William Blake, poeta do início do século XIX,
escreveu sobre a importância da leitura simbólica de determinados textos da
Bíblia, a fim de se encontrar neles jóias que estão escondidas sob a
literalidade do texto. Essa compreensão parte da constatação de que o
pensamento humano não é construído apenas de racionalidade, mas é correlato às experiências do conhecimento intuitivo e transcendente, que dá
sentido e significado à vida.
Daí que se há uma leitura literalista de
Gênesis e da criação que consideram Adão e Eva figuras históricas, ancestrais
da espécie humana, não podemos esquecer que há uma rica simbologia no texto.
Há alguns anos, a
historiadora Elaine Pagels voltou-se para a leitura de Gênesis por razões
inusitadas. Ela estava em Cartum, no Sudão, numa discussão com o então ministro
do Exterior sudanês, membro da tribo Dinka, que tinha escrito um livro sobre as
histórias ancestrais de seu povo. Então, ele lhe disse que a história da
criação dos dinkas traduzem a cultura de parte do Sudão, não somente religiosa,
mas também social e política.
E que era assim
porque remontava às origens do humano em busca
por soluções para os problemas referentes à natureza, sua origem, o modo como esta
cultura se comportava, as transformações que nela se verificavam e seu caráter
de continuidade. Estes questionamentos levaram ao surgimento desses relatos
ancestrais, formas pictóricas para a explicação dos fenômenos – em geral da
natureza, mas também da origem e razão do humano. Daí que os relatos ancestrais
formataram as culturas dos povos antigos.
Depois da conversa, Pagels leu na revista
"Time" que leitores contestaram um artigo que falava da mudança de
costumes nos Estados Unidos. Algumas dessas cartas mencionavam a história de
Adão e Eva, como Deus criara o primeiro casal humano, e a importância disso
para o comportamento estadunidense hoje. Estimulada por sua conversa com o
líder sudanês, ela constatou que os povos, mesmo aqueles que não acreditavam
literalmente no relato da criação, precisavam retornar a ele como padrão de
referência, quando confrontados com os desafios dos seus valores.
Pagels considerou que, como as estórias de
outras culturas, o relato de Gênesis abordava questões fundamentais. Os dinkas
e os americanos, do norte, do centro e do sul, não seriam assim tão diferentes.
Por isso, por que não olhar para os relatos da criação, quando se procura respostas
a perguntas como: existe uma finalidade para a existência humana? Por que
sofremos? Por que morremos?
Os debates
intelectuais nos anos 1990 levantaram questões que o pensador
Stephan A. Hoeller chamou de “Fator
Gênesis”. No segundo semestre de 1996, palestras e discussões realizadas no
Manhattan Theological Seminary, lideradas pelo rabino Visotzky Burton, virou
série de televisão dedicado ao livro do Gênesis.
O pastor batista Bill Moyers, que depois
veio a ligar-se à Igreja Unida de Cristo, foi um dos teólogos a propor que
diante da modernidade que se esvai, cheia de desafios para a civilização
ocidental, de efervescência religiosa com poucas definições, não faz sentido
procurar a saída lá na frente, mas voltar ao livro que começou a coisa toda. E,
assim, católicos, protestantes e judeus, mas também agnósticos, budistas, hindus
e muçulmanos, participarm dos debates de
Bill Moyers.
E as escrituras não-canônicas do vale de
Nag Hammadi, no Egito, enriqueceram os debates. A
biblioteca de Nag Hammadi é uma
coleção de textos não-canônicos, que cobre do surgimento do cristianismo até o Concílio de Niceia, em 325. Descoberta
no Alto
Egito, próximo à cidade de Nag Hammadi,
em 1945, a
biblioteca contem textos de cinquenta e dois tratados, três trabalhos
pertencentes ao Corpus Hermeticum
e uma tradução parcial de A República de Platão.
