lundi 28 novembre 2016

O socialismo e as Igrejas, Rosa Luxemburg

O Socialismo e as Igrejas

Rosa Luxemburg

1905


1ª Edição: folheto publicado pelo Partido Social Democrata Polaco, em 1905. Uma edição russa apareceu em 1920. A edição francesa foi publicada pelo Partido Socialista Francês em 1937. A primeira edição inglesa foi publicada pela Socialist Review, de Birmingham.
Fonte da Presente Tradução: Socialism and the churches, Luxemburg Internet Archive (marxists.org), 2003.
Tradução de: Alexandre Linares.
HTML  por José Braz para The Marxists Internet Archive.
Direito de Reprodução: Luxemburg Internet Archive (marxists.org), 2002. A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License.

I

Desde o momento em que os trabalhadores do nosso país e da Rússia começaram a lutar corajosamente contra o governo czarista e contra os exploradores capitalistas, notamos cada vez com mais freqüência que os padres, nos seus sermões, se lançam contra os trabalhadores que lutam. É com extraordinário vigor que o clero combate os socialistas e tenta, por todos os meios, minimizá-los aos olhos dos trabalhadores. Os crentes que vão à igreja, nos domingos e dias festivos, são compelidos, cada vez com mais freqüência, a ouvirem um violento discurso político, uma verdadeira denúncia do Socialismo, em vez de ouvirem um sermão e nele obterem uma consolação religiosa. em vez de confortarem as pessoas que estão cheios de preocupações, e cansadas pela vida difícil, e que vão à igreja com fé no Cristianismo, os padres fulminam os trabalhadores que estão em greve e os opositores do Governo; e ainda mais, exortam-nos a suportar a pobreza e a opressão com humildade e paciência. Transformaram a igreja e o púlpito num lugar de propaganda política.
Os trabalhadores podem convencer-se facilmente que a luta do clero contra os sociais democratas(*) não é de modo algum provocada por estes. Os sociais democratas propõem-se, como objetivo, unirem-se e organizarem os trabalhadores na luta contra o capital, isto é, contra os exploradores que lhes sugam a última gota de sangue, e na luta contra o governo czarista que impede a libertação do povo. Mas nunca s sociais democratas conduzem os trabalhadores a lutar contra o clero ou tentar interferir com as crenças religiosas; de modo nenhum! Os sociais democratas, de todo o mundo e do nosso próprio país, consideram a consciência e as opiniões pessoais como sendo sagradas.
Todo homem pode ter aquela fé e aquelas opiniões que lhe pareçam capazes de assegurar a felicidade. Ninguém tem o direito de perseguir ou atacar a opinião religiosa particular dos outros. Isto é o que os socialistas pensam. E é por esta razão, entre outras, que os socialistas animam todo o povo a lutar contra o regime czarista, que está continuamente a violentar a consciência das pessoas, perseguindo católicos, católicos russos [1] , judeus, heréticos e livres pensadores. São precisamente os sociais democratas que aparecem mais fortemente em defesa da liberdade de consciência. Portanto, pareceria que o clero tinha obrigação de dar a sua ajuda aos sociais democratas que estão a tentar aliviar o povo oprimido. Se entendermos devidamente os ensinamentos que os socialistas trazem à classe trabalhadora, o ódio do clero contra eles torna-se ainda menos compreensível.
Os sociais democratas propõem-se por fim à exploração do povo pelos ricos. Pensar-se-ia que os servidores da igreja deveriam ter sido os primeiros a desempenhar-se desta tarefa, mais do que os sociais democratas. Não é Jesus Cristo (de quem os padres são servidores) quem ensina que “é mais fácil um camelo passar pelo furo de uma agulha que um rico entrar no Reino dos Céus”? [2] Os sociais democratas tentam trazer a todos os países regimes sociais baseado na igualdade, liberdade e fraternidade de todos os cidadãos. Se o clero realmente deseja que o princípio “Ama o teu próximo como a ti mesmo”seja aplicado na vida real, por que é que não recebe bem e com entusiasmo a propaganda dos sociais democratas? Os sociais democratas tentam, através de uma luta desesperada e da educação e organização do povo, subtraí-lo à opressão em que se encontra e oferecer-lhe um melhor futuro para os filhos. Todos devem admitir que, neste ponto, o clero deveria abençoar os sociais democratas, pois não é ao clero que eles servem, e sim a Jesus Cristo, que diz que “o que fizeres aos pobres é a mim que o fazeis”? [3]
Contudo vemos o clero, por um lado, excomungado e perseguindo os sociais democratas e, por outro, mandando os trabalhadores sofrer com paciência, isto é, deixando-os pacientemente ser explorados pelos capitalistas. O clero atira-se violentamente contra os socialistas democratas, exorta os trabalhadores a não se revoltarem contra os dominadores, mas a submeter-se à opressão deste governo que mata o povo indefeso, que manda para a monstruosa carnificina da guerra milhões de trabalhadores, que persegue católicos. Católicos russos e “velhos crentes” [4] . Assim, o clero, que se torna o porta-voz dos ricos, o defensor da exploração e opressão, põe-se a si próprio em flagrante contradição com a doutrina cristã. Os bispos e os padres não são os propagadores dos ensinamentos cristãos, mas os adoradores do Bezerro de Ouro [5] e do chicote que açoita os pobres e indefesos.
Além disso, todos sabem que os próprios padres tinham proveito do trabalhador,extraem-lhe dinheiro por ocasião do batismo, casamento e funeral. Quantas vezes têm acontecido que o padre, chamado à cabeceira da cama de um doente para administrar os últimos sacramentos, se recusou a ir lá antes de serem pagos os seus “honorários”? O trabalhador vai, desesperado, vender ou hipotecar os seus últimos bens para ser capaz de dar uma consolação ao seu parente.
É verdade que encontramos sacerdotes de outra espécie. Existem alguns que estão cheios de bondade e misericórdia e que não procuram lucros; estes estão sempre prontos a ajudar os pobres. Mas devemos admitir que são, sem dúvida, raros e que podem ser olhados da mesma maneira que graúnas brancas. A maior parte dos padres, de faces rosadas, curvam-se e saúdam cortesmente os ricos e poderosos, perdoando-lhe silenciosamente toda depravação a e toda a iniqüidade. Para com os trabalhadores, o clero comporta-se de maneira bem diferente: pensa apenas em espezinha-los sem piedade; em sermões ríspidos condenam a “cobiça” dos trabalhadores quando estes nada mais fazem do que defender-se contra os erros do capitalismo. A espantosa contradição entre as ações do clero e os ensinamentos do cristianismo deve levar-nos todos a refletir. Os trabalhadores espantam-se de como na luta da sua classe pela emancipação vão encontrar nos servidores as Igreja inimigos e não aliados. Como é que a Igreja desempenha o papel de defesa da opressão rica e sangrenta, em vez de ser o refúgio dos explorados? Para entender esse fenômeno estranho, basta lançar os olhos sobre a história da igreja e examinar a evolução pela qual ela passou ao longo dos séculos.

