Protestantismo e memória
Jorge Pinheiro
De pé ao lado do leito, movendo em silêncio os
lábios, ela orou com lágrimas ao Eterno, dizendo: Senhor, D'us de Israel, dai-me
força. Olhai agora o que vão fazer minhas mãos, a fim de que, segundo a vossa
promessa, levanteis a vossa cidade de Jerusalém, e eu realize o que acreditei
ser possível graças a vós. Dizendo isto, aproximou-se da coluna que estava à
cabeceira do leito e tomou a espada que ali estava pendurada; desembainhou-a e,
tomando os cabelos de Holofernes, disse: Senhor, dai-me força neste momento!
Feriu-o duas vezes na nuca e decepou-lhe a cabeça. Desprendeu em seguida o
cortinado das colunas, e rolou por terra o corpo mutilado. Feito isto, saiu e
deu à sua serva a cabeça de Holofernes para que a metesse no saco. Depois
saíram ambas, como de costume, como se fossem para a oração. Atravessaram o
acampamento, contornaram o vale e chegaram às portas da cidade..
O protestantismo e sua ética solidária abrem caminho para uma
compreensão da história e dos movimentos políticos e ideológicos do século passado
na América Latina. Falar de ética do protestantismo remete ao clamor contra a
idolatria social e traduz um posicionamento crítico, que propõe julgamento e
transformação da realidade. Tal movimento contra à barbárie histórica é tarefa
que inclui as comunidades de fé, que em sua ação social devem elaborar uma
mensagem de esperança para o mundo dos excluídos. Nesse contexto, o século
vinte na América Latina abriu os caminhos da liberdade, mas fez-se inseguro
dentro de sua própria autonomia, pois se por um lado as comunidades de fé,
confissões e denominações protestantes de conjunto tentaram romper a
insegurança da sociedade ocidental o fizeram favorecendo a submissão à
hierarquia e à tradição. Mas a liberdade experimentada pelas comunidades não
pode ser esquecida, nem abandonada, por isso, aqueles que militaram no
protestantismo e aprenderam a protestar não querem mais se submeter à
hierarquia e à tradição.
O conceito
protestante de barbárie histórica traduz aquelas realidades e momentos de
ameaça à existência, quando os direitos e seguranças são questionados, e está
intimamente ligado ao clamor contra a idolatria social. Esse posicionamento
crítico de julgamento e transformação da realidade parte da compreensão de que
a vida em liberdade só é possível através da realização da justiça. Por isso, é
difícil separar ética protestante e crítica social.
Ao construir uma leitura da ética do protestantismo na América Latina,
apresentamos o conceito de barbárie histórica, que explica desde um ponto de
vista filosófico como realidades e estruturas colocam em risco a existência
humana, e como diante dessa ameaça é necessária a proclamação da vida. A esta
proclamação da vida e a este protesto contra aquilo que fere a essência do ser
humano chamamos clamor protestante.
Ao levar em conta o momento histórico vivido pela América Latina nos
seus anos de chumbo, tanto em relação ao esmagamento dos direitos civis e
democráticos, quanto em relação às perspectivas de construção de futuro, esses
anos foram momentos especiais e possibilitaram a expressão de propostas e
alternativas sociais. Foi um tempo carregado de tensão, de possibilidades e
qualitativo e rico de conteúdo. Por isso, dizemos que foi um tempo de kairós,
de viva consciência da história e foi a partir dela que segmentos da sociedade
brasileira e latino-americana procuraram elaborar uma filosofia consciente da
história.
Ao analisar o surgimento
do protestantismo devemos levar em conta aspectos históricos do final do
medievo e os movimentos ideológicos que se estruturam a partir da revolução
protestante no século dezesseis. Tal metodologia é relevante para a compreensão
do contexto a partir do qual se construiu a própria ética protestante, já que
em termos filosóficos a revolução que começou na Alemanha e se espraiou pela
Europa fez um chamado a um posicionamento transcendente, de resistência ao
impacto da catástrofe histórica na Europa. A necessidade de resistência e
transformação exortava às comunidades de fé, recém surgidas em meio à convulsão
social, a elaborar uma mensagem de esperança para o mundo simples.
Nesse contexto, o ser
humano pós-medieval surge como livre, mas ainda estava inseguro em sua
liberdade. Tal situação fez com que setores institucionalizados das comunidades
de fé levantassem a necessidade de uma volta ao passado, fazendo o discurso da
emancipação da autonomia, e retorno à submissão à hierarquia e à tradição. Mas
a liberdade já tinha sido experimentada e, por isso, sua tendência era à
expansão.
Ora, a existência
humana estava a elevar-se ao cume do que vivera até aquele momento em sua
dimensão de liberdade. O ser humano se libertava das cadeias da necessidade
natural imperiosamente presentes na Idade Média. Tornava-se consciente e
adquiria liberdade de questionar a si próprio, seu ambiente, de questionar a
verdade e o bem e de decidir a seu respeito. Entretanto, havia nessa liberdade
certa falta de liberdade, pois implica em descobrir a importância de decidir
por si próprio.