Segundo
James M. Robinson, na sua obra The Nag Hammadi
Library in English, os códices pertenceram ao monastério de São Pacômio e
foram enterrados depois que o bispo Atanásio de Alexandria foi condenado
pelo uso de versões não-canônicas dos testamentos em suas Cartas
Festivas de 367. Após o Concílio de Niceia, monges tomaram os
livros e os esconderam em potes de barro nas cavernas de Djebel El-Tarif. Ali ficaram por mais de 1500 anos. Os textos
nos códices estão escritos em copta,
embora sejam traduções do grego.
O mais conhecido deles é o Evangelho de Tomé, cujo único texto
completo está na Biblioteca de Nag Hammadi. Atualmente, todos os códices estão
no Museu
Copta do Cairo.
Os cristãos que escreveram as escrituras
de Nag Hammadi não leram os relatos do Gênesis como fatos históricos, mas como relatos
ancestrais com sentidos a serem traduzidos. Para eles, Adão e Eva não eram
figuras históricas, mas representações dos padrões existenciais do humano. Adão
era a personificação dramática da psique, a alma, enquanto Eva personificava o
pneuma, o espírito. Mas ambos eram igualmente, corpo, matéria. Alma traduzia as
funções emocionais, de pensamento e da personalidade, enquanto o espírito
representava a capacidade humana para a consciência existencial.
Assim, Adão era a representação do self menor, o ego da psicologia
profunda, e Eva representaria a função transcendental, ou o “eu superior’.
Obviamente, Eva, então, era superior a Adão, ao invés de inferior.
A superioridade de Eva e seu poder numinoso ficaria
evidente por ter exercido o papel de despertadora de Adão. Em sono profundo, Adão
teria sido despertado por Eva, a libertadora. Enquanto a Eva da versão tradicional
a representação gnóstica parte de um princípio espiritual, Assim, não teria emergido
fisicamente do corpo de Adão, mas brotado das profundezas do inconsciente de um
Adão sonolento. E foi assim que nasceu a consciência crítica, que aponta para a
liberdade. O texto não-canônico de João [Gnostic Apocryphon of John] fala dessa Eva.
“Entrei
no calabouço que é a prisão do corpo. E falei: ‘Aquele que ouve, deixe-o surgir
do sono profundo’. E então Adão acordou, chorou e derramou lágrimas. Depois
limpou as lágrimas amargas, e perguntou: ‘Quem é aquela que chama o meu nome, e
onde está essa esperança que vem a mim, estando eu na cadeia desta prisão?’ E
ela falou assim: ‘Eu sou a pronoia da
luz, sou o pensamento do espírito. Levanta, lembra e siga a sua raiz. E cuidado
com o sono profundo’”.
Outra escritura da mesma coleção, “Sobre a
Origem do Mundo” [On the Origin of the World], expande a reflexão do tema. Aqui a Eva ancestral cujo nome é Hawah
em hebraico e Zoe, em grego, que significa a-vida, é apresentada como
filha e mensageira da Sophia divina, a hipóstase feminina da divindade.
Sophia, sabedoria do
Eterno, envia Zoe, a vida, como instrutora, a fim de levantar Adão, que se
encontrava espiritualmente adormecido. A finalidade era fazer com que aqueles
que fossem gerados por ele pudessem ser libertos existencialmente. Quando Eva
viu seu companheiro, que era parecido com ela, mas que dormia, sentiu pena
dele, e exclamou: “Adão, vive! Levante-se sobre a terra!” Ao clamor de
Eva, Adão abriu os olhos e levantou-se. Quando ele a viu disse: “Você vai ser
chamada de ‘Hawah, a-vida’, porque é a mãe dos humanos”.
O teólogo Paul Tillich fez uma
interpretação semelhante: entendeu que a alienação traduz símbolicamente a
situação humana. Para Tillich, a alienação é despertada para a realidade da
existência através da consciência crítica e transformadora. Nesse sentido, sem
a função Hawah, de despertamento para a vida e para a consciência, não
haveria a construção da espécie humana.
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