II

Os sociais democratas desejam pôr em execução o estado de “Comunismo”; é principalmente isso que o clero tem contra eles. Em primeiro lugar, é chocante notar que os padres de hoje, que combatem o comunismo, condenam, na realidade, os primeiros apóstolos cristãos. Estes não passaram, de fato, de ardentes comunistas.
A religião crista desenvolveu-se, como é bem conhecido, na Roma antiga, no período do declínio do império, que fora, antes, rico e poderoso, compreendendo os países que são hoje a Itália e a Espanha, parte da França, parte da Turquia, a Palestina e outros territórios. O estado de Roma, na época do nascimento de Jesus Cristo, parecia-se muito com o da Rússia czarista. Por um lado, ali vivia um punhado de gente rica, gozando da luxúria e todos os prazeres; por outro lado, uma enorme massa de pobres apodrecia na pobreza; sobretudo um governo despótico, assentado na violência e na corrupção, exercia uma vil opressão. Todo o império Romano foi mergulhado em completa desordem e cercado por ameaçadores inimigos externos: a soldadesca desenfreada, no poder, praticava as suas crueldades sobre a população desgraçada; a província estava deserta, a terra jazia abandonada, as cidades, especialmente Roma, a capital, estava cheia de uma pobreza chocante que erguia os olhos carregados de ódio para os palácios dos ricos; o povo estava sem pão, sem abrigo, sem vestuário, sem esperança e sem possibilidades de sair de sua pobreza.
Há apenas uma diferença entre Roma na sua decadência e o império dos czares; Roma nada sabia de capitalismo; não existia ali a indústria pesada. Naquele tempo, a escravatura era a ordem de coisas estabelecidas em Roma. As famílias nobres, os ricos, os financeiros satisfaziam todas as suas necessidades pondo a trabalhar os escravos aprisionados nas guerras. Com o andar dos tempos, estas pessoas ricas tinham deitado a mão a quase todas as províncias da Itália, espoliando da terra os camponeses. Como se apropriavam de cereais em todas as províncias conquistadas, como tributo sem custo, davam-se ao luxo de abandonar, nos seus próprios estados, plantações magníficas, vinhas, pastagens, pomares e ricos jardins, cultivados por exércitos de escravos a trabalhar debaixo de chicote do capataz. Assim se havia formado em Roma um exército numerosos dos que nada possuíam – o proletariado [6] -, não tendo mesmo a possibilidade de vender a força do seu trabalho. Este proletariado, vindo do campo, não podia, ser absorvido pelas empresas industriais como acontece hoje; tornaram-se vítimas da pobreza desesperada e foram reduzidos à mendicidade. Esta numerosa massa popular, morrendo de fome, sem trabalho, enchendo os subúrbios e os espaços livres e as ruas de Roma, constituía um perigo permanente para o governo e para as classes possuidoras. Portanto, o governo sentiu-se compelido, no seu próprio interesse, a aliviar a pobreza. De tempos em tempo, distribuía ao proletariado o cereal e outros gêneros alimentícios armazenados nos celeiros do Estado. Mais, para fazer o povo esquecer as suas amarguras, oferecia-lhe espetáculos gratuitos de circo. Ao contrário do proletariado do nosso tempo, que mantém toda a sociedade pelos seus trabalhos, o enorme proletariado de Roma existia pela caridade.
Eram os escravos miseráveis, tratados como bestas, quem trabalhava para a sociedade romana. Neste caos de pobreza e degradação, um punhado de magnatas romanos passava seu tempo em orgias e devassidão. Não havia possibilidade de sair destas monstruosas condições sociais. O proletariado queixava-se e ameaçava, de vez em quando revoltou-se, mas uma classe de mendigos, vivendo das migalhas caídas da mesa dos senhores, não podia estabelecer uma nova ordem social. Além disso, os escravos que mantinham com o seu trabalho toda a sociedade, estavam muito espezinhados, bastante dispersos, demasiado esmagados pelo jugos, tratados como bestas e viviam bastante isolados das outras classes para serem capazes de transformar a sociedade. Revoltaram-se muitas vezes contra os seus patrões, tentaram libertar-se em batalhas sangrentas, mas o exercito romano esmagou sempre estas revoltas, esmagando os escravos aos milhares e condenando-os à morte na cruz.
Nesta sociedade a desmoronar-se, onde não existe saída desta trágica situaçao para o povo, nem esperança alguma de uma vida melhor, os desgraçados voltam-se para o Céu procurando nele a salvação.a religião crista aparecia a estes infelizes seres como um cintode salvação, uma consolação e um encorajamento e tornou-se, logo desde o princípio, a religião dos proletários romanos. Em conformidade com a posição material dos homens pertencentes a esta classe, os primeiro cristãos fizeram a proposta da propriedade em comum – o comunismo. O que é que poderia ser mais natural? As pessoas careciam dos meios de subsistência e estavam a morrer de pobreza. Uma religião que defendia o povo pedia que os ricos partilhassem com os pobres as riquezas que devem pertencer a todos e não a um punhado de pessoas privilegiadas; uma religião que pregava a igualdade de todos os homens teria grande sucesso. Contudo, isto nada tem em comum com as propostas atuais dos sociais democratas, com vista a transformação em propriedade comum dos instrumentos de trabalho, dos meios de produção, para que toda a humanidade possa trabalhar e viver em unidade harmoniosa.
Vimos que os proletários romanos não vivam do trabalho, mas das esmolas que o governo distribuía. Assim, a exigência, pelos cristãos, da coletivização da propriedade, não diz respeito aos meios de produção, mas aos bens de consumo. Eles não pediam que a terra, as oficinas e os instrumentos de trabalho se tornassem propriedade coletiva, mas apenas que tudo deveria ser repartido entre eles, casas, roupas, alimentos e os produtos acabados mais necessários à vida. Os comunistas cristãos não se preocuparam nada em inquirir acerca da origem destas riquezas. O trabalho de produção recaiu sempre sobre os escravos. O povo cristão desejava apenas que os que possuíam a riqueza abraçassem a religião crista e fizessem das suas riquezas propriedade comum, para que todos pudessem gozar destas coisas boas em igualdade e fraternidade.
Foi, na verdade, deste modo que as primeiras comunidades cristas se organizaram. Um contemporâneo escreveu: “Estas pessoas não acreditam em fortunas, mas pregam a propriedade coletiva e nenhuma de entre elas possui mais do que as outras. Quem desejar entrar na sua ordem é obrigado a pôr a sua fortuna como propriedade comum a essas mesmas pessoas. E pro isso que não há entre eles nem pobreza nem luxo – todos possuindo tudo em comum, como irmãos. Não vivem numa cidade à parte, mas em cada uma têm casas para eles próprios. Se quaisquer estrangeiros pertencentes à sua religião aparecem, repartem a propriedade com eles e podem beneficiar dela como se fosse propriamente sua. Essas pessoas, mesmo que desconhecidas anteriormente uma das outras, dão as boas vindas uns aos outros e as suas relações as muito amigáveis”.
