jeudi 20 octobre 2016

A antropologia da Imago Dei

A antropologia da imagem de Deus
Jorge Pinheiro

O shemá era a oração que duas vezes por dia os judeus elevavam ao Eterno. Essa prece reconhece Deus como único e diz que deviam amá-lo com todo leb, com toda nefesh e com toda meod, conforme Deuteronômio 6.5.

Leb e lebab, que os gregos traduziram por cardia e nós por coração, nos falam dos movimentos do corpo humano. Leb e sua variante lebab ocorrem 858 vezes nas Escrituras hebraicas, das quais 814 se referem ao coração humano. Expressam a noção antropológica de que somos movidos por sentimentos e emoções que movimentam e dirigem nossos membros e corpo. 

Têm a realidade anatômica e as funções fisiológicas do coração enquanto expressões das atividades do ser humano, que levam às disposições de ânimo como alegria e aflição, coragem e temor, desejo e aspiração, e também às funções intelectuais como inteligência e decisão da vontade, que na cultura ocidental atribuímos ao cérebro. Nas passagens do livro de Gênesis que nos falam do leb constatamos que a antropologia se apresenta como uma psicologia teológica. Assim, leb tem um significado antropológico que fala daqueles aspectos que nos levam aos movimentos do sentir, do querer e do agir, que compõem a personalidade humana.

Meod, que os gregos traduziram por dynamis,ia. intensidade e abundituras judaicas, e traduz a id555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555 e nós por força, aparece trezentas vezes nas Escrituras hebraicas, e traduz a idéia de intensidade e abundância. Em alguns textos, como no caso do crescimento do povo hebreu no Egito, meod aparece ligado à idéia de reprodução, de muitos filhos, o que nos leva a uma compreensão diferente do termo dynamis em grego, que nos fala de uma força física externa ao ser humano. Em hebraico podemos entender meod como potência, aquela força, aquela energia que faz de nós seres criadores, tanto no sentido biológico como intelectual. Seria potência que identifica o ser humano, capacidade de gerar que faz o humano crescer e multiplicar-se.

Mas, nefesh, que os gregos traduziram por psyché, mas que significa garganta, respiração, fôlego, pessoa, vida e alma,[1] sem dúvida, nos fala da plenitude daquilo que é humano, conforme encontramos em Gênesis 2.7. Dessa maneira, nefesh possibilita um rico diálogo com o texto de Gênesis e nos permite uma reconstrução dos significados da natureza humana.

A expressão nefesh leva a uma concepção de exterior versus interior,[2] que tem por base Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte de Iaveh faz seu povo”. Mobiliza assim em diferentes níveis essa força criacional, que constitui uma parte de Deus. A matéria-prima utilizada por Deus na modelagem humana é ordinária, enquanto material pertencente a ordem comum de “ló nefesh”: inanimados e animais. É o sopro de Deus que faz especial essa matéria ordinária. Mas será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criacional de Deus transmite à matéria ordinária não somente vida, mas transfere intensidade e profundidade? De certa maneira, não é absurdo dizer que os seres celestiais são criaturas integralmente espirituais. Sua existência procede do exterior da força criacional de Deus. 

A exteriorização traduz-se no fato de que a força criacional se dá através da palavra, da palavra criadora de Deus. Nesse sentido, nefesh procede da interioridade de Deus e por isso é conhecida como “ein sof”, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação anterior “façamos o ser humano” (Gênesis 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, dizemos que a natureza humana é superior à natureza angélica, porque procede da interioridade de Iaveh. Traduz ação mediadora e conjuntiva da força criacional. Donde, a natureza humana procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh entende-se e revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Da leitura de Gênesis 2.7 podemos constatar que o texto fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: ele não tem uma nefesh, ele passa a ser uma nefesh.

O texto e o pensamento literário dos hebreus são sintéticos. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele exige identificar com que parte do corpo o ser humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh, utilizando para isso textos que apresentam diferentes sentidos de nefesh. Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas Escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta por “psyché”, garganta e estômago podem ser tomados por paradigma e transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que “Iaveh Deus formou o ser humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o ser humano se tornou um ser vivente que necessita Dele para ser saciado”.

Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas a realidade das necessidades fundamentais e imprescindíveis da alma humana, que ao não serem ou não estarem preenchidas por Deus produzem alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. Mas como o sopro de Deus pode ter gerado um ser humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos a nefesh como o órgão das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Deus só podem ser saciadas por Ele.

“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência de Iaveh. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39 e seguintes.

No relato de Gênesis 2.7 o ser humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Quando integrado ao seu Criador, nefesh é transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Mas essa natureza também se vai constituir enquanto expansão dos significados da imagem de Deus, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial, garganta e boca, que possibilitam o sopro. 

Nefesh como substantivo ganhou vários sentidos, sendo garganta um deles, e assim é usado em Provérbios 23.2, quando diz “põe uma faca à tua garganta, se fores uma pessoa de grande apetite”. A garganta ou goela é por onde entra e sai a respiração, o ar. O ser vivente, então, ganhou a designação nefesh, ser respirador. No caso do humano refere-se basicamente à forma que o espírito e a inteligência, sem forma em si, assumiu ao animar o corpo.[3] Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade de Iaveh. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem destinação.

Esse é o destino do humano: ter sua nefesh integralmente saciada por seu Criador e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do Espírito de Deus, o que se traduz em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, conhecimento e abertura à transcendência. A ruptura dessa integridade produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. A antropologia da nefesh em Gênesis nos fala sobre a imagem de Deus e nos dirige a uma pesquisa teológica do humano, da humanidade, da pessoa e da comunidade, da pessoa e da ordem social, da pessoa enquanto excluído, da pessoa enquanto eleito, da humanidade e seu destino, ou seja, da vida para o mundo, do amor para o próximo e da criação para todos.


