lundi 31 octobre 2016

A refundação do mundo

A Refundação do Mundo
Por um novo Contrato Social
CEPAT (1) Informa – 10/10/2005


A Crise do Mundo Moderno

Jürgen Moltmann, alemão, luterano, é um dos mais importantes teólogos vivos no final deste século. Foi um dos inspiradores da teologia política nos anos sessenta e influenciou a Teologia da Libertação. O último livro dele se chama Das Kommen Gottes. Christliche Eschatologie (O Deus que Vem. Escatologia Cristã). O original alemão é de 1995. Aqui seguimos a tradução italiana: L’Avvento di Dio. Escatologia Cristiana, Queriniana, Brescia, 1998, p. 207-226. O tema central deste CEPAT Informa é a crise paradigmática que vivemos neste final de século e milênio. Esta crise é abordada, a seguir, além do teólogo J. Moltmann, pelo ensaísta social J.- C. Guillebaud, pelo filósofo H. G. Gadamer, pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, pelo teólogo Hans Küng, pelo filósofo Jean Baudrillard. Aqui traduzimos e sintetizamos a análise crítica de J. Moltmann sobre a crise do mundo moderno. Os negritos e os subtítulos são nossos.

Para Jürgen Moltmann, "são dois os momentos mais significativos que assinalam os inícios europeus do mundo moderno:

1.- A descoberta e a ‘conquista’ da América é o momento no qual a Europa se abre à modernidade. A razão que levou à vitória é a razão moderna, como o mostrou Tzvetan Todorov no encontro entre Hernan Cortés e Montezuma na Cidade do México. Aqui a razão instrumental, interessada e orientada ao poder, se demonstrou superior à razão mitológica dos astecas, que podemos chamar de ‘razão ecológica’. De fato, a primeira se interessa somente no cálculo da consistência do adversário e não se preocupa em se mover em sintonia com as estrelas e com a terra. Com a conquista do continente americano o cristianismo europeu começa a converter o mundo, colonizando-o, enquanto a Europa, a partir de então, dispõe de recursos que alimentam um sistema econômico, em escala mundial, organizado mercantilisticamente e segundo princípios capitalísticos.

2.- O outro momento que vê a Europa se abrir ao mundo novo é assinalado pela tomada do poder sobre a natureza através da ciência e da técnica. No arco de tempo compreendido entre Copérnico e Newton, as novas ciências da natureza ‘desencantam’ o mundo, tiram-lhe o mistério divino, a sua alma, para ‘torná-lo escravo’, como Francis Bacon justificava a sua epistemologia, e transformam os seres humanos em "senhores e proprietários da natureza", como depois René Descartes escreverá no seu Tratado sobre o Método. Trata-se de duas grandes ilusões desde o início. Os homens podem, certamente, dominar os espaços, mas não o tempo".

Modernidade: Uma Fé Messiânica

"Esta dupla tomada de poder da civilização européia no mundo pode ser interpretada, em chave religiosa, como a de uma fé messiânica convicta de que por mil anos os santos reinarão com Cristo e julgarão todos os povos do mundo, e que este reino messiânico cristão (hebraico), ou "era cristã", será também a última da humanidade, aquela idade de ouro que precederá o fim do mundo.

Agora poderá se cumprir o que há muito fora prometido, agora poderá se realizar o que há muito tempo se esperava. Este é o pathos messiânico com que se acolhe e se batiza ‘a modernidade’. Agora se realizará o que Gioachino di Fiori predissera: a idade das luzes é a "terceira vinda do Espírito". Agora o homem se torna capaz de dominar a terra e por isso também de restabelecer aquela semelhança com Deus que havia se esmaecido por sua culpa. A glória reflete ainda uma vez a sua luz: esta é a idade das luzes (Aufklärung, enlightenment, ilustração, iluminismo), o momento do êxodo definitivo dos homens da sua ‘minoridade culpável’ para o "exercício livre e público da própria razão".

Não se trata de uma ‘escatologia secularizada’, como o supunham Karl Löwith e Jakob Taubes, mas antes de quiliasmo realizado, já que somente a esperança milenarística pode ser realizada de modo histórico, sendo somente esta esperança de futuro intra-histórico. Somente o milenarismo consegue compreender o reino de Deus de modo teleológico, não apocalíptico, e a prospetar não uma figura catastrófica do mundo, mas um ideal moral com o qual os seres humanos podem se aproximar usando as suas próprias capacidades e se empenhando no mundo. Somente o quiliasmo pode transmutar a escatologia em teleologia. Somente o quiliasmo é capaz de infundir no otimismo humanístico – ‘o ser humano é bom’ – a justificação teológica: "Satanás permanecerá preso por mil anos".

O bem pode difundir-se livremente e a história realizar-se-á completamente no Reino de Deus. "Um Cristo sem cruz conduz homens sem pecado num reino de Deus sem julgamento": é a crítica que Richard Niebuhr fazia ao cristianismo moderno do seu país (EUA), precisamente o cristianismo quiliástico da modernidade, contra o qual o fundamentalismo apocalíptico levantava os seus protestos".

O Progresso é o Reino de Deus na História

Para Moltmann, "a fé no progresso e o ideal de humanidade do iluminismo alemão constitui-se no novo quiliasmo teológico. Assim, por exemplo, para Kant era um dado adquirido que a história da evolução humana se direcionava para um fim escatológico e ele via na Revolução Francesa um ‘sinal da história’ que atesta a disponibilidade moral da humanidade a se desenvolver sempre para o melhor, um sinal escatológico. Ele se dava perfeitamente conta de que as idéias de fundo da filosofia da história – as idéias da evolução, progresso e fim – derivavam da teologia histórico-salvífica do quiliasmo e que não eram outra coisa que a tradução do "plano salvífico", "economia de salvação", "idade do mundo", "reino de Cristo" como fim da história. Para Kant o momento temporal que assinala o ingresso do "reino de Deus" na história é aquele da "passagem gradual da fé eclesiástica para uma fé racional com dimensão universal".

O Reino de Deus se realiza no âmbito da Razão

"O reino de Deus vem, não como fruto de uma revolução apocalíptica preparada por Deus, mas de uma evolução humana que se determina no âmbito da razão e da moralidade. Os efeitos não dizem respeito à vida natural, mas exclusivamente à vida dos homens. Aqui está a diferença entre o ‘quiliasmo filosófico’ e o teológico, mas onde as premissas para uma superação unitária e programada da história, do progresso e do fim último, sempre são as mesmas".

O Caráter Totalitário do Messianismo Moderno

"Para Fichte, Schelling e Hegel estas transferências de um quiliasmo teológico para sistemas de caráter histórico-universalístico são tão óbvias que não há necessidade de indicar as raízes. O pathos que acompanha este ‘atuar-se’ da religião e da filosofia em Ludwig Feuerbach e Karl Marx, como a sua fé na unidade de idéia e realização, assume um caráter tipicamente messiânico e quiliástico na vontade de realização de uma história ainda não realizada. É precisamente aqui que está a tendência ‘totalitária’. Todos estes personagens viviam na esperança de que a partir de agora se realizasse uma libertação possível e por isso também necessária, aquela de uma humanidade que agora se liberta das dependências da natureza para se tornar sujeito da própria história, na prospectiva de um futuro irradiante que será capaz de realizar plenamente o fim para o qual a história tende. O poder da modernidade européia deriva da revolução industrial, que fez da Inglaterra o centro imperial do mundo.

O Caráter Messiânico dos EUA

O pathos da ‘modernidade’ nasce do mesmo solo que animava a declaração da independência dos EUA e a revolução francesa. É um pathos dos últimos tempos. As utopias em termos dos direitos humanos e da socialidade, aqueles que encontramos nas declarações dos direitos humanos – "todos os homens nascem livres e iguais" – refletem as visões do milênio e da ‘idade de ouro’, do sábado da história universal e das leis do sábado que encontramos na torá. ‘Idade moderna’ aqui equivale a ‘últimos tempos’. E depois da modernidade não pode seguir outra era. A modernidade é a última era do gênero humano. Nem se dá um ‘fim da modernidade’ já que a era moderna representa ‘o fim’."

O Sonho da Modernidade:
Domínio e Poder sobre Tudo e Todas as Coisas

Enfim, afirma Moltmann, "o sonho quiliástico da ‘era moderna’ é o de dominar as nações, adquirir o poder sobre a natureza e projetar uma civilização que transforme os seres humanos em sujeitos da história. Este sonho depois se traduziu na civilização tecno-científica da ‘modernidade’, cujas contradições cabe a nós, hoje, experimentar e suportar com todas as conseqüências".

As aquisições mais importantes da modernidade são:
1.- as declarações universais dos direitos humanos;
2.- as explicações dos fenômenos naturais segundo a matemática;
3.- os EUA.

1.- As declarações dos Direitos Humanos
"As declarações dos direitos humanos, a partir de 1789, se abrem com o enunciado: "todos os seres humanos são criados livres e iguais". De tal modo que a própria Europa, que se afirma como potência mundial, agora assume os traços de uma realidade humana com dimensão universalística. E a partir daí, o direito indivisível e universal à liberdade motiva e legitima todos os movimentos de libertação das pessoas oprimidas e humilhadas: escravos negros, mulheres, povos.

A partir daí, o direito indivisível e universal à liberdade motivou e legitimou todas as revoluções sociais modernas. Se a democracia é a forma política na qual se exprime a liberdade, então a figura econômica que deverá assumir o socialismo/comunitarismo é aquela da igualdade. Se todas os seres humanos foram criados livres e iguais, as sociedades modernas terão a tarefa de articular os direitos individuais à liberdade com os direitos sociais à igualdade. Se não existirem as mesmas condições de vida e possibilidade, não pode funcionar nem mesmo a democracia. E se não se garante a realização da liberdade do indivíduo, não se pode esperar que funcione um sistema fundado sobre os princípios da justiça social.

O caráter universalístico destas declarações só podem se realizar numa comunidade mundial de estados que considerem os direitos humanos fundamentais de todos os cidadãos. Certamente, trata-se de uma utopia, mas que se torna cada vez mais uma necessidade histórica tendo em vista a sobrevivência do gênero humano. Aquilo que iniciou como utopia do humanismo messiânico está se tornando cada vez mais uma necessidade ecológica: a unidade do gênero humano é postulada pela própria unidade do organismo ‘terra’.

2.- A Matematização das ciências: o Espírito de Geometria

"Perscrutar a natureza por meio do esprit de géométrie significou motivar e legitimar as ciências modernas da natureza. Mas a realidade da natureza pode ser perscrutável? A suposta inteligibilidade da natureza possibilitou a busca da "fórmula universal". Mas a natureza é "computável" somente na medida em que ela é capaz de ser dominada? Neste processo de matematização da natureza operada pelas ciências entra também o ‘esclarecimento’ do comportamento pelas ciências sociais e o seu empenho na burocratização das sociedades. Precisamente Wilhelm von Humboldt sustentava que a aspiração geral da razão humana tem como fim a anulação da causa. E isto significa o "fim da história", já que a eliminação da causalidade comporta a exclusão do futuro e torna o presente sem fim. Toda vez que se ‘concebe’ a história em tal sentido, se elimina a própria história, já que "o conceito cancela o tempo" (Hegel)".

3.- O Modo de Vida Americano
"Quem refundou a política sobre bases iluministas foram os EUA. A sua declaração da independência e a sua constituição foram construções humanas que não fazem apelo a tradições e nações, mas se desenvolvem exclusivamente a partir da ‘fé messiânica’ dos pais fundadores: um ‘mundo novo’ e pluribus unum, como está impresso no escudo dos EUA; com respeito ao mundo feudal, nacionalístico e classista da Europa das fraturas e dos conflitos, se projeta um novus ordo saeculorum (uma nova ordem dos séculos) messiânico aberto para a humanidade inteira, como podemos ler em cada dólar; o ‘sonho americano’ é o primeiro passo para a realização daquela humanidade unida que o mundo aspira. De fato, o ‘experimento americano’ é o experimento que a modernidade colocou em ato no mundo da política e da socialidade. Não o conseguiu plenamente ainda, mas não o podemos, contudo, considerar como falido. Mas devemos nos convencer que se os direitos humanos e a matemática podem ser universalizados, o "american way of live" não o pode. Neste momento basta lembrar o seguinte dado: "três Terras seriam necessárias se toda a população partilhasse do padrão de consumo da América do Norte.