Quando viajam não levam nada senão uma arma para se defender dos ladrões. Em cada cidade têm o seu próprio administrador, que distribui roupa e alimento aos viajantes. Negócio não existe entre eles. Contudo, se um dos membros oferece algum objeto de que ele precisa, recebe outros objetos em troca. Mas também cada um pode pedir o que precisa mesmo que não possa dar em troca”.
Lemos nos “Atos dos Apóstolos” (IV 34, 35) a seguinte descrição da primeira comunidade de Jerusalém: “Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. E a cada um era distribuído de acordo com a sua necessidade”.
Em 1780, o historiador alemão Vogel escreveu quase a mesma coisa a cerca dos primeiros cristãos: “De acordo com a regra, todo cristão tinha direito à propriedade de todos os membros da comunidade, caso quisesse, podia pedir que os membros mais ricos dividissem a sua fortuna com ele, de acordo com as suas necessidades. Todo o cristão podia fazer uso da propriedade dos seus irmãos. Assim, os cristãos que não tinham casa podiam exigir do que tinha duas ou três que os recebesse; o proprietário conservava para si próprio apenas a sua própria casa. Mas por causa da comunidade de gozo dos bens, tinha de dar-se habitação àquele que a não tinha”.
O dinheiro era colocado em caixa comum e um membro da sociedade. Especialmente escolhido para esse fim, dividia a fortuna coletiva entre todos. Mas sto não era tudo. Entre os primeiros cristãos o comunismo foi levado tão longe que eles tomavam as suas refeições em comum. A sua vida familiar era portanto abolida; todas as famílias cristas, numa sociedade, viviam juntas, como uma única grande família.
Para terminar acrescentamos que certos padres atacam os sociais democratas alegando que somos a favor da comunidade de mulheres. Obviamente que isto é uma grande mentira,proveniente da ignorância ou da irado clero. Os sociais democratas consideram isso como uma distorção vergonhosa e bestial do casamento. E contudo esta prática foi usual entre os primeiros cristãos [7] .
Deste modo, os cristãos do I e II século foram fervorosos adeptos do comunismo. Mas este comunismo era baseado no consumo de produtos acabados e não no trabalho, e mostrou-se incapaz de reformar a sociedade e de pôr fim à desigualdade entre os homens e de derrubar a barreira que separa ricos e pobres. Por isso, exatamente como antes, as riquezas criadas pelo trabalho – para toda a sociedade – era fornecido pelos escravos. O povo, desprovido de méis de subsistência, recebia apenas esmolas.
Enquanto uns poucos (em proporção com a massa do povo) possuírem exclusivamente para seu próprio uso todas as terras cultiváveis, florestas e pastagens, os animais do campo e as casa de lavoura, todas as oficinas, ferramentas e matérias de produção, não pode haver qualquer espécie de igualdade entre os homens. Em tais condições, a sociedade, evidentemente, encontra-se dividida em duas classes, os ricos e os pobres, os do luxo e os da pobreza. Suponhamos, por exemplo, que os ricos proprietários, influenciados pela doutrina crista, oferecessem para distribuir para o povo todas as riquezas que possuíam em forma de dinheiro, cereais, frutas, vestuário e animais. Qual seria o resultado? A pobreza desapareceria por algumas semanas e , durante este tempo, a população poderia alimentar-se e vestir-se. Mas os produtos acabados são rapidamente consumidos. Após um pequeno lapso de tempo, as pessoas, tendo consumido as riquezas distribuídas, teriam uma vez mais as mãos vazias. Os proprietários da terra e dos instrumentos de produção podiam produzir mais, graças ao poder laboral dos escravos, e assim nada se mudaria. Bem. Aqui está porque os sociais democratas consideram estas coisas de um modo diferente dos comunistas cristãos. Eles dizem: “Não queremos que os ricos repartam com os pobres: não queremos nem caridade nem esmolas; ambas as coisas são incapazes de impedir o retorno da desigualdade entre os homens. Não é de modo algum uma partilha entre ricos e pobres que nós desejamos, mas a completa supressão de ricos e pobres”. Isto é possível desde que as fontes de toda a riqueza, a terra, em comum com todos os outros meios de produção e instrumentos de trabalho, se tornem propriedade coletiva do povo trabalhador que irá produzir para si próprio, de acordo com as necessidades de cada um. Os primeiros cristãos acreditaram que podiam remediar a pobreza do proletariado por meio das riquezas oferecidas pelos possuidores. Isso seria deitar água numa peneira! O comunismo cristão foi não só incapaz de mudar ou melhorar a situação econômica, como não substituiu.
Ao principio, quando os seguidores do novo Salvador constituíam um pequeno grupo na sociedade romana, a divisão do pecúlio comum, as refeições em comum e o viver debaixo do mesmo teto, eram praticáveis. Mas quando o numero de cristãos se espalhou pelo território do Império, esta vida comunitária dos seus partidários tornou-se mais difícil. Em breve desapareceu o costume das refeições comuns e a divisão dos bens tomou um novo aspecto. Os cristãos não mais viveram como uma família; cada um tomou cuidado da sua própria propriedade e já não ofereciam o total dos seus bens à comunidade, mas apenas o supérfluo. As ofertas dos mais ricos de entre eles ao organismo geral, perdendo o seu caráter de participação numa vida comum, em breve se transformaram em simples “esmolas”, desde que os cristãos ricos deixaram de fazer caso da propriedade comum e passaram pôr ao serviço dos outros apenas uma parte do que tinham, parte que podia ser maior ou menor, condoante a boa vontade do doador. Assim, no coração do comunismo cristão, apareceu a diferença análoga à que reinava no Império Romano e contra a qual os primeiros cristãos tinham combatido. Em breve foram apenas os cristãos pobres – os proletários – que tomaram parte em refeições comuns; os ricos, tendo oferecido uma parte da sua abundancia, conservavam-se à parte. Os pobres viviam das esmolas atiradas pelos ricos e a sociedade tornou-se outra vez naquilo que tinha sido. Os cristãos não tinham mudado a vontade dos ricos.
Os padres da Igreja lutaram muito ainda, com palavras escaldantes, contra esta penetração da desigualdade social na comunidade crista, flagelando os ricos e exortando-os a voltarem ao comunismo dos primeiros Apóstolos.
S. Basílio, no Século IV depois de Cristo, pregou assim contra os ricos:
“Miseráveis, como vos ireis justificar diante do Juiz do Céu? Vós dizeis-me: “Qual é a nossa falta, quando guardamos o que nos pertence”? eu pergunto-vos: “Como é que arranjastes isso a que chamais de vossa propriedade? Como é que os possuidores se tornam ricos, senão tomando posse das coisas que pertence a todos? Se todos tomassem apenas o que estritamente necessitam, deixando o resto aos outros, não haveria nem ricos nem pobres”.