Diante disso, devemos nos perguntar que princípios podem nortear tal pesquisa teológica? Sem dúvida, o princípio arquitetônico, enquanto revelação, fé objetiva, base e eixo da teologia. E logicamente o princípio hermenêutico, ou seja, a interpretação dos aspectos históricos e lingüísticos dessa revelação. Devemos partir, logicamente, da razão filosófica, que produz ordenação, mas não devemos esquecer a razão científica, enquanto leitura fenomenológica da natureza da antropologia e nem da razão ordinária, enquanto universalidade do senso comum. 

É bom lembrar, que toda análise metodológica, consciente ou inconscientemente, no correr da história da teologia, tem levado inexoravelmente a diferentes compreensões do fato teológico. Isto porque o princípio arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral da revelação e porque o princípio hermenêutico parte sempre de uma ou de múltiplas visões filosóficas que podem ser utilizadas como instrumentos de interpretação da história da revelação. Ou seja, quer queiramos ou não, a ideologia define a hermenêutica, pois o saber sempre está sob o risco de ser arrebatado pela ideologia, já que a ideologia permanece à espreita enquanto código de interpretação. Enquanto intelectuais temos amarras, pontos de apoio, somos transportados pela substância ética.[4]

Aqui reside a dificuldade, toda teologia é transitória. Reflete um momento de compreensão da revelação e de sua história. Mas, em nosso trabalho, utilizaremos a antropologia que as Escrituras nos oferecem como um instrumental hermenêutico para compreender o homo brasiliensis. Isto porque embora não seja antropologia, a teologia nos oferece um roteiro antropológico legítimo. No centro da fé cristã se encontra Jesus Cristo, Deus e ser humano, revelador do divino e do humano. E se a teologia fala da divindade, ela fala a homens e mulheres, fala sobre um Deus que encarnou e que ama os homens e mulheres. Está a serviço do humano.[5] Não podemos fugir a essa realidade, por isso, teologicamente, nosso objetivo é fazer a partir da própria compreensão do humano uma leitura da imagem de Deus que responda aos questionamentos e necessidades teológicas das brasilidades.

No livro das origens lemos: “agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”. (Gênesis 1.26). Ora, se todo o universo é o mundo do ser humano, conforme afirmam os dois relatos da criação e o salmo oito, em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus conferiu ao humano essa correspondência?

A partir da antropologia bíblica podemos ver que em primeiro lugar o homo sapiens é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de Deus. Ele recebe responsabilidade e poder de decisão. Em relação a esta discussão, considero elucidativa a exposição que apresenta a imagem de Deus através de três concepções: substantiva, ou seja, física e psicológica; relacional, ou seja, com um tropismo à transcendência e possibilidade de relacionamento com Deus; e funcional, que se dá através da ação cultural do ser humano.

Acredito, porém, que privilegiar uma dessas concepções em detrimento das outras duas é perder a riqueza do ser humano enquanto imagem de Deus. Por isso, aqui correlacionamos as três concepções, já que formam uma totalidade. Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação. Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho, produção e administração. O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus. Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe sutil: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação. Imagem de Deus traduz também abertura à transcendência. 

Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

Adão é um ser plural. Esse ser humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim, estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos homens. Ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade. Da mesma maneira, em Gênesis 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth,[6] tal explicação de Gênesis 1.27b, de uma humanidade formada por dois sexos, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”. Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico se aprofunde em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.

E para onde aponta o domínio? Todo o universo é o mundo do ser humano, por isso há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, nem animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar. E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através da necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres. Mas, o afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza. Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15, cf. 2 Coríntios 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações...” (Mt 28.18).

Notas


[1]   Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, Dicionário Hebraico Português & Aramaico Português, São Leopoldo/Petrópolis, Sinodal/Vozes, 1988. Verbete: vpn, p. 159.
[2] Raphaël Draï, La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1996, p. 414.
[3] L. Byron Harbin, Teologia do Antigo Testamento (apostila), São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1997, p. 32.
[4]  Paul Ricoeur, Interpretação e Ideologias, RJ, Francisco Alves, 1990, pp.94-95.
[5]  Antonio Manzatto in Teologia e Literatura, São Paulo, Edições Loyola, 1994, p. 41.
[6] Citado por Hans Walter Wolff, in Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975, p. 215.

Fonte
Jorge Pinheiro, Teologia Bíblica e Sistemática, o ultimato da práxis protestante, São Paulo, Fonte Editorial, 2012, pp. 214-222.



mercredi 19 octobre 2016

Eva, ou a função transcendental do humano

 A função Eva
 Jorge Pinheiro

William Blake, poeta do início do século XIX, escreveu sobre a importância da leitura simbólica de determinados textos da Bíblia, a fim de se encontrar neles jóias que estão escondidas sob a literalidade do texto. Essa compreensão parte da constatação de que o pensamento humano não é construído apenas de racionalidade, mas é correlato às experiências do conhecimento intuitivo e transcendente, que dá sentido e significado à vida.

Daí que se há uma leitura literalista de Gênesis e da criação que consideram Adão e Eva figuras históricas, ancestrais da espécie humana, não podemos esquecer que há uma rica simbologia no texto.

Há alguns anos, a historiadora Elaine Pagels voltou-se para a leitura de Gênesis por razões inusitadas. Ela estava em Cartum, no Sudão, numa discussão com o então ministro do Exterior sudanês, membro da tribo Dinka, que tinha escrito um livro sobre as histórias ancestrais de seu povo. Então, ele lhe disse que a história da criação dos dinkas traduzem a cultura de parte do Sudão, não somente religiosa, mas também social e política.

