O caminho da
culpa
Jorge
Pinheiro
Algumas questões sobre a culpa e os conflitos religiosos a
partir do capítulo sete de Culpa e Graça, de Paul Tounier, Ed. ABU, 1985, onde
coloca a seguinte questão: “Quem pode se
sentir culpado sem o ser? Ou sê-lo sem sentir, sem mesmo saber?”
Podemos dizer que existem dois tipos de culpa. A falsa
culpa, fruto de algum distúrbio psicológico, de um processo autopunitivo, e a
culpa verdadeira. Mas, até mesmo a falsa culpa parece esconder uma culpa
verdadeira. Ou seja, quer a autopunição ou qualquer outro processo psicótico,
parece esconder uma outra culpa, diferente da obsessão apresentada. É para
esconder essa culpa verdadeira, real, que o psicótico constrói uma outra:
imaginária e obsessiva.
A questão tem solução no fato de que a culpa existe e é
aceita pelo conjunto dos estudiosos que analisaram o tema, cada qual
apresentando a perspectiva de sua escola ou visão de mundo. Assim, os
freudianos mostrarão a frequência culpa-inferioridade; os jungianos, a recusa
de aceitação integral de si mesmo; e Martin Buber, a recusa de aceitação do
outro. Mas, para nós cristãos, fica claro que a culpa surge nos homens, quando O
Eterno reprova no secreto de seus corações, ações e intenções.
A culpa pode ser observada como um fenômeno ou como a
quebra de categorias de valor. Mas a maioria dos estudiosos analisa a culpa
como fenômeno ou culpa funcional. A partir deste ponto de vista, a culpa seria
sempre resultado da sugestão social, medo de tabus, de perda do amor de outrem,
quando em choque com padrões originais. O resultado é um autojulgamento, um
diferencial entre duas ordens de fenômenos.
Para os protestantes, sem esquecermos a realidade dos
fenômenos analisados, a culpa está ligada a categorias éticas de valor, que
remetem ao relacionamento entre o Eterno e o serhumano e hierarquizam-se no
relacionamento da pessoa consigo mesma e com o próximo.
Assim, a visão funcional reflete diferentes interpretações
de culpa, embora todas admitam a existência psicológica da culpa. As categorias
éticas de valor vão além da discussão meramente funcional, pois coloca a
questão em outro patamar: o importante não é saber se uma conduta é ou não
culpada desde o ponto de vista social, mas se ela é ordenada ou não pelo divino
de nossa fé.
É importante que a pessoa se liberte das pressões sociais.
Mas, qualquer hierarquização de valores só terá sentido se partir da única
oposição real entre a verdadeira e as falsas culpas, aquela que parte dos preceitos
do Eterno e não das decisões estritamente humanas, do julgamento do Eterno e
não do julgamento dos homens.
Mas a autenticidade de uma pessoa não significa que o seu
posicionamento é correto em si. Isto porque não existe culpa sem conflito. Não
existem conflitos apenas entre grupos ou interesses opostos. O conflito está
presente até mesmo nas sociedades mais homogêneas e, logicamente, no humano.
Para eliminar o conflito, é necessário retirar-se da vida.
Um pessoa autêntica é aquela que mantêm uma coerência
entre o que pensa e o que faz. Essa autenticidade sem conflitos não existe.
Sempre haverá momentos em que as duas coisas não se encaixarão. E aí estaremos
diante de conflitos e culpa. Mas, ainda que existisse esse humano sem fissuras
éticas, caberia perguntar: Até que ponto essa autenticidade tem uma base libertadora?
De que vale ser autêntico, se a base de minha autenticidade é a alienação em
relação ao eterno, ao próximo e a mim mesmo?
Donde, qual a correlação entre a subjetividade e a culpa?
A culpa é sempre subjetiva, mesmo quando verdadeira. Porque, embora seja uma
ruptura da ordem de dependência do humano em relação a Deus, é através do
psicológico que Deus fala à alma humana. Assim, quer seja consciente ou não,
não encontraremos culpa fora da subjetividade. E a cura da culpa, entendida
como perdão e salvação do humano através da ação redentora do Eterno,
acontecerá, embora não mecanicamente, também na área da subjetividade.
E como imbricamos conflito e culpa? O conflito faz parte
da vida humana. É o choque permanente entre as estruturas mentais do ser e a
realidade social. Nem sempre o pensar e o agir são harmônicos. Na maioria das
vezes resolvem-se através de tensões e conflitos. E, sempre que a solução
violenta as estruturas mentais do ser, temos a culpa. Os conflitos podem levar
à culpa, mas culpa e conflito não são sinônimos.
Embora a culpa seja construída ao nível da subjetividade,
ela parte de uma relação entre estruturas mentais e realidade social. Ou seja,
implica sempre em uma ação, mesmo quando essa ação é mental. Nesse sentido, há
uma mediação entre a estrutura mental e realidade social. Essa mediação é
interação, produz sempre uma objetividade.