Foi S. João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla, (nascido em Antioquia em 347, falecido, no exílio, na Armênia, em 407) quem pregou mais ardentemente aos cristãos para regressarem ao primeiro comunismo dos Apóstolos. Este célebre pregador, na sua 11ª homilia sobre o Atos dos Apóstolos, disse: “E havia uma grande caridade entre eles ( os Apóstolos); ninguém era pobre entre eles. Ninguém considerava como seu o que lhe pertencia, todas as suas riquezas estavam em comum... uma caridade existia em todos eles. Esta caridade, consistia em que não havia pobre entre eles, de tal modo que os tinham bens apressavam-se a desprender-se deles. Não dividiam as suas fortunas em duas partes, dando uma e guardando a outra; davam o que tinham. Assim não havia desigualdade entre eles. Todos viviam em grande abundancia. Tudo se fazia com o maior respeito. O que davam não passava da mão do doador para a mão do que recebia; as suas dádivas eram sem ostentação; traziam os bens aos pés dos apóstolos que se tornavam os controladores e donos deles e que os usavam, daí para o futuro, como bens da comunidade e já não como propriedade de indivíduos. Por este meio cortaram a possibilidade de vã glória. Ah! Por que é que se terão perdido estas tradições? Ricos e pobres poderiam todos tirar proveito destes costumes piedosos e uns aos outros sentiríamos o mesmo prazer em nos conformarmos com eles. Os ricos não empobreceriam ao desprenderem-se das suas posses, e os pobres seriam esquecidos... Mas tentemos dar uma idéia exata do que se deveria fazer... Ora, suponhamos – e nem pobres nem ricos precisam se alarmar, pois eu estou apenas a supor – suponhamos que vendemos tudo o que nos pertence para pormos o produto da venda numa conta comum. Que somas de ouro se amontoariam! Não sei dizer com exatidão quanto isso iria dar; mas se todos entre nós, sem distinção de sexo, trouxéssemos os nossos tesouros, se vendêssemos os campos, as propriedades, as casas – não falo de escravos, pois não havia nenhum na comunidade cristã e os que houvesse tornavam-se livres – talvez, se todos fizessem o mesmo, creio que conseguiríamos centenas de milhar de libras de ouro, milhões, enormes valores.
“Bem. Quantas pessoas pensam que vivem nesta cidade? Quantos cristãos? Concordam em que haja uns cem mil? O resto será constituído por judeus e gentios. Quantos não conseguiríamos unir? Ora, se contássemos os pobres, quantos seriam? Cinqüenta mil necessitados, no máximo. O que seria necessário para os alimentar em cada dia? Julgo que a despesa não seria excessiva, se o fornecimento e o consumo da alimentação fossem organizados em comum. Dir-se-á ta;vez: “mas o que será de nós quando estes gêneros estiverem consumidos?” Mas o quê? Isso poderia acontecer? A graça de deus não seria mil vezes mais abundante? Não estaríamos nós a fazer um céu na terra? Se anteriormente esta comunidade de bens existiu entre três a cinco mil fiéis e teve tão bons resultados e baniu a pobreza entre eles por que não resultaria numa grande multidão como esta? E entre os próprios pagãos, quem não se apressaria a aumentar o tesouro em comum? E entre o tesouro comum? A riqueza que é possuída por várias pessoas é muito mais fácil e rapidamente gasta: a difusão da propriedade é a causa da pobreza. Tomemos como exemplo uma família composta de marido, esposa e dez filhos, a esposa ocupando-se em fiar a lã, o marido trazendo do seu trabalho fora de casa; digam-me em que gastaria mais esta família, se vivendo em comum ou vivendo separadamente. Obviamente, se estivessem separados. Dez casas, dez mesas, dez criados e dez subsídios especiais seriam necessários para crianças se vivessem separados. O que é que se faria se possuíssem muitos escravos? Não é verdade que para reduzir as despesas se iria aumentá-los numa mesa comum? A divisão é uma causa de empobrecimento; a concórdia e a unidade de vontades é uma causa de riquezas.
“Nos mosteiros, ainda se vive como na primitiva Igreja. E quem morre de fome ali? Quem é que ali não encontra o bastante para comer? Contudo os homens do nosso tempo temem viver dessa maneira mais do que temem cair no mar! Por que é que não tentamos? Temê-lo-íamos. Que grande ato seria esse! Se alguns fiéis, uns escassos oito mil, gostaram, na presença de todo o mundo, onde não tinham senão inimigos, de fazer uma corajosa tentativa de viver em comum, sem qualquer auxílio externo, quanto o melhor o podíamos os fazer hoje, agora que já cristãos em todo o mundo? Permaneceria um único gentio? Nenhum, creio eu. Nós atrai-los-íamos todos e ganhá-lo-íamos para nós” [8] .
Estes ardentes sermões de S. João Crisóstomo foram em vão. Os homens na não mais tentaram estabelecer o Comunismo nem em Constantinopla, nem em parte nenhuma. Ao mesmo tempo que o cristianismo se expandia e se tornava, em Roma, depois do século IV, a religião dominante, os fiéis distanciavam-se cada vez mais do exemplo dos primeiros Apóstolos. Mesmo dentro da própria comunidade cristã, a desigualdade de bens entre os fiéis cresceu.
De novo, no século VI, Gregório, O grande, disse “Não é, de modo algum, bastante não roubar a propriedade dos outros; é errado conservar para si próprio a riqueza que Deus criou para todos. Aquele que não dá aos outros o que possui é um assassino; quando guarda para seu próprio uso o que proveria os pobres, pode dizer-se que está a matar os que podiam ter vivido da sua abundância; quando repartimos com os que estão sofrendo, nós não damos o que nos pertence, mas o que lhes pertence. Isto não é um ato de misericórdia, mas o pagamento de uma dívida”.
Estes apelos foram infrutíferos. Mas a culpa não foi, de modo algum, dos cristãos desses dias, que na verdade correspondiam mais às palavras dos Padres da Igreja do que os cristãos de hoje. Não foi a primeira vez na história da humanidade que as condições econômicas se mostraram elas próprias mais fortes que belos discursos.
O Comunismo, esta comunidade de consumo de bens, que os primitivos cristãos proclamaram, não podia ser posta em prática sem o trabalho comum de toda a população, na terra, como propriedade comum, e também em oficinas comunais. No período dos primeiros cristãos, era impossível iniciar o trabalho comunal (com meios comunais de produção) porque, como nós já afirmamos., o trabalho baseava-se, não em homens livres, mas em escravos que viviam à margem da sociedade.
A Cristandade não tentou abolir a desigualdade entre o trabalho de diferentes homens nem entre a sua propriedade. Razão pela qual, o seu esforço para suprimir a distribuição desigual dos bens de consumo não vingou. As vozes dos Padres da igreja proclamando o Comunismo não encontraram eco. Além disso, estas vozes, em breve, tornaram-se cada vez menos freqüentes e, finalmente, caíram no silêncio completo. Os Padres da Igreja cessaram de pregar a comunidade e a distribuição dos bens, porque o crescimento da comunidade cristã produziu mudanças fundamentais dentro da própria Igreja.