Em que posso esperar?
O Ressuscitado é Aquele que foi Aniquilado. Na Cruz.

Para J. Moltmann, "o mundo moderno foi produzido pelo iluminismo e o iluminismo nasceu do espírito hebraico-cristão da esperança messiânica. Daqui surge a pergunta religiosa de Kant: "Em que coisa posso esperar?" É uma pergunta que soa como algo singular, sem precedentes na história das religiões. No passado o problema religioso dizia respeito sempre à origem sagrada do mundo. E o problema era resolvido apelando para os mitos das origens ou para aquilo que permanece eternamente na alternância dos tempos, aos símbolos relacionados com a vida que passa. Para uma vida que se vive na história, o futuro pode ser motivo de exaltação ou de ameaça. Somente um futuro que redime e apaga pode dar consolação e conferir um sentido para um sofrer e agir na história. Com a idade moderna, portanto, o futuro se torna o paradigma da transcendência. E o pensamento teológico se torna uma reflexão animada pela esperança: docta spes. A teologia cristã agora terá a tarefa de remover desta abertura moderna ao futuro a presunção messiânica e a subordinação apocalíptica, para responder à pergunta de Kant atualizando a ressurreição do Cristo Jesus aniquilado sobre a cruz".

A Refundação do Mundo
Jean-Claude Guillebaud - editor, doutor em direito e ensaísta – acabou de lançar o livro, La Refondation du Monde (A Refundação do Mundo), Ed. Seuil, Paris, 1999. Guillebaud é também autor de A Tirania do Prazer, lançado, em maio deste ano, no Brasil, pela editora Bertrand. Nesta entrevista, concedida à Gazeta Mercantil, 17-9-99, Guillebaud fala da necessidade de refundar o mundo. O sublinhado e os subtítulos são nossos.

Gazeta Mercantil: A democracia está em julgamento ou apenas a democracia como conhecemos hoje?
Jean-Claude Guillebaud: Não é uma crítica à democracia, mas à atual crise da democracia. Sem que nos déssemos conta, o modelo democrático se espalhou pelo mundo (e isto é uma boa coisa), como na América Latina. O continente hoje é mais democrático do que em minha juventude. O progresso no espaço da democracia é, algo óbvio, um dado positivo. Mas ao mesmo tempo, a democracia em sua essência, vai se enfraquecendo e entra em uma espécie de crise. Na França, nos Estados Unidos, em toda a parte ela está em crise. Isso porque está cada vez mais tomada, colonizada pelas leis de mercado. Ela é cada vez mais submetida à economia, que faz a lei. Este é então o paradoxo. A democracia está gravemente afetada, porque nós saímos de um século marcado por massacres, tirania, fracassos, grandes crises, e terminamos um pouco desencantados. O fim do comunismo, há dez anos, foi uma das boas coisas, porque foi o fim de uma barbárie, de uma tirania. Mas foi também o fim de uma esperança. Logo, trazemos também um luto. Vivemos em um universo perigoso, desencantado, onde há apenas um modelo econômico que triunfou. Como ele é sem concorrência, sem adversário, vai se tornando cada vez mais dogmático e brutal. Estamos em um delicado período, no qual a democracia está ameaçada. Penso ser este um bom momento para recuperar algumas coisas. Dizemos para uma criança: "Por que você acha isso?" Então é necessário perguntar por qual razão algumas crenças se justificam. Por que acreditamos não ter o direito de matar nosso vizinho? Por que acreditamos serem homens e mulheres iguais? É preciso reencontrar as raízes de nossas convicções por melhor defendê-las.

GM: Isso não seria pregar um retorno aos mesmos ideais que geraram, por exemplo, o marxismo, e assim reproduzir o mesmo cenário das disputas entre esquerda e direita?

Guillebaud: Eu não sou um nostálgico. Não acredito em uma restauração. Não acredito neste desejo de refazer valores antigos e reconstituir uma moral que desapareceu. Não sou partidário de um arcaísmo. A restauração não funciona, pois tem por conseqüência a ditadura, o totalitarismo, o clericalismo. Não acredito em restaurar as coisas, pois as soluções não estão nunca atrás de nós, mas sempre um pouco mais adiante. "Refundar" não significa restaurar.

Quando se trata de recuperar o princípio de igualdade entre os homens, não significa reinventar o "igualitarismo" marxista, onde todos seriam iguais e uniformes. Todos os valores nos quais estamos ligados estão sempre a ser reinventados, porque o mundo muda, todos os dias, cada vez mais rápido, e não podemos, em 1999, em meio a uma evolução tecnológica assustadora, sonhar em pensar o mundo como se estivéssemos no século XIX ou XVIII. Isso não faz sentido. Não é preciso restaurar valores, mas recriá-los e readaptá-los ao nosso tempo. Em meu livro A Tirania do Prazer falo da amoral sexual e da família, e lá disse haver duas atitudes falsas em relação à família. Há aqueles dizendo que a família acabou, não existe mais, não é necessária, e é preciso liberar o indivíduo dos laços, porque a família é um horror. Isso é idiota. Nenhuma sociedade pode viver sem família.

Mas há outros (mais à direita) dizendo ser necessário restaurar a autoridade paterna, a família de outros tempos; colocar a mulher de volta na cozinha. Outra bobagem. A forma familiar, ela muda com a história, jamais foi um organismo estável. Bem, é preciso então reinventar a família, e este exemplo serve para todos os valores fundadores da democracia: a fé no progresso, a igualdade, a razão. Não é possível restaurar nada, mas também não podemos ser vítimas do cinismo e dizer "não me importo com nada". Uma sociedade não pode viver sem um mínimo de valores compartilhados.

GM: Mas há além do modelo democrático, uma nova forma de organização social para o futuro?
Guillebaud: Eu acho que a democracia é alguma coisa em mudança. Algo difícil, que não é natural. A democracia não é o estado natural da sociedade. O estado natural é a selva. A democracia é um projeto. Um projeto magnífico, mas um projeto difícil e sempre em perigo, ameaçado. Está sempre necessitando de uma reinvenção, de uma defesa. Quando eu era estudante, nos anos 60, a democracia estava ameaçada pelo marxismo, pelo Exército Vermelho. Era necessário lutar contra isso. Hoje, nossa democracia é ameaçada pelo fanatismo religioso, pelo fundamentalismo e também pelo mercado, que toma decisões no lugar do poder político.

Como a ameaça muda, a democracia também muda. Penso também que em sua maneira de ser exercida, ela também se altera. Isso porque o nível de educação muda, e as mídias mudaram muita coisa em função da democracia. Hoje há muito da política que passa pelas mídias, e não mais pelas reuniões públicas. A democracia muda, e devemos acompanhar a revolução. O constante é a esperança democrática. A convicção de que cada um deve ser mestre da própria escolha. Esta liberdade democrática é fundamental, e é preciso defendê-la. Quando estamos em um sistema no qual o cidadão vota, elege governantes, e este poder, depois de eleito, se volta para o cidadão e diz: "Não posso fazer nada, porque são as leis do mercado", então significa não haver mais poder.

GM: Parece ainda haver outro problema. Uma "idéia de democracia" contra a mesma democracia, como na divisão da sociedade em vários grupos e subgrupos, cada um lutando por suas diferenças.
Guillebaud: Todas as idéias, mesmo a melhor delas, correm o risco de se tornar um dogma. E quando isso acontece, e se tornam arrogantes ou imperiais, elas são ameaçadoras. Um exemplo é o "politicamente correto" nos Estados Unidos. O conceito se tornou um dogma, algo que pode destruir a democracia. E há um outro exemplo: a razão científica. Ela é um valor formidável, nosso patrimônio. Mas quando a razão se torna tecnocientificista, quando há esta tirania do valor científico, ela se transforma em uma ameaça, e é preciso lutar contra essa situação. O mesmo se aplica ao mercado, ao liberalismo. A lei da oferta e da procura é algo positivo, a nação pode produzir a riqueza para depois distribui-la também. Mas, quando o mercado se torna a única lei e todos os outros valores, no espaço público, tornam-se secundários, ele, o liberalismo, se transforma em um perigoso dogma para a democracia.

GM: Este posicionamento não o coloca, automaticamente, próximo da esquerda?

Guillebaud: Quando se pensa livremente, sempre há a acusação de pertencer a este ou aquele grupo. Nos anos 60, quando eu era estudante de direito, o pensamento dominante era marxista. À época, eu já contestava o marxismo. Era, na verdade, antimarxista. Desconfiava muito de tudo aquilo. Lia mais Albert Camus do que Jean-Paul Sartre, por assim dizer. Mas meus amigos diziam: "Se você pensa assim, então você é de direita". Agora, ouço a mesma coisa, mas ao inverso. Isso porque o pensamento dominante é a direita liberal. Se você se opõe ao liberalismo, então você é marxista. Nunca fui. Não sou agora. Reivindico o direto de pensar livremente, e no meu livro me refiro a filósofos e outros pensadores que foram meus mestres e nunca estiveram na extrema-direita ou na esquerda, como Edgar Morin, Cornelius Castoriadis, Maurice Merleau-Ponty. Eles sempre procuraram ter o espírito livre.

GM: Em sua crítica ao poder do mercado, o sr. é antiamericano?

Guillebaud: Não estou de acordo com a condenação sistemática dos Estados Unidos. Claro, o país é uma potência econômica militar, e é preciso resistir a isso. Agora mesmo há uma disputa comercial entre a Europa e EUA. Isso é normal. Assim deve ser. Mas não concordo em satanizar a nação. Por uma razão simples. Os mecanismos que ameaçam a democracia, expostos no meu livro La Refondation du Monde, põem em perigo também a América. O delírio do mercado, ou a subcultura do McDonald's, ameaça tanto a cultura americana quanto a cultura européia. Os intelectuais de lá são os primeiros a lutarem contra isso. Face a essa mesma barbárie, nós estamos no mesmo campo, os americanos e nós. Em meu livro, quando critico a dogmatização liberal, a maior parte dos autores citados são dos Estados Unidos. Transformar a análise da democracia em uma espécie de duelo entre a Europa e os EUA é idiota. Há uma ridícula tradição antiamericana na França, mas há também o inverso. Há uma americanofilia. Se vem de lá, então é formidável. As duas tradições são imbecis.

GM: Mas os desacordos entre a Europa e os Estados Unidos muitas vezes são o sintoma de uma disputa de modelos econômicos e políticos. Os europeus podem oferecer uma alternativa?

Guillebaud: Eu penso que isso será muito difícil, mas também inevitável. Neste momento, em relação ao funcionamento da economia liberal, o modelo americano está triunfando em toda parte. E isso inclui até mesmo os países europeus mais aparelhados para resistir. Um exemplo, a Alemanha. Os alemães tinham um modelo econômico, chamado de economia social de mercado, que era muito diferente do sistema americano. Era mais igualitário, e o financiamento das empresas era assegurado pelos bancos, e não pela bolsa. Havia uma co-gestão entre empresários e trabalhadores. Hoje, esse modelo está sendo alterado em nome do modelo anglo-saxão, com a competição permanente e a necessidade de conseguir resultados a curto prazo.

De uma maneira dolorosa, a Europa está se aproximando da estratégia americana. Isso porque, no momento, e sobretudo quanto aos índices de desemprego, a América está em melhor situação. Sem falar do crescimento inacreditável nos últimos nove anos. Nos EUA, o índice de desemprego é de 4,5%, na França é de 11%. Isso se traduz em prestígio, um sentimento de sucesso e de força do modelo americano. Assim os europeus se deslocam na mesma direção. Isso é evidente. Mas talvez não seja durável. Nossos valores são muito diferentes. Estamos fascinados pelo modelo, e somos, no momento, incapazes de ver os inconvenientes. Mas nós os descobriremos. Na semana passada, um órgão oficial do governo dos Estados Unidos divulgou dados sobre o aumento das desigualdades sociais no país nos últimos 20 anos. Elas aumentaram em proporções inéditas na história da nação. Cerca de 20% dos mais pobres se tornaram ainda mais pobres. Estamos esquecendo de levar em conta esse lado do modelo. O que mais me espanta hoje é o fato de serem os próprios americanos (do partido democrata) os responsável em alertar os europeus. Eles dizem: "Calma, nem tudo é uma maravilha; há fracassos aqui também, e não sejam tolos em esquecer isso". Podem ser necessários 20, 30 anos, mas certamente a sociedade americana reagirá a isso.