E que era assim porque remontava às origens do humano em busca por soluções para os problemas referentes à natureza, sua origem, o modo como esta cultura se comportava, as transformações que nela se verificavam e seu caráter de continuidade. Estes questionamentos levaram ao surgimento desses relatos ancestrais, formas pictóricas para a explicação dos fenômenos – em geral da natureza, mas também da origem e razão do humano. Daí que os relatos ancestrais formataram as culturas dos povos antigos.

Depois da conversa, Pagels leu na revista "Time" que leitores contestaram um artigo que falava da mudança de costumes nos Estados Unidos. Algumas dessas cartas mencionavam a história de Adão e Eva, como Deus criara o primeiro casal humano, e a importância disso para o comportamento estadunidense hoje. Estimulada por sua conversa com o líder sudanês, ela constatou que os povos, mesmo aqueles que não acreditavam literalmente no relato da criação, precisavam retornar a ele como padrão de referência, quando confrontados com os desafios dos seus valores.

Pagels considerou que, como as estórias de outras culturas, o relato de Gênesis abordava questões fundamentais. Os dinkas e os americanos, do norte, do centro e do sul, não seriam assim tão diferentes. Por isso, por que não olhar para os relatos da criação, quando se procura respostas a perguntas como: existe uma finalidade para a existência humana? Por que sofremos? Por que morremos?

Os debates intelectuais nos anos 1990 levantaram questões que o pensador Stephan A. Hoeller chamou de “Fator Gênesis”. No segundo semestre de 1996, palestras e discussões realizadas no Manhattan Theological Seminary, lideradas pelo rabino Visotzky Burton, virou série de televisão dedicado ao livro do Gênesis.


O pastor batista Bill Moyers, que depois veio a ligar-se à Igreja Unida de Cristo, foi um dos teólogos a propor que diante da modernidade que se esvai, cheia de desafios para a civilização ocidental, de efervescência religiosa com poucas definições, não faz sentido procurar a saída lá na frente, mas voltar ao livro que começou a coisa toda. E, assim, católicos, protestantes e judeus, mas também agnósticos, budistas, hindus e  muçulmanos, participarm dos debates de Bill Moyers.

E as escrituras não-canônicas do vale de Nag Hammadi, no Egito, enriqueceram os debates. A biblioteca de Nag Hammadi é uma coleção de textos não-canônicos, que cobre do surgimento do cristianismo até o Concílio de Niceia, em 325. Descoberta no Alto Egito, próximo à cidade de Nag Hammadi, em 1945, a biblioteca contem textos de cinquenta e dois tratados, três trabalhos pertencentes ao Corpus Hermeticum e uma  tradução parcial de A República de Platão. 

Segundo James M. Robinson, na sua obra The Nag Hammadi Library in English, os códices pertenceram ao monastério de São Pacômio e foram enterrados depois que o bispo Atanásio de Alexandria foi condenado pelo uso de versões não-canônicas dos testamentos em suas Cartas Festivas de 367. Após o Concílio de Niceia, monges tomaram os livros e os esconderam em potes de barro nas cavernas de Djebel El-Tarif.  Ali ficaram por mais de 1500 anos. Os textos nos códices estão escritos em copta, embora sejam traduções do grego. O mais conhecido deles é o Evangelho de Tomé, cujo único texto completo está na Biblioteca de Nag Hammadi. Atualmente, todos os códices estão no Museu Copta do Cairo.

Os cristãos que escreveram as escrituras de Nag Hammadi não leram os relatos do Gênesis como fatos históricos, mas como relatos ancestrais com sentidos a serem traduzidos. Para eles, Adão e Eva não eram figuras históricas, mas representações dos padrões existenciais do humano. Adão era a personificação dramática da psique, a alma, enquanto Eva personificava o pneuma, o espírito. Mas ambos eram igualmente, corpo, matéria. Alma traduzia as funções emocionais, de pensamento e da personalidade, enquanto o espírito representava a capacidade humana para a consciência existencial.

Assim, Adão era a representação do self menor, o ego da psicologia profunda, e Eva representaria a função transcendental, ou o “eu superior’. Obviamente, Eva, então, era superior a Adão, ao invés de inferior.

A superioridade de Eva e seu poder numinoso ficaria evidente por ter exercido o papel de despertadora de Adão. Em sono profundo, Adão teria sido despertado por Eva, a libertadora. Enquanto a Eva da versão tradicional a representação gnóstica parte de um princípio espiritual, Assim, não teria emergido fisicamente do corpo de Adão, mas brotado das profundezas do inconsciente de um Adão sonolento. E foi assim que nasceu a consciência crítica, que aponta para a liberdade. O texto não-canônico de João [Gnostic Apocryphon of John] fala dessa Eva.

“Entrei no calabouço que é a prisão do corpo. E falei: ‘Aquele que ouve, deixe-o surgir do sono profundo’. E então Adão acordou, chorou e derramou lágrimas. Depois limpou as lágrimas amargas, e perguntou: ‘Quem é aquela que chama o meu nome, e onde está essa esperança que vem a mim, estando eu na cadeia desta prisão?’ E ela falou assim: ‘Eu sou a pronoia da luz, sou o pensamento do espírito. Levanta, lembra e siga a sua raiz. E cuidado com o sono profundo’”.

Outra escritura da mesma coleção, “Sobre a Origem do Mundo” [On the Origin of the World], expande a reflexão do tema. Aqui a Eva ancestral cujo nome é Hawah em hebraico e Zoe, em grego, que significa a-vida, é apresentada como filha e mensageira da Sophia divina, a hipóstase feminina da divindade.

