. Não estavam preparados para lutar. E diante da rebelião, Deus afirmou que nenhum deles entraria na terra, mas seus filhos. Assim, durante quarenta anos caminharam pelo deserto. E os filhos dos escravos foram transformados em guerreiros. Forjados sob o sol escaldante, confiantes na promessa de que a terra lhes seria entregue. Os espiões que se acovardaram e sublevaram o povo contra Deus e Moisés foram presos e condenados à morte. Josué por sua coragem e fidelidade a Deus despontou como sucessor de Moisés.

 

Os hebreus não eram um grupo homogêneo, mas um conglomerado de povos escravizados pelos egípcios que fugiram sob a liderança de Moisés. Além disso, mesmo tendo seu núcleo nos descendentes de Abraão, no correr dos séculos miscigenaram-se com outros povos e inclusive com os próprios egípcios. Tinham, no entanto, um confuso sonho de liberdade, uma fé não consolidada no Deus único, e aceitavam realizar alguns rituais semitas, dos quais o principal deles, nessa época, era a circuncisão.

Esse conglomerado de gentes foi dividido em agrupamentos menores que recebeu o nome de patriarcas, formatando clãs[4]: Rubem, Simeão, Judá, Issacar, Zebulom, Efraim, Manassés (esses dois, netos de Abraão, filhos de José, que juntos formavam um clã), Benjamim, Dã, Aser, Gade e Naftali. Havia ainda outro clã, o de Levi, que era o dos sacerdotes. Dessa maneira, a nação de Israel surgiu como uma confederação de clãs, sem governo centralizado. Seria governada por juizes, pessoas experientes que deveriam julgar seus clãs a partir das leis deixadas por Moisés.

Assim, após a morte de Moisés, os hebreus invadiram a Palestina liderados por Josué, considerado pelos historiadores um dos maiores generais da história. Formou regimentos com guerreiros jovens que, ao contrário de seus pais, estavam desejosos de combater por Deus, o Deus de Israel. Os regimentos foram organizados a partir dos doze clãs que formaram a confederação hebréia.

A estratégia inicial de Josué consistiu em montar seu quartel general em Gálgala, ao oriente da cidade de Jericó, e a partir daí atacar as cidades de Ai e Gabaom. Em Gálgala já estavam estabelecidas os clãs de Rubem, Simeão e Manassés. Ali havia água em abundância, provisão para os combatentes e lugar seguro para armazenar os despojos.

 

Antes de iniciar o período da conquista, Josué deu combate aos grupos inimigos, nômades, que poderiam ameaçar a produção agrícola dos clãs já instalados em Gálgala. Só depois disso, tomou Jericó, fortaleza avançada do território de Canaã e conhecida na época como “a princesa do vale do Jordão”.

A cidade de Jericó data, segundo pesquisas arqueológicas, do ano oito mil antes de Cristo. Por ter uma fonte e um oásis e estar estrategicamente situada, foi ocupada por povos diferentes, como os amorreus e cananeus, e muitas vezes destruída. Antes da conquista por parte dos hebreus, foi atacada por faraós da 18a dinastia e totalmente destruída. De novo reconstruída, tinha nessa época muros altos, de pedras macho e fêmea, duas torres, e casas retangulares e espaçosas.    

Essa linda cidade, que também recebia o nome de Cidade das Palmeiras, dominava o vale do Jordão e as passagens para as montanhas do oeste. Antes de atacá-la, Josué enviou dois jovens oficiais do recém formado exército para espionar a região. Eles entraram na cidade, foram protegidos e escondidos por uma prostituta cultual chamada Raabe. Aliás, sobre essa moça há algumas coisas que devem ser analisadas.

Zaná, praticar prostituição, cujo sentido literal quer dizer manter relações sexuais ilícitas, é a palavra que designa a atividade de Raabe, jovem que escondeu os espiões enviados por Josué. Alguns exegetas, no entanto, consideram que ela era somente uma hospedeira, algo como dona de uma pousada, partindo da raiz zun – alimentar – e não da raiz zaná como origem da palavra zonã, mas são poucos que consideram esta a melhor tradução.

