mercredi 19 octobre 2016

Onde é mesmo que mora o pecado?

Os heróicos anabatistas não batizavam seus filhos pequenos. Caso houvesse qualquer benefício no batismo infantil, as crianças anabatistas estavam fora dela. Se o batismo infantil fosse necessário para a salvação das crianças, então, os filhos dos anabatistas estariam perdidos. Mas eles não estavam nem aí. Por que?

A razão dos anabatistas recusarem o batismo às crianças pequenas não é segredo para ninguém. Só quem tem consciência do bem e do mal e erra o alvo – e Paulo, o apóstolo, diz que todos erramos o alvo – precisa de regenerar-se em Cristo, e ser justificado pela graça, através da fé. Para os anabatistas, as crianças pequenas não se enquadram nessa compreensão: mesmo quando cometem erros, o fazem sem consciência de bem e mal. 

É por isso que anabatistas e alguns dos seus companheiros de estrada afirmam que todas as crianças estão salvas, todas elas, porque ao não ter consciência moral de bem e mal em suas vidas estão cobertas pelo sacrifício vicário do Cristo. 

A defenestração de Xixuaú
Ou, onde é mesmo que mora o pecado?
Por Jorge Pinheiro

A compreensão ordinária apresenta hadam, o cara que veio da terra, e hawah, a mulher que é vida, defenestrados da floresta por iavé, senhor do bem e do mal. Bem, defenestrados é um exagero, porque lançados pela janela seria impossível, porque floresta não tem janela. Mas a palavra defenestrados traduz bem o ato de violência e serve como ilustração sobre a apreciação que o senso comum faz da saída do casal de Xixuaú. Para quem não sabe, o rio Jauaperi é o coração da Amazônia e Xixuaú está lá, uma reserva com animais incríveis, vegetação exuberante e igarapés que deixaram hadam e hawah deslumbrados.

A teoria do pecado original é uma maneira transversa de ver a estória humana e flui em direção a um mar grande, uma outra teoria, a do estado de degradação da humanidade. Considera que a natureza humana foi corrompida por um erro original e que todo o humano está em estado de pecado porque é descendência de hadam e hawah. Às vezes, chamado de “o primeiro pecado”, “ou pecado de hadam” ou “o pecado dos pais”, a teoria toma formas diferentes na pluralidade do pensamento cristão, o que leva o pecado original a ser descrito de diferentes maneiras, indo da simples deficiência, como um aleijão, do tropismo ao pecado, de que somos flores do mal, o que pode ou não excluir qualquer idéia a priori de culpa, até a idéia de natureza degenerada e de culpa coletiva. Estas concepções levam a significados na teologia da essencialização do humano, particularmente em relação à graça e ao livre arbítrio.

Feios, sujos e malvados

“...propterea sicut per unum hominem in hunc mundum peccatum intravit et per peccatum mors et ita in omnes homines mors pertransiit in quo omnes peccaverunt...”

Parece que Ettore Scola tinha razão, teríamos sido condenados a viver em um muquifo? Homem, mulher, filhos e parentes, amontoados? E até com a ou o amante, junto, a brilhar na meia luz mortiça? A teoria do pecado original parte de algumas referências das escrituras judaico-cristãs, as epístolas de Paulo aos romanos (Rm 5.12-21) e aos coríntios (1Cor 15.22) e uma passagem do Salmo 51. Mas a primeira exposição sistemática sobre a condeção ao barraco foi proposta por Agostinho de Hipona, no século IV. 

É importante notar, porém, que o referido texto fundante do relato, não apresenta menção ao "pecado original". E a palavra hadam, o da-terra, tem uma dualidade de sentido, primeiro enquanto pessoa do sexo masculino, mas também como agrupamento, espécie. Jean-Michel Maldamé ao analisar este duplo aspecto da universalidade do texto bíblico diz que hadam deve ser considerado como o pai de todos, uma personalidade coletiva que representa a humanidade. (Péché originel, péché d'Adam et péché du monde. Arquivo: http://biblio.domuni.eu/articlestheo/pecheor/po000002.htm). 

O pensamento rabínico não concorda com a visão da danação de origem, que se reproduz ad aeternum. Ao contrário, a considera uma perversão da mitologia cristã. E tal compreensão também está ausente no Corão, embora não seja visto assim por todos os muçulmanos. O certo é que para Mahommed, hadam é o pai comum dos humanos e o primeiro profeta do Islã. 

Mas a formalização do conceito, entre os cristáos do medievo, partiu de Agostinho, em sua leitura da epístola aos romanos, feita na época em que combatia o monge celta Pelágio, que via a criação e a existência como convite ao belo, puro e bom, mesmo depois do casal de índios ter deixado Xixuaú. 

Agostinho, pateando nas pegadas de Orígenes, a partir do neoplatonismo, procurou responder a algumas questões: por que o mal existe? Por que a morte existe? E deu uma resposta instrumental, ao citar o apóstolo quando disse que se por um hadam o errar o alvo entrou no cosmo, e com o pecado a corrupção, assim a corrupção passou a toda a humanidade porque todo mundo erra (Rm 5,12). 

O texto escrito à comunidade de fé de Roma, mencionado acima, fala do erro de hadam como a ofensa de uma pessoa, não dogmatiza o ato, como Agostinho se sentiu obrigado a fazê-lo, numa leitura sem paralelo com o texto de Bereshit. 

Paulo disse que sua formação intelectual aconteceu aos pés de Gamaliel, ou seja, que ele era um fariseu. E por ser fariseu, usou a hermenêutica, middot, ensinada pelos perushim, fariseus. A leitura tipológica era uma regra dessa hermenèutica. O princípio é: "o gesto dos pais é um espelho para o filho”. Em outras palavras, "a experiência de tudo o que foi vivido pelos patriarcas, incluindo hadam, vai acontecer aos seus descendentes". 

Paulo aplica este método em 1Coríntios 10, que é um midrash baseado em Números 20.8. Este é um processo hermenêutico que sobrevive no ditado rabínico: "A história não se repete, gagueja". 

Agostinho chamou a ação do casal de pecado de origem. Para explicá-lo disse que se transmitia a todos os humanos, por geração, herdada como defeito. E seguiu as pegadas do preconceito contra a sexualidade humana, tão denegrida pelos estóicos. Tal interpretação choca-se com o texto de Bereshit, que fala da árvore como do "conhecimento do bem e do mal", expressão que traduz a idéia de consciência diante das alternativas da existência, que faz do humano sapiens e o separa do restante do reino animal. O emparelhamento do "pecado de origem" com as relações sexuais produziram uma rica e trágica mitologia cristã, incluído aí a idéia da maçã, para uns, e da vagina como abertura para o inferno, para outros. Mas só podemos falar de consciência diante do bem e do mal, a partir de Bereshit 3.7-13, que descreve a compreensão da incompletude existencial, que diante dos limites, dos quais a morte é o maior, lança o humano a sonhar com a imortalidade. 