Sophia, sabedoria do Eterno, envia Zoe, a vida, como instrutora, a fim de levantar Adão, que se encontrava espiritualmente adormecido. A finalidade era fazer com que aqueles que fossem gerados por ele pudessem ser libertos existencialmente. Quando Eva viu seu companheiro, que era parecido com ela, mas que dormia, sentiu pena dele, e exclamou: “Adão, vive! Levante-se sobre a terra!” Ao clamor de Eva, Adão abriu os olhos e levantou-se. Quando ele a viu disse: “Você vai ser chamada de ‘Hawah, a-vida’, porque é a mãe dos humanos”.

O teólogo Paul Tillich fez uma interpretação semelhante: entendeu que a alienação traduz símbolicamente a situação humana. Para Tillich, a alienação é despertada para a realidade da existência através da consciência crítica e transformadora. Nesse sentido, sem a função Hawah, de despertamento para a vida e para a consciência, não haveria a construção da espécie humana.


Onde é mesmo que mora o pecado?

Os heróicos anabatistas não batizavam seus filhos pequenos. Caso houvesse qualquer benefício no batismo infantil, as crianças anabatistas estavam fora dela. Se o batismo infantil fosse necessário para a salvação das crianças, então, os filhos dos anabatistas estariam perdidos. Mas eles não estavam nem aí. Por que?

A razão dos anabatistas recusarem o batismo às crianças pequenas não é segredo para ninguém. Só quem tem consciência do bem e do mal e erra o alvo – e Paulo, o apóstolo, diz que todos erramos o alvo – precisa de regenerar-se em Cristo, e ser justificado pela graça, através da fé. Para os anabatistas, as crianças pequenas não se enquadram nessa compreensão: mesmo quando cometem erros, o fazem sem consciência de bem e mal. 

É por isso que anabatistas e alguns dos seus companheiros de estrada afirmam que todas as crianças estão salvas, todas elas, porque ao não ter consciência moral de bem e mal em suas vidas estão cobertas pelo sacrifício vicário do Cristo. 

A defenestração de Xixuaú
Ou, onde é mesmo que mora o pecado?
Por Jorge Pinheiro

A compreensão ordinária apresenta hadam, o cara que veio da terra, e hawah, a mulher que é vida, defenestrados da floresta por iavé, senhor do bem e do mal. Bem, defenestrados é um exagero, porque lançados pela janela seria impossível, porque floresta não tem janela. Mas a palavra defenestrados traduz bem o ato de violência e serve como ilustração sobre a apreciação que o senso comum faz da saída do casal de Xixuaú. Para quem não sabe, o rio Jauaperi é o coração da Amazônia e Xixuaú está lá, uma reserva com animais incríveis, vegetação exuberante e igarapés que deixaram hadam e hawah deslumbrados.

A teoria do pecado original é uma maneira transversa de ver a estória humana e flui em direção a um mar grande, uma outra teoria, a do estado de degradação da humanidade. Considera que a natureza humana foi corrompida por um erro original e que todo o humano está em estado de pecado porque é descendência de hadam e hawah. Às vezes, chamado de “o primeiro pecado”, “ou pecado de hadam” ou “o pecado dos pais”, a teoria toma formas diferentes na pluralidade do pensamento cristão, o que leva o pecado original a ser descrito de diferentes maneiras, indo da simples deficiência, como um aleijão, do tropismo ao pecado, de que somos flores do mal, o que pode ou não excluir qualquer idéia a priori de culpa, até a idéia de natureza degenerada e de culpa coletiva. Estas concepções levam a significados na teologia da essencialização do humano, particularmente em relação à graça e ao livre arbítrio.

Feios, sujos e malvados

“...propterea sicut per unum hominem in hunc mundum peccatum intravit et per peccatum mors et ita in omnes homines mors pertransiit in quo omnes peccaverunt...”

Parece que Ettore Scola tinha razão, teríamos sido condenados a viver em um muquifo? Homem, mulher, filhos e parentes, amontoados? E até com a ou o amante, junto, a brilhar na meia luz mortiça? A teoria do pecado original parte de algumas referências das escrituras judaico-cristãs, as epístolas de Paulo aos romanos (Rm 5.12-21) e aos coríntios (1Cor 15.22) e uma passagem do Salmo 51. Mas a primeira exposição sistemática sobre a condeção ao barraco foi proposta por Agostinho de Hipona, no século IV. 

É importante notar, porém, que o referido texto fundante do relato, não apresenta menção ao "pecado original". E a palavra hadam, o da-terra, tem uma dualidade de sentido, primeiro enquanto pessoa do sexo masculino, mas também como agrupamento, espécie. Jean-Michel Maldamé ao analisar este duplo aspecto da universalidade do texto bíblico diz que hadam deve ser considerado como o pai de todos, uma personalidade coletiva que representa a humanidade. (Péché originel, péché d'Adam et péché du monde. Arquivo: http://biblio.domuni.eu/articlestheo/pecheor/po000002.htm). 

O pensamento rabínico não concorda com a visão da danação de origem, que se reproduz ad aeternum. Ao contrário, a considera uma perversão da mitologia cristã. E tal compreensão também está ausente no Corão, embora não seja visto assim por todos os muçulmanos. O certo é que para Mahommed, hadam é o pai comum dos humanos e o primeiro profeta do Islã. 

Mas a formalização do conceito, entre os cristáos do medievo, partiu de Agostinho, em sua leitura da epístola aos romanos, feita na época em que combatia o monge celta Pelágio, que via a criação e a existência como convite ao belo, puro e bom, mesmo depois do casal de índios ter deixado Xixuaú. 

Agostinho, pateando nas pegadas de Orígenes, a partir do neoplatonismo, procurou responder a algumas questões: por que o mal existe? Por que a morte existe? E deu uma resposta instrumental, ao citar o apóstolo quando disse que se por um hadam o errar o alvo entrou no cosmo, e com o pecado a corrupção, assim a corrupção passou a toda a humanidade porque todo mundo erra (Rm 5,12). 