III

No princípio, quando o número de cristão era pequeno, não existia clero no sentido próprio da palavra. Os fiéis, que formavam uma comunidade religiosa independente, uniam-se em comum, em cada cidade. Elegiam um membro responsável para dirigir o serviço de Deus e realizar as cerimônias religiosas. Todo cristão podia tornar-se bispo ou prelado estas funções eram coletivas, sujeitas a revogação, honorárias, e não comunicavam poder além do que a comunidade lhes conferia de livre vontade. [9] À medida que o número de fiéis crescia e as comunidades se tornavam mais numerosas e mais ricas, a gerência dos negócios da comunidade e o desempenho das tarefas tornou-se uma ocupação que exigia muito tempo e uma aplicação total. Como os que exerciam este ofício não podiam executar as suas tarefas e simultaneamente os seus empregos privados, surgiu o costume de eleger entre os membros da comunidade um eclesiástico a quem eram exclusivamente confiadas estas funções. Portanto estes funcionários da comunidade tinham de ser pagos pela sua devoção exclusiva às funções dela. Assim se formou dentro da Igreja uma nova ordem de funcionários da Igreja, que se separou do corpo principal dos fiéis, o clero. Paralelamente à desigualdade entre ricos e pobres, aí apareceu uma outra desigualdade, entre o clero e o povo. Os eclesiásticos, no princípio eleitos entre iguais com vistas a exercerem uma função temporal, em breve se guindaram a uma espécie de casta que governava o povo.
Quanto mais as comunidades cristãs se tornavam numerosas nas cidades do grande Império Romano, tanto mais os cristãos, perseguidos pelo Governo, sentiam a necessidade de se unirem para ganhar força. As comunidades, espalhadas por todo o território do Império, organizaram-se portanto numa única Igreja. Esta unificação foi já uma unificação do clero e não do povo. Desde o séc. IV, os eclesiásticos das comunidades encontravam-se nos concílios. O primeiro concílio realizou-se me Nicéia, em 325. desta forma se formou o clero, numa ordem separada do povo. Os bispos das comunidades mais ricas e poderosas tomavam a presidência dos concílios. É por isso que o bispo de Roma em breve se colocou a si próprio à cabeça de toda a Cristandade e se tornou o Papa. Assim um abismo separava o clero, organizado em hierarquia, do povo.
Ao mesmo tempo, as relações econômicas entre o povo e o clero sofreram uma gande mudança. Antes da formação desta ordem, tudo que os membros ricos da Igreja ofereciam para propriedade comum pertencia aos pobres. Depois, uma grande parte dos fundos era gasta em pagar ao clero e em administrar a Igreja.
Quando, no séc. IV, o Cristianismo foi protegido pelo governo, e foi reconhecido em Roma como sendo a religião dominante, as perseguições dos cristãos terminaram e o culto deixou de ser exercido nas catacumbas ou em modestos compartimentos e passou para igrejas que começaram a ser construídas duma forma cada vez mais magnificente. Estas despesas reduziram assim os fundos destinados aos pobres. Já no século V, os rendimentos da Igreja eram divididos em quatro partes: a primeira para o bispo, a segunda para o clero menor, a terceira para manutenção da Igreja e era apenas a quarta parte que era distribuída para os necessitados. A população cristã pobre recebia portanto uma soma igual à que o Bispo recebia só para si próprio. Com o andar dos tempos foi-se perdendo o hábito de dar aos pobres a importância a eles destinada previamente. Sobretudo, quando o alto clero ganhou importância, os fiéis deixaram de ter o domínio sobre a propriedade da Igreja. Os bispos davam aos pobres a seu bel-prazer. O povo recebia esmolas do seu próprio clero. E não só. No princípio da cristandade, os fiéis faziam ofertas voluntárias para o tesouro comum. Logo que a religião cristã se tornou uma religião de Estado, o clero exigia que as ofertas fossem trazidas tanto pelos pobres como pelos ricos. Desde o século VI o clero impôs uma taxa especial, o dízimo (a décima parte das colheitas), que tinha de ser paga à Igreja. Esta taxa esmagava o povo como um pesado fardo; durante a Idade Média, tornou-se um verdadeiro flagelo para os camponeses oprimidos pela servidão. O dízimo era imposto sobre qualquer porção de terra, sobre qualquer propriedade. Mas foi sempre o servo quem pagou com seu trabalho. Assim os pobres não só perderam o apoio e ajuda da Igreja, mas viram os padres aliarem-se com os seus outros exploradores: príncipes, nobres, agiotas. Na Idade Média, enquanto a população trabalhadora se afundava em pobreza através da escravidão, a Igreja tornava-se cada vez mais rica. Além dos dízimos e de outras taxas, a Igreja beneficiava-se, neste período , de grandes doações, legados feitos por ricos libertinos de ambos os sexos que desejavam compensar, no último momento, a sua vida de pecado. Deram e voltaram a dar à Igreja dinheiro, casas, aldeias inteiras com os seus servos e algumas vezes rendas de terra ou direitos consuetudinários de trabalho.
Deste modo a Igreja adquiriu uma enorme riqueza. Ao mesmo tempo o clero deixou de o ser, para passar a ser o “administrador” da riqueza que a Igreja tinha recebido. Foi abertamente declarado, no século XII, ao formular-se uma lei que se diz vir da Sagrada Escritura, que a riqueza da Igreja pertence não aos fiéis, mas é propriedade individual do clero e do seu chefe, para o Papa, sobretudo. As posições eclesiásticas, portanto, ofereciam as melhores oportunidades para obter grandes rendimentos. Cada eclesiástico dispunha da propriedade da Igreja como se fosse sua e largamente a doava aos seus parentes, filhos e netos. Por este meio os bens da Igreja foram pilhados e desapareceram nas mãos dos familiares do clero. Por esta razão, os Papas declararam-se como proprietários soberanos das fortunas da Igreja e ordenaram o celibato do clero para o manterem intacto e impedir que seu patrimônio fosse disperso. O celibato foi decretado no século XIII, devido à posição do clero. Ainda para impedir a dispersão da riqueza da Igreja, em 1927 o papa Bonifácio VIII proibiu aos eclesiásticos de fazer oferta dos seus rendimentos aos leigos, sem permissão do Papa. Assim a Igreja acumulou enorme riqueza especialmente em terras lavradias e o clero de todos os países cristãos tornou-se o mais importante proprietário de terras. Possuía algumas vezes um terço ou mais do que um terço de todas as terras do país!
Os camponeses pagavam não só os impostos de trabalho mais o dízimo igualmente, e não só nas terras dos príncipes e dos nobres mas também em enormes áreas onde trabalhavam diretamente para bispos, párocos e conventos. Entre todos os poderosos senhores dos tempos feudais, a Igreja aparecia como maior de todos os exploradores. Na França, por exemplo, no fim do século XVIII, antes da Grande Revolução, o clero possuía a 5ª parte de todo o território do país com um rendimento anual de cerca de 100 milhões de francos. Os dízimos pagos pelos proprietários subiam a 23 milhões. Esta soma ia engordar 2.800 prelados e bispos, 5.600 superiores e priores, 60.000 párocos e curas e 24.000 monges e 36.000 freiras que enchiam os conventos. Este exército de padres estava livre de impostos e de obrigações de serviço militar. Nos tempos de calamidade – guerra, más colheitas, epidemias – a Igreja pagava ao tesouro de Estado uma taxa “voluntária” que nunca exercida 16 milhões de francos.