A presença da teoria do pecado de origem nas denominações cristãs foi sendo consolidada com o correr dos séculos. A teoria agostiniana teve influência em quase toda a teologia ocidental. No segundo Concílio de Orange, quando a liberdade de ação e pensamento de Pelágio foi condenada, parte da doutrina de Agostinho recebeu aprovação oficial. Mas o design da predestinação rígida foi rejeitado. Tal tentativa católica de criar um equilíbrio do agostinianismo esbarrou posteriormente na leitura reformada, que levou às últimas consequências a interpretação trágica do pecado de origem. 

Os cristãos orientais, assim como os anabatistas no Ocidente, preferiram uma abordagem diferente para a questão da graça e do errar o alvo, apoiando-se na idéia de theosis, isto é, na busca da união com o Eterno, que foi chamada também de processo de santificação e glorificação. Os dois grupos se reconhecem mais nas teses de João Cassiano do que nas de Agostinho. Por isso, são considerados semi-pelagianos. 

Entendido aqui que o semi-pelagianismo, teoria que se desenvolveu no sul da Gália, no século V, por João Cassiano, Vicente de Lerins e Salvian de Marselha, traduz uma reflexão teológica onde o ser humano não é visto como mestre de sua salvação, mas que esta, dom gratuito de iavé, deve repousar sobre a resposta positiva do humano consciente de seu afastamento de iavé. Nesta letura, há uma distinção entre o começo da fé, o abrir-se ao chamado de iavé, enquanto ato da vontade livre, e o progresso da fé, obra divina de santificação do humano redimido. 

O Magistério católico formatou o ensinamento sobre a transmissão do pecado de origem com as críticas de Agostinho a Pelágio e, depois no século XVI, opondo-se à Reforma protestante. Tal formatação não significou a inclusão de todas as idéias de Agostinho, já que condenou as idéias agostinianas presentes na teologia reformada e também no pensamento jansenista. 

Assim o Catecismo da Igreja Católica descreve o pecado de hadam: "O homem, tentado pelo diabo, deixou morrer em seu coração a confiança em seu Criador (Gn 3.1-11) e, abusando de sua liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus". (CEC397 -- "Catechisme de l'Église catholique", primeira edição francesa 1992. Versão definitiva com modificações, 1997, Édition française Pocket, N°3315, 1999. ISBN 2-266-09563-3). E explicita as consequências: 

Dessa maneira, o catolicismo diz que por seu pecado Adão, como o primeiro homem, perdeu a santidade e a justiça originais que havia recebido de Deus não só para si mas para todos os seres humanos. E que em sua progênie, Adão e Eva transmitiram a natureza humana ferida por seu primeiro pecado, portanto, privada da santidade e da justiça originais. A essa privação os católicos chamam de pecado original. CEC 416-417. 

O catecismo diz ainda que o pecado original é chamado de "pecado" de modo analógico: é um pecado "contraído" e não "cometido", um estado e não um ato (CCC 404). Este estado é transmitido para a raça humana por "propagação", não por "geração", como proposto por Agostinho, que abriu a porta para a suspeita sobre a sexualidade. O Catecismo diz que não podemos especificar o modo como isso de deu. 

Assim, a espécie humana seria em Adão um corpo doente. Por esta "unidade da humanidade" todos os homens estão implicados no pecado de Adão, como todos estão envolvidos na justiça de Cristo. No entanto, “a transmissão do pecado original é um mistério que não podemos compreender plenamente". CEC 404. 

Para o Magistério católico, vencer o pecado de origem é possível graças a ressurreição de Cristo. "A vitória sobre o pecado conquistada por Cristo nos deu situação melhor do que aquilo que o pecado tinha tirado". A situação humana é descrita como se segue: 

"Embora específica para cada um (Concílio de Trento: DS 1513), o pecado original traduz em cada descendente de Adão o caráter de falta pessoal. É a privação da santidade e da justiça original, mas a natureza humana não está totalmente corrompida: ela é ferida em suas próprias forças naturais, sujeitos à ignorância, do sofrimento e do domínio do morte, e inclinada ao pecado (esta inclinação para o mal é chamado de "concupiscência"). O Batismo, dando vida à graça de Cristo, apaga o pecado original e retorna o homem a Deus, mas as conseqüências para a natureza, enfraquecida e inclinada ao mal, persistem no homem e no apelo à guerra espiritual". CEC 405. 

E diante disso, apresentaram uma explicação especial para o dogma da conceição de Maria, posição única porque ela teria recebido antecipadamente os frutos da ressurreição de seu filho: "A Virgem Maria foi, desde o primeiro instante da sua concepção, por uma graça e favor singular de Deus Todo-Poderoso, em vista dos méritos de Jesus Cristo, o Salvador do gênero humano, preservada imune de toda mancha do pecado original", conforme afirmou o papa Pio IX, na bula Ineffabilis Deus, que proclamou o dogma. 

A teologia ortodoxa também emprega a expressão "pecado original", apesar de não usar o sentido proposto pelo catolicismo ocidental. Adere ao ensino dos pais da Igreja Oriental, de que o pecado do primeiro homem, com todas as conseqüências e a punição que sofreu, hereditário à espécie humana. Uma vez que cada ser humano é descendente do primeiro homem, ninguém está isento da marca do pecado, mesmo que tal pecado tenha acontecido para que um dia todos possam viver sem pecado. 

E assim, tem sido desde o primeiro pecado do primeiro nascido entre os homens. Este pecado tem passado, com todas as suas consequências, a todos os descendentes naturais de Adão, disse Cirilo de Alexandria (apud John Karmiris, A Synopsis of the Dogmatic Theology of the Orthodox Catholic Church, Scranton, Pa.: Christian Orthodox Edition, 1973, p. 35-36). 

Os ortodoxos mantiveram-se relativamente afastados dos debates ocidentais sobre a questão do pecado original, e tomaram uma posição de equilíbrio em alguns aspectos. Reconheceram que o pecado de hadam teve consequências para o cosmo, mas rejeitaram qualquer noção de culpa coletiva. Além disso, excluíram a ideia de que a natureza humana é tão corrupta que é incapaz de exercer livre arbítrio, ou seja, conforme as teorias da predestinação particular e da corrupção total defendida por João Calvino. 

Em relação à transmissão do pecado original, os ortodoxos afirmaram que a transmissão do pecado original pela hereditariedade natural deve ser entendida em termos de unidade da natureza humana, na consubstanciação de todos os humanos, que estão unidos pela natureza em uma entidade mística. E isto porque a natureza humana é única e indivisível o que faz com que a transmissão do pecado desde o primogênito de toda a raça humana seja compreensível: "a partir de uma raiz, a doença se espalhou para toda a árvore. Adão é a raiz que viu a corrupção”. (Cirilo de Alexandria, fonte citada). 