GM: Para periféricos, toda a discussão ou teorização sobre modelos econômicos e políticos parece algo extremamente abstrato, porque há ainda problemas primários a serem resolvidos. Como um julgamento da democracia pode interferir na vida dessas nações?

Guillebaud: Você tem razão. Mas há algo importante. Eu sou de uma geração de pessoas que, quando eram militantes políticos "terceiro mundistas", tinham tendência a dizer que "a democracia e a liberdade não poderiam ser aplicadas em nações que não tivessem chegado a um determinado grau de riqueza". Esse argumento serviu para justificar um grande número de ditaduras e tiranias. Na América Latina havia muitos regimes ditatoriais, e isso seria porque "eram pobres demais". Isso se falava também sobre a China, sobre a África. Como aplicar a democracia nesses lugares? Primeiro, eles precisariam "se desenvolver". Isso é uma bobagem. Uma dupla bobagem. De um lado, é ofensivo aos homens.

Apenas os países ricos poderiam desfrutar da democracia, uma forma de colonização desprezível. Eu conheço bem a África. Há uma grande tradição de liberdade em certas culturas africanas. E há um outro lado, também. Para um país se desenvolver, precisa da liberdade. Mas a democracia não pode ser imposta, não pode se sobrepor às diferenças culturais. A democracia é uma aprendizagem que cada um deve fazer no interior de sua cultura. Os acontecimentos nos países do leste europeu nos últimos dez anos são uma lição para nós. Depois do fim do comunismo, eu morei quatro anos na Rússia; penso que nos enganamos muito sobre eles. Acreditávamos, de maneira um pouco arrogante, que os russos, depois da queda do muro, poderiam constituir uma democracia igual à da França, ou um mercado igual.

Tentamos aplicar nosso modelo, e me lembro que em Moscou, no período, havia um instituto russo tatcherista, para imitar a Inglaterra. Ridículo, porque na cultura russa há valores muito especiais sobre a coletividade, o espaço, a família, o tempo e a religião. A democracia, ela deve progredir, mas não deve ser apenas cópia de um modelo qualquer. Dizer que a democracia é um valor fundamental, e todos os povos do mundo têm direito a ela, é uma coisa. Mas dizer que ela será igual em todos os lugares, isso é um colonialismo cultural. No passado, minha geração cometeu um erro dramático. Éramos "terceiro mundistas", tínhamos um grande sentimento de culpa por sermos ocidentais; éramos "difererencialistas". O "diferencialismo" consistia em afirmar que todas as culturas eram respeitáveis e não tínhamos nenhuma lição a dar aos africanos, aos brasileiros ou aos chineses. Cada povo, uma cultura. Cada povo, seu valor. Com as melhores intenções do mundo, esse diferencialismo justificou a tirania chinesa (uma "noção de liberdade" deferente entre os povos).

Isso foi um erro trágico. Mas estamos nos recuperando dele. No final dos anos 70, com organismos como a Anistia Internacional ou Médicos Sem Fronteira, surge uma nova forma de militância, reafirmando o desejo de respeitar todas as culturas, mas também dizendo haver valores universais inegáveis, mesmo que sejam uma tradição cultural. Mas é preciso se manter na linha justa, para não cair outra vez na tentação da arrogância ocidental. Como dizia a filósofa Simone Weil: "É um dever para cada um de nós se desenraizar em relação à tradição, mas é sempre um crime desenraizar o outro".

A Refundação do Mundo – Uma recensão

Traduzimos a recensão do livro La Refondation du Monde (A Refundação do Mundo), Seuil, 1999, 366 p. feita pelo Le Monde Diplomatique outubro de 1999.

"Um título ambicioso, um conteúdo que não o desmente: o novo livro de Jean-Claude Guillebaud é uma síntese magistral dos seis "venenos" – o autor justifica a aparente arbitrariedade deste número – que se dissolvem no nosso mundo "desencantado", e uma corajosa tomada de posição a favor dos contra-venenos. Contra a recusa pós-moderna de toda idéia de projeto, contrapõe a esperança reencontrada; contra a resignação à lei do mais forte, contrapõe a crença na igualdade; face à submissão às forças do mercado, contrapõe a reabilitação da política; em resposta ao cientificismo assustador, contrapõe o retorno da razão crítica e modesta; contra o "eu", o "nós" e, enfim, desafiando o "mundial", a reivindicação, sem falsa modéstia, do universal. O autor não se ilude que pode ser acusado de "arrogância ocidental", de neocolonialismo etc. Jean-Claude Guillebaud faz apelo a um "humanismo paradoxal" que consiste em se abrir para a alteridade, mas dando provas de uma firmeza reencontrada no que se refere aos princípios que constituem a nossa herança histórica".

A crise do mundo moderno e o papel das religiões
Segundo H. G. Gadamer

"O respeito pelas outras religiões é um bem que pode salvar-nos da catástrofe, mas o caminho para a salvação tem os inimigos dentro e fora da Igreja, entre os cardeais como Ratzinger de uma parte e no poder dos Estados Unidos, da outra parte". Hans Georg Gadamer, que completará 100 anos de idade no próximo mês de fevereiro, há muito tempo volta a sua atenção para a religião. "Penso no respeito dos não religiosos para com as religiões, mas sobretudo no respeito das religiões entre si, como um meio para salvar o planeta da guerra e da ruína". H. G. Gadamer é o grande expoente da hermenêutica, autor do clássico Verdade e Método publicado no Brasil pela Editora Vozes. Papa Wojtyla é um admirador de Gadamer, luterano, a tal ponto que desde o início dos seminários de verão que são organizados em Castelgandolfo, onde o papa passa o verão europeu, o hermeneuta alemão é convidado. Aqui traduzimos e reproduzimos, na íntegra, a entrevista que concedeu para o jornal eletrônico Caffe Europa. Esta entrevista teve importante repercussão na Europa. O CEPAT Informa no. 54/1999, p. 55 publicou extratos de uma outra importante entrevista de Gadamer. O sublinhado é nosso.

Caffe Europa: Por que o senhor se preocupa com os cardeais e com Ratzinger?

H.G. Gadamer: Porque me dou conta que o Papa sustenta uma tendência potencialmente cooperativa entre as religiões. Ele quereria fazer mais do que faz, isto é certo, mas é preciso ver o que poder fazer verdadeiramente. Veja o que aconteceu com o "mea culpa" sobre os cismas, ortodoxo, protestante, anglicano. Os cardeais da doutrina se opuseram ao gesto do Pontífice, que era exatamente uma crítica das divisões doutrinárias. E o cardeal Ratzinger, sempre presente, muito presente, procurou segurá-lo. O Papa é um homem que tem um olhar extraordinariamente longínquo e, mesmo estando sempre muito atento, aqui foi além das suas possibilidades, ousando mais do que se poderia esperar dele. A tendência cooperativa entre as religiões tem inimigos muito fortes fora da Igreja, e aqui se destacam, acima de tudo, os americanos, e dentro da Igreja, os cardeais como Ratzinger, guardas severos da doutrina e da "unicidade" do cristianismo católico. Por isto temo que o Papa não será capaz de superar os obstáculo. Talvez outros líderes religiosos, como Dalai Lama, talvez um indiano, talvez outros. Espero que surja alguma liderança religiosa capaz de alertar a humanidade contra o risco de uma catástrofe.

Caffe Europa: Explique melhor a sua visão sobre os perigos deste momento e do possível papel das religiões.

H.G. Gadamer: A humanidade está exposta a perigos enormes por causa da ampla disponibilidade das armas atômicas e de outros venenos destrutivos que podem produzir danos irremediáveis. A novidade do perigo, comparando com os conflitos do passado, consiste no fato de que muitos países tem em mãos, como, talvez, o Iraque, de tecnologias capazes de destruir a vida sobre o planeta. Os americanos sabem muito bem quais são estes riscos, mas a sua preocupação principal é a de manter e expandir o seu poder. Não temos, portanto, muitos recursos para nos salvar. Por isto o meu olhar se volta, não somente para a política, mas também para as religiões.

Caffe Europa: Mas as religiões, para sermos francos, são muitas vezes mais causa de guerra do que de paz. Mesmo as guerras mais recentes implicam conflitos e atritos religiosos.

H.G. Gadamer: É claro que as confissões religiosas são diferentes, sei muito bem que é difícil encontrar uma língua comum até para as diferentes ramos do cristianismo, mas a exposição ao perigo é tão grande, a ameaça de autodestruição do globo tão forte que o diálogo entre as diferentes culturas me parece, e espero que parecerá a todos, indispensável. Vamos partir, então, daquilo que todas as culturas e as religiões têm em comum.

Caffe Europa: E o que elas têm em comum?

H.G. Gadamer: O tema que pode ser discutido entre as diversas culturas é aquele dos direitos humanos. Sobre os direitos humanos é possível encontrar um acordo. Deve-se encontrar um acordo pela simples razão que todas as religiões, grandes e pequenas, o confucionismo, o budismo, o islamismo, o cristianismo, mas também as seitas animistas da América do Sul ou da África, todas, têm em comum o culto dos mortos. Até a Revolução de Outubro produziu a idéia de conservar para a eternidade o corpo de Lenin. A própria múmia de Lenin mostra, de forma caricatural, a convicção que alguma coisa vai para além da morte.

Assim como os guerreiros vikings que tinham o costume de sepultar seus mortos com toda a sua enorme nave. O fato é que os seres humanos são as únicas entidades viventes que conhecem o sepulcro. E o sepulcro revela que crêem num além, que depois da morte permanece alguma coisa. A devoção pelos mortos, tão universal, exprime algo que em termos filosóficos chamamos de transcendência. Este elemento comum nos fornece a base para nos colocar um objetivo: que todas as religiões aceitem os direitos humanos. Sem a cooperação das grandes culturas, este caminho não é possível. O cristianismo sozinho não basta, ele não cobre o globo inteiro. E nem as outras religiões. Naturalmente cabe um papel maior à política e não tanto à filosofia. Nós filósofos podemos simplesmente nos empenhar para que o tema filosófico da transcendência seja capaz de valorizar o traço comum a todos os seres humanos e não as diferenças doutrinárias, das quais os Ratzinger de todas as religiões gostam tanto e os sofistas que exasperam as diferenças teológicas e as fixam em sistemas.

Caffe Europa: Os direitos humanos parecem ter mais inimigos que amigos nas religiões.

H.G. Gadamer: Certamente os direitos humanos sempre foram contestados porque percebidos como um ataque à autonomia das diversas culturas e à soberania dos Estados. Por isto a China, por exemplo, sempre negou os discursos sobre os direitos humanos. Devemos desintoxicar esta situação e atribuir esta tarefa a todas as grandes religiões, não com o fim sub-reptício de condenar a China pelo banho de sangue que houve em Pequim, mas em geral. Não se trata de negar as culturas particulares. O modo certo de fazê-lo não é o dos americanos, que não representam, certamente, a cultura mais amada pelos outros. A desintoxicação cabe às grandes religiões. Mas não basta o que o Papa está fazendo.

Caffe Europa: O Papa está organizando para a primavera do ano 2000 uma viagem que tem, precisamente, este significado, percorrer os lugares da "história da salvação" comuns às três grandes religiões: islã, cristianismo, hebraica.

H.G. Gadamer: Eu concordo com ele e me sinto pertencendo ao mundo cristão. Sei também que ele seria a pessoa nas melhores condições para operar a desintoxicação. Mas não sei se ele é capaz de fazê-lo pelas dificuldades que temos visto dentro da Igreja. No Vaticano não estão muito satisfeitos que ele seja tão "liberal". Entre ele e os cardeais não há uma paz celestial, especialmente com alguns deles, como já falei. Outros líderes religiosos podem ajudar, especialmente o Dalai Lama.

Caffe Europa: E se as religiões não se libertarem destes obstáculos internos à cooperação para os direitos humanos?