A maioria dos exegetas considera que a palavra tem somente uma raiz. Este verbo é usado tanto literal como figuradamente. Neste último caso, a idéia que comunica pode ser de relações internacionais proibidas, de uma nação, especificadamente Israel, fazer acordos com outras nações. Pode-se referir também a relacionamentos religiosos, nos quais Israel adorava falsos deuses. A palavra normalmente se refere às mulheres e apenas duas vezes diz respeito a homens (Êx 34.16; Nm 25.1). A forma feminina do particípio é usada regularmente para indicar a prostituta (Gn 34.31). Tais pessoas recebiam pagamento (Dt 23.19), tinham marcas características que as indicavam (Gn 38.15; Pv 7.10; Jr 3.3), tinham suas próprias casas (Jr 5.7) e deviam ser evitadas (Pv 23.27). Poucas vezes a mulher com quem o ato é cometido é identificada como mulher casada (Lv 20.10; Jr 29.23), mas também nunca se afirma que é solteira.

Há estudiosos que arriscam dizer que Raabe talvez fosse sacerdotisa cananéia e, dessa maneira, prostituta cultual. Mas também essa afirmação é praticamente impossível de ser comprovada. Raabe foi mulher de Salmon (Mt 1.5), possivelmente filho de Calebe (cf. 1Cr 2.51) e mãe de Boaz. É bom lembrar que as prostitutas na Antigüidade, cultuais ou não, começavam seu ofício ainda na puberdade.

Na vida escura e duvidosa dessa jovem, prostituta e mentirosa, deve ter brilhado a centelha de que com os hebreus havia um Deus superior a todos os deuses que ela conhecera. A cidade estava em pânico, temendo um ataque dos hebreus, e entre o povo se comentava o que o Deus dos hebreus fizera na saída do Egito e durante a caminhada no deserto: ...“porque temos ouvido que o Senhor secou as águas do mar Vermelho diante de vós, quando saíeis do Egito, e o que fizestes aos dois reis dos amorreus, a Siom e Ogue, que estavam dalém do Jordão, os quais destruístes” (Js 2.10).

Assim, pela fé (veja a confissão que faz no vs. 11, “o Senhor vosso Deus é Deus em cima nos céus e embaixo na terra”, lembrando que o politeísmo e a idolatria predominavam entre os cananeus) ela confiou na misericórdia e no poder desse Deus, arriscou a vida para salvar os representantes do povo de Deus, e obteve salvação para si e sua família.

Dessa maneira, ao ver o espírito de terror que pairava sobre a cidade, os jovens espiões voltaram ao quartel general de Josué com uma grande notícia:

-- Realmente Deus nos deu toda esta terra. Os seus habitantes estão apavorados com nossa presença.

Josué então chamou os sacerdotes, que leram para os oficiais e soldados uma ordem que Deus tinha dado a Moisés.

“Quando saírem para guerrear contra teus inimigos, se virem cavalos, carros de combate e um povo mais numeroso do que vocês, não fiquem com medo, pois com vocês está o Senhor Deus, que tirou vocês do Egito. Quando estiverem para começar o combate, o sacerdote se aproximará para falar aos soldados e lhes dirá: ‘Ouve, ó Israel! Estais hoje prestes a guerrear contra teus inimigos. Não se acovardem, não fiquem com medo, não tremam, nem se atemorizem diante deles, porque o Senhor Deus marcha com vocês, lutando com vocês’.”

Depois, os sacerdotes disseram:

-- Quem tem uma tenda nova e ainda não a usou? Volte para a sua tenda, para que não morra na batalha e não possa curtir sua tenda nova. Quem plantou uma vinha e ainda não colheu os primeiros cachos de uva? Volte para sua tenda, para que não morra na batalha e não coma de seus primeiros frutos. Quem acaba de casar-se e ainda não completou sua lua de mel? Volte para sua tenda, para que não morra na batalha e não usufrua sua noite de núpcias.

E por fim os sacerdotes, perguntaram:

-- Quem está com medo e se considera um covarde? Volte para sua tenda para que não contagie seus irmãos.
          
Então, Josué destacou os oficiais e definiu o ataque. Rodearam a cidade uma vez por dia, durante sete dias. Tocavam trombetas, gritavam e saltavam. Ao sétimo dia, todo o povo, com os soldados e os sacerdotes rodearam sete vezes a cidade, tocando trombetas e gritando. De repente, ao som mais agudo da trombeta, alguns muros desabaram permitindo a entrada do povo. A cidade foi amaldiçoada, seus habitantes executados, com exceção da moça Raabe e da família do pai dela. Os despojos de ouro e prata foram levados para o tabernáculo, que era a tenda onde estava a arca da aliança, com os Dez Mandamentos.