Outra questão a ser levantada, ao ler Bereshit 3, é se podemos falar pecado no sentido agostiniano, pois Paulo no seu texto aos romanos apresenta a lei como limite dinâmico entre o bem e o mal. 

Vejamos esta questão. Ao invés de, por que a corrupção?, vamos perguntar por que o mal? Ora, as escrituras judaico-cristãs nos dizem que os pais comeram uvas verdes e as crianças tiveram seus dentes embotados (Ez 18.2) e que iavé é zeloso e repreende os erros dos pais nas gerações que se seguem (Dt 5.9). Então, parece haver uma sequência no fazer humano, seja ela biológica ou cultural e, por isso, também há uma cobrança de iavé diante da repetição dos erros antigos pelas novas gerações. Ou seja, o mal perpassa a existência humana. 

Agostinho relacionou este mal à sexualidade, mas Bereshit apresenta a alienação/mal como afastamento do Eterno. É interessante ver que as escrituras judaicas dizem que morre quem peca, e que o filho não herda a falha do pai, nem a culpa do pai cai sobre o filho, pois a justiça ficará sobre o justo e a impiedade do ímpio sobre ele próprio. (Ez 18.20). 

Portanto, a transmissão de fatores genéticos existe no sentido biológico, natural, assim como a tranmissão cultural enquanto gaguejar da história, mas não há transmissão da danação espiritual fora da escolha e ação humanas. O que é um paradoxo diante dos textos do parágrafo anterior, mas mostra culpa e pecado, presentes em Bereshit 4.7, não como falha e imposição hereditária, mas como escolha ética, que fundamenta a agir livre. 

“Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar”. Gn 4.7)

Só um detalhe: nada nos diz que o casal de índios era imortal. Tudo indica exatamente o contrário. Estão vai a pergunta: como a morte pode ser o castigo de iavé diante do exercício de liberdade presente em Bereshit 3.13? 

E vemos que iavé, depois do ato de distanciamento, deste “o meu caminho eu mesmo traço”, não resolveu destruí-los. Na verdade, cheio de cuidados, costurou roupas de pele, pois hadam e hawah tiveram seus olhos abertos e viram que estavam nus. Assim, a preocupação do texto não está no pecado de origem, mas em outro lugar. 

Duas questões devem ser levadas em conta na leitura: (1) o casal foi defenestrado da floresta ou deixou para trás a natureza de onde brotou? (2) O casal de índios fez algo que os animais não fazem, que a natureza não faz, agiu de forma livre. Donde a pergunta retorna: o casal foi defenestrado por que usou tal prerrogativa e teve que arcar com as consequências de deixar a floresta? Ou a alienação, o distanciamento, rompeu com sua condição existencial natural e fez dele homo sapiens sapiens, que tem metalinguagem, pensa seus próprios pensamentos e a projeção de seu agir?

A alienação tende a levar à úbere, conceito que traduz a idéia de algo fértil, fecundo, luxuriante, de uma pessoa da qual emana alguma coisa útil e vantajosa, mas que paradoxalmente é cheia de confiança em excesso, de orgulho, ou mesmo de insolência contra iavé. O apóstolo Tiago descreve o processo da alienação que dá origem à úbere e segue em direção à corrupção, da seguinte maneira: primeiro se deseja o que não deveria ser desejado. Mergulhado no emaranhado do desejo mal pensado, caminha-se na direção de sua realização, erra-se, então, o alvo existencial, o que leva à corrupção (Tg 1.14-15). 

Ou como disse iavé a qayin, o-lança: se você tivesse feito o que é certo, estaria sorrindo, mas você agiu mal e, por isso, lehatati está na porta, querendo saltar em cima de você. Ele quer dominá-lo, mas você precisa vencê-lo. (Gn 4:7) 

Hadam e hawah antes do distanciamento não tinham desenvolvido o pensamento hipotético-dedutivo. Metaforicamente, viam em preto e branco. Não eram inocentes no sentido de um recém-nascido, mas sua compreensão de mundo repousava sobre o pensamento lógico-formal. Iavé cuidava deles e se fazia presente na vida deles (Gn 2.15-17; 3.8-10; Ec 7.29). O casal no ato do distanciamento não sabia que estava a construir a consciência humana, porém, a partir da separação e da úbere percebeu que não era natureza e isso é constatado quando pensa a sua existência e se vê desnudo. Assim, de forma desigual e combinada, na dialética afastamento/ aproximação, ao deixar a natureza para trás, tem início a construção do pensar humano. 

Torna-se homo sapiens sapiens, faz metalinguagem, pensa seu pensamento e as construções do seu agir. Faz sua primeira experiência existencial e deixa Xixuaú. No ato abre a vereda do caminhar humano, e no engatinhar pleno de úbere perde o colo quente e tem início a difícil experiência da liberdade (Gn 3; Rm 5.12-19; Ef 2.12; Rm 3.23). Deixa o útero, nasce para a compreensão moral do fazer bem e do malfazer e passa a necessitar do exercício diário da livre escolha. Mas é esse caminho, que se por um lado traduz distanciamento, por outro possibilita a reaproximação, o reencontro, já num outro nível, naquele da escolha consciente, quando exclama como o apóstolo da dúvida... meu Senhor e meu Deus!

Texto para sua pesquisa 

Robin Collins, Understanding Atonement: A New and Orthodox Theory, 1995 Veja também: http://home.messiah.edu/~rcollins/Philosophical%20Theology/Atonement/AT7.HTM e http://home.messiah.edu/~rcollins/HOME.HTM).











mardi 18 octobre 2016

A aliança



O ברית
Jorge Pinheiro

A תורה ensina qual deve ser o padrão de relacionamento com o Eterno. E chamamos esse relacionamento de ברית acordo, aliança, pacto. E, assim, vamos dar uma olhada lá no passado, para aprender sobre a renovação do ברית.

Senaqueribe subiu ao trono assírio em 705 antes da Era Comum e teve que enfrentar uma revolta na Babilônia, mas não só lá: todas as províncias do oeste se levantaram. Acreditavam ter chegado o momento da libertação. O Egito prometeu ajudar aos rebelados. A coalizão integrava Tiro, cidades fenícias; Ascalon e Ecron, cidades filistéias; Moabe, Edom e Amon; e Ezequias, de Judá, entrou como um dos chefes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se para o ataque da Assíria.

O que não se fez esperar. Senaqueribe em 701 a.C. atacou Tiro e venceu. Depois foi a vez de Biblos, Arvad, Ashdod, Moabe, Edom e Amon, que se entregaram e pagaram tributo a Senaqueribe.

Ascalon, Ecron e Judá, resistiram. Senaqueribe tomou primeiro Ascalon. Os egípcios tentaram socorrer Ecron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaqueribe tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém.

Nos Anais de Senaqueribe se diz o seguinte:

"Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam. Quanto a ele, encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola”.