O texto escrito à comunidade de fé de Roma, mencionado acima, fala do erro de hadam como a ofensa de uma pessoa, não dogmatiza o ato, como Agostinho se sentiu obrigado a fazê-lo, numa leitura sem paralelo com o texto de Bereshit. 

Paulo disse que sua formação intelectual aconteceu aos pés de Gamaliel, ou seja, que ele era um fariseu. E por ser fariseu, usou a hermenêutica, middot, ensinada pelos perushim, fariseus. A leitura tipológica era uma regra dessa hermenèutica. O princípio é: "o gesto dos pais é um espelho para o filho”. Em outras palavras, "a experiência de tudo o que foi vivido pelos patriarcas, incluindo hadam, vai acontecer aos seus descendentes". 

Paulo aplica este método em 1Coríntios 10, que é um midrash baseado em Números 20.8. Este é um processo hermenêutico que sobrevive no ditado rabínico: "A história não se repete, gagueja". 

Agostinho chamou a ação do casal de pecado de origem. Para explicá-lo disse que se transmitia a todos os humanos, por geração, herdada como defeito. E seguiu as pegadas do preconceito contra a sexualidade humana, tão denegrida pelos estóicos. Tal interpretação choca-se com o texto de Bereshit, que fala da árvore como do "conhecimento do bem e do mal", expressão que traduz a idéia de consciência diante das alternativas da existência, que faz do humano sapiens e o separa do restante do reino animal. O emparelhamento do "pecado de origem" com as relações sexuais produziram uma rica e trágica mitologia cristã, incluído aí a idéia da maçã, para uns, e da vagina como abertura para o inferno, para outros. Mas só podemos falar de consciência diante do bem e do mal, a partir de Bereshit 3.7-13, que descreve a compreensão da incompletude existencial, que diante dos limites, dos quais a morte é o maior, lança o humano a sonhar com a imortalidade. 

A presença da teoria do pecado de origem nas denominações cristãs foi sendo consolidada com o correr dos séculos. A teoria agostiniana teve influência em quase toda a teologia ocidental. No segundo Concílio de Orange, quando a liberdade de ação e pensamento de Pelágio foi condenada, parte da doutrina de Agostinho recebeu aprovação oficial. Mas o design da predestinação rígida foi rejeitado. Tal tentativa católica de criar um equilíbrio do agostinianismo esbarrou posteriormente na leitura reformada, que levou às últimas consequências a interpretação trágica do pecado de origem. 

Os cristãos orientais, assim como os anabatistas no Ocidente, preferiram uma abordagem diferente para a questão da graça e do errar o alvo, apoiando-se na idéia de theosis, isto é, na busca da união com o Eterno, que foi chamada também de processo de santificação e glorificação. Os dois grupos se reconhecem mais nas teses de João Cassiano do que nas de Agostinho. Por isso, são considerados semi-pelagianos. 

Entendido aqui que o semi-pelagianismo, teoria que se desenvolveu no sul da Gália, no século V, por João Cassiano, Vicente de Lerins e Salvian de Marselha, traduz uma reflexão teológica onde o ser humano não é visto como mestre de sua salvação, mas que esta, dom gratuito de iavé, deve repousar sobre a resposta positiva do humano consciente de seu afastamento de iavé. Nesta letura, há uma distinção entre o começo da fé, o abrir-se ao chamado de iavé, enquanto ato da vontade livre, e o progresso da fé, obra divina de santificação do humano redimido. 

O Magistério católico formatou o ensinamento sobre a transmissão do pecado de origem com as críticas de Agostinho a Pelágio e, depois no século XVI, opondo-se à Reforma protestante. Tal formatação não significou a inclusão de todas as idéias de Agostinho, já que condenou as idéias agostinianas presentes na teologia reformada e também no pensamento jansenista. 

Assim o Catecismo da Igreja Católica descreve o pecado de hadam: "O homem, tentado pelo diabo, deixou morrer em seu coração a confiança em seu Criador (Gn 3.1-11) e, abusando de sua liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus". (CEC397 -- "Catechisme de l'Église catholique", primeira edição francesa 1992. Versão definitiva com modificações, 1997, Édition française Pocket, N°3315, 1999. ISBN 2-266-09563-3). E explicita as consequências: 

Dessa maneira, o catolicismo diz que por seu pecado Adão, como o primeiro homem, perdeu a santidade e a justiça originais que havia recebido de Deus não só para si mas para todos os seres humanos. E que em sua progênie, Adão e Eva transmitiram a natureza humana ferida por seu primeiro pecado, portanto, privada da santidade e da justiça originais. A essa privação os católicos chamam de pecado original. CEC 416-417. 

O catecismo diz ainda que o pecado original é chamado de "pecado" de modo analógico: é um pecado "contraído" e não "cometido", um estado e não um ato (CCC 404). Este estado é transmitido para a raça humana por "propagação", não por "geração", como proposto por Agostinho, que abriu a porta para a suspeita sobre a sexualidade. O Catecismo diz que não podemos especificar o modo como isso de deu. 

Assim, a espécie humana seria em Adão um corpo doente. Por esta "unidade da humanidade" todos os homens estão implicados no pecado de Adão, como todos estão envolvidos na justiça de Cristo. No entanto, “a transmissão do pecado original é um mistério que não podemos compreender plenamente". CEC 404. 