H.G. Gadamer: Então devemos pedir ajuda aos políticos e pedir aos americanos que contenham suas tendências expansionistas, que se assemelham aquilo que se chamava imperialismo. Os homens de governo, europeus, indianos, árabes deveriam intensificar o confronto com os direitos humanos para chegar a uma paz sólida antes da terceira guerra mundial, antes do crepúsculo do mundo. É indispensável que este diálogo seja mais rápido que a difusão dos armamentos nucleares. E que os diferentes pontos de vista não possam impedir que se encontre princípios comuns, como, por exemplo, o valor da vida, talvez o banimento da pena de morte, como orientação geral, do direito internacional. Provavelmente estou muito velho, e sou um velho cuja voz conta muito pouco, mas estou convencido com suficiente segurança que o mundo não sobreviverá ao próximo século se não nos encaminharmos nesta direção.

Caffe Europa: E o senhor quer que esta mensagem de alarme ajude para que as pessoas abram os olhos? Quer encorajar o Papa?

H.G. Gadamer: Creio que o Papa esteja bem consciente dos perigos, mas ele não tem uma plena autonomia de ação. Ele está sob pressões. Eu não sou católico, mas também se fosse católico não poderia, certamente, pedir que atendesse os meus desejos. Esta seria um vão exagero da minha função no mundo. Sempre busquei com a minha filosofia mostrar quão poucas coisas podemos controlar. Sempre insisti no fato que devemos aprender muito e não sabemos nada. Dediquei-me ao nosso grande "ignoramus". Ignoramos sobretudo o mistério da transcendência, não sabemos nada do além. Não mudarei agora, não abandonarei a minha modéstia. Escreva que um velho lhe contou algumas idéias que lhe passam pela cabeça, que ele lhe confidenciou alguns medos dos quais não consegue se libertar.

Por uma ética global

Hans Küng, teólogo alemão, defende o papel das religiões para a paz e uma ética global, em entrevista concedida ao jornal português Público, no dia 26 de setembro de 1999. Na longa entrevista, o jornal pergunta:

Público: No seu livro Projeto para uma Nova Ética Mundial, sugere o papel fundamental das religiões para a paz no mundo. Estamos perante uma teologia ecumênica para a paz?

Hans Küng: Pode ser chamada assim. Há uma longa história de vários livros e de muitos diálogos com pessoas de outras religiões. O que defendo não é uma utopia idealista, mas uma esperança realista, que resumo em quatro frases: não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões; não haverá paz entre as religiões sem diálogo inter-religioso; não haverá diálogo eficaz entre as religiões sem posições éticas comuns para o nosso globo; não haverá sobrevivência do globo sem uma ética global. Esta é uma visão que está enraizada na minha fé católica, mas que pode ser partilhada por pessoas de diferentes religiões, e por crentes e descrentes.

Público: Há quem considere que o diálogo inter-religioso comporta o risco do sincretismo...

Hans Küng: Temos que evitar duas atitudes erradas: uma, à direita, é o fundamentalismo que defende cada verdade como absoluta; outra, à esquerda, é o sincretismo e o relativismo que aceita todas as religiões são iguais. É possível estar enraizado na sua fé e respeitar, não denegrir, os outros. Mas para evitar o sincretismo, é preciso conhecer alguma coisa das outras religiões. As pessoas que têm medo do sincretismo não sabem nada das outras religiões e, muitas vezes, nem sequer sabem nada da sua. Quando se estudam as diferentes religiões, descobre-se que as posições éticas básicas são muito similares, apesar das diferenças dogmáticas".

A Ética Feminista: A Ética do cuidado

A revista O que nos faz pensar, no. 13, abril de 1999, publica um artigo de Angelika Krebs, professora da Universidade de Frankfurt am Main, com o título: "Ética feminista: uma crítica à racionalidade do discurso". A revista é editada pelo Departamento de Filosofia da PUC-RJ. O tema central do artigo é sobre a contribuição do feminismo para a ética. A autora faz uma dura crítica à racionalidade do discurso. Uma das teses centrais do artigo é que "o olhar da ética do discurso sobre a moral é um olhar unilateral masculino, formado no mundo tradicionalmente masculino da reciprocidade pessoal.

Os fenômenos morais do cuidado unilateral no mundo tradicionalmente feminino são desapercebidos por este olhar, que os remete ao âmbito da natureza, da emotividade, da compaixão ou do amor". Assim ela conclui que "a ética do discurso não consegue apreender corretamente o âmbito tradicionalmente feminino do cuidado com seres humanos não-pessoais" Ela afirma que "Habermas herdou de Kant o entendimento da moralidade restrito à personalidade. Portanto, a crítica que aponta para uma tendência masculina em Habermas, vale igualmente para Kant". Ela se pergunta pela possibilidade de uma ética do cuidado feminina. Criticando "a definição de moral dada pela ética do discurso, que incorpora um olhar masculino unilateral que - formado na esfera masculina da comunicação simétrica - só é capaz de perceber a esfera feminina do cuidado assimétrico de forma deturpada". Para ela, "a concepção de moral ampliada no sentido feminino e que tem por conteúdo a proteção das necessidades corporais e pessoais, ou seja, o bem-viver de todos os seres carentes, pode ser denominada de uma ética kantiana do bem-viver ou de uma ética da necessidade". Daí vem a pergunta: "Não se poderia chamar esta concepção moral também de ética (feminina) do cuidado?"

Baudrillard:
O Mundo se converteu numa grande Disneylândia

O filósofo francês Jean Baudrillard, participando de um simpósio sobre o fim do milênio, em La Coruña, na Espanha, com mais de 500 especialistas, no final do mês de setembro, afirmou que a engenharia genética anuncia a iminente aparição do "homem artificial". O que são os seres humanos? São, por acaso, puros espectros? "Este é o grande problema: O que acontece com o real quando ele é substituído? O que ocorre com o corpo quando ele se torna inútil? Teremos um corpo de síntese? Como desfazer-se do real? A reação dos comportamentos humanos frente a tudo isto é um mistério" – segundo J. Baudrillard.

O mundo, assim, se converteu numa "gigantesca Disneylandia" onde o real foi substituído pelo virtual. Para ele, as transformações espetaculares dos últimos anos permitem que se possa prever que o novo milênio "mudará as regras do jogo", mas não sabemos em que direção. Baudrillard está seguro que se produzirão catástrofes, no sentido ambivalente que dá a este conceito. Pois para muitos, a catástrofe se apresenta como uma esperança para começar tudo de novo, do zero. Internet é, para Baudrillard, uma destas catástrofes. Benéfica como instrumento lúdico e de comunicação, mas que traz presságios obscuros. "A rede é, em certa medida, uma desmedida, produz uma saturação de informação e cria um mundo novo onde é possível estar em vários lugares ao mesmo tempo", opina Baudrillard, "mas não sei se poderemos suportar tudo isto. A Internet pode se converter num lugar inabitável, quase num suicídio".

CEPAT INFORMA é uma publicação do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores 
Rua: João Batista Gabardo, 151 - Sítio Cercado -  81900-310 - Curitiba - PR 
Fone e Fax: (041) 349 5343 
e-mail: cepat@super.com.br

(1) O Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – Cepat surge no início da década de 1990 com a preocupação de compreender melhor a profundidade, a amplitude e o impacto das transformações no mundo do trabalho. Nasceu da reflexão de jesuítas da Província do Brasil Meridional e de leigos especialmente ligados à Pastoral Operária sobre a ausência de uma atenção maior para o mundo urbano, mais especificamente para a realidade do mundo do trabalho. Por esta razão, mesmo sendo uma organização não governamental, o Cepat sempre se vinculou aos jesuítas e sempre se compreendeu como obra da Companhia de Jesus, entendendo-se como uma atualização das inspirações dos Centros de Investigação e Ação Social – CIAS. Desde 2008, passa a se constituir como Centro Jesuíta de Cidadania e Ação Social – CJ-Cias e integra a Rede Jesuíta de Cidadania e Ação Social – SJ-Cias.



Um pouco da história da esquerda brasileira, para pesquisadores

A nova esquerda
Resgate historico www.resgatehistorico.com.br

Uma matriz das esquerdas

A Organização Revolucionária Marxista - Política Operária (ORM-Polop) foi uma das matrizes da esquerda revolucionária brasileira, tendo sido o primeiro agrupamento a se organizar como opção partidária ao PCB (excetuando-se as organizações trotskistas), em fevereiro de 1961, “reunindo círculos de estudantes provenientes da ‘Mocidade Trabalhista’ de Minas Gerais, da ‘Liga Socialista’ de São Paulo (simpatizantes de Rosa de Luxemburgo), alguns trotskistas e dissidentes do PCB do Rio, São Paulo e Minas”, conforme informações do Brasil: Nunca Mais. Da antiga Polop, surgiram direta ou indiretamente as seguintes organizações: Colina, VPR, POC, VAR-Palmares, OCML-PO, MCR e MEP.

Os autores deste livro, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, foram militantes da ORM-Polop, posteriormente do POC e estavam entre os fundadores da OCML-PO, a nova Polop, após o rompimento com o POC, que decidira partir para a luta armada imediata em 1970.

Sete militantes ligados ao POC foram mortos pela repressão política no Brasil e no exterior. Um foi assassinado em São Paulo, em 1971, Luiz Eduardo da Rocha Merlino, dois no Rio Grande do Sul (Helio Zanir Sanchotene Trindade e Ary Abreu Lima e Rosa) e quatro outros foram mortos no exílio: Luiz Carlos Almeida e Nelson Kohl, no Chile, durante o golpe militar que derrubou o governo do presidente Salvador Allende, em 13 de setembro de 1973; e Jorge Alberto Basso e Maria Regina Marcondes Pinto (ligada na época ao MIR do Chile), na Argentina, em 1976.

A história da Polop está contada da seguinte forma no Brasil: Nunca Mais: “Desde o seu surgimento, a Polop deu mais importância ao debate teórico e doutrinário dentro da esquerda marxista do que a um projeto de construir uma alternativa política ao PCB. Não chegou, dessa forma, a se constituir em uma organização nacional, embora tenha alcançado certo prestígio nos meios universitários dos três Estados já referidos e atraído para sua esfera de simpatia, ainda antes de 1964, militares ligados às mobilizações nacionalistas nas Armas.

Com permanente críticas às posições defendidas pelo PCB, a Polop recusava as opiniões daquele partido sobre a necessidade de uma aliança com a ‘burguesia nacional’ para vencer o ‘imperialismo’ e os ‘restos feudais’. Elaborou, em contraposição, um ‘Programa Socialista para o Brasil’, no qual afirmava que o grau de evolução do capitalismo no país comportava e exigia transformações socialistas imediatas, sem qualquer etapa ‘nacional-democrática’.

Após a derrubada de Goulart, a Polop ensaiou a definição de uma estratégia guerrilheira para enfrentar o novo regime, chegando a se envolver em duas articulações para a deflagração de um movimento armado, em aliança com os referidos militares vinculados ao ‘nacionalismo revolucionário’. Ambas as articulações foram abortadas no nascedouro. A primeira ocorreu ainda em 1964, no Rio, ficando registrada com o irônico título de Guerrilha de Copacabana. A segunda, de maior expressão, em 1967, liderada por aqueles militares vinculados ao embrionário MNR, passou à história com o nome impreciso de Guerrilha de Caparaó.

Em 1967, a Polop viveu em suas fileiras um impacto semelhante ao ocorrido no interior do PCB, por influência da luta guerrilheira que se alastrava pela América Latina sob a inspiração da Revolução Cubana e do guevarismo. Esse impacto acarretou duas importantes cisões. Em Minas, a maior parte dos militantes se desligou da Polop para constituir o Colina. Em São Paulo, uma ‘ala esquerda’ da organização se uniu a militantes remanescentes do MNR para constituir a VPR”.

Posteriormente, em meados de 1969, remanescentes da VPR e do Colina, se uniriam para formar a VAR-Palmares.

Continua o relato do BNM: “Após as cisões que geraram a VPR e o Colina, essa organização restou claramente debilitada. Reagiu a isso, aproximando-se da Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul (do PCB) e de mais alguns círculos de militantes, para constituir o Partido Operário Comunista (POC). O POC conseguiu ter certa expressão no Movimento Estudantil de 1968, onde atuava sob a designação de Movimento Universidade Crítica. Suas propostas políticas assinalavam uma nítida continuidade da linha seguida anteriormente pela Polop. Procurou também estabelecer alguma presença junto do meio operário das capitais.