O clero, assim privilegiado, constituía, com a nobreza, uma classe dominante vivendo à custa de sangue e do suor dos servos. Os altos postos na Igreja e os que pagavam melhor eram distribuídos somente aos nobres e permaneciam nas mãos da nobreza. Conseqüentemente no período de escravidão, o clero foi aliado da nobreza dando-lhe apoio e ajuda para oprimir o povo a quem nada oferecia senão sermões, de acordo com os quais o povo devia permanecer humilde e resignar-se com a sua sorte. Quando o proletariado do campo e da cidade se levantava contra a opressão e escravatura, encontrava no clero um opositor feroz. É também verdade que mesmo dentro da Igreja havia duas cl;asses: o alto clero que absorvia toda a riqueza, e a grande massa dos curas rurais cujos modestos recursos não iam além de 500 a 2.000 francos anuais. Portanto esta classe revoltava-se contra o clero superior e, em 1789, durante a Grande Revolução, juntou-se ao povo para combater contra o poder da nobreza eclesiástica e laica. Assim foram as relações entre a Igreja e o povo modificadas com o andar dos tempos. A Cristandade começou como uma mensagem de consolação aos deserdados e pobres. Trazia uma doutrina que combatia a desigualdade social e o antagonismo entre ricos e pobres; ensinou a comunidade de riquezas. Em breve este templo de igualdade e fraternidade tornou-se uma nova fonte de antagonismos sociais. Tendo abandonado a luta contra a propriedade individual que tinha sido feita pelos primeiros apóstolos, o clero juntou ele próprio riquezas, aliou-se coma classe dominante que vivia a explorara o trabalho da classe trabalhadora. Nos tempos feudais a Igreja pertencia à nobreza, à classe dominante, e defendia ferozmente o poder desta contra a revolução. No fim do século XVIII e princípios do século XIX, o povo da Europa Central varreu a escravatura e os privilégios da nobreza. Nesta altura, a Igreja aliou-se outra vez às classes dominantes – à burguesia industrial e comercial. Hoje, a situação mudou e o clero já não possui grandes estados, mas possui capital que tenta tornar produtivo pela exploração do povo através do comércio e indústria, como fazem os capitalistas.
A Igreja Católica na Áustria possuía, de acordo com as suas próprias estatísticas, um capital de mais de 813 milhões de coroas (10), das quais 300 milhões eram em terras lavradias e em propriedades, 387 milhões em obrigações e além disso emprestou a juros total de 70 milhões aos donos de fábricas e aos homens de negócios. Eis como a Igreja, adaptando-se aos tempos modernos, se mudou para uma forma capitalista industrial e comercial a partir de um domínio feudal. Como outrora, ela continua a colaborar com a classe que se enriquece à custa do proletariado rural.
Esta mudança é ainda mais espantosa na organização dos conventos. Em certos países, tais como a Alemanha e a Rússia, os mosteiros foram suprimidos há muito tempo. Mas onde ainda existem, na França, Itália e Espanha, tudo evidencia o papel enorme desempenhado pela Igreja no regime capitalista.
Na Idade Média, os conventos eram o refúgio do povo. Era aí que procuravam refugiar-se para se livrar da severidade dos senhores e príncipes. Era aí que encontravam alimento e proteção em caso de pobreza extrema. Os conventos não recusavam pão e sustento aos esfomeados. Não esqueçamos, especialmente, que a Idade Média nada sabia de comércio como é normal nos nossos dias. Toda propriedade, todo o convento produzia em abundância para si próprio, graças ao trabalho dos servos e dos artífices. Muitas vezes as provisões em reserva não tinha saída. Quando produziam mais cereal, mais legumes, mais madeira do que era necessário para o consumo dos monges, o excedente não tinha valor. Não havia comprador para ele e nem todos os produtores se podiam preservar. Nestas condições, os conventos cuidavam gratuitamente dos seus pobres, em todo o caso oferecendo-lhe apenas uma pequena parte do que tinha sido extraído aos seus servos. (Este era o costume normal neste período e quase todas as propriedades pertencente à nobreza procediam do mesmo modo). De fato, os conventos beneficiavam consideravelmente desta benevolência; tendo fama de abrir as suas portas aos pobres, recebiam grandes dádivas e legados dos ricos e poderosos. Com o aparecimento do capitalismo e da produção para troca, todos os objetos adquiriram um preço e tornaram-se negociáveis. Nesta altura, os conventos, as casas dos senhores e dos eclesiásticos cessaram os seus benefícios. O povo não encontrou aí mais refúgio. Eis uma razão, entre outras, porque no princípio do capitalismo, no século XVIII, quando os trabalhadores não estavam ainda organizados para defender os seus interesses, apareceu uma pobreza não aterrorizadora que parecia que a humanidade tinha regressado aos dias da decadência do Império Romano. Mas enquanto a Igreja Católica, nos primeiros tempos, se esforçou por auxiliar o proletariado romano pregando o comunismo, a igualdade e a fraternidade, no período capitalista agiu de um modo completamente diferente. Procurou sobretudo beneficiar com a pobreza do povo: pôs a mão-de-obra barata a trabalhar. Os conventos tornaram-se literalmente infernos de exploração capitalista, tanto piores quanto tinham ao seu serviço mulheres e crianças. A causa judicial contra o convento Bom Pastora, em França, em 1903, foi um exemplo retumbante destes abusos. Rapariguinhas de 12, 10 e 9 anos eram compelidas a trabalhar em condições abomináveis, sem descanso, arruinando os olhos e a saúde e eram mal alimentadas e sujeitas à disciplina de prisão.
Nesta altura, os conventos estão quase abolidos na França e a Igreja perde a oportunidade de exploração capitalista direta. O dízimo, o açoite dos servos, tinha sido igualmente abolidos há muito tempo. Isto não impede o clero de extorquir dinheiro à classe trabalhadora por outros métodos, e especialmente através de missas, casamentos, funerais e batismos. E os governos que sustentam o clero obrigam o povo a pagar o seu tributo. Mais, em todos os países exxeto nos USA e na Suíça, onde a religião é um assunto pessoal, a Igreja recebe do Estado enormes somas que obviamente provêm do duro trabalho do povo. Por exemplo. Na França os gastos com o clero sobem 40 milhões de francos por ano.
Para resumir, é o trabalho de milhões de explorados que assegura a existência da Igreja, do governo e da classe capitalista. As estatísticas relativas ao rendimento da Igreja na Áustria dão a idéia da considerável riqueza da Igreja, que foi outrora refúgio dos pobres. Há cinco anos (isto é, 19000) as suas receitas anuais ascendiam 35 milhões. Assim, no decurso de um só ano, “punha de lado” 25 milhões à custa do suor e sangue derramados pelos trabalhadores. Aqui estão alguns detalhes desse orçamento:
O Arcebispo de Viena, com rendimento anual de 300.000 coroas, e com despesas não superiores a metade dessa quantia, fazia 150.000 coroas de “economias” por ano; o capital fixo do Arcebispado era de cerca de 7 milhões de coroas. O Arcebispo de Praga goza de um rendimento superior a meio milhão e tem cerca de 300.000 de despesas; o seu capital atinge quase 11 milhões de coroas. O Arcebispado do Olomouce (Olmutz) tem mais meio milhão de rendimentos e cerca de 400.000 de despesa; a sua fortuna excede 14 milhões. O clero subordinado, que muitas vezes alega pobreza, não explora menos a população. Os rendimentos anuais dos párocos da Áustria atingem 35 milhões de coroas, as despesas apenas 21 milhões, com o que as “economias” dos párocos atingem anualmente 14 milhões. Finalmente, os conventos de há cinco anos possuíam, deduzidas todas as despesas, uma receita líquida de 5 milhões por ano. Estas riquezas cresciam todos os anos, enquanto a pobreza dos trabalhadores explorados pelo capitalismo e pelo estado crescia de ano para ano.
No nosso país, e em toda a parte, o estado de coisas, é exatamente como na Áustria.