Para o Magistério católico, vencer o pecado de origem é possível graças a ressurreição de Cristo. "A vitória sobre o pecado conquistada por Cristo nos deu situação melhor do que aquilo que o pecado tinha tirado". A situação humana é descrita como se segue: 

"Embora específica para cada um (Concílio de Trento: DS 1513), o pecado original traduz em cada descendente de Adão o caráter de falta pessoal. É a privação da santidade e da justiça original, mas a natureza humana não está totalmente corrompida: ela é ferida em suas próprias forças naturais, sujeitos à ignorância, do sofrimento e do domínio do morte, e inclinada ao pecado (esta inclinação para o mal é chamado de "concupiscência"). O Batismo, dando vida à graça de Cristo, apaga o pecado original e retorna o homem a Deus, mas as conseqüências para a natureza, enfraquecida e inclinada ao mal, persistem no homem e no apelo à guerra espiritual". CEC 405. 

E diante disso, apresentaram uma explicação especial para o dogma da conceição de Maria, posição única porque ela teria recebido antecipadamente os frutos da ressurreição de seu filho: "A Virgem Maria foi, desde o primeiro instante da sua concepção, por uma graça e favor singular de Deus Todo-Poderoso, em vista dos méritos de Jesus Cristo, o Salvador do gênero humano, preservada imune de toda mancha do pecado original", conforme afirmou o papa Pio IX, na bula Ineffabilis Deus, que proclamou o dogma. 

A teologia ortodoxa também emprega a expressão "pecado original", apesar de não usar o sentido proposto pelo catolicismo ocidental. Adere ao ensino dos pais da Igreja Oriental, de que o pecado do primeiro homem, com todas as conseqüências e a punição que sofreu, hereditário à espécie humana. Uma vez que cada ser humano é descendente do primeiro homem, ninguém está isento da marca do pecado, mesmo que tal pecado tenha acontecido para que um dia todos possam viver sem pecado. 

E assim, tem sido desde o primeiro pecado do primeiro nascido entre os homens. Este pecado tem passado, com todas as suas consequências, a todos os descendentes naturais de Adão, disse Cirilo de Alexandria (apud John Karmiris, A Synopsis of the Dogmatic Theology of the Orthodox Catholic Church, Scranton, Pa.: Christian Orthodox Edition, 1973, p. 35-36). 

Os ortodoxos mantiveram-se relativamente afastados dos debates ocidentais sobre a questão do pecado original, e tomaram uma posição de equilíbrio em alguns aspectos. Reconheceram que o pecado de hadam teve consequências para o cosmo, mas rejeitaram qualquer noção de culpa coletiva. Além disso, excluíram a ideia de que a natureza humana é tão corrupta que é incapaz de exercer livre arbítrio, ou seja, conforme as teorias da predestinação particular e da corrupção total defendida por João Calvino. 

Em relação à transmissão do pecado original, os ortodoxos afirmaram que a transmissão do pecado original pela hereditariedade natural deve ser entendida em termos de unidade da natureza humana, na consubstanciação de todos os humanos, que estão unidos pela natureza em uma entidade mística. E isto porque a natureza humana é única e indivisível o que faz com que a transmissão do pecado desde o primogênito de toda a raça humana seja compreensível: "a partir de uma raiz, a doença se espalhou para toda a árvore. Adão é a raiz que viu a corrupção”. (Cirilo de Alexandria, fonte citada). 

Outra questão a ser levantada, ao ler Bereshit 3, é se podemos falar pecado no sentido agostiniano, pois Paulo no seu texto aos romanos apresenta a lei como limite dinâmico entre o bem e o mal. 

Vejamos esta questão. Ao invés de, por que a corrupção?, vamos perguntar por que o mal? Ora, as escrituras judaico-cristãs nos dizem que os pais comeram uvas verdes e as crianças tiveram seus dentes embotados (Ez 18.2) e que iavé é zeloso e repreende os erros dos pais nas gerações que se seguem (Dt 5.9). Então, parece haver uma sequência no fazer humano, seja ela biológica ou cultural e, por isso, também há uma cobrança de iavé diante da repetição dos erros antigos pelas novas gerações. Ou seja, o mal perpassa a existência humana. 

Agostinho relacionou este mal à sexualidade, mas Bereshit apresenta a alienação/mal como afastamento do Eterno. É interessante ver que as escrituras judaicas dizem que morre quem peca, e que o filho não herda a falha do pai, nem a culpa do pai cai sobre o filho, pois a justiça ficará sobre o justo e a impiedade do ímpio sobre ele próprio. (Ez 18.20). 

Portanto, a transmissão de fatores genéticos existe no sentido biológico, natural, assim como a tranmissão cultural enquanto gaguejar da história, mas não há transmissão da danação espiritual fora da escolha e ação humanas. O que é um paradoxo diante dos textos do parágrafo anterior, mas mostra culpa e pecado, presentes em Bereshit 4.7, não como falha e imposição hereditária, mas como escolha ética, que fundamenta a agir livre. 

“Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar”. Gn 4.7)

Só um detalhe: nada nos diz que o casal de índios era imortal. Tudo indica exatamente o contrário. Estão vai a pergunta: como a morte pode ser o castigo de iavé diante do exercício de liberdade presente em Bereshit 3.13? 

E vemos que iavé, depois do ato de distanciamento, deste “o meu caminho eu mesmo traço”, não resolveu destruí-los. Na verdade, cheio de cuidados, costurou roupas de pele, pois hadam e hawah tiveram seus olhos abertos e viram que estavam nus. Assim, a preocupação do texto não está no pecado de origem, mas em outro lugar. 

Duas questões devem ser levadas em conta na leitura: (1) o casal foi defenestrado da floresta ou deixou para trás a natureza de onde brotou? (2) O casal de índios fez algo que os animais não fazem, que a natureza não faz, agiu de forma livre. Donde a pergunta retorna: o casal foi defenestrado por que usou tal prerrogativa e teve que arcar com as consequências de deixar a floresta? Ou a alienação, o distanciamento, rompeu com sua condição existencial natural e fez dele homo sapiens sapiens, que tem metalinguagem, pensa seus próprios pensamentos e a projeção de seu agir?