Foi uma guerra implacável. E diante disso, é o caso de perguntar: o extermínio realizado pelos hebreus foi um ato justificável?

Na época, a Palestina era permanentemente disputada por conquistadores. Confederações de reinos, agrupados em torno de cidades, lançavam-se contra outros pequenos reinos. Os filisteus, por exemplo, não eram originários da região, vinham da ilha de Caftor, mais conhecida como Capadócia. Instalaram-se na região de Gaza, exterminando os Avins que viviam nesse território.

Assim, os hebreus se consideravam no direito à terra tanto quanto os que foram despojados. Eram conquistadores lutando contra conquistadores.

E quanto ao seu modo de atuar nas operações de guerra? Caso tomemos os padrões guerreiros da época, os hebreus não eram nem mais sanguinários, nem mais cruéis. Os assírios, por exemplo, decapitavam os povos vencidos, fazendo pirâmides com seus crânios. Crucificavam ou empalavam os prisioneiros, arrancavam seus olhos e os esfolavam vivos. Não há casos de tortura na tradição guerreira dos israelitas.

Um povo que foi duramente golpeado, mas não exterminado foram os cananeus. Apesar de serem bons agricultores, seus costumes religiosos estavam entre os mais violentos de todo o mundo antigo. Eram henoteístas e ofereciam sacrifícios humanos e infantis aos seus baalim. É interessante notar que antes dos hebreus se lançarem à conquista da Palestina, Deus lhes falou:

“Ó Israel, hoje vocês estão atravessando o rio Jordão para conquistar nações mais numerosas e poderosas, cidades grandes e fortificadas. (...) Portanto, vocês devem saber que o Senhor Deus vai atravessar na frente, como um fogo devorador. É ele quem exterminará. Vocês, então, desalojarão rapidamente esses povos, os farão perecer, conforme falou o Senhor Deus. Quando Deus os tiver removido de sua presença, vocês não devem dizer nos seus corações: ‘É por causa da nossa justiça que O Senhor nos fez entrar na posse dessa terra’. É por causa da perversidade dessas nações que Deus irá expulsá-las da tua frente.” (Deuteronômio 9:1, 3 e 4).

Dessa maneira, os cananeus estavam sob a punição de Deus por causa de seus crimes e idolatria. E como, segundo a maneira de pensar dos antigos israelitas, Deus responsabilizava tanto as nações como os indivíduos, consideravam totalmente justo uma guerra de extermínio.

Depois da conquista de Jericó, Josué tomou a cidade de Ai, que fazia fronteira com Gálgala. Recebeu, então, a visita de embaixadores do reino de Gabaom com os quais Josué celebrou um tratado de paz, sem consultar Deus.

Os reis de Jerusalém, Hebrom, Jerimote, Laquis e Eglom formaram uma aliança e atacaram Gabaom. Como Josué havia feito um acordo bilateral com Gabaom, teve que sair em sua defesa e lançar um ataque contra os cinco reis. Conseguiu derrotá-los e conquistou as cidades de Maceda, Libna e Laquis.

Estabeleceu um acampamento provisório perto de Eglom e daí lançou-se à conquista de mais três cidades, Eglom, Hebrom e Debir. A essa altura, já havia ocupado toda a região central e sul da Palestina. Josué voltou então para Gálgala. Descansou meses e começou a organizou os futuros ataques ao norte de Canaã, região onde estavam localizadas cidades populosas e fortificadas.

O rei de Asor chefiava uma confederação de reinos e ficou sabendo dos planos de Josué. Reuniu, então, todas as cidades vizinhas e organizou uma confederação para enfrentar militarmente o exército hebreu. A mais violenta das batalhas aconteceu às margens do rio Merom. Josué derrotou os exércitos confederados, queimou a cidade de Asor e tomou todas as cidades dos reinos aliados. Estrategicamente, foi sua maior vitória, pois com ela quebrou o poder dos cananeus. Mas nem todos os habitantes da Palestina tinham sido exterminados. Cidades importantes ficaram intocadas, principalmente as da região norte da Filístia. A guerra da conquista foi longa e durou quarenta e cinco anos.

Apesar de ser o maior general da história de Israel, Josué cometeu três erros: fez aliança com os gabaonitas, permitiu aos jebuseus permanecerem em Jerusalém e não destruiu as bases dos filisteus no litoral.