Entretanto, por motivos desconhecidos, talvez uma peste, ele levantou o cerco a Jerusalém e voltou para a Assíria. Jerusalém voltou a respirar, no último minuto. Mas teve que pagar tributo aos assírios.

Aparentemente, não se sabe por que Jerusalém se salvou. Mas 2Reis 19.35-37 diz que o Anjo do Senhor atacou o acampamento assírio. Existe uma notícia de Heródoto, História II, 141, segundo a qual num confronto com os egípcios os exércitos de Senaqueribe foram atacados por ratos, o que levanta a hipótese de que a peste bubônica tenha grassado em seu exército.

Para Hermann, estudioso do assunto, "pode-se considerar que algum fato, acontecido no acampamento assírio que assediava Jerusalém, tenha obrigado à partida; mas isto não exclui que Ezequias tenha enviado o seu tributo e renovado de modo ostensivo o tratado de vassalagem, cuja ruptura provocara a invasão assíria". (1)

Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaqueribe na Palestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaqueribe, o tributo pago por Ezequias ao rei assírio foi significativo:

"Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade senhorial, os irregulares e os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 talentos de prata, antimônio escolhido, grandes blocos de cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim, ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas, mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão". (2)

Essa informação concorda com a de 2Reis 18.13-16:

"No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaqueribe, rei da Assíria, veio para atacar todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas. Então Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria, em Laquis: 'Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me impuseres'. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos talentos de prata e trinta talentos de ouro, e Ezequias entregou toda a prata que se achava no Templo de Iaveh e nos tesouros do palácio real. Então Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes e dos umbrais das portas do santuário de Iaveh, que... rei de Judá, havia revestido de ouro, e o entregou ao rei da Assíria".

Com isso, a reforma que Ezequias tinha dado início perdeu o rumo. Seu sucessor Manassés foi um dos piores e mais longos governos de Judá. Foram 55 anos de governo. No final do governo de Manassés o imperialismo assírio começou a entrar em declínio. Era uma época de sincretismo religioso. Deuses, cultos e  costumes se misturavam, e os assírios temerosos de perderem o poder político, oprimiam os cultos nacionais, tentando manter sua influência. Tal situação ameaçava o culto ao Eterno. Mas quem protestava era reprimido.

Manassés foi sucedido pelo filho Amon que acabou assassinado por opositores aos assírios. E foi entronizado, com apenas 8 anos de idade, seu filho יאשיהו Josias, em 640 antes da Era Comum. Durante seu reinado, Judá alcançou esperançosa independência.

A reforma de יאשיהו Josias e o דברים Devarim

A Assíria viveu seus estertores, enfrentando levantes violentos provenientes de vários pontos do império. Povos oprimidos pela extrema violência assíria levantaram suas cabeças. Principalmente os babilônios e os medos, artífices da derrocada definitiva da Assíria, entre 626 e 610 a.C.

Foi um momento especial para Judá. Houve um renascimento do nacionalismo e o rei יאשיהו deu início a uma reforma, descrita em pormenores em 2Reis 22.3-23.25 como sua grande obra política. A reforma começou por volta do ano 629 a.C., décimo segundo do reinado de יאשיהו, que tinha 20 anos de idade.

Aproveitando o debilitamento assírio, יאשיהו recuperou o controle sobre as províncias do antigo reino de Israel, cobrou tributos e melhorou suas defesas. Fez uma limpeza geral no país: cultos e práticas estrangeiras, introduzidos em Judá sob a influência assíria, foram eliminados. A magia e as adivinhações foram banidos. Os santuários do antigo reino de Israel, considerados idólatras, destruídos.

E no templo de Jerusalém foi recuperado um código de leis, o núcleo do atual rolo do דברים Devarim, Deuteronômio como se lê em 2Rs 22. Segundo alguns, escrito no reino do norte e levado para Jerusalém em seguida à destruição de Samaria, em 722 antes da Era Comum. Segundo outros, escrito em Jerusalém mesmo, durante o governo de Ezequias, por grupos fugidos do norte. O rolo do דברים original compreendia os capítulos 12.1-26.15 -- um código de leis de renovação do ברית -- ornamentado por uma introdução, os atuais capítulos 4.44-11.32, e uma conclusão, os capítulos 26.16-28.68.

Ao ser promulgado por יאשיהו em 622 a.C. como lei oficial do Estado, o דברים deu vida à reforma, mostrando ao povo que Judá podia confiar em Deus, porque essa era a promessa davídica. Era preciso reviver as antigas tradições mosaicas.

O livro de 2Crônicas 34 a 36 narra este que foi dos maiores avivamentos experimentados por Israel, dirigido por יאשיהו (c. 639-609 a.C.), que morreu, em batalha, aos 39 anos. Aos 16 anos começou sua vida espiritual e aos 20 fez uma reforma no reino de Judá.

יאשיהו herdou uma nação idólatra, com templos pagãos e bosques dedicados às divindades assírias e dos povos vizinhos: Baal, Milcom, Moloque e Astarote. O povo estava perdido e sem rumo. Mas, יאשיהו superou os problemas graças a dois recursos.

1. A oração, que cumpriu um papel especial no reavivamento. Jovem ainda, יאשיהו começou a buscar ao Senhor (2Crônicas 34.3). Consciente da idolatria existente em seu país lutou contra esse pecado e destruiu todos os altares, conforme o verso 7.

2. A Palavra. Além da oração, a descoberta do Livro de דברים, transformou-se em lei fundamental para a implementação das reformas, 2Crônicas 34.14-18. Ao ouvir a leitura da Palavra do Senhor, o rei humilhou-se diante do Eterno, verso 19. Depois, reuniu o povo e leu diante da multidão a Lei do Senhor, verso 30. Isso trouxe uma renovação espiritual.

O que isso nos ensina? Que sem oração e sem מילה palavra não há renovação do ברית pacto. Assim, na renovação do ברית, promovida pelo rei יאשיהו, podemos realçar quatro movimentos:

1. Uma convocação ao povo para ouvir a מילה
2. O povo ouviu a מילה
3. O povo aceitou a מילה
4. Renovou-se o pacto com o Eterno por meio de um sacrifício pascal


Conclusão histórica

A reforma de יאשיהו surtiu efeito? Sim. Mas não foi completa. Positiva no geral teve suas debilidades. Não encontrou liberdade para se desenvolver: foi feita de cima para baixo, imposta pelo governo, sem base popular mais ampla. Suas medidas priorizaram a aparência, sem levar o povo a uma reconstrução real do culto ao Eterno. A centralização do culto não deu bons resultados, esvaziou a vida e a religiosidade do povo. E os acontecimentos se precipitaram: יאשיהו morreu cedo, e a reforma se perdeu.

Conclusão teológica

Um verdadeiro movimento de renovação espiritual deve estar ligado à oração e ao estudo das Escrituras. Isto porque a palavra do Eterno é restauradora: החוק של אדוני é perfeita e restaura a alma, Salmos 19.7.