IV

Depois de termos revistos resumidamente a história da Igreja não podemos surpreender-nos que o clero apóie o governo czarista e os capitalistas contra os trabalhadores revolucionários que lutam por um futuro melhor. Os trabalhadores com consciência de classe, organizados no Partido Social Democrata, lutam por dar realidade à idéia da igualdade social e da fraternidade entre homens, objetivo que fora anteriormente o da Igreja Cristã.
Não é possível empreender a igualdade quer numa sociedade baseada na escravatura quer numa sociedade baseada na servidão: torna-se possível entende-la no nosso tempo, isto é, no regime do capitalismo industrial. O que os apóstolos cristãos não puderam conseguir com os seus ardentes discursos contra o egoísmo dos ricos, os proletários modernos, trabalhadores conscientes da sua posição de classe, podem principiar a realizar no futuro próximo, pela conquista do poder político em todos os países, apoderando-se das fábricas, da terra e de todos os meios de produção dos capitalistas para os tornar propriedade comum dos trabalhadores. O comunismo que os sociais democratas têm em vista não consiste na distribuição entre pobres, ricos e preguiçosos da riqueza produzida por escravos e servos, mas no trabalho comum honesto e unido e no gozo honesto dos frutos comuns desse trabalho. O socialismo não consiste em dádivas generosas feitas pelos ricos aos pobres, mas na abolição total de toda a diferença entre ricos e pobres, obrigando todos igualmente a trabalhar de acordo com a sua capacidade para se suprimir a exploração do homem pelo homem.
Com o propósito de estabelecer a ordem socialista, os trabalhadores organizaram-se no Partido Social Democrata dos Trabalhadores que se propõe a este fim. Eis porque a Social Democracia e o movimento dos trabalhadores enfrentam o ódio feroz das classes proprietárias que vivem à custa dos trabalhadores.
As enormes riquezas acumuladas pela Igreja, sem qualquer esforço da sua parte, vêm da exploração e da pobreza do povo trabalhador. A riqueza dos arcebispos e bispos, dos conventos e paróquias, a riqueza dos donos das fábricas, e dos comerciantes e dos proprietários de terras, é comprada ao preço de esforços desumanos dos trabalhadores da cidade e do campo. Qual é a única origem das dádivas e dos legados que os ricos senhores fazem à Igreja? Obviamente que não é o trabalho das suas mãos e o suor dos seus rostos, mas a exploração dos trabalhadores que trabalham sem descanso para eles; servos ontem, assalariados hoje. Além disso, os subsídios que os governos hoje dão ao clero vêm do Tesouro Público, constituído na maior parte por impostos tirados às massas populares. o clero, não menos do que a classe capitalista, vive do povo, beneficia da degradação, da ignorância e da opressão das pessoas. O clero e os capitalistas parasitas odeiam a classe trabalhadora organizada, consciente dos seus direitos, que luta pela conquista das suas liberdades. Pois a abolição da desordem capitalista e o estabelecimento da igualdade entre os homens desferiram um golpe mortal, especialmente no clero que existe só graças à exploração e à pobreza. Mas sobretudo, o socialismo ajuda a assegurar à humanidade uma felicidade honesta e sólida cá em baixo, a dar ao povo a maior educação possível e o primeiro lugar na sociedade. É precisamente esta felicidade aqui na terra que os servidores da Igreja temem como uma praga.
Os capitalistas moldaram a golpes de martelo os corpos do povo, em cadeias de pobreza e escravatura. Paralelamente a isto, o clero, ajudando os capitalistas e servindo os seus próprios interesses, aprisiona o espírito do povo, mantém-o em ignorância crassa, pois compreende bem que essa educação poria fim ao seu poder. O clero, falsificando o primitivo ensinamento do Cristianismo que tinha por objetivo a felicidade terrena dos humildes, tenta hoje persuadir trabalhadores de que o sofrimento e a degradação que suportam não provêm duma estrutura social defeituosa, mas sim do céu, da vontade da “Providência”. Assim a Igreja mata nos trabalhadores a força, a esperança e o desejo dum futuro melhor, mata a fé em si próprios e o respeito por si mesmos. Os padres de hoje, com seus ensinamentos falsos e venenosos, mantêm continuamente a ignorância e a degradação do povo. Eis algumas provas irrefutáveis.
Nos países onde o clero católico goza de grande poder sobre a mentalidade do povo, na Espanha e na Itália por exemplo, as pessoas são mantidas em completa ignorância. A embriaguez e o crime florescem aí. Por exemplo, comparemos as duas províncias da Alemanha, Baviera e Saxônia. A Baviera é um estado agrícola onde a população vive predominantemente sob influência do clero católico. A Saxônia é um estado industrializado onde os sociais democratas exercem um grande papel na vida dos trabalhadores. Vencem as eleições parlamentares em quase todas as circunscrições, razão pela qual a burguesia mostra o seu ódio contra esta Província social democrata “vermelha”. E o que é que se vê? As estatísticas oficiais mostram que o número de crimes econômicos cometidos na ultracatólica Baviera é relativamente muito mais elevado do que na “Vermelha Saxônia”. Vemos que em 1898, em cada 100.000 habitantes havia:


NA BAVIERA
NA SAXÔNIA
Roubo com violência
204
185
Assaltos e ataques
296
72
Perjúrio
4
1