Em abril de 1970, um grupo de militantes se desligou do POC para voltar a constituir a Polop. Os que permaneceram no POC passaram a enfrentar divergências internas profundas, sendo que alguns círculos defendiam a atuação conjunta com as organizações da guerrilha urbana (ALN, VPR, VAR, etc.), chegando a se envolver em operações armadas.
Entre 1970 e 1971, o POC foi atingido por vários golpes da repressão, sofrendo prisões de dezenas e centenas de militantes, principalmente em São Paulo e Porto Alegre, o que acabou comprometendo as atividades da organização no país a partir daí, não obstante alguns setores terem permanecido articulados no exílio.

Em 1970, um diminuto grupo de militantes se desligou do POC, no Rio Grande do Sul, para criar o MCR, que executou algumas ações armadas conjuntas com a VPR.

Os que se rearticularam em 1970 sob a sigla Polop, por sua vez, condenaram as ações armadas e concentraram seus pequenos efetivos em um trabalho doutrinário junto dos operários, rebatizando sua organização para Organização de Combate Marxista-Leninista - Política Operária (OCML-PO).

No exílio, a OCML-PO editou, durante certo tempo, em conjunto com a AP Socialista e o MR-8, a revista de debates teóricos Brasil Socialista.

Antes de essa nova Polop (mais conhecida como PO) completar 1 ano de vida, começou a se constituir dentro de suas fileiras, no Rio, a Fração Bolchevique da Polop que, em 1976, mudaria seu nome para Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP).

Na pesquisa BNM foram estudados cinco processos relacionados ao Polop, somando perto de cem cidadãos envolvidos como réus. Já o POC foi objeto de oito processos estudados, distribuídos por São Paulo, Minas, Paraná e Rio Grande do Sul, reunindo mais de 200 pessoas atingidas como réus ou indiciados na fase de inquérito. O MEP foi detectado pelos órgãos de repressão em 1977, ocorrendo prisões e formando-se processos no Rio de Janeiro e em São Paulo”.

(in “Dos Filhos Deste Solo”, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, editora Boitempo)

A esquerda cristã

A AP nasceu entre militantes estudantis da JUC e de outras agremiações da Ação Católica. Segundo Jacob Gorender, esses militantes queriam criar um veículo de ação política “que permitisse a liberdade de atuação e não envolvesse a hierarquia católica hostil a politização esquerdizante. Em junho de 1962, em um congresso em Belo Horizonte, fez-se o lançamento solene da AP.

No ano seguinte, em um segundo congresso em Salvador, a AP decidiu-se pelo “socialismo humanista”, buscando inspiração ideológica em Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin, Jacques Maritain e Padre Lebret. Teve uma vertente protestante, cujo representante mais conhecido foi Paulo Stuart Wright. Na maioria composta de lideranças estudantis, como Herbert José de Souza (Betinho), Jair Ferreira de Sá, José Serra, Vinícius Caldeira Brant, Aldo Arantes, Haroldo Lima, Duarte Lago Pacheco e outros, teve também a adesão de lideranças camponesas, como Manoel da Conceição e José Gomes Novais, e de lideranças operárias.

Antes de 1964, circularam periódicos como Ação Popular, Brasil Urgente (fundado por frei Carlos Josaphat). “Sua defesa das reformas de base e das lutas dos trabalhadores promoveu o trânsito de milhares de católicos a posições de vanguarda” (Gorender - Combate nas Trevas).

Após o Golpe Militar de 1964, teve seus quadros principais jogados à clandestinidade ou ao exílio.

Segundo o Brasil: Nunca Mais: “Nos anos seguintes a AP reorganizava, aos poucos, sua estrutura, apoiando-se para tanto, especialmente, no meio universitário. E inicia uma demorada discussão para redefinir seus princípios políticos e filosóficos (...) De 1965 a 1967, em meio a controvertidas polêmicas, a organização caminha para a adoção do marxismo como guia teórico de suas atividades. Segundo o BNM, o grupo vencedor da polêmica foi o identificado com as idéias de Mao Tsé-tung, “assumindo uma linha política semelhante à do PC do B”.

A AP deslocou militantes para as fábricas e para o meio rural, provocando a saída de muitos militantes, mas, “por outro lado, foram feitas experiências interessantes de implantação em meios populares como o ABC paulista, da Zona Canavieira em Pernambuco, da região Cacaueira da Bahia, da área de Pariconha e Água Branca em Alagoas, e do Vale do Pindaré, no Maranhão”. Em 1968, surge a dissidência do PRT, liderada por padre Alípio de Freitas, Vinícius Caldeira Brant e Altino Dantas. O PRT foi atingido pela repressão em 1971, e praticamente desestruturou-se. Em 1973, o legendário camponês José Porfírio de Souza, líder dos conflitos de Trombas do Formoso, desapareceu após ser libertado da prisão em Brasília.

Em 1971, a APML aproximou-se do PC do B, fundindo-se com este no ano seguinte.

Um setor liderado por Jair Ferreira de Sá e Paulo Stuart Wright manteve a AP como organização independente. Em 1973, passou a ser conhecida como “AP Socialista”, aproximando-se da Polop e do MR-8.

Em outubro de 1970, Jorge Leal Gonçalves foi preso no Rio e tornou-se desaparecido político; em 1971, foram mortos o operário de Mauá Raimundo Eduardo da Silva, em 5 de fevereiro, e o agrônomo Luiz Hirata, em 16 de dezembro, ambos em São Paulo.

Em 1973, após a fusão do grupo maior ao PC do B, a AP Socialista foi praticamente desarticulada pela brutal repressão desencadeada pela infiltração do ex-militante Gilberto Prata Soares, e que levou às mortes de José Carlos da Mata Machado, Gildo Macedo Lacerda, e aos desaparecimentos de Paulo Stuart Wright, Honestino Guimarães, Humberto Câmara Neto, Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira e Eduardo Collier Filho, além da prisão de militantes e simpatizantes em vários Estados do país.

(in “Dos Filhos Deste Solo”, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, editora Boitempo)

Opção ao maoísmo

Os fundadores do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, saídos da Ação Popular, discordavam do maoísmo ortodoxo seguido pela direção da AP (luta antifeudal, cerco das cidades pelo campo, etc.) e defendiam uma linha diretamente socialista. Fundado formalmente em janeiro de 1969, o PRT chegou a executar algumas ações armadas no Rio de Janeiro e em São Paulo, atuando também no Recife, Pernambuco, e nos Estados de Minas Gerais e Goiás, até ser desestruturado no começo de 1971, após ser duramente atingido pelos órgãos da repressão. Pesquisa do Brasil:Nunca Mais aponta a existência de cinco processos na Justiça Militar envolvendo integrantes do PRT, dois dos quais referentes às atividades de Trombas do Formoso e de José Porfírio, líder camponês “desaparecido” desde 1971.

(in “Dos Filhos Deste Solo”, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, editora Boitempo)

PORT - Partido Operário Revolucionário

Os grupos trotskistas

Desde 1929 existiram, no Brasil, diversos agrupamentos políticos reunindo os marxistas afinados com as idéias de Léon Trotsky, um dos líderes da Revolução Russa, de 1917, que terminou expulso da URSS no final da década de 20, quando o poder político daquele país começava a ser monopolizado pelo punho forte de Stalin.

O mais importante destes grupos trotskistas foi o Port, fundado em 1953 sob influência do argentino Homero Cristali, conhecido pela alcunha de J. Posadas. Durante muitos anos o Port publicou, em seu periódico Frente Operária, ensaios atribuídos a Posadas, na condição de responsável pelo Birô Latino-Americano da IV Internacional, fundado por Trotsky, no México, em 1938.

No início da década de 60, o Port passou a adquirir alguma expressão, especialmente por conta de adotar uma postura política nitidamente à esquerda do PCB. Tinha contigente reduzido, limitado praticamente a São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco, mas alcançou notoriedade com seu envolvimento nas agitações das Ligas Camponesas, quando foi alvo de prisões e processo político em plena vigência do governo Goulart, em um Estado como Pernambuco, onde era governador Miguel Arraes.

Com a reviravolta de 1964, o Port foi golpeado pela repressão política, mas conseguiu reanimar sua estrutura nos anos seguintes, principalmente nos meios estudantis de São Paulo, Brasília e Rio Grande do Sul. Deslocou alguns de seus militantes para trabalhar como operários na indústria, como foi o caso de Olavo Hansen, morto sob torturas no Dops de São Paulo, em 1970, após ter sido preso distribuindo panfletos em uma manifestação pacífica realizada nos festejos do 1º de maio.

Entre 1970 e 1972, o Port foi atingido por repetidas ondas de prisões, ocorrendo o mesmo com o grupo dissidente Fração Bolchevique Trotskista (FBT), focalizado logo a seguir.

Afora as diretrizes dos textos de Posadas, o que caracterizava a linha política do Port naquele período era condenação enérgica da luta armada sustentada por outros grupos de esquerda; uma certa defesa do papel empenhado pela União Soviética no contexto internacional (em clara discordância com as opiniões de outros grupos trotskistas do mundo inteiro); e a propaganda em favor de uma saída “peruana” para o processo político brasileiro, ou seja, a expectativa de que algum grupo de militares nacionalistas assumisse o poder no Brasil, para aplicar um modelo semelhante ao adotado no Peru pelo general Alvarado.

Em 1968, contitui-se a Fração Bolchevique Trotskista, dentro do Port, principalmente no Rio Grande do Sul, enquanto em São Paulo formava-se outra dissidência denominada Primeiro de Maio. Muitos anos mais tarde, em 1976, essas duas organizações, já plenamente rompidas com as idéias de Posadas, iriam se unificar sob a sigla de Organização Socialista Internacionalista (OSI), que ficaria mais conhecida pelo seu braço estudantil chamado Liberdade e Luta.

Uma parte da FBT tomou caminho diferente, a partir de 1973, indo gerar a Liga Operária, que foi atingida pelos órgãos de repressão em São Paulo, em 1977, antes de adotar a designação legal de Convergência Socialista.

É preciso registrar que, no caso dos grupos trotskistas, os fatores capazes de gerar dissidências e cisões nem sempre eram aqueles já presentes em outras organizações até aqui estudadas (programa, tática, estratégia, etc.). Uma vez que os seguidores de Trotsky consideram questão de princípio a articulação dos revolucionários em nível mundial (através da IV Internacional). Terminam acontecendo situações em que os “rachas” no Brasil refletem divergências entre lideranças e facções de outros países. Desse modo, pode-se observar que, além de divergências sobre tática política, as cisões ocorridas no Port para dar surgimento à FBT, à Liga Operária, à Organização Socialista Internacionalista e a outros grupos, corresponde também a dependências internacionais.

Enquanto os membros do Port permaneceram vinculados a J. Posadas e ao Birô Latino-Americano da IV Internacional, a FBT e a futura OSI aliaram-se ao Comitê de Reconstrução da IV Internacional, liderado internacionalmente por Pierre Lambert. O grupo da FBT, que iria dar nascimento à Liga Operária (depois Convergência Socialista), preferiu vincular-se à chamada Minoria da IV Internacional, sob influência do argentino-colombiano Hugo Miguel Bressano (também conhecido como Nahuel Moreno).

Um estudo mais criterioso poderia mostrar outros tipos de alinhamentos nesse plano, como é o caso da ala da POC, que, a partir de 1972, no exílio, orientou-se no sentido do trotskismo, assumindo as concepções do Secretariado Unificado da IV Internacional, que tem como expoente maior o professor da faculdade de Bruxelas, Ernest Mandel.

No Projeto BNM, 12 dos processos estudados referiam-se ao Port, distribuídos por São Paulo, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Brasília, Rio de Janeiro e Ceará. Outros quatro processos abordavam a FBT e um outro tinha a Liga Operária como alvo, constando a respeito dos demais grupos trotskistas citados apenas referências indiretas em depoimentos e documentos anexados aos autos.