A alienação tende a levar à úbere, conceito que traduz a idéia de algo fértil, fecundo, luxuriante, de uma pessoa da qual emana alguma coisa útil e vantajosa, mas que paradoxalmente é cheia de confiança em excesso, de orgulho, ou mesmo de insolência contra iavé. O apóstolo Tiago descreve o processo da alienação que dá origem à úbere e segue em direção à corrupção, da seguinte maneira: primeiro se deseja o que não deveria ser desejado. Mergulhado no emaranhado do desejo mal pensado, caminha-se na direção de sua realização, erra-se, então, o alvo existencial, o que leva à corrupção (Tg 1.14-15). 

Ou como disse iavé a qayin, o-lança: se você tivesse feito o que é certo, estaria sorrindo, mas você agiu mal e, por isso, lehatati está na porta, querendo saltar em cima de você. Ele quer dominá-lo, mas você precisa vencê-lo. (Gn 4:7) 

Hadam e hawah antes do distanciamento não tinham desenvolvido o pensamento hipotético-dedutivo. Metaforicamente, viam em preto e branco. Não eram inocentes no sentido de um recém-nascido, mas sua compreensão de mundo repousava sobre o pensamento lógico-formal. Iavé cuidava deles e se fazia presente na vida deles (Gn 2.15-17; 3.8-10; Ec 7.29). O casal no ato do distanciamento não sabia que estava a construir a consciência humana, porém, a partir da separação e da úbere percebeu que não era natureza e isso é constatado quando pensa a sua existência e se vê desnudo. Assim, de forma desigual e combinada, na dialética afastamento/ aproximação, ao deixar a natureza para trás, tem início a construção do pensar humano. 

Torna-se homo sapiens sapiens, faz metalinguagem, pensa seu pensamento e as construções do seu agir. Faz sua primeira experiência existencial e deixa Xixuaú. No ato abre a vereda do caminhar humano, e no engatinhar pleno de úbere perde o colo quente e tem início a difícil experiência da liberdade (Gn 3; Rm 5.12-19; Ef 2.12; Rm 3.23). Deixa o útero, nasce para a compreensão moral do fazer bem e do malfazer e passa a necessitar do exercício diário da livre escolha. Mas é esse caminho, que se por um lado traduz distanciamento, por outro possibilita a reaproximação, o reencontro, já num outro nível, naquele da escolha consciente, quando exclama como o apóstolo da dúvida... meu Senhor e meu Deus!

Texto para sua pesquisa 

Robin Collins, Understanding Atonement: A New and Orthodox Theory, 1995 Veja também: http://home.messiah.edu/~rcollins/Philosophical%20Theology/Atonement/AT7.HTM e http://home.messiah.edu/~rcollins/HOME.HTM).











mardi 18 octobre 2016

A aliança



O ברית
Jorge Pinheiro

A תורה ensina qual deve ser o padrão de relacionamento com o Eterno. E chamamos esse relacionamento de ברית acordo, aliança, pacto. E, assim, vamos dar uma olhada lá no passado, para aprender sobre a renovação do ברית.

Senaqueribe subiu ao trono assírio em 705 antes da Era Comum e teve que enfrentar uma revolta na Babilônia, mas não só lá: todas as províncias do oeste se levantaram. Acreditavam ter chegado o momento da libertação. O Egito prometeu ajudar aos rebelados. A coalizão integrava Tiro, cidades fenícias; Ascalon e Ecron, cidades filistéias; Moabe, Edom e Amon; e Ezequias, de Judá, entrou como um dos chefes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se para o ataque da Assíria.

O que não se fez esperar. Senaqueribe em 701 a.C. atacou Tiro e venceu. Depois foi a vez de Biblos, Arvad, Ashdod, Moabe, Edom e Amon, que se entregaram e pagaram tributo a Senaqueribe.

Ascalon, Ecron e Judá, resistiram. Senaqueribe tomou primeiro Ascalon. Os egípcios tentaram socorrer Ecron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaqueribe tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém.

Nos Anais de Senaqueribe se diz o seguinte:

"Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam. Quanto a ele, encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola”.

Entretanto, por motivos desconhecidos, talvez uma peste, ele levantou o cerco a Jerusalém e voltou para a Assíria. Jerusalém voltou a respirar, no último minuto. Mas teve que pagar tributo aos assírios.

Aparentemente, não se sabe por que Jerusalém se salvou. Mas 2Reis 19.35-37 diz que o Anjo do Senhor atacou o acampamento assírio. Existe uma notícia de Heródoto, História II, 141, segundo a qual num confronto com os egípcios os exércitos de Senaqueribe foram atacados por ratos, o que levanta a hipótese de que a peste bubônica tenha grassado em seu exército.

Para Hermann, estudioso do assunto, "pode-se considerar que algum fato, acontecido no acampamento assírio que assediava Jerusalém, tenha obrigado à partida; mas isto não exclui que Ezequias tenha enviado o seu tributo e renovado de modo ostensivo o tratado de vassalagem, cuja ruptura provocara a invasão assíria". (1)

Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaqueribe na Palestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaqueribe, o tributo pago por Ezequias ao rei assírio foi significativo:

"Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade senhorial, os irregulares e os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 talentos de prata, antimônio escolhido, grandes blocos de cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim, ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas, mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão". (2)

Essa informação concorda com a de 2Reis 18.13-16:

"No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaqueribe, rei da Assíria, veio para atacar todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas. Então Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria, em Laquis: 'Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me impuseres'. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos talentos de prata e trinta talentos de ouro, e Ezequias entregou toda a prata que se achava no Templo de Iaveh e nos tesouros do palácio real. Então Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes e dos umbrais das portas do santuário de Iaveh, que... rei de Judá, havia revestido de ouro, e o entregou ao rei da Assíria".