A מילה palavra age de forma poderosa no coração humano (Jr. 23.29). Essa é a renovação do ברית pacto que o Eterno deseja que façamos, que tenha por base palavra e a oração.

Citações

(1) Hermann, S., Storia d'Israele. I tempi dell'Antico Testa­mento, Brescia, Queriniana, 1979, p. 347.
(2) Briend, J. et alii., Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulus, 1985, p. 76.

mardi 11 octobre 2016

Revelação e processo epistemológico no estudo da religião de Israel

Estudo da religião de Israel, algumas questões de método
Jorge Pinheiro


Quando se estuda a religião de Israel, questões referentes à revelação e ao processo epistemológico parecem difíceis de compreender. Duas macrocorrentes do pensamento teológico apresentaram nos últimos dois séculos respostas para essas questões. Uma que parece evidente e coloca a ênfase na revelação, outra vê a religião de Israel como inflexão da experiência cultural e religiosa dos povos vizinhos.

Essas duas correntes, apesar do arsenal considerável de informações reunidas, que não podem ser descartadas, pecam ao nível da metodologia. Não levam em conta que todo conhecimento pressupõe elaboração nova e exige do estudioso jamais esquecer a dialética de qualquer processo social e histórico. Apresenta-se diretamente ligado ao ser humano enquanto sujeito, dá-se no terreno formal e só torna-se necessário depois de elaborado. Mas, também, acontece no terreno do real e possibilita a conquista da objetividade.

É um erro afirmar que uma nova estrutura pode ser fruto único de um processo exclusivo apriorístico, revelado ou inato; ou, por oposição, que repousa exclusivamente em características preexistentes no objeto. Em ambas os casos, o erro consiste em definir o conhecimento como predeterminado, quer por estruturas internas ao sujeito, quer por características preexistentes no objeto. Descarta-se, assim, o conhecimento enquanto construção efetiva e contínua.

O conhecimento não começa com um sujeito plenamente consciente de seu ato histórico, nem de realidades definidas a priori. Resulta sim de interações que surgem da combinação de fatores múltiplos, que vão criando dependência e novas relações. Não é um intercâmbio entre formas diferentes, mas a construção de realidades com plasticidades. A este processo de surgimento de novas estruturas chamamos revolução. Isto porque são construções de conhecimento e não crescença ou reforma de uma estrutura já conhecida. Aqui, temos crise e ruptura de estruturas e conhecimentos anteriores, gerando fatores que criam novas relações e novos equilíbrios. Nesse processo haverá sempre um ou vários desequilíbrios iniciais, uma crise epistemológica, que rompe esquemas definidos, gerando movimentos que parecem estar fora do controle do sujeito.

Em relação à religião de Israel assistimos a essa revolução epistemológica em dois momentos. Em primeiro lugar, em seu próprio surgimento, ou seja, com a aliança abraâmica. E, posteriormente, durante o processo que se abre com a guerra dos macabeus. Nesses dois momentos, movimentos ao nível do indivíduo e sociais desencadearam processos diferentes que revolucionaram o próprio conceito de religião e, por extensão, mudaram a face da fé em todo o mundo. Ou como diz Schillebeeckx:

“Não existe uma experiência da Revelação sem mediação histórico-social; além disso, a Revelação tem também, na realidade, um papel de mediação com relação à autocompreensão das comunidades, de modo que a Revelação tem, inclusive, uma função ideológica. Este fato é analisado de duas formas: de maneira histórico-crítica e de maneira temática; em ambos os casos constata-se que a experiência da Revelação implica sempre uma teologia política, seja no sentido afirmativo (e renovador), seja em sentido pioneiro (abrindo o futuro)”. [1]

Metodologicamente, com o aparecimento da aliança abraâmica e com a guerra dos macabeus temos na história da religião de Israel o surgimento de estruturas epistemológicas novas.

A aliança sinaítica é um fenômeno de consolidação em relação à aliança anterior. É uma normatização. E o movimento liderado por Esdras, no período pós-exílio, é um momento de reforma, partenogênese do judaísmo. A revolução virá depois, no bojo da guerra dos macabeus. Entender esse processo é definir uma metodologia para a compreensão da história da religião de Israel e, por extensão, dos fenômenos sociais e históricos que eclodiram com o surgimento do cristianismo.

A tradição bíblica apresenta os pais da humanidade e os patriarcas como monoteístas. Adão, Sete, Noé, Abraão e seus descendentes conheciam Elohim, [2] o Deus único, e guardavam seus preceitos. O henoteísmo surge como excrescência e o politeísmo como degeneração. Essa visão, ainda hoje, prevalece no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, e era hegemônica em toda a cultura ocidental até há duzentos anos. No entanto, a partir de Darwin e do desenvolvimento das ciências naturais no século dezenove essa crença foi seriamente abalada.

A visão clássica da crítica bíblica, da qual Karl Graf, Abraham Kuenen e J. Wellhausen são expoentes, parte de uma construção progressiva do desenvolvimento da profecia clássica que caminha em direção ao monoteísmo ético. A estrutura construída por Wellhausen, por exemplo, é persuasiva, tem coesão interna e ajusta pormenores antes difíceis no texto das Escrituras hebraicas. Assim, apesar dos avanços da crítica posterior, sua visão do desenvolvimento e da datação das fontes continua sendo importante para os estudos modernos. A partir daí, podemos tirar três referências da teoria de Wellhausen, que devem ser consideradas: (1) A análise das três fontes primárias: JE, narrativas javista e da tradição do reino do norte, combinadas e editadas nos séculos nove e oito antes de Cristo; P, narrativa histórica expandida interessada na origem e nos regulamentos das instituições de Israel, presente no período do exílio e da restauração; e D, material que forma o núcleo do livro de Deuteronômio, composta na época de Josias, com suas leis e arcabouço narrativo. (2) O atual livro da Torah não era nos tempos pré-exílicos, canônicos e obrigatórios para a nação. A literatura que iria ser incorporada à Torah existia em vários documentos e versões. Um único livro ainda não fora cristalizado. Antes houve um período extenso de criação literária por parte de sacerdotes e escritores religiosos. (3) O livro de Deuteronômio foi promulgado no reinado de Josias e a Torah, como um todo, foi fixada na época de Esdras e Neemias.