MNR - Movimento Nacionalista Revolucionário

Organização composta basicamente por militares cassados em 1964 e pelos que se salvaram do expurgo e se mantinham atuantes dentro dos quartéis. Teve no início forte influência do ex-governador gaúcho Leonel Brizola. Durante os primeiros anos de existência, sua direção ficou centralizada em Montevidéu, Uruguai, onde Brizola estava exilado. Chegou a ter o apoio dos cubanos, pois Fidel Castro via o MNR como o mais viável instrumento para a revolução brasileira, por ter grande número de militares em suas fileiras. Muitos de seus militantes e dirigentes fizeram treinamento militar em Cuba. Praticamente foi o MNR que desencadeou a luta armada no Brasil. 

Em 1965, lançou um movimento guerrilheiro na região serrana do Rio Grande do Sul, para “comemorar” o primeiro aniversário da deposição do Presidente João Goulart. Tomou cinco cidades e caiu preso em pouco mais de um mês de repressão. Tinha no comando o coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório e mais um grupo de sargentos, todos cassados pela ditadura. Em 1967 fez outra tentativa de guerrilha na Serra de Caparaó, já dentro da perspectiva de revolução continental de Cuba, proposta pela conferência da OLAS. Foi destruída antes mesmo de começar. Em 1967 mesmo, o MNR estava destroçado pela repressão política. Após desligar-se da influência brizolista, uma parte fundiu-se com a Polop para dar origem a VPR e outra agrupou-se em torno de uma nova sigla, o Movimento Armado Revolucionário (MAR).

Nacionalistas revolucionários

Houve várias organizações armadas ligadas ao nacionalismo revolucionário de esquerda: MNR, MR-26, MR-21, MAR, FNL, RAN.

Segundo o Brasil: Nunca Mais, a raiz comum desses agrupamentos foram as mobilizações em prol das reformas de base, as agitações desenvolvidas entre as bases das Forças Armadas e, principalmente, as articulações vinculadas ao nome de Leonel Brizola nos anos anteriores ao Golpe Militar de 1964”.

Brizola foi eleito deputado federal pela Guanabara com uma votação histórica. Em novembro de 1963, lançou pela Rádio Mayrink Veiga a proposta de criação dos Grupos de Onze para defender as conquistas democráticas, as reformas de base e a libertação nacional. “Como um rastilho de pólvora, a proposta se alastrou por todos os Estados da Federação”.
Após o Golpe Militar de 1964, João Goulart e Leonel Brizola exilaram-se no Uruguai. Ali reuniram-se expoentes da esquerda do PTB, militares cassados e cidadãos que queriam resistir à implantação de uma ditadura militar. Daí nasceu o Movimento Nacionalista Revolucionário, que tentou, sem sucesso, implantar guerrilhas no país.

Em 1965, um grupo de 23 pessoas liderado pelo ex-sargento da Brigada Militar Gaúcha Alberi Vieira dos Santos e pelo coronel cassado Jefferson Cardim Osório constituiu uma coluna guerrilheira nos municípios de Três Passos e Tenente Portela. Foi lido um manifesto pelo rádio. Em seguida, o grupo atravessou Santa Catarina e chegou a Leonidas Marques, no Paraná. Não aconteceram sublevações militares em outras partes do país nem adesões, como eles esperavam.

O grupo debandou e Jefferson Cardim foi preso. Na repressão a esse movimento, morreu em 1965 o civil Elvaristo Alves da Silva, de Três Passos. Anos depois, em 1970, morreu Silvano dos Santos, já fora da prisão, que era irmão de Alberi.

O MNR estava inserido na estratégia da revolução continetal, com focos e colunas em vários países, tendo como pivô a guerrilha de Che Guevara, na Bolívia.

No Brasil haveria três focos guerrilheiros: um na Serra do Caparaó (divisa de Minas com Espírito Santo), um no Mato Grosso (perto da fronteira com a Bolívia) e outro entre o norte de Goiás e o sul do Maranhão. Só o de Caparaó começou a ser implantado, mas não chegou a travar combate. Em 3 de abril de 1967, o grupo todo foi preso. Um dos integrantes, o metalúrgico Milton Soares de Castro, morreu em Juiz de Fora, em 28 de abril de 1967. Em fevereiro de 1969 desapareceu no Rio de Janeiro Wlademiro Jorge Filho, que fazia a ligação da guerrilha com a cidade (reapareceu vivo em 1998, em São Paulo, depois que seu nome já fora reconhecido pela Comissão Especial). Com o insucesso de Caparaó, as outras frentes foram desativadas e o MNR ficou desarticulado.

O MR-26 existiu por pouco tempo. Originou-se de militantes que não foram presos quando da repressão ao grupo de Jefferson Cardim. Tomou esse nome em homenagem à guerrilha de Três Passos, deflagrada em 26 de março de 1965. Desse grupo foi morto o ex-sargento Manoel Raimundo Soares, em 1966, o famoso “caso das mãos amarradas”.

A FLN foi fundada pelo major do Exército, cassado em 1964, Joaquim Pires Cerveira. Ele auxiliou na fuga de Jefferson Cardim do quartel onde estava preso em Curitiba. (Dessa fuga participou o soldado Vitor Luiz Papandreu, que passou pelo exílio, por Cuba, e acabou sendo morto, segundo Amílcar Lobo, na “Casa da Morte” de Petrópolis pelo major Sampaio.)

A FLN teve vida curta e fez ações de guerrilha urbana no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Em 1970, Cerveira foi preso juntamente com sua esposa, Maria de Lourdes, e um filho. Foram torturados. Nesse ano foi banido com mais 39 presos políticos, trocados pelo embaixador alemão. Em 1973, Joaquim Cerveira, juntamente com João Batista Rita, foi seqüestrado em Buenos Aires por policiais brasileiros e trazido ao Brasil. Ambos integram a relação de desaparecidos políticos.

O Movimento Revolucionário 21 de Abril (MR-21) estava se organizando para deflagar uma guerrilha no Triângulo Mineiro, sob a liderança do jornalista Flávio Tavares, quando foi desarticulado em Uberlândia, com a prisão de Tavares em Brasília.

”O Movimento de Ação Revolucionária (MAR) representou uma articulação de militares presos na Penitenciária Lemos de Brito, no Rio de Janeiro, processados e condenados por seu envolvimento nas ações da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil e no Levante dos Sargentos, em 1963. Em maio de 1969, esse grupo conseguiu encetar uma fuga espetacular daquela penitenciária, sendo perseguido durante vários dias pelas montanhas da região de Angra dos Reis, de onde se evadiram para executar, no Rio, algumas ações armadas.” (Brasil:Nunca Mais)

Da repressão a este grupo resultaram as mortes de Roberto Cietto e Marco Antônio da Silva Lima em 1969 e 1970.

Segundo o Brasil: Nunca Mais, “quando começaram a ser soltos os militantes envolvidos na guerrilha do Caparaó, no segundo semestre de 1969, teve início uma nova articulação que, em um primeiro momento recebeu a designação de Movimento Independência ou Morte (MIM), e mais tarde passou a se chamar Resistência Armada Nacional (RAN), localizada e desmantelada no Rio e em Minas, no início de 1973, quando planejavam suas primeiras operações armadas. Consta que, nessa seqüência de prisões, foi morto sob torturas o ex-sargento veterano da Força Expedicionária Brasileira José Mendes de Sá Roriz”. Na verdade, após a desarticulação do MNR, vários militares cassados envolveram-se com outras organizações como a ALN, VPR, PCBR, Colina. Os casos dos mortos e desaparecidos referentes a esses ex-militares estão tratados nos capítulos dedicados a essas organizações.

Neste capítulo, além dos casos citados, está relatado o de Edgar Aquino Duarte, desaparecido político.

(in “Dos Filhos Deste Solo”, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, editora Boitempo) 

Antônio Carlos Pavão Entrevista - Agosto/2002

Pavão saiu do interior de São Paulo após completar seus 18 anos. Depois de ter freqüentado escolas públicas, desde o grupo escolar, ginásio e científico. Fez um ano de cursinho e conseguiu o 1° lugar na aprovação do vestibular da Universidade de São Paulo (USP). Prestou também vestibular na cidade de Brasília para Geologia, mas resolveu cursar Química na USP. Em 1976, fez seu mestrado em físico-química e já em 1978 terminava seu doutorado. Em 1979 entra como professor da UFPE, como está até hoje. Lá, em sua sala, Pavão recebeu a reportagem do Portal do São Francisco e falou por horas. Até se permitiu as confidências que se seguem. Reportagem: Paulo Marceloa Pontes 

http://www.portaldosaofrancisco.hpg.ig.com.br/entrevistas/pavao.html

Portal do São Francisco: Você fez parte do Movimento Estudantil na sua época?

Antônio Carlos Pavão: Participei desde o secundário. No científico, por exemplo, em 1966 e então este era o período que o movimento estudantil começava a ganhar força contra a ditadura. Naquela época, tínhamos a União Paulistana dos Estudantes Secundaristas e a União Pomperiana dos Estudantes Secundaristas (Pompéia - cidade do interior de SP) na qual eu era vice-presidente. E desde aquela época eu já tinha uma visão mais clara da política. Fazia-se passeatas lá na cidade de Pompéia. Em 1969, estava fazendo cursinho e o pessoal - Equipe - era da USP que tinha algumas divergências com o grêmio (tipo centro acadêmico da Faculdade de filosofia da USP, que era um pessoal mais atuante). Como tinha também o grêmio da politécnica (das engenharias). Criou-se um « racha » entre os grêmios de filosofia e nasceu esta Equipe vestibulares, um pessoal mais a esquerda deste grêmio. Então eu convivi com este pessoal neste período. Depois criou-se o Colégio Equipe onde posteriormente eu dei aula. Aprendi muito neste período.

Portal: E na universidade?

Pavão: Quando entrei na USP, eles tinham uma política no centro acadêmico (C. A.) de que quem deveria assumir o centro eram os calouros. Aí fui logo participar do C. A. e me botaram na chapa inicialmente como diretor esportivo, uma coisa assim (...). Mas, na campanha que agente estava para se eleger, só tinha nossa chapa, prenderam o Castor, um amigo nosso da chapa. E ele era candidato a vice presidente da chapa. Centrim era o nome da chapa. Por causa desta triste ironia, eu acabei sendo o vice-presidente. E aí eu me envolvi muito na política estudantil. Logo fiquei sabendo que tinha um professor de Química, Serginho, que estava preso. Todos nós entramos na campanha de libertação do Serginho, porque naquela época, ficar preso, não era brincadeira não, torturavam e matavam. Seis meses depois, ele acabou sendo solto. Também convivi com o Alexandre Vazoquileme, que hoje o DCE da USP tem seu nome. Ele fazia Geologia, mas nós pagávamos matemática (o que hoje é cálculo) juntos. 

Nesta mesma época estava acontecendo uma reforma universitária, quando se implantou as cadeiras básicas dos cursos, como é a Área II (área de exatas da UFPE) hoje. O Alexandre foi preso, torturado e assassinado pela ditadura. Segundo ela, ele tentou fugir e acabou sendo atropelado. O certo é que até hoje a família não recuperou o corpo dele. Então eu convivi em um ambiente assim. Em 1972 houve uma invasão no Instituto de Química da USP. O pessoal da Operação Bandeirante, o « braço » do Exército, que combatia, prendia os chamados comunistas, subversivos, tal. Então, eles invadiram o Instituto e levaram a professora de Química Analítica Quantitativa, Professora Ana Rosa. Depois ela apareceu morta e o marido dela também. Imagina o clima que agente vivia... Em 1974, comecei a dá aulas no colégio Equipe Vestibulares. Dava aula para André Singer - ele não é o coordenador da campanha do Lula agora? - esse Arnaldo Antunes e várias pessoas. 

Portal: E daí o Partido PSTU?

PAVÃO: Então, em 1976 eu entrei para a chamada Liga Operária, que era um partido trotsquista. Eu comecei a dar aula com esse Dom Cláudio Hermes, candidato a papa, aí o Cláudio abrigava grupos. No meu caso, eu dava aula de supletivo a noite para este grupo. Comecei a dá aula de matemática, mas na verdade, eu ensinava porcentagem para que eles reivindicasse nos sindicatos seus direitos. A Liga Operária tinha uma política de atuação nos sindicatos. Eu atuava em sindicatos. Tinham outra turma lá, outra linha do trotsquismo que apoiava a luta armada. Nós éramos contra a luta armada, como o PcdoB. Ninguém me conhecia pelo meu nome verdadeiro. Meu nome era Juca e minha mulher também tinha outro nome. Ela também militava. Em 1977 começou a campanha política para Deputado Estadual e Federal. Tinha dois partidos: MDB e a Arena, então nós lançamos um movimento pela convergência socialista. O chamado Liga Operária, depois passou a se chamar PST - não o PST de hoje, e finalmente PSTU. Lançamos o movimento pela convergência socialista, que era um movimento pela criação de um terceiro partido socialista. Nós vivíamos na clandestinidade e era para legalizar o PST. 

