mercredi 19 octobre 2016

Eva, ou a função transcendental do humano

 A função Eva
 Jorge Pinheiro

William Blake, poeta do início do século XIX, escreveu sobre a importância da leitura simbólica de determinados textos da Bíblia, a fim de se encontrar neles jóias que estão escondidas sob a literalidade do texto. Essa compreensão parte da constatação de que o pensamento humano não é construído apenas de racionalidade, mas é correlato às experiências do conhecimento intuitivo e transcendente, que dá sentido e significado à vida.

Daí que se há uma leitura literalista de Gênesis e da criação que consideram Adão e Eva figuras históricas, ancestrais da espécie humana, não podemos esquecer que há uma rica simbologia no texto.

Há alguns anos, a historiadora Elaine Pagels voltou-se para a leitura de Gênesis por razões inusitadas. Ela estava em Cartum, no Sudão, numa discussão com o então ministro do Exterior sudanês, membro da tribo Dinka, que tinha escrito um livro sobre as histórias ancestrais de seu povo. Então, ele lhe disse que a história da criação dos dinkas traduzem a cultura de parte do Sudão, não somente religiosa, mas também social e política.

E que era assim porque remontava às origens do humano em busca por soluções para os problemas referentes à natureza, sua origem, o modo como esta cultura se comportava, as transformações que nela se verificavam e seu caráter de continuidade. Estes questionamentos levaram ao surgimento desses relatos ancestrais, formas pictóricas para a explicação dos fenômenos – em geral da natureza, mas também da origem e razão do humano. Daí que os relatos ancestrais formataram as culturas dos povos antigos.

Depois da conversa, Pagels leu na revista "Time" que leitores contestaram um artigo que falava da mudança de costumes nos Estados Unidos. Algumas dessas cartas mencionavam a história de Adão e Eva, como Deus criara o primeiro casal humano, e a importância disso para o comportamento estadunidense hoje. Estimulada por sua conversa com o líder sudanês, ela constatou que os povos, mesmo aqueles que não acreditavam literalmente no relato da criação, precisavam retornar a ele como padrão de referência, quando confrontados com os desafios dos seus valores.

Pagels considerou que, como as estórias de outras culturas, o relato de Gênesis abordava questões fundamentais. Os dinkas e os americanos, do norte, do centro e do sul, não seriam assim tão diferentes. Por isso, por que não olhar para os relatos da criação, quando se procura respostas a perguntas como: existe uma finalidade para a existência humana? Por que sofremos? Por que morremos?

Os debates intelectuais nos anos 1990 levantaram questões que o pensador Stephan A. Hoeller chamou de “Fator Gênesis”. No segundo semestre de 1996, palestras e discussões realizadas no Manhattan Theological Seminary, lideradas pelo rabino Visotzky Burton, virou série de televisão dedicado ao livro do Gênesis.


O pastor batista Bill Moyers, que depois veio a ligar-se à Igreja Unida de Cristo, foi um dos teólogos a propor que diante da modernidade que se esvai, cheia de desafios para a civilização ocidental, de efervescência religiosa com poucas definições, não faz sentido procurar a saída lá na frente, mas voltar ao livro que começou a coisa toda. E, assim, católicos, protestantes e judeus, mas também agnósticos, budistas, hindus e  muçulmanos, participarm dos debates de Bill Moyers.

E as escrituras não-canônicas do vale de Nag Hammadi, no Egito, enriqueceram os debates. A biblioteca de Nag Hammadi é uma coleção de textos não-canônicos, que cobre do surgimento do cristianismo até o Concílio de Niceia, em 325. Descoberta no Alto Egito, próximo à cidade de Nag Hammadi, em 1945, a biblioteca contem textos de cinquenta e dois tratados, três trabalhos pertencentes ao Corpus Hermeticum e uma  tradução parcial de A República de Platão. 