E podemos alcançar liberdade de culpa verdadeira, sem
limpar primeiro as culpas psicológicas? Bem, a culpa verdadeira, que poderíamos
chamar de culpa primordial, aquela que nasce da alienação do ser em relação a
Deus, só pode ser curada por um ato do Eterno. Um ato da imanência do Eterno,
que vem até ao humano para resgatá-lo de sua culpa. A libertação existencial da
culpa real não necessariamente elimina culpas psicológicas.
A consciência universal da culpa leva todos os homens,
quer acreditem ou não em Deus, a tentarem exercer o papel que cabe
exclusivamente a Deus: julgar o êrro. O julgamento humano leva a falsas culpas,
o julgamento do Eterno à culpa verdadeira. Quando o humano julga essas duas
justiças se confundem perigosamente.
A relação Pater
noster / imago Dei produz juízo de valores. Se é assim produz também
sentimento de culpa. Na verdade, a relação entre pais e filhos produz juízos de
valor. Isto porque a criança vê o mundo através dos pais. E os pais não
transmitem às crianças apenas informações isentas de valor e normatização, mas
julgamentos e culpas. Ao mesmo tempo, as crianças vivem num mundo imaginário
onde, impossibilitadas de modificar a realidade através da práxis, o fazem
através do sonho. Logicamente, haverá choques e conflitos entre a realidade da
percepção de mundo adulta e esse imaginário infantil.
Os pais plasmam em seus filhos, através de julgamentos,
uma série de culpas que chamamos infantis. Essas culpas impedem as crianças de
ver e entender a culpa verdadeira. Diante do Eterno essas culpas infantis não
pesam, e sim a culpa verdadeira.
Os pais julgam a conduta de seus filhos segundo a ótica
dos adultos, com a experiência de vida que têm e seus filhos não. Quando acusam
seus filhos de mentirosos, porque contam como verdadeiras as histórias que
inventam, os pais não estão entendendo o mundo imaginário da criança. Para a
criança o sonho é real. Mas a suspeita pode levá-la àquilo que desconfia.
Poderá ser uma adulta mentirosa. Pois os pais construíram culpas na criança. Na
verdade, o julgamento dos pais abafa o julgamento do Eterno, impede a criança
de ouvir o que Deus está dizendo.
O pais devem educar a criança levando-a a ter um
relacionamento pessoal, dela própria, com Deus. Devem educar, ou seja, mostrar
a culpa verdadeira que todos temos e que só Deus cura, e assim afastá-la das
culpas infantis, do medo da perda de estima e amor dos outros.
Como entender o que o apóstolo Paulo escreveu em sua
primeira carta aos coríntios (4.1-6), comparando seus argumentos com o conceito
de julgamento, de sentimento de culpa, e a culpa real?
O texto é claro. Pouco importa ser julgado por terceiros
ou por um tribunal humano. Ele próprio, Paulo, não julga a si mesmo. Sua
consciência em nada o acusa, mas nem por isso está justificado. O Senhor é o
juiz. Donde, ninguém deve julgar prematuramente, antes que o Senhor venha.
A palavra consciência exprime nas cartas do apóstolo
valores propriamente cristãos. Quaisquer que sejam as normas exteriores, o
comportamento do humano realiza-se ao nível de duas instâncias: o julgamento
dele próprio (Atos dos apóstolos 23.1; 24.16; carta aos romanos 2.14-15; 9.1:
13.5; segunda carta aos coríntios 1.12; e o julgamento do Eterno, ao qual o
primeiro julgamento está sujeito, conforme I Co 8.7-12; 10.25-29; e II Co 4.2.
Quais as soluções que podemos aplicar sobre nosso
sentimento de culpa, e sobre o sentimento de culpa do próximo?
Devemos resolver a culpa real. Metanóia, perdão e liberdade
em Jesus, o Cristo. A partir da liberdade todas as culpas funcionais estão
cobertas pelo sacrifício vicário do Messias e somos “verdadeiramente livres”.
Nenhuma culpa pesa sobre nós. Mas se nossa consciência continua nos acusando,
se os cacoetes do passado permanecem, é bom procurarmos nos aconselhar com um
profissional da área de Psicologia.
E para terminar nossa reflexão sobre o caminho da culpa,
cabe perguntar o que é saúde psicológica e o que é saúde espiritual?
Ora, saúde psicológica é a relação de equilíbrio entre as
ações interiorizadas do humano e as exigências da realidade social. É a sua
capacidade de resolver problemas com o menor grau de stress e culpa funcional,
respeitando seus julgamentos pessoais.
Já a saúde espiritual é aquela que nasce do relacionamento
do Eterno com o humano arrependido de sua culpa real, liberto para nós
protestantes graça do Eterno através de Cristo Jesus. É o desenvolvimento desse
humano novo, que cresce no Espírito do Eterno, que produz frutos para a vida
eterna.
Aucun commentaire:
Enregistrer un commentaire