O movimento chamava todos socialistas pela convergência. E, conseguimos o que queríamos; legalizar nosso partido. E a campanha para Deputado teve um cara chamado Jau que se candidatou a Deputado Estadual. Resolvemos apoiá-lo desde que ele levasse para frente o nosso programa (liberdade, anistia, por um partido socialista dos trabalhadores) e ele concordou. Para Deputado Federal foi o Benedito Marcílio, na época, presidente do sindicato dos metalúrgicos de Santo André. Lula era o presidente de São Bernardo. Os dois não se bicavam. O Marcílio era um cara comprovadamente oportunista, que depois que se elegeu, foi para o PTB. Mas ele era um cara de expressão. Ele não admitia colocar o socialismo. Ele dizia: « PT eu coloco, mas PST não » no programa dele. 

A gente estava crescendo muito e aí um cara da Argentina que morava na França, veio ao Brasil. Parece que tinha gente infiltrada no partido, pois a polícia acabou sabendo da vinda dele pra cá. Ele acabou sendo preso juntamente com todo o comitê central, menos um. Eu não era do comitê central, nunca quis participar. Aí ficou só um cara e eu era o dirigente intermediário. Peguei este cara (ele era um repórter da Folha de SP) e o levei para um acampamento evangélico, a Palavra da Vida, e o deixei lá, isolado. Naquela época, as prisões já não eram tão torturada e tínhamos comunicação boa. 

O comitê central me designou para ser o assessor de Benedito, porque o dele tinha sido preso. Ele continuava com a mesma idéia de PT sim, PST não. Precisávamos de apoio para propaganda, aí eu cheguei para ele e disse para ele pôr PT mesmo. Foi a primeira vez que saiu o PT em qualquer coisa no mundo da política. Por isso eu brinco dizendo que quem lançou o PT fui eu. Mas eu levei a maior reclamação do pessoal do comitê. Eles diziam: « capitulou as expressões pequeno-burguesas do oportunista. Mas está claro que foi a convergência socialista quem levantou a bandeira do PT, e o Lula sabe disto. Certa vez, fui conversar com ele a respeito do partido e ele me falou que este negócio de partido, isto era negócio para estudantes, o negocio dele era o sindicato. Ele não era do PT, ele entrou depois. Ele sabe desta história de que quem lançou o PT foi o inimigo dele; Benedito Marcílio. "Por isso eu brinco dizendo que quem lançou o PT fui eu ».

Portal: Já agora, na década de 90, você participou do Governo Arraes (Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco)?

Pavão: Aquilo foi o seguinte: quando Arraes ganhou as eleições, o Sérgio Rezende esteve aqui, nesta sala, pedindo que eu ajudasse em uma comissão para analisar a CPRH, que eu poderia ajudar na parte química. Eu falei que não tinha votado no Arraes e sim no PSTU e ele falou que eu poderia ajudar. Ajudei. Fiz o meu trabalho e ele me convidou para ser diretor de controle de poluição da CPRH. Não aceitei. Aí ele me chamou para o Espaço Ciência e então, já que eu estava trabalhando com divulgação científica, me interessei pela proposta. E fiquei pelos quarto anos do governo. Depois na outra eleição, acabei votando no Arraes, mas ele perdeu a eleição. Me preparei para sair do cargo, já que é de confiança, e o Cláudio Marinho me convidou para continuar. Não me grilei em ficar porque exerço cargo de educador. Do ponto de vista político, não sou filiado a ninguém. 

Portal: E hoje, como você vê sua filha também no lado político?

Pavão: Estamos vivendo em um momento histórico de um processo. Hoje o socialismo está em baixa, vamos dizer entre aspas, nunca esteve tão próximo o socialismo, tão necessário como o período que estamos vivendo. Mas desde que Stalin assumiu o poder em 1924 na URSS é que se instalou uma contra revolução de destruir as conquistas dos trabalhadores, conquistas históricas. Hoje existe muita gente diz que o socialismo não tem essas coisas, o socialismo, na verdade, nunca se implantou. O que existiu foi o stalinismo, um estado operário burocratizado. Hoje, como toda contra propaganda, existe a sociedade que fica sem perspectiva. Porque no meu tempo, nós tínhamos uma perspectiva muito clara que era a luta pelo socialismo. Todos lutavam com este objetivo. 

Hoje, qual é a grande referência para a sociedade? Não é mais o socialismo no ponto de vista do discurso, mas de necessidade histórica, sem dúvidas. Eu acho que a sociedade, que a juventude amadurece, cada vez mais o inevitável. Como dizia Lênin, só há duas alternativas: Ou o socialismo, ou a barbárie. A barbárie está muito próxima, estamos vivendo no limite da barbárie ou já na própria. Mas é o socialismo que nos dá resposta a solução dos problemas da sociedade. Segundo o próprio Lênin descreveu, é o esquerdismo, é a doença infantil do comunismo. O socialismo não vai ser incorporado do dia pra noite, assim como o capitalismo também não foi. Vamos ter o nosso momento. O socialismo, na verdade, nunca se implantou. O que existiu foi o stalinismo, um estado operário burocratizado.

Portal: Em toda a entrevista, você fala de política aliada a ciência. Como foi a influência dos professores Paulo e Eduardo?

Pavão: Eu sempre defendi o socialismo científico. Para entender a fundo a estrutura socialista, tem-se que conhecer a ciência, a tecnologia. Uma coisa é casada coma outra. Jamais poderá falar no avanço social, sem deter o conhecimento da ciência e a tecnologia. Por isso quando militava e dirigia células, a primeira parte da reunião era saber a respeito das notas dos militantes, porque o cara que tivesse mal, iria estudar novamente e voltar. Como é que pode você estudante falar para os seus colegas que isso ou aquilo é melhor se você é um mal aluno? Você perde toda a credibilidade. Eu acho fundamental. Eu falo para minhas filhas que querem militar; elas têm de fazer a tarefa de casa e bem feito. Você, por exemplo, vejo que se dá bem em alguns campos de atividades, mas também dá conta do recado, né? Eu nem daria muita satisfação a você se soubesse que você é como um monte de estudantes que vejo, por aqui mesmo na universidade, que não quer estabilidade profissional. Vejo alunos na política, mas desmoralizados entre os colegas. Muita gente me influenciou. Tanto em São Paulo como aqui. Além do Paulo Duarte, Ricardo Ferreira... 

Portal: O Espaço Ciência, como anda?

Pavão: Veja só, o negócio é dá murro em ponta de faca e falar assim, não é o governo Arraes ou o governo Jarbas... Essas coisas de governo eu não quero. Ora, quantos trabalhos nós fazemos nessa vida que são trabalhos revolucionários? Você tem de aproveitar as brechas que aparecem na sociedade, então eu acho que muita gente conhece o trabalho que agente faz no Espaço Ciência. É um trabalho que hoje, estou convencido, que a revolução precisa. Precisa é de educação, ciência e tecnologia. Então o trabalho que agente desenvolve no ponto de vista político tem esta conotação. Quem deter o poder é quem deter conhecimento e o Espaço Ciência contribui para difundir esse conhecimento. Hoje estamos com cerca de 50 mil pessoas por ano nos visitando, isso nos coloca como o terceiro maior museu do Brasil e agora estamos conseguindo uma verba para expandir o Espaço Ciência.

Portal: Além de químico, você mexe com astronomia, como é aquele negócio de jaqueira?

Pavão: Risos. Isso foi uma história... Estava eu e Sérgio Mascarenhas, a biblioteca daqui (Biblioteca do Centro de Ciências Exatas e da Natureza da UFPE) tem o seu nome por ele ter contribuído para o desenvolvimento do departamento de Química. E o Sérgio foi lá em casa, fomos jantar e ele viu aquela jaqueira carrega e ele me perguntou se eu não tinha medo de cair uma jaca na minha cabeça, eu falei que ficava torcendo para isto acontecer. Imagine o tamanho da teoria que eu iria fazer?... Se o Newton fez com uma maçã ...
Risos...

Portal: Para finalizar, o que você acha sobre os novos rumos da química?

Pavão: Ela caminha para o que chamamos de ciência central. Nós, hoje, estamos iniciando uma dinâmica que agente está revertendo aquela fragmentação do conhecimento que se iniciou no século XVI, XVII, XVIII, XIX de diversas áreas. Então como a química está se tornando uma ciência central, ela está englobando várias áreas como a biologia, por exemplo. A química caminha para a ciência central. O que falta é uma teoria unificada, compatível ao papel da ciência. Que sirva para explicar os fenômenos. Eu tenho minha teoria; acho que já existe essa teoria que é da ressonância. Tenho trabalhado nesta diversão!


FONDO CONVERGÈNCIA SOCIALISTA DE CATALUNYA (CSC). 

Documentación de su constitución, en julio de 1974, hasta el año 1976. Tras la celebración del I Congreso Regional, los esfuerzos de la F.S.M. se centraron en la consecución de la unidad socialista. Los primeros contactos se realizaron con Convergencia Socialista de Madrid, integrada en la Federación de Partidos Socialistas. El día 15 de mayo de 1977 se celebró un Congreso de Unificación en el que ambas formaciones políticas quedaron formalmente unificadas.

El Partido Socialista Obrero Español (PSOE) es el que va a recoger el masivo voto de izquierdas. Tras la muerte de Franco consigue dar una imagen de juventud, de dinamismo, de capacidad de organización, de aceptación internacional, que hace que la mayoría de la población acabe identificándolo con la oposición al régimen. Del 5 al 7 de diciembre de 1976, antes de la legalización, el PSOE organiza su primer congreso tras la muerte del dictador, el primero en España tras 32 años, el XXVII Congreso del partido, reuniendo en Madrid a personajes de la talla de Willy Brandt, presidente de la Internacional Socialista, Olof Palme, Primer Ministro de Suecia, Bruno Kreisky, Primer Ministro de Austria, Anker Joergeson, Primer Ministro de Dinamarca, el aplaudidísimo líder socialista chileno Carlos Altamirano, el italiano Pietro Nenni. Todos ellos han llegado para legitimar como secretario general de los socialistas españoles a Felipe González, que encabeza el partido junto a Alfonso Guerra desde el anterior Congreso de Suresnes, en el que la vieja guardia de Ramón Llopis les ha cedido el paso, no sin algún trauma.

La retórica utilizada en el 27º Congreso es extraordinaria: 

Altamirano propone unir los esfuerzos de comunistas y socialistas para construir un bloque anticapitalista de clase, se usan positivamente palabras como marxismo y República, se rechaza cualquier posible acomodo con el capitalismo, se renueva la voluntad de mantener una escuela pública única, se propone administrar la justicia mediante tribunales populares elegidos por los ciudadanos, se quiere implantar en España un modelo nuevo no implantado en ningún país. 

Todo esto euforiza a los militantes, mientras que, de cara al electorado, el lenguaje es extremadamente más moderado y consigue concentrar votos. Además, el PSOE logra reunir bajo sus siglas a Convergencia Socialista, de procedencia católica, y a otras agrupaciones socialistas, como por ejemplo a los catalanes del PSC, que durante el franquismo han llevado una vida prácticamente autónoma. Felipe González no conecta en cambio con el Partido Socialista Popular (PSP) de Enrique Tierno Galván, teóricamente más radical, pero que atrae en la práctica un voto más intelectual, diríamos que azañista, y obtiene 6 escaños en las elecciones.

La simpatía y el carisma de Felipe González junto al populismo de Alfonso Guerra, son en buena parte los responsables de que el PSOE pase del 10% que le vaticinan las encuestas antes de la campaña electoral al 29% (118 escaños) que consigue el 15 de junio.