Para os defensores da hipótese Graf-welhausiana, os profetas literários criaram o monoteísmo ético, e a Torah é a formulação sacerdotal-popular posterior do pensamento profético. Essa hermenêutica analisa as Escrituras como documento histórico-textual, à luz de outros textos religiosos, da história, da poesia e dos mitos dos povos vizinhos a Israel. Preocupado com questões de autoria, data, circunstâncias, estilo e desenvolvimento do pensamento, o conteúdo da Revelação tem valor secundário. Como conseqüência, tal postura leva a dois problemas: nega a história bíblica como está apresentada no texto sagrado e propõe alterações em sua mensagem, a fim de refletir o desenvolvimento do pensamento religioso. Assim, nossa divergência com Wellhausen se dá com respeito a datação da parte principal do Pentateuco, o Código Sacerdotal, e a relação do Pentateuco com a profecia clássica. E a pergunta que faz é: até que ponto a Torah pode ser usada como fonte da fase mais antiga da religião de Israel? Ou, o monoteísmo da Torah é pré-profético? A tradição bíblica nos conta que os pais da raça humana e os patriarcas de Israel eram monoteístas. Dessa maneira, a idolatria teria surgido como degeneração posterior. Esta compreensão prevalece nas principais cosmovisões teístas: no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Por isso, afirmamos que o monoteísmo de Israel é anterior ao profetismo clássico e ao próprio surgimento do Pentateuco.

Duas questões são pertinentes nessa discussão com a crítica bíblica: memória e oralidade. [3] A construção da memória dos clãs de Deus deve ser vista como fenômeno dinâmico e não como conhecimento apriorístico e externo à vida desses clãs. A memória é atividade, imaginação, lembrança e esquecimento, enfim, um trabalho de criação coletiva.

Diante da ameaça de extermínio, de escravidão e exclusão em meio à civilização egípcia, e sem documentação formal que comprovasse suas origens e chamado por parte de Deus, surgiu a necessidade de construção de uma história após a fuga e a travessia do mar Vermelho. E será essa necessidade que levará esse aglomerado de gentes a fazer a transição da memória da oralidade étnica, oriunda dos tempos imemoriais do Pai Alto (ab ram), em direção a um longo período onde oralidade e escrita começaram a conviver. A escrita surgiu então no deserto como tentativa de assenhoramento da memória, ferramenta reveladora de um passado épico, de uma história grande, com heróis forjados nas experiências com o Deus eterno. Nesse enredo que busca as origens estarão presentes as memórias pessoais e coletivas.

As relações entre memória, oralidade e escrita na história de Israel são complexas e dificultam uma leitura simples da religião de Israel. Por isso, consideramos que podemos falar de três grandes ciclos que caminham da memória oral à memória escrita. Podemos dizer que de Abraão até Moisés e a fuga do Egito temos memória oral, cujos liames são a identidade étnica individual e coletiva. Do deslocamento no deserto até a monarquia temos um ciclo que combina oralidade com memória escrita. Neste ciclo, as lembranças e as histórias são contadas, as idéias que estão na cabeça são gravadas. Começa, assim, a nascer, de fato, uma história com suas peculiaridades, mas não há uma linearidade na produção dessa história, já que é registro de lembrança dos fatos do passado, vividos por pessoas e comunidades em diferentes tempos, mas também da oralidade profética que vão sendo registrados, muitos deles, em sua contemporaneidade. A partir da volta da diáspora babilônica, com Esdras e Neemias até o surgimento do cristianismo, estamos diante de um terceiro ciclo onde predominou a memória escrita, com sinagogas, escribas e a leitura semanal dos rolos da Torah. A memória, matéria prima da história é, durante este último ciclo, produzida como campo de poder, evidenciados claramente na construção do judaísmo em sua disputa com o helenismo, mas também no deslocamento da pregação profética. Assim, a memória escrita produziu dois fenômenos na história de Israel: matou a oralidade profética e possibilitou o assenhoramento da história pela hierarquia político-religiosa. Dessa maneira, podemos dizer que memória, oralidade e escrita na história de Israel são construções que ocorreram num campo de disputas culturais e ideológicas, onde pessoas e comunidades, com seus interesses, apresentaram releituras do passado. Para se refletir sobre essa questão sugerimos a leitura de uma história que encontramos no livro de Juízes: a do levita, sua concubina e a guerra contra Benjamim (Jz 19, 20 e 21), que reproduzem antigas tradições sobre a migração danita e a fundação do santuário de Dã, e nos fala das tradições dos santuários de Masfá e de Betel, possivelmente de origem benjaminita. A edição que temos do livro de Juízes é de origem monárquica, apresenta uma leitura hostil à realeza de Saul em Gibeá e faz a defesa da monarquia davídica na repetição da declaração “naqueles dias não havia rei em Israel” (17.6; 18.1; 19.1; 21.25).

Mas, se levarmos em conta o ciclo da memória oral, qualquer análise do surgimento da religião de Israel deve partir do homem Abraão, enquanto personagem transistórico, [4] e de seu contexto histórico e social. O mundo de Abraão é um mundo real e a aliança com o Senhor, [5] o Eterno, a chave para entender o processo. A questão da aliança coloca em pauta a relação entre o conhecimento formal de Abraão e a realidade histórico-social do patriarca e leva a um ponto de partida comum, o processo revelatório. Essa participação revelatória deve ser entendida como diferente das características inatas do sujeito, que estão ligadas aos sentidos, ao sistema nervoso e pertencem à ordem estrutural da pessoa. Já o processo revelatório, que abre caminho para um conhecimento novo, realiza-se ao nível da organização funcional. Caracteriza-se por ser ilimitado em sua possibilidade de construir noções e, acima de tudo, sobrepassa, vai além das informações sensíveis.

Apesar de seu reducionismo, a crítica bíblica fornece material importante no campo da história, arqueologia, lingüística, sociologia e religião para entender o texto sagrado em seu contexto, historicidade e revelação progressiva. Tomemos um exemplo: Merneptah II, o faraó do êxodo. Ramsés II, o terceiro rei da décima nona dinastia, era filho de Seti I. Guerreiro, ele realizou uma grande expedição contra Cades, a capital dos heteus, em parte fracassada, porque não conseguiu tomar a cidade. Foi um grande administrador e desenvolveu projetos arquitetônicos às margens do Nilo, como Pa-Ramesses (Tânis) e Pitom, conforme estão descritas em Êxodo 1:11. Seu décimo terceiro filho, Merneptah II, o faraó do êxodo, enfrentou uma invasão dos líbios, vencida por seu exército mercenário. Mas em que se baseia toda esta história? Em documentos, entre os quais numa estela de vitória composta que diz:

"Os chefes curvam-se fazendo saudações de paz/ nenhum dos povos inimigos ousou erguer a cabeça/ a terra dos líbios está vencida/ está em paz a terra dos heteus/ o lugar de Pa-Canana, ao sul da Palestina, foi devastado com grande violência/ o lugar de Ascalom foi levado para longe/ aniquilado está o lugar de Gazer/ o lugar de Inuã, perto de Tiro foi reduzido a nada/ o povo isiraalu foi aniquilado, sem deixar semente/ lugar de Car, a Palestina do sul, fez-se qual viúva do Egito/ o mundo inteiro está em paz/ tudo quanto era rebelião caiu subjugada pela mão do rei Merneptah”. [6]

É interessante notar que esse povo isiraalu é mencionado em estreita ligação com as regiões ocupadas por heteus, cananeus, filisteus e fenícios. Sem estar determinado, o termo isiraalu, não define um país ou cidade, querendo significar antes uma tribo nômade. Assim, partindo da arqueologia e da história, vemos que o berço dessa nação isiraalu foi o Egito, e que esses eventos aconteceram, muito possivelmente, no final do século treze antes de Cristo, durante o reinado de Merneptah (1235-1227). Mostramos a historicidade do surgimento da nação de Israel como exemplo metodológico que nos ajuda a definir o processo vivido.