Encontramos uma situação completamente similar ao comparar o recorde de crimes em Possen dominada pelos padres como o de Berlim onde a influência da Social Democrata é maior. no curso do ano vemos 100.000 habitantes em Possen, 232 casos de ataques e ferimentos e em Berlim 172 apenas.
Na cidade papal, Roma, durante um único mês do ano de 1869 (o penúltimo ano do poder temporal dos papas), foram condenadas: 279 pessoas por assassínio, 728 por assaltos, 297 por roubo e 21 por fogo posto. Estes são os resultados do domínio clerial sobre o povo assoberbado pela pobreza .
Isto não quer dizer que o clero incite diretamente o povo ao crime. Bem ao contrário, nos seus sermões os padres condenam com freqüência o roubo, os assaltos e a embriagues mas os homens não roubam, não assaltam nem se embebedam porque gostem de o fazer ou de perseverar nesses hábitos. É a pobreza e a ignorância que são causas disso. Portanto aquele que mantém viva a ignorância e a pobreza do povo, aquele que mata sua energia e a sua vontade de sair desta situação, aquele que põe toda a espécie de obstáculos no caminho dos que tentam educar o proletariado, esse é responsável por estes crimes exatamente como se fosse um cúmplice.
A situação nas áreas mineiras da católica Bélgica era semelhante até há pouco tempo. Os sociais democratas foram lá. O seu apelo vigoroso aos infelizes e degradados trabalhadores ecoou através do país: “Trabalhador levanta-te a ti mesmo! Não roubes, não te embebedes, não baixes a cabeça em desespero! Lê, ensina-te a ti mesmo! Junta-te aos teus irmãos de classe na organização, luta contra os exploradores que te maltratam! Emergirás da pobreza, tornar-te-ás um homem!”
Assim, os Sociais Democratas elevam o povo e fortalecem os que perdem a esperança, reúne os fracos numa poderosa organização. Abrem os olhos dos ignorantes e mostram o caminho da igualdade, da liberdade, e do amor aos nossos vizinhos.
Por outro, os servos da Igreja trazem ao povo apenas palavras de humilhação e desencorajamento. E, se Cristo aparecesse hoje na terra, atacaria com certeza os padres, os bispos e arcebispos que defendem os ricos e vivem explorando os desafortunados, como outrora atacou os comerciantes que expulsou do templo para que a presença ignóbil deles não maculasse a Casa de Deus.
Eis porque rebentou uma luta desesperada entre o clero, suporte da opressão, e os sociais democratas anunciadores da libertação. Nesta luta não há comparação com a da noite escura e a do sol nascente? Porque os padres não são capazes de combater o socialismo com a inteligência e a verdade, têm de recorrer à violência e à maldade. As suas falas de Judas caluniam os que levantam a consciência de classe. Por meio de mentiras e calúnias tentam manchar todos os que oferecem as suas vidas pela causa dos trabalhadores. Estes servidores e adoradores do Bezerro de Ouro suportam a aplaudem os crimes do governo czarista e defendem o trono do último déspota que oprime o povo como o Nero.
Mas é em vão que os indignais, que desesperais que degenerais de servidores da Cristandade e vos tornais servidores de Nero. É em vão que ajudais os nossos assassinos, em vão protegeis os exploradores do proletariado sob o sinal da cruz. As vossas crueldades e calúnias nos tempos antigos não puderam impedir a vitória da idéia cristã, a idéia que sacrificaste ao Bezerro de Ouro; hoje os vossos esforços não levantarão nenhum obstáculo à vinda do Socialismo. Hoje sois vós, com as vossas mentiras e ensinamentos, que sois pagãos, e somos nós quem traz aos pobres, aos explorados, as novas da fraternidade e da igualdade. somos nós quem está a marchar para a conquista do mundo como fez aquele que outrora proclamou que é mais fácil a um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que a um rico entrar no reino do céu.

V

Algumas palavras finais
O clero tem ao seu dispor dois meios para combater a Social Democracia. Onde o movimento da classe trabalhadora começa a ser reconhecido, como é o caso do nosso país (Polônia), onde as classes dominantes ainda têm esperança de a esmagar, o clero combate os socialistas com sermões ameaçadores, caluniando-os e condenando a “cobiça” dos trabalhadores. Mas nos países onde as liberdades políticas estão estabelecidas e onde o partido dos trabalhadores é poderoso, como por exemplo na Alemanha, França e Holanda, aí o clero procura outros meios. Esconde o seu fim real e já não encara os trabalhadores como um inimigo declarado, mas como um falso amigo. Deste modo vereis os padres a organizar os trabalhadores e a fundar Federações Industriais Cristãs. Desta maneira tentam apanhar peixe na sua rede, atrair os trabalhadores a esta ratoeira de falsas federações onde ensinam a humildade, ao contrário das organizações da Social Democracia que têm em vista lutar e defender-se contra a opressão.
Quando o governo czarista finalmente cair sob os golpes do proletariado revolucionário na Polônia e da Rússia, e quando a liberdade política existir no nosso país então veremos o mesmo Arcebispo Popiel e os mesmos eclesiásticos que hoje trovejam contra os militantes, começarem repentinamente a organizar os trabalhadores em associações “Cristãs” e “Nacionais” para conduzi-los. Já estamos no princípio desta atividade subterrânea da “Democracia Nacional” que assegura a colaboração futura com os padres e hoje os ajuda a difamar os sociais democratas. Os trabalhadores devem, portanto, ser avisados do perigo para que não se deixe apanhar na vitória próxima da revolução, pelas palavras doces dos que hoje, do alto dos seus púlpitos, ousam defender o governo czarista, que mata os trabalhadores, e o aparelho repressivo do capital, que é a causa principal da pobreza do proletariado. Para os defender contra o antagonismo do clero no tempo presente, durante a revolução e contra a sua falsa amizade de amanhã, depois da revolução, é necessário aos trabalhadores organizarem-se no Partido Social Democrata.
E aqui está a resposta a todos os ataques do clero: A Social Democracia de modo algum combate os sentimentos religiosos. Ao contrário, procura completa liberdade de consciência para todo o indivíduo e a mais ampla tolerância possível para qualquer fé e qualquer opinião. Mas desde o momento que os padres usam púlpito como um meio de luta contra as classes trabalhadoras, os trabalhadores devem lutar contra os inimigos dos seus direitos e da sua libertação. Porque o que defende os exploradores e o que ajuda a prolongar este regime presente de miséria, esse é que é o inimigo mortal do proletariado, quer esteja de batina ou de uniforme de polícia.

Notas:
(*) Sociais democratas do início do século. (retornar ao texto)
[1] Cristãos ortodoxos que conheciam a supremacia do Papa. (retornar ao texto)
[2] S. Marcos, X, 25; S. Lucas, XVIII, 25; S. Mateus, XIX, 24. (retornar ao texto)
[3] S. Mateus XXV, 40. (retornar ao texto)
[4] Também conhecidos por “Roskilniki”, uma seita religiosa russa que tinha como contrário à verdadeira fé a revisão dos textos da Bíblia e a reforma litúrgica pelo Patriarca Nikon, em 1654. (retornar ao texto)
[5] Ver Êxodo XXXII, 1-8. (retornar ao texto)
[6] “Proles é o termo latino que significa filhos. Os proletários, portanto, constituíam a classe de cidadãos que nada tinham a não ser os braços de seu corpo e os filhos dos seus ombros”. Communist Journarl, nº 1, Setembro de 1847 (