Segundo James M. Robinson, na sua obra The Nag Hammadi Library in English, os códices pertenceram ao monastério de São Pacômio e foram enterrados depois que o bispo Atanásio de Alexandria foi condenado pelo uso de versões não-canônicas dos testamentos em suas Cartas Festivas de 367. Após o Concílio de Niceia, monges tomaram os livros e os esconderam em potes de barro nas cavernas de Djebel El-Tarif.  Ali ficaram por mais de 1500 anos. Os textos nos códices estão escritos em copta, embora sejam traduções do grego. O mais conhecido deles é o Evangelho de Tomé, cujo único texto completo está na Biblioteca de Nag Hammadi. Atualmente, todos os códices estão no Museu Copta do Cairo.

Os cristãos que escreveram as escrituras de Nag Hammadi não leram os relatos do Gênesis como fatos históricos, mas como relatos ancestrais com sentidos a serem traduzidos. Para eles, Adão e Eva não eram figuras históricas, mas representações dos padrões existenciais do humano. Adão era a personificação dramática da psique, a alma, enquanto Eva personificava o pneuma, o espírito. Mas ambos eram igualmente, corpo, matéria. Alma traduzia as funções emocionais, de pensamento e da personalidade, enquanto o espírito representava a capacidade humana para a consciência existencial.

Assim, Adão era a representação do self menor, o ego da psicologia profunda, e Eva representaria a função transcendental, ou o “eu superior’. Obviamente, Eva, então, era superior a Adão, ao invés de inferior.

A superioridade de Eva e seu poder numinoso ficaria evidente por ter exercido o papel de despertadora de Adão. Em sono profundo, Adão teria sido despertado por Eva, a libertadora. Enquanto a Eva da versão tradicional a representação gnóstica parte de um princípio espiritual, Assim, não teria emergido fisicamente do corpo de Adão, mas brotado das profundezas do inconsciente de um Adão sonolento. E foi assim que nasceu a consciência crítica, que aponta para a liberdade. O texto não-canônico de João [Gnostic Apocryphon of John] fala dessa Eva.

“Entrei no calabouço que é a prisão do corpo. E falei: ‘Aquele que ouve, deixe-o surgir do sono profundo’. E então Adão acordou, chorou e derramou lágrimas. Depois limpou as lágrimas amargas, e perguntou: ‘Quem é aquela que chama o meu nome, e onde está essa esperança que vem a mim, estando eu na cadeia desta prisão?’ E ela falou assim: ‘Eu sou a pronoia da luz, sou o pensamento do espírito. Levanta, lembra e siga a sua raiz. E cuidado com o sono profundo’”.

Outra escritura da mesma coleção, “Sobre a Origem do Mundo” [On the Origin of the World], expande a reflexão do tema. Aqui a Eva ancestral cujo nome é Hawah em hebraico e Zoe, em grego, que significa a-vida, é apresentada como filha e mensageira da Sophia divina, a hipóstase feminina da divindade.

Sophia, sabedoria do Eterno, envia Zoe, a vida, como instrutora, a fim de levantar Adão, que se encontrava espiritualmente adormecido. A finalidade era fazer com que aqueles que fossem gerados por ele pudessem ser libertos existencialmente. Quando Eva viu seu companheiro, que era parecido com ela, mas que dormia, sentiu pena dele, e exclamou: “Adão, vive! Levante-se sobre a terra!” Ao clamor de Eva, Adão abriu os olhos e levantou-se. Quando ele a viu disse: “Você vai ser chamada de ‘Hawah, a-vida’, porque é a mãe dos humanos”.

O teólogo Paul Tillich fez uma interpretação semelhante: entendeu que a alienação traduz símbolicamente a situação humana. Para Tillich, a alienação é despertada para a realidade da existência através da consciência crítica e transformadora. Nesse sentido, sem a função Hawah, de despertamento para a vida e para a consciência, não haveria a construção da espécie humana.


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