O conhecimento que se origina na atividade reflexa do sujeito recebe com a Revelação esta organização funcional que o torna possível. Convém notar que no conhecimento que tem por base o processo revelatório a organização funcional sempre se mantém invariável. Ou seja, essa organização funcional se mantém em equilíbrio, apesar dos processos vividos nas estruturas. E mais do que isso se impõe a elas como necessárias.

Podemos dizer que a matriz do Pentateuco se encontra na aliança feita por Deus com Abraão, conforme encontramos em Gênesis 15. A consolidação dessa aliança acontecerá com Moisés, descrita em Êxodo 24 e reiterada em Deuteronômio cinco, numa das montanhas do deserto do istmo, entre o Egito e Madiã-Seir. Essa é a idéia força de toda a religião de Israel. Um acordo que implica em salvação. Berit, aliança, tem o sentido de obrigação, mas também de segurança. É um acordo entre duas pessoas, celebrado solenemente, com o derramamento de sangue. A parte mais forte fornece a segurança ou a salvação, e a mais fraca se obriga a determinados compromissos. Dessa maneira, a aliança impôs um relacionamento especial entre Deus e o povo. E os mandamentos e leis, dados no período da consolidação, transportam, assim, toda conotação legal e externa, para uma perspectiva de acordo maior. O centro da aliança está no primeiro mandamento do decálogo (as dez palavras, em hebraico) que proíbe a adoração de outros deuses, da milícia do céu e dos ídolos.

Mas a aliança é também um pacto moral. Só que o fundamental desse pacto, que perpassa toda a Torah não é sua mera formalização, já que outros povos também possuíam noções desenvolvidas de lei e moralidade. O assassinato, o roubo, o adultério e o falso testemunho eram condenados não apenas pela lei moral universal, mas também duramente punidos pelos códigos de Ur-Nammu, de Lipit-Ishtar e de Hamurabi, [7] para citar os mais representativos. Agora, no entanto, pela primeira vez a moralidade é apresentada pelo próprio Deus como fruto de um relacionamento entre ele e o povo, com normas para o estabelecimento de um reino de novo tipo. É uma aliança com toda a nação. A consolidação sinaítica, fruto da aliança abraâmica, vai além das sabedorias babilônica e egípcia, que lidam com o indivíduo. A moralidade apresentada no Gênesis, por exemplo, que é individual, ganha aqui uma roupagem nova, passa a ser coletiva e nacional. Assim para Kaufman,

Deus “não elegeu Israel para fundar um novo culto mágico em benefício dele; elegeu-o para ser seu povo, para realizar nele o seu arbítrio. Portanto, por sua natureza, também a aliança religiosa foi uma aliança moral-legal, envolvendo não apenas o culto, mas também a estrutura e os regulamentos da sociedade. Assim, colocou-se o alicerce da religião da Torah, incluindo tanto o culto como a moralidade e concebendo a ambos como expressões da vontade divina”. [8]

Na verdade, a aliança que Deus faz com Abraão em Gênesis 15, historicamente, tem seu cumprimento em outra estrutura, no Sinai. Dessa maneira, literariamente, Gênesis não somente prepara o roteiro Pentateuco, mas faz parte intrínseca dele. É bereshit[9] não somente como saga da origem, mas como alicerce de todo o Pentateuco.

Em relação à segunda parte do livro, que trata da diáspora, do helenismo e da guerra, é importante precisar que o conhecimento é sempre um processo de interação e organização, de construção de novas estruturas que se inserem nas já existentes. Todo conhecimento é sempre um padrão, uma medida de relação entre o sujeito e o objeto. Ou, se preferirmos, entre a nossa existência e o mundo. É impossível compreender a revolução do período macabaico se não visualizarmos a dinâmica interior, que rasgou corações e mentes, assim como os fatores externos que combinados geraram crise e ruptura nessa relação interação/organização.

O período histórico aberto com a reforma de Esdras, sob a dominação persa, levou Israel a um profundo equilíbrio. Havia interação com a reforma religiosa e com o momento histórico. Prevalecia a organização. Colocamos os conceitos nessa ordem, porque interagir e organizar são aspectos de um mesmo processo. Interagir é sempre o equilíbrio necessário que resulta da relação entre a inteligência e o ambiente. É a resposta que damos às novas questões, quer de forma reflexiva, a partir do sujeito, quer de maneira dinâmica, procurando adaptar a realidade aos nossos desejos e necessidades. Só que acontece em primeiro lugar ao nível do objetivo, formalizando-se a posteriori.

Interagir implica em transformar a realidade circundante. Por isso, podemos dizer que a face objetiva da interação é a mudança, a reforma ou mesmo a revolução, e a subjetiva é a organização.

A organização tem como finalidade restabelecer um equilíbrio e para isso trabalha ao nível daquilo que se deseja. Procura-se uma meta, um fim, que coloque as coisas em seus devidos lugares e nos mostre a razão de ser das coisas. Quando se deseja alguma coisa é porque não temos essa coisa. Assim, organizar é definir como alcançar esse objetivo. Só que a organização é sempre genética, está em movimento. Não se estabiliza. Aponta sempre para uma organização nova e está sempre em construção. É claro que a organização é um processo formal, que se resolve ao nível do pensamento intelectual, por isso quando as condições sociais são violentamente desequilibradas, esse processo nunca é plenamente consciente. Ele se realiza, enquanto processo, historicamente. E é esse fenômeno, riquíssimo, construtor de novas estruturas e conhecimentos, que vemos acontecer em todo o processo da revolução dos macabeus.

Nossa abordagem da história e da religião de Israel quebra alguns paradigmas por considerarmos que o conhecimento não começa com certeza, mas com questionamentos. Nessa leitura quase judaica das Escrituras hebraicas queremos dizer aos leitores que não devem esquecer os três fundamentos da Guemará babilônica, quando diz que há apenas um Deus verdadeiro, justo e bom; que a Torah, dada por Ele, contém toda a verdade e a justiça; e que o ser humano deve fazer o possível para caminhar com Ele e ser também verdadeiro, justo e bom. E a melhor maneira de viver essa meta é investigar e viver a Torah. As histórias, contos, biografias, provérbios e profecias que encontramos nela podem e devem servir como fonte inesgotável de inspiração para a multiculturalidade brasileira. Afinal, essa tradição milenar da história e da religião de Israel ainda serve aos estudiosos e ao fiel como roteiro de vida mesmo nos momentos mais sombrios da história.