Com isso, a reforma que Ezequias tinha dado início perdeu o rumo. Seu sucessor Manassés foi um dos piores e mais longos governos de Judá. Foram 55 anos de governo. No final do governo de Manassés o imperialismo assírio começou a entrar em declínio. Era uma época de sincretismo religioso. Deuses, cultos e  costumes se misturavam, e os assírios temerosos de perderem o poder político, oprimiam os cultos nacionais, tentando manter sua influência. Tal situação ameaçava o culto ao Eterno. Mas quem protestava era reprimido.

Manassés foi sucedido pelo filho Amon que acabou assassinado por opositores aos assírios. E foi entronizado, com apenas 8 anos de idade, seu filho יאשיהו Josias, em 640 antes da Era Comum. Durante seu reinado, Judá alcançou esperançosa independência.

A reforma de יאשיהו Josias e o דברים Devarim

A Assíria viveu seus estertores, enfrentando levantes violentos provenientes de vários pontos do império. Povos oprimidos pela extrema violência assíria levantaram suas cabeças. Principalmente os babilônios e os medos, artífices da derrocada definitiva da Assíria, entre 626 e 610 a.C.

Foi um momento especial para Judá. Houve um renascimento do nacionalismo e o rei יאשיהו deu início a uma reforma, descrita em pormenores em 2Reis 22.3-23.25 como sua grande obra política. A reforma começou por volta do ano 629 a.C., décimo segundo do reinado de יאשיהו, que tinha 20 anos de idade.

Aproveitando o debilitamento assírio, יאשיהו recuperou o controle sobre as províncias do antigo reino de Israel, cobrou tributos e melhorou suas defesas. Fez uma limpeza geral no país: cultos e práticas estrangeiras, introduzidos em Judá sob a influência assíria, foram eliminados. A magia e as adivinhações foram banidos. Os santuários do antigo reino de Israel, considerados idólatras, destruídos.

E no templo de Jerusalém foi recuperado um código de leis, o núcleo do atual rolo do דברים Devarim, Deuteronômio como se lê em 2Rs 22. Segundo alguns, escrito no reino do norte e levado para Jerusalém em seguida à destruição de Samaria, em 722 antes da Era Comum. Segundo outros, escrito em Jerusalém mesmo, durante o governo de Ezequias, por grupos fugidos do norte. O rolo do דברים original compreendia os capítulos 12.1-26.15 -- um código de leis de renovação do ברית -- ornamentado por uma introdução, os atuais capítulos 4.44-11.32, e uma conclusão, os capítulos 26.16-28.68.

Ao ser promulgado por יאשיהו em 622 a.C. como lei oficial do Estado, o דברים deu vida à reforma, mostrando ao povo que Judá podia confiar em Deus, porque essa era a promessa davídica. Era preciso reviver as antigas tradições mosaicas.

O livro de 2Crônicas 34 a 36 narra este que foi dos maiores avivamentos experimentados por Israel, dirigido por יאשיהו (c. 639-609 a.C.), que morreu, em batalha, aos 39 anos. Aos 16 anos começou sua vida espiritual e aos 20 fez uma reforma no reino de Judá.

יאשיהו herdou uma nação idólatra, com templos pagãos e bosques dedicados às divindades assírias e dos povos vizinhos: Baal, Milcom, Moloque e Astarote. O povo estava perdido e sem rumo. Mas, יאשיהו superou os problemas graças a dois recursos.

1. A oração, que cumpriu um papel especial no reavivamento. Jovem ainda, יאשיהו começou a buscar ao Senhor (2Crônicas 34.3). Consciente da idolatria existente em seu país lutou contra esse pecado e destruiu todos os altares, conforme o verso 7.

2. A Palavra. Além da oração, a descoberta do Livro de דברים, transformou-se em lei fundamental para a implementação das reformas, 2Crônicas 34.14-18. Ao ouvir a leitura da Palavra do Senhor, o rei humilhou-se diante do Eterno, verso 19. Depois, reuniu o povo e leu diante da multidão a Lei do Senhor, verso 30. Isso trouxe uma renovação espiritual.

O que isso nos ensina? Que sem oração e sem מילה palavra não há renovação do ברית pacto. Assim, na renovação do ברית, promovida pelo rei יאשיהו, podemos realçar quatro movimentos:

1. Uma convocação ao povo para ouvir a מילה
2. O povo ouviu a מילה
3. O povo aceitou a מילה
4. Renovou-se o pacto com o Eterno por meio de um sacrifício pascal


Conclusão histórica

A reforma de יאשיהו surtiu efeito? Sim. Mas não foi completa. Positiva no geral teve suas debilidades. Não encontrou liberdade para se desenvolver: foi feita de cima para baixo, imposta pelo governo, sem base popular mais ampla. Suas medidas priorizaram a aparência, sem levar o povo a uma reconstrução real do culto ao Eterno. A centralização do culto não deu bons resultados, esvaziou a vida e a religiosidade do povo. E os acontecimentos se precipitaram: יאשיהו morreu cedo, e a reforma se perdeu.

Conclusão teológica

Um verdadeiro movimento de renovação espiritual deve estar ligado à oração e ao estudo das Escrituras. Isto porque a palavra do Eterno é restauradora: החוק של אדוני é perfeita e restaura a alma, Salmos 19.7.

A מילה palavra age de forma poderosa no coração humano (Jr. 23.29). Essa é a renovação do ברית pacto que o Eterno deseja que façamos, que tenha por base palavra e a oração.

Citações

(1) Hermann, S., Storia d'Israele. I tempi dell'Antico Testa­mento, Brescia, Queriniana, 1979, p. 347.
(2) Briend, J. et alii., Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulus, 1985, p. 76.