O PST argentino, liderado por Nahuel Moreno, organizou a formação da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT), uma dissidência da IV Internacional -- Secretariado Unificado, em 1981, em Bogotá. Após a morte de Moreno, em 26 de janeiro de 1987, a LIT viveu sua crise no final dos anos 80 e início da década de 1990. O momento maior da crise foi o fracionamento do Movimento ao Socialismo, que substituira o antigo PST.

A tradição do trotskismo está representada em nosso país por diversas organizações que foram a continuidade uma da outra, mas ao mesmo tempo representaram diferentes fases da sua trajetória: a Liga Operária (1974-1978); o PST de curta vida (meses de 1978) e finalmente a Convergência Socialista (1978 – 1994).


FONTES DE ESQUERDA ONDE O PT BEBEU

O DNA político do Partido dos Trabalhadores formou-se quando o Muro de Berlim era símbolo da divisão ideológica do mundo e as organizações de esquerda seguiam à risca a cartilha marxista. Nas veias do partido criado em 1980, corriam o radicalismo latente de seus métodos de ação, a proposta de ruptura total com o capitalismo e o sonho da hegemonia política dos operários – características herdadas das fontes onde seus fundadores haviam bebido. A base foi assentada sobre o sindicalismo metalúrgico do ABC e sua irresistível capacidade de mobilização. Fora das fábricas, a força vinha das Comunidades Eclesiais de Base, ligadas à Igreja Católica. Umbilicalmente ligadas aos movimentos comunitários e atuantes no meio rural, as CEBs carregaram para dentro do PT uma organização espalhada por todos os cantos do País. O terceiro pé do tripé eram as organizações de esquerda. 

Naquele momento, militantes dessas correntes estavam sendo libertados ou voltavam para o País depois de longos exílios no exterior. Desembarcavam como “órfãos políticos”, nas palavras do historiador Jacob Gorender. Duramente reprimidas durante os anos de chumbo da ditadura militar, as organizações que os abrigavam haviam se reduzido a pequenos grupos clandestinos com atuação concentrada no movimento estudantil. Eram trotskistas, como O Trabalho e Convergência Socialista. Ou leninistas, a exemplo do Movimento de Emancipação do Proletariado e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Ou até maoístas como a Ala Vermelha. O PT oferecia para eles uma numerosa base operária e popular – que até então existia mais nos discursos desses grupos do que em seus quadros de filiados. Em contrapartida, entregaram ao PT conceitos políticos e métodos de organização partidária – antigas carências dos sindicatos e das CEBs.

O PT nasceu assim e assim ficou nos anos seguintes. Se a prática era inovadora, o ideário baseava-se em Trotsky e Stalin. Sua pregação consistia em “mobilizar o operariado explorado” para que, unido ao “campesinato excluído pelos grandes latifundiários”, criasse uma sociedade livre dos “vícios pequeno-burgueses”. Nela o poder “emanaria da ditadura do proletariado”, permitindo assim a “socialização dos meios de produção”, a “reforma agrária radical” e o “fim da propriedade privada.” Hoje esse emaranhado de jargões parece tão anacrônico quanto o Muro de Berlim. Mas durante anos essa marca colou como tatuagem na imagem do PT e transformou-se em um fardo eleitoral para o partido. 

Duas eleições presidenciais perdidas levaram seus dirigentes a suavizar as feições partidárias. Em 1995, a ala mais moderada, reunida em um grupo batizado de Articulação, abriu os cotovelos e empurrou para as margens do universo petista as tendências mais radicais. Não foi uma guinada fácil. As camisas-de-força impostas a essas correntes provocaram rachaduras que não cicatrizaram. 

A Convergência Socialista, por exemplo, abandonou o PT e criou o Partido Socialista dos Trabalhadores Unidos, o PSTU. O mesmo caminho foi seguido pela Causa Operária, e assim nasceu o Partido da Causa Operária (PCO). Outras se adaptaram às novas diretrizes. O Partido Comunista Revolucionário (PCR) dissolveu-se e permaneceu nos quadros petistas. Não fosse assim, seu mais famoso militante, José Genoino, talvez não fosse o candidato ao governo de São Paulo.

Mais silenciosos hoje, esses grupos fundiram-se, mudaram de nome, mas conservam os princípios ideológicos. Mantêm participação ativa, embora o controle esteja nas mãos do Campo Majoritário, sucessor da Articulação. A convivência de grupos cada vez mais estranhos entre si pode ser atribuída a Lula e José Dirceu. Foram eles, desde sempre, os costureiros dessa grande colcha de retalhos. Com o passar dos anos, ajudaram a transformar o PT em tecido resistente, aparentemente sem fissuras e com pespontos invisíveis aos olhos menos acostumados à política. Lula tem sido o nome aceito por todas as tendências. 

O ecletismo do PT é encontrado em outros partidos. Só que em seu caso isso é exposto publicamente. Até mesmo na criação de seu símbolo, a famosa estrela vermelha, a pluralidade foi registrada. Era uma noite quente de 1980 e um grupo de sindicalistas estava reunido em um boteco em São Bernardo. A conversa era regada a cerveja e rabo-de-galo, mistura de cachaça e cinzano. Um dos presentes, o jornalista Júlio de Gramont, rabiscava um guardanapo e mostrou para Lula: o desenho de uma estrela de cinco pontas. “Esse é o símbolo do PT”, teria dito. “As pontas representam a pluralidade.” Nas eleições de domingo 27, a estrela incorporou-se de vez à constelação política do País – algo que parecia impossível nos sonhos daquela noite de verão de 1980, mesmo sendo embalados por goles de cerveja e rabo-de-galo. Para muitos, essa história é lenda, mas quem se importa com isso?

Revista IstoÉ, Quarta-feira, 30 de Outubro de 2002
www.terra.com.br/istoedinheiro/270/economia/270_lula_fontes_esquerda


mardi 25 octobre 2016

lundi 24 octobre 2016

Pede-se ser levantado

A existência a partir da tradução

Ou, “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”.

Prof. Dr. Jorge Pinheiro

O fazer da existência vale a pena. A eternidade aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torá, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser. E a partir de Qoh vamos a Paulo de Tarso.

Pede-se ser levantado

“Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”.[1]

Fuks conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”.[2]

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta de Paulo aos Coríntios. 

“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”. 

A frase acima, e a continuação do texto, é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário. 

Platão, em Fédon[3], num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria. 

E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?” 

Paulo conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.

“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”. 

Outras fontes de Paulo foram o profeta Daniel e outras literaturas intertestamentárias, que trabalharam com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Chifflot e De Vaux[4] situam o livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Chifflot e De Vaux, já citados. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de “vaticinia ex eventu”, dado que o texto é contemporâneo aos acontecimentos descritos. Esses capítulos expressam a reação contra a helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de pensamento afetado pela civilização helênica.

A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da “abominação desoladora”. 

Durante o período helênico idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatolõgica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase.

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulo, porém, somará um componente existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”. 

É interessante que Paulo em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”. Tudo indica que Paulo gostava de teatro e de comédias.

Que Paulo recorreu à tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulo. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulo trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulo está preocupado com o corpo, com a vida.

“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psiquê, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psiquê , também há corpo espiritual”. 

Para Paulo, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”. 

O pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psiquê, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal. 

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”. [Ver texto na Vulgata].

Caso voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulo traduziu para as novas gerações o desejo judaico-helênico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.


Vulgata -- 1Coríntios 15

[50] Hoc autem dico, fratres: quia caro et sanguis regnum Dei possidere non possunt: neque corruptio incorruptelam possidebit. [51] Ecce mysterium vobis dico: omnes quidem resurgemus, sed non omnes immutabimur. [52] In momento, in ictu oculi, in novissima tuba: canet enim tuba, et mortui resurgent incorrupti: et nos immutabimur. [53] Oportet enim corruptibile hoc induere incorruptionem: et mortale hoc induere immortalitatem. [54] Cum autem mortale hoc induerit immortalitatem, tunc fiet sermo, qui scriptus est: Absorpta est mors in victoria. [55] Ubi est mors victoria tua? ubi est mors stimulus tuus? [56] Stimulus autem mortis peccatum est: virtus vero peccati lex. [57] Deo autem gratias, qui dedit nobis victoriam per Dominum nostrum Jesum Christum. [58] Itaque fratres mei dilecti, stabiles estote, et immobiles: abundantes in opere Domini semper, scientes quod labor vester non est inanis in Domino.

Bibliografia recomendada

Andrés Torres Queiruga, Repensar a ressurreição, São Paulo, Paulinas 2010.
Jonas Machado, Morte e ressurreição de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2009.
Marko Ivan Rupnik, Ainda que Tenha Morrido, Viverá/ Ensaio Sobre a Ressurreição dos Corpos, São Paulo, Paulinas, 2010. 

Notas

[1] Menandro, O Misantropo. Site: Oficina de teatro. WEB: www.oficinadeteatro.com 
[2] Betty Fuks, Freud e a Judeidade, a vocação do exílio, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 127-133. 
[3] Platão, Fédon, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1987. 
[4] Th.-G Chifflot e R. De Vaux, La Sainte Bible, Les Editions Du Cerf, Paris, 1973. Tradução: A Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985, p. 1347.



vendredi 21 octobre 2016

A política no reinar de Cristo

Jorge Pinheiro

Neste tempo de golpes e prisões, o país corre o risco de ser envolvido numa maré emocional, que leva aos extremos e ao ódio. Mas, política não deve ser feita assim. A administração, direção e organização de comunidades não se faz com as emoções à flor da pele, não é pensando em vendeta, não é odiando o adversário do momento, transformado em inimigo que deve ser varrido da face da terra, que se deve fazer política, que se pode falar em atividade de pessoas cidadãs. Essa leitura de ódio não constrói um país, mas divide e impossibilita o abraço solidário de um povo.

Quando a política é feita desta forma: com violência de ações e palavras, com vontade de destruir e matar, o irmão se distância do irmão e perdemos o sentido de nação e povo. Mas nós que temos a mente de Cristo devemos chamar a um jeito outro de fazer política, entendendo que o reino de César não deve estar acima do reinar de Cristo.

E esta política que constrói, que não mata, que não odeia, que possibilita ações diretas ou indiretas de governo, nasce fácil nos corações e dirige nosso fazer e nossas mentes quando o reinar de Cristo está presente nas vidas.

Dentro da unidade universal do reinar de Cristo encontra-se o princípio protestante enquanto evento fundante do cristianismo. É o princípio protestante que retira da imagem humana de Jesus tudo que nela poderia ser materializado como idolatria, por sua facticidade histórica. É por meio do símbolo da cruz que desaparecem as particularidades e o finito do evento Jesus, dando lugar ao significado presente do Cristo. 

O paradoxo do aparecimento do Cristo na existência sem a deformação da existência é uma interpretação radical do símbolo da cruz que salva nossa adoração do homem Jesus do significado da idolatria de se permanecer na adoração de um objeto histórico e por isso limitado, finito, enclausurado num espaço e tempo passados. O princípio protestante, lido sob tal perspectiva, apresenta a cruz como presente e fim, como revelação e eschaton que remetem ao kairós.

Mas, o protestantismo não abandona a unidade universal da substância, que mantém e possibilita o resgate do sentido do Eterno nas profundezas do humano. Na aridez do “deo dixit”, da palavra que se resume na ética do texto, as profundezas da interioridade humana podem ser esquecidas e perder seu vigor teológico. Por isso, a relevância do kerigma cristão deve andar em aliança com o reconhecimento da presença daquele que é Eterno, mas se expressa na cultura e nas dobraduras da secularidade. É a partir dessa compreensão que devemos entender o fazer política no reinar de César.

O conceito de política solidária pode então ser visto como definição de um processo de essencialização, já que o significado da vida, existencial e pessoal passa a consistir na expansão, nas culturas e vidas, da presença essencial do Eterno. A política solidária é latente antes do encontro com a presença central e fundante do Cristo, mas torna-se manifesta depois desse encontro. E é esse processo de essencialização da cultura e da vida, onde Cristo é centro e fundamento do fazer e pensar a política, que possibilita a política como fruto do ágape solidário que aponta para o kairós de Cristo. Fazer política, a partir desse processo de essencialização da cultura e da vida, é a via para a construção de uma sociedade solidária – plena de alegria, justiça e paz.