Esses erros isolaram os clãs de Judá e Simeão do resto do país. A entrada principal para o território de Judá ficou sob controle dos jebuseus, que ocupavam Jerusalém. E toda a região permaneceu cercada pelas cidades dos gabaonitas. Esta situação criou um separatismo entre os clãs do norte e os do sul e acabou fracionando a confederação hebréia.

 

A repartição da terra foi feita parcialmente em Gálgala e depois em Siló, cidade para onde havia sido transportada a tenda da congregação. Essa primeira distribuição de terras foi realizada por uma comissão formada pelo sacerdote Eleazar, pelo general Josué e por dez chefes dos clãs. Havia uma lei básica, que já havia sido promulgada e que orientava a divisão. Os clãs mais populosos receberiam as porções maiores. Os sacerdotes destinaram duas urnas, uma para receber o nome dos clãs e outra para as regiões da Palestina que seriam sorteadas. Assim, o método de distribuição combinava a sorte - podia ser no sul, no centro ou no norte da Palestina -, com um elemento objetivo, a população de cada clã. As questões de limites ou permanência dos clãs nos lugares onde já se encontravam, como era o caso dos clãs de Rubem, Simeão e Manassés, foram decididas pela comissão.

Depois de uma semana de trabalhos, a confederação dos clãs de Israel estava assim distribuída:

·      A parte montanhosa ao sul foi entregue ao clã de Judá.
·      A parte montanhosa ao centro, ao clã de José. Este território foi dividido entre os clãs de Efraim e Manassés, filhos de José.
·      A parte montanhosa central coube ao clã de Benjamim.
·      A parte excedente do território entregue a Judá, por ser grande demais, ficou com o clã de Simeão.
·      O território que limitava a parte montanhosa central com a região norte foi entregue aos clãs de Zebulom e de Issacar.
·      A região costeira coube aos clãs de Aser e Naftali.
·      Dois territórios foram entregues ao clã de Dã, um no litoral central e outro no extremo norte.
·      Os territórios ao oriente do Jordão foram entregues aos clãs de Rubem e Gade. A parte que coube a Manassés também estava do lado oriental do rio Jordão.

Era tradição no antigo Oriente Médio que o crime de sangue fosse vingado por um parente da pessoa assassinada. Através de Moisés, Deus deu ao povo uma legislação que punia severamente os crimes contra a pessoa, fossem eles assassinatos, seqüestros ou violências sexuais. Com isso, Deus tirava a justiça das mãos do vingador individual e a colocava sob responsabilidade social. Mas Josué sabia que muitos crimes podiam acontecer sem premeditação, por acidente ou imprevisto. Por isso, criou também as cidades de refúgio, onde pessoas que ainda não tinham sido julgadas e condenadas pela justiça recebiam o direito de asilo. Era uma forma de oferecer misericórdia àqueles que involuntariamente tinham cometido um erro. Nas cidades de refúgio nenhum vingador de sangue tinha permissão para entrar, e dentro dela os perseguidos tinham o direito de viver sem serem molestados.

Terminada a guerra, Josué pediu aos dirigentes da confederação de tribos, como recompensa pelos serviços prestados, a cidade de Timnate-Sera, que ficava no alto do monte Efraim. Viveu aí seus últimos dias e morreu com 110 anos.


Mapa: Terras destinadas às tribos de Israel. Atlas Vida Nova da Bíblia e da História do Cristianismo, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1998, p. 22.


Questões para reflexão e debate

Leia o capítulo 15 de Gênesis, mas dê atenção aos versículos 8-18.

8  —Ó SENHOR, meu Deus! —disse Abrão. —Como posso ter certeza de que esta terra será minha?
9  O SENHOR respondeu: —Traga para mim uma vaca, uma cabra e uma ovelha, todas de três anos, e também uma rolinha e um pombo.
10  Abrão levou esses animais para o SENHOR, cortou-os pelo meio e colocou as metades uma em frente à outra, em duas fileiras; porém as aves ele não cortou.
11  Então os urubus começaram a descer sobre os animais mortos, mas Abrão os enxotava.
12 ¶ Quando começou a anoitecer, Abrão caiu num sono profundo. De repente, ficou com medo, e o pavor tomou conta dele.
13  Então o SENHOR disse: —Fique sabendo, com certeza, que os seus descendentes viverão num país estrangeiro; ali serão escravos e serão maltratados durante quatrocentos anos.
14  Mas eu castigarei a nação que os escravizar. E os seus descendentes, Abrão, sairão livres, levando muitas riquezas.
15  Você terá uma velhice abençoada, morrerá em paz, será sepultado e irá se reunir com os seus antepassados no mundo dos mortos.
16  Depois de quatro gerações, os seus descendentes voltarão para cá; pois eu não expulsarei os amorreus até que eles se tornem tão maus, que mereçam ser castigados.
17 ¶ A noite caiu, e veio a escuridão. De repente, apareceu um braseiro, que soltava fumaça, e uma tocha de fogo. E o braseiro e a tocha passaram pelo meio dos animais partidos.
18  Nessa mesma ocasião o SENHOR Deus fez uma aliança com Abrão.


A partir do texto acima explique o costume do pacto de suserania existente entre os semitas da Palestina e qual a importância dele na conversa que Deus teve com Abrão.

Que questões humanas, sociais e políticas estão presentes na materialidade da aliança? E por que a questão da terra é nomeada por Deus em sua conversa com Abrão?

Em que sentido a invasão e a guerra liderada por Josué faziam parte da aliança abraâmica?


Leituras complementares

Briend J., Lebrun, R., Puech, E., Tratados e juramentos no Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulinas, 1996.
Epsztein, León, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, Ed. Paulinas, 1990.
Hill, A. E., Walton J. H., AT, Panorama do Antigo Testamento, São Paulo, Editora Vida, 2006.
Melamed, Meir Matzliah, A Lei de Moisés e as Haftarót, Flórida, 1962.




[1] Em Gênesis 17:5 Deus muda o nome de Abrão para Abraão. Essa mudança de nome traduz o seu chamado. Abrão significa “pai alto”, o que teologicamente costumamos ler “Deus é grande”. Depois, Deus o chama “ab hamôn”, pai de multidão.
[2] Melamed, Meir Matzliah, A Lei de Moisés e as Haftarót, Flórida, 1962, p. 33.
[3] Aqui utilizamos o termo clã no sentido antropológico, enquanto unidade social formada por indivíduos ligados a um ancestral comum por laços de descendência demonstáveis ou putativas, ou seja, de família expandida.
[4] Embora o termo tribo seja o mais comum quando nos referimos às divisões do povo hebreu, consideramos que o termo só tem razão quando diz respeito a agrupamentos com território geográfico já definido. Assim, vemos uma transição do clã em direção à tribo, sendo que esta deverá sempre apresentar duas característas, território e liderança.


Fonte
Jorge Pinheiro, História e religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007, pp. 42-58.


vendredi 7 octobre 2016

Na teologia, a paixão aproxima porque é sempre logos e poieo nos diferentes momentos

Humana para lá de humana
Jorge Pinheiro


O humano é responsável pelo ontem, pelo hoje e pelo amanhã. É na construção escolhida ou imposta, mas aceita, e na sequência dela, que cada um, que cada uma faz a comunidade humana. As realidades imanentes e transcendentes são vaidades e correr atrás do vento quando é descartado o papel humano de cada dia. Por isso, a teologia exorta à crítica do espírito de religiosidade e chama à liberdade do livre espírito: pensar a imposição para construir além dela.

Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras”. (Machado de Assis, A Cartomante).

Palavras. Os cristãos acreditam que o universo foi feito pela palavra, o logos joanino. Acreditam que a palavra tem poder, daí que seja o seu sim, sim, e o seu não, não. Mas Machado de Assis nos diz que se faz também por outras palavras. Dessa maneira, o criar e o fazer não são iguais porque as palavras são diferentes.

Ah! Mas são sempre os mesmos temas: o amor e o desamor, a distância e a saudade, o tino e o desatino, por exemplo. Talvez, mas a diferença é que se faz por outras palavras. E tudo muda...

Grato, não piegueiro. A dizer obrigado porque as contingências não fumegaram o pavio. Lá atrás, o garoto anda pela calçada sem saber que a vida vai além do meio fio, que há lados. E ao atravessar a Rua do Catete as ladeiras sobem em direção à graciosa Teresa. Mas sabe que de carrinho de rolimã se desce mais rápido, da Glória em direção ao Lartigau, cheio de geometrias art-déco, ali, quase na taverna, embora os pneus fiquem à altura da cara.

E lá na frente o mar. O veleiro. A liberdade, aprendida com Walter, é negociar com os elementos. Ventos e marés. Diante das mareações, a marinharia aqui faz, junto do tio, o menino livre.

Apresento a teologia humana. E o faço a partir de Machado de Assis, porque fazer teologia é degustar prazeres. Não se faz às correrias, com sofreguidão. É ato delicado, caminhar por palavras, dançando com elas pelo universo em construção.

É interessante que Paulo, o apóstolo, diz que somos poiema do Eterno. Poiema, do verbo grego poieo, que deu em português poema e poesia, significa aquilo que é fabricado, produto, projeto de um artesão. Assim, na teologia, logos e poieo andam juntos.
  
Por isso, na teologia, a paixão aproxima, porque é sempre logos e poieo nos diferentes momentos. Que você possa curtir prazerosamente no humano as palavras, as outras palavras, que nos trazem diferentes construções e universos.


Agradecido porque fazer teologia virou sina. O menino lá de trás atravessou o tempo, os jeans, camisetas, cabelos arrepiados, e caiu aqui, do outro lado da vida, na Paulista, Saraiva adentro. Tempo de logos e poieo, o garoto de antes vê a plenitude, mas o homem de hoje entende que o si não é o importante, talvez sim as notas do Murá, os sorrisos e os parabéns que a transcendência montou.

Voltando a Machado: ele fala de palavras mal compostas, palavras decoradas, palavras sussurradas, palavras que se bebem, palavras que reboam, palavras secas, palavras afirmativas, palavras vulgares...

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar comprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam”.

A aparente simplicidade de A Cartomante, publicado originalmente na Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro, em 1884, é típica de Machado. Talvez essa seja a grande lição do mestre: traduzir o humano com aparente simplicidade. É, digo aparente simplicidade, porque o simples dá trabalho e, ao contrário do que se pensa, nunca é primeiro, mas processo. E esse é o recado. Fazer teologia é descobrir o prazer da palavra curta, na construção muitas vezes trabalhosa que produz aquilo que é poieo. Ou seja, fazer teologia é desconstruir, e na imaginação construir de novo, percorrendo se for possível o caminho de todos, de cada humano. E é assim que, sem estardalhaço, a produção teológica ocupa lugar nos corações, cheia de imagens e significados.

Obrigado pelo agradável, bom e doce que expressa em letras a liberdade do marujo.

O sondar daquele menino lá atrás ajuda. O olhar deslumbrado porque a vida é a praça, os jardins do Flamengo, os repuxos brancos no entardecer, as pessoas que compõem o cenário como se tivessem sido colocadas lá pelo arquiteto. E o mar... Assim é! A humanidade coroa a Glória. Aceito o prescrito e reconheço.


Leia e compre o livro
TEOLOGIA HUMANA, pra lá de humana
Jorge Pinheiro, Fonte Editorial, 2010.








jeudi 6 octobre 2016

O protestantismo e sua ética solidária

Protestantismo e memória
Jorge Pinheiro


De pé ao lado do leito, movendo em silêncio os lábios, ela orou com lágrimas ao Eterno, dizendo: Senhor, D'us de Israel, dai-me força. Olhai agora o que vão fazer minhas mãos, a fim de que, segundo a vossa promessa, levanteis a vossa cidade de Jerusalém, e eu realize o que acreditei ser possível graças a vós. Dizendo isto, aproximou-se da coluna que estava à cabeceira do leito e tomou a espada que ali estava pendurada; desembainhou-a e, tomando os cabelos de Holofernes, disse: Senhor, dai-me força neste momento! Feriu-o duas vezes na nuca e decepou-lhe a cabeça. Desprendeu em seguida o cortinado das colunas, e rolou por terra o corpo mutilado. Feito isto, saiu e deu à sua serva a cabeça de Holofernes para que a metesse no saco. Depois saíram ambas, como de costume, como se fossem para a oração. Atravessaram o acampamento, contornaram o vale e chegaram às portas da cidade..


O protestantismo e sua ética solidária abrem caminho para uma compreensão da história e dos movimentos políticos e ideológicos do século passado na América Latina. Falar de ética do protestantismo remete ao clamor contra a idolatria social e traduz um posicionamento crítico, que propõe julgamento e transformação da realidade. Tal movimento contra à barbárie histórica é tarefa que inclui as comunidades de fé, que em sua ação social devem elaborar uma mensagem de esperança para o mundo dos excluídos. Nesse contexto, o século vinte na América Latina abriu os caminhos da liberdade, mas fez-se inseguro dentro de sua própria autonomia, pois se por um lado as comunidades de fé, confissões e denominações protestantes de conjunto tentaram romper a insegurança da sociedade ocidental o fizeram favorecendo a submissão à hierarquia e à tradição. Mas a liberdade experimentada pelas comunidades não pode ser esquecida, nem abandonada, por isso, aqueles que militaram no protestantismo e aprenderam a protestar não querem mais se submeter à hierarquia e à tradição.

O conceito protestante de barbárie histórica traduz aquelas realidades e momentos de ameaça à existência, quando os direitos e seguranças são questionados, e está intimamente ligado ao clamor contra a idolatria social. Esse posicionamento crítico de julgamento e transformação da realidade parte da compreensão de que a vida em liberdade só é possível através da realização da justiça. Por isso, é difícil separar ética protestante e crítica social.

Ao construir uma leitura da ética do protestantismo na América Latina, apresentamos o conceito de barbárie histórica, que explica desde um ponto de vista filosófico como realidades e estruturas colocam em risco a existência humana, e como diante dessa ameaça é necessária a proclamação da vida. A esta proclamação da vida e a este protesto contra aquilo que fere a essência do ser humano chamamos clamor protestante.

Ao levar em conta o momento histórico vivido pela América Latina nos seus anos de chumbo, tanto em relação ao esmagamento dos direitos civis e democráticos, quanto em relação às perspectivas de construção de futuro, esses anos foram momentos especiais e possibilitaram a expressão de propostas e alternativas sociais. Foi um tempo carregado de tensão, de possibilidades e qualitativo e rico de conteúdo. Por isso, dizemos que foi um tempo de kairós, de viva consciência da história e foi a partir dela que segmentos da sociedade brasileira e latino-americana procuraram elaborar uma filosofia consciente da história.

Ao analisar o surgimento do protestantismo devemos levar em conta aspectos históricos do final do medievo e os movimentos ideológicos que se estruturam a partir da revolução protestante no século dezesseis. Tal metodologia é relevante para a compreensão do contexto a partir do qual se construiu a própria ética protestante, já que em termos filosóficos a revolução que começou na Alemanha e se espraiou pela Europa fez um chamado a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da catástrofe histórica na Europa. A necessidade de resistência e transformação exortava às comunidades de fé, recém surgidas em meio à convulsão social, a elaborar uma mensagem de esperança para o mundo simples.

Nesse contexto, o ser humano pós-medieval surge como livre, mas ainda estava inseguro em sua liberdade. Tal situação fez com que setores institucionalizados das comunidades de fé levantassem a necessidade de uma volta ao passado, fazendo o discurso da emancipação da autonomia, e retorno à submissão à hierarquia e à tradição. Mas a liberdade já tinha sido experimentada e, por isso, sua tendência era à expansão.

Ora, a existência humana estava a elevar-se ao cume do que vivera até aquele momento em sua dimensão de liberdade. O ser humano se libertava das cadeias da necessidade natural imperiosamente presentes na Idade Média. Tornava-se consciente e adquiria liberdade de questionar a si próprio, seu ambiente, de questionar a verdade e o bem e de decidir a seu respeito. Entretanto, havia nessa liberdade certa falta de liberdade, pois implica em descobrir a importância de decidir por si próprio.

O ato de decidir faz parte da inevitabilidade da liberdade, e cria uma inquietude na existência. É no ato da decisão que a existência se sente ameaçada. Isso porque somos confrontados com a exigência de escolher o bem e de realizá-lo, na mesma medida em que isso pode ou não ser alcançado. No protestantismo, o ser humano, enquanto dimensão espiritual carrega uma ruptura, uma alienação, que também se manifesta na sociedade. Não é possível fugir dessa exigência, e quando a enfrentamos nunca nos sentimos absolutamente seguros. Estamos, então, diante da possibilidade da barbárie, de uma situação histórica limite, onde os direitos e seguranças que construímos são questionados e as possibilidades apresentam limites. Na filosofia protestante, tal processo leva ao conceito de justificação, pois a graça da vida em todas as suas dimensões descarta o direito de qualquer autoridade, institucional ou não, exigir a aceitação de uma crença correta, definitiva. Assim, a devoção à verdade é suprema somente quando é devoção a Deus, por isso, existe um elemento sagrado na própria dúvida, mesmo quando esta se refere ao Deus e às religiões.

Na verdade, se Deus é a verdade, ele é a base e não o objeto das questões a seu respeito. Nesse sentido, qualquer lealdade à verdade seria sempre protestante, mesmo quando acaba constatando a falta de verdade. Assim, no protestantismo, o divino se faz presente na dúvida e o ateísmo pode se dirigir ao incondicional; pode ser uma forma de fé na verdade, pois a consciência da falta de sentido é uma presença paradoxal do sentido que há na falta de sentido. Assim na filosofia protestante, a justificação nasce não da certeza, mas da dúvida que leva ao movimento e à ação. E a atitude antagônica à justificação, é o cinismo que imobiliza. Por isso, o conceito barbárie se traduz como ameaça final à existência e é o diferencial do protestantismo. Nasce em torno da justificação pela fé, da vida em liberdade que traduz a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. Enfrentar a possibilidade da barbárie significa julgar e transformar, e essa é a diferença entre a ética protestante e aquelas que fazem a defesa da hierarquia e da tradição.

Sem uma relação universal entre protestantismo e ética solidária não se pode construir uma noção de vocação da pessoa. Ou seja, não se pode fundar uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma única interpretação da globalidade, por isso a ética protestante não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. A ética protestante não subscreve nem a construção de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Ou seja, toda compreensão da globalidade e toda ética real são concretas, pois toda globalidade se situa num momento temporal determinado, pleno, que a filosofia protestante chama kairós. E a universalidade do kairós comporta riscos concretos, não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual. Assim, o que é válido para a pessoa se expressa enquanto consciência ética geral também para a comunidade.

Exatamente por isso, toda realidade global comporta dois aspectos: aquele que a leva à sua particularidade de origem, ao seu fundamento, e um outro que, a partir da particularidade, a remete à universalidade. Assim, a realização da globalidade se orienta na direção a ela própria, exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, a filosofia protestante diz que a ética transporta ao Deus e à vida, que são o bem e o bom da existência.

A memória é afetiva e seletiva. Na verdade, ela vai apresentando os fatos vividos, a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos onde vivemos situações-limite. Mas não pára aí. A memória sempre faz uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis. É por isso que os velhos são bons contadores de história e são olhados pelos netos como cavaleiros andantes de um tempo mítico.

A memória como toda boa história é, em primeiro lugar, história oral. Discorre sobre acontecimentos sociais amplamente conhecidos. E quando isso acontece ambas se complementam e se enriquecem. A memória ao apoiar-se nos fatos deixa de ser o relato de algo particular, vive um processo indutivo, que lhe dá grandeza. E a história, inversamente, ao recorrer à memória traz emoção e vida ao fato documental. Mas nossas memórias não se entrecruzam apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como nossos sonhos, transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o imaginário, às vezes, é tão real quanto a história vivida.

Aqueles que já morreram e, por isso, mais do que nunca são personagens da história latino-americana são lembrados aqui com seus nomes de vida corrida. Os que ainda estão vivos, construindo histórias, deixo que a memória os trate como rios que correm, por isso aparecem com nomes que mudam como as estações.

Não há nesta atitude da memória nenhuma intenção de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que ainda não são história acabada. Nesse sentido, a memória segue a tradição de muitas tribos indígenas brasileiras, onde os nomes mudam conforme o ciclo da vida. O nome definitivo não traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca da travessia.

Anjos e demônios estão presentes. É o eu profundo revelando sua visão do mundo vivido. É difícil dizer qual é maior: o pesadelo ou a realidade da dor. Ambos são terríveis e por isso se complementam. E fica mais fácil entender um no debruçar-se sobre o outro. É, inclusive, difícil dizer qual vem primeiro, já que o pesadelo pode ser sentido como futuro que se faz presente. E aqui ambos, pesadelo e dor se fazem texto estilhaçado, como a alma humana.

Ou como cantou Chico: “Oh, pedaço de mim, oh, metade adorada de mim, leva os olhos meus, que a saudade é o pior castigo, e eu não quero levar comigo, a mortalha do amor”. E, assim, tudo chega através da memória, que afetivamente vai selecionando o que lhe parece mais verdadeiro, a fim de construir o mundo mítico de nosso heroísmo fugaz.