Questões para reflexão e debate

Leia os capítulos 19, 20 e 21 do livro de Juízes, mas dê atenção aos versículos 1,12-14, 16, 18 e 30 do capítulo 19 e versículos 1-5, 9 e 12 do capítulo 20, e versículo 25 do capítulo 21.

1 ¶ Naqueles dias em que Israel não tinha rei, um levita foi morar bem longe, na região montanhosa de Efraim. Ele arranjou uma jovem de Belém de Judá para ser a sua concubina.

12  Mas o patrão respondeu: —Não vamos parar numa cidade onde o povo não é israelita. Vamos continuar até Gibeá.
13  É melhor a gente andar mais um pouco e passar a noite em Gibeá ou Ramá.
14  Então passaram pela cidade de Jebus e continuaram a viagem. O sol já se havia escondido quando eles chegaram a Gibeá, cidade da tribo de Benjamim.

16 ¶ E aconteceu que passou por ali um velho que estava voltando do seu trabalho na roça. Ele era da região montanhosa de Efraim, mas estava morando em Gibeá. O povo dali era da tribo de Benjamim.

18  O levita respondeu: —Eu estou viajando de Belém de Judá para bem longe, para a região montanhosa de Efraim, onde moro. Fui a Belém e agora estou voltando para casa, mas ninguém me ofereceu hospedagem para esta noite.

30  E todos os que viam isso diziam: —Nunca vimos uma coisa assim! Nunca houve uma coisa igual a essa, desde o tempo em que os israelitas saíram do Egito! Pensem! O que vamos fazer agora?

1 ¶ Por causa disso todo o povo de Israel, desde Dã, no Norte, até Berseba, no Sul, e Gileade, no Leste, se reuniu em Mispa. Eles se reuniram na presença de Deus, o SENHOR, como se fossem uma só pessoa.
2  Os chefes de todas as tribos de Israel estavam presentes nessa reunião do povo de Deus. Havia quatrocentos mil homens a pé, treinados para a guerra.
3  E o povo de Benjamim soube que todos os outros israelitas haviam subido até Mispa e que eles queriam saber como aquele crime havia sido cometido.
4  Então o levita, marido da mulher assassinada, explicou: —Cheguei com a minha concubina a Gibeá, no território da tribo de Benjamim, para passar a noite.
5  Os homens de Gibeá vieram de noite e cercaram a casa. Eles queriam me matar. Em vez disso abusaram da minha concubina, e ela morreu.

9  Vamos escolher alguns homens para atacar Gibeá.

12 ¶ As tribos israelitas mandaram que mensageiros fossem por toda a tribo de Benjamim e dissessem: — Que crime horrível vocês cometeram!

25   Naquele tempo não havia rei em Israel, e cada um fazia o que bem queria.


Compare com I Samuel 10.10, 14-15.

10 Quando Saul e o seu empregado chegaram a Gibeá, um grupo de profetas o encontrou. O Espírito de Deus tomou conta de Saul, e ele se juntou a eles, agindo como um profeta.

14 E Samuel disse ao povo: —Vamos todos a Gilgal e lá confirmaremos Saul como nosso rei.
15 Então foram todos a Gilgal e lá, no lugar sagrado, fizeram de Saul o seu rei. Ofereceram sacrifícios de paz, e Saul e todo o povo de Israel festejaram o acontecimento.

Explique, a partir da correlação dos textos acima, como se dão as relações entre memória, oralidade e escrita na construção da historicidade do período de Juízes.

Por que a edição do livro de Juízes pode ser datada do período monárquico davídico?

E o que significa no texto de Juízes a afirmação que abre e fecha o relato: “Naquele tempo não havia rei em Israel”.


Leituras complementares

Epstein, Isidore, Judaísmo, Lisboa/Rio de Janeiro, Editora Ulisséia/Pelicano, 1975.
Kaufmann, Yehezkel, A Religião de Israel, Editora Perspectiva, São Paulo, 1989.
LaSor, W. S., Hubbard, D. A., Bush, F. W., Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Edições Vida Nova, 1999.
Schillebeeckx, E., Iersel, B. Van, Revelação e Experiência, Editora Vozes, Petrópolis, 1978.




[1] Schillebeeckx, Edward/ Iersel, B. Van, Revelação e Experiência, Editora Vozes, Petrópolis, 1978, p. 5.
[2] Em hebraico, El, Elah, Eloah, Elohim; em gregro Theós. O nome mais geral da Divindade (Gn 1.1). No Antigo Testamento é o ser supremo, único, infinito, criador e mantenedor do universo.
[3] Le Gof, Jacques, “Memória”, Enciclopédia Einaudi, vol. I, Memória-História, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 11-50.
[4] Consideramos transistórico o conhecimento que é transmitido oralmente por mais de uma pessoa ou comunidade, às vezes por muitas gerações, que funcionam como amplificadores do relato, antes que ele venha a ser, posteriormente, registrado de forma escrita.
[5] Em hebraico YHVH, o tetragrama, o nome de Deus impronunciável, cuja tradução mais provável é "o Eterno" ou "o Senhor Eterno". O Senhor é Deus que existe por si mesmo, que não tem princípio nem fim (Êx 3.14; 6.3). Seguindo o costume que começou com a Septuaginta, a maioria das traduções contemporâneas usa "Senhor" como equivalente de YHVH (Deus). A forma Iaveh é a mais aceita entre os eruditos. A forma Jeovah, que só aparece a partir de 1518, não é recomendável por ser híbrida, isto é, por ser produto da mistura das consoantes de YHVH (o Eterno) com as vogais de Adonai (meu Senhor).
[6] Estela “Israel”, Museu do Cairo, Egito. Alguns estudiosos que defendem uma data anterior para o Êxodo, entre 1450 e 1420 a.C., quando Amenotep II era faraó, consideram que a estela “Israel” refere-se a uma incursão de Merneptah contra a Palestina quando os israelitas já estavam estabelecidos na região: 200 anos depois do Êxodo.
[7] Epsztein, León, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, Ed. Paulinas, São Paulo, 1990, "As Leis Mesopotâmicas", pp. 11 a 26.
[8] Kaufmann, Yehezkel, A Religião de Israel, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1989, p. 232.
[9] "O exegeta Rashi quer que o primeiro versículo do Gênesis seja traduzido da seguinte maneira: No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã, etc., pois a Escritura Sagrada não quer mostrar aqui a ordem da criação. A prova disso é que o fim do segundo versículo dá a entender que as águas já existiam antes dos céus e da terra". Campos, Haroldo de, Bere'shitth, A Cena da Origem, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1993, p. 24.

Fonte:
Jorge Pinheiro, História e religião de Israel, origem e crise do pensamento judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007, pp. 15-30.