O ato de decidir faz
parte da inevitabilidade da liberdade, e cria uma inquietude na existência. É
no ato da decisão que a existência se sente ameaçada. Isso porque somos
confrontados com a exigência de escolher o bem e de realizá-lo, na mesma medida
em que isso pode ou não ser alcançado. No protestantismo, o ser humano,
enquanto dimensão espiritual carrega uma ruptura, uma alienação, que também se
manifesta na sociedade. Não é possível fugir dessa exigência, e quando a
enfrentamos nunca nos sentimos absolutamente seguros. Estamos, então, diante da
possibilidade da barbárie, de uma situação histórica limite, onde os direitos e
seguranças que construímos são questionados e as possibilidades apresentam
limites. Na filosofia protestante, tal processo leva ao conceito de
justificação, pois a graça da vida em todas as suas dimensões descarta o
direito de qualquer autoridade, institucional ou não, exigir a aceitação de uma
crença correta, definitiva. Assim, a devoção à verdade é suprema somente quando
é devoção a Deus, por isso, existe um elemento sagrado na própria dúvida, mesmo
quando esta se refere ao Deus e às religiões.
Na verdade, se Deus é
a verdade, ele é a base e não o objeto das questões a seu respeito. Nesse
sentido, qualquer lealdade à verdade seria sempre protestante, mesmo quando
acaba constatando a falta de verdade. Assim, no protestantismo, o divino se faz
presente na dúvida e o ateísmo pode se dirigir ao incondicional; pode ser uma
forma de fé na verdade, pois a consciência da falta de sentido é uma presença
paradoxal do sentido que há na falta de sentido. Assim na filosofia
protestante, a justificação nasce não da certeza, mas da dúvida que leva ao
movimento e à ação. E a atitude antagônica à justificação, é o cinismo que
imobiliza. Por isso, o conceito barbárie se traduz como ameaça final à
existência e é o diferencial do protestantismo. Nasce em torno da justificação
pela fé, da vida em liberdade que traduz a aceitação da exigência incondicional
de realizar a verdade e fazer o bem. Enfrentar a possibilidade da barbárie
significa julgar e transformar, e essa é a diferença entre a ética protestante
e aquelas que fazem a defesa da hierarquia e da tradição.
Sem uma relação universal entre protestantismo e ética solidária não se pode
construir uma noção de vocação da pessoa. Ou seja, não se pode fundar uma ética
protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender
que não existe uma única interpretação da globalidade, por isso a ética
protestante não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na
existência. A ética protestante não subscreve nem a construção de uma ética
social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Ou seja, toda
compreensão da globalidade e toda ética real são concretas, pois toda
globalidade se situa num momento temporal determinado, pleno, que a filosofia
protestante chama kairós. E a universalidade do kairós comporta riscos
concretos, não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação
atual. Assim, o que é válido para a pessoa se expressa enquanto consciência
ética geral também para a comunidade.
Exatamente por isso,
toda realidade global comporta dois aspectos: aquele que a leva à sua
particularidade de origem, ao seu fundamento, e um outro que, a partir da
particularidade, a remete à universalidade. Assim, a realização da globalidade
se orienta na direção a ela própria, exprime o que lhe próprio, suas
solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, a filosofia
protestante diz que a ética transporta ao Deus e à vida, que são o bem e o bom
da existência.
A memória é
afetiva e seletiva. Na verdade, ela vai apresentando os fatos vividos, a partir
de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos onde
vivemos situações-limite. Mas não pára aí. A memória sempre faz uma leitura
épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis. É por
isso que os velhos são bons contadores de história e são olhados pelos netos
como cavaleiros andantes de um tempo mítico.
A memória como toda boa história é, em primeiro
lugar, história oral. Discorre sobre acontecimentos sociais amplamente
conhecidos. E quando isso acontece ambas se complementam e se enriquecem. A
memória ao apoiar-se nos fatos deixa de ser o relato de algo particular, vive
um processo indutivo, que lhe dá grandeza. E a história, inversamente, ao
recorrer à memória traz emoção e vida ao fato documental. Mas nossas memórias
não se entrecruzam apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como
nossos sonhos, transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o
imaginário, às vezes, é tão real quanto a história vivida.
Aqueles que já morreram e, por isso, mais do que
nunca são personagens da história latino-americana são lembrados aqui com seus
nomes de vida corrida. Os que ainda estão vivos, construindo histórias, deixo
que a memória os trate como rios que correm, por isso aparecem com nomes que
mudam como as estações.
Não há nesta atitude da memória nenhuma intenção
de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que ainda não são
história acabada. Nesse sentido, a memória segue a tradição de muitas tribos
indígenas brasileiras, onde os nomes mudam conforme o ciclo da vida. O nome
definitivo não traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca da travessia.
Anjos e demônios estão presentes. É o eu
profundo revelando sua visão do mundo vivido. É difícil dizer qual é maior: o
pesadelo ou a realidade da dor. Ambos são terríveis e por isso se complementam.
E fica mais fácil entender um no debruçar-se sobre o outro. É, inclusive,
difícil dizer qual vem primeiro, já que o pesadelo pode ser sentido como futuro
que se faz presente. E aqui ambos, pesadelo e dor se fazem texto estilhaçado,
como a alma humana.
Ou como cantou Chico: “Oh, pedaço de mim, oh, metade adorada de
mim, leva os olhos meus, que a saudade é o pior castigo, e eu não quero levar
comigo, a mortalha do amor”. E, assim, tudo
chega através da memória, que afetivamente vai selecionando o que lhe parece
mais verdadeiro, a fim de construir o mundo mítico de nosso heroísmo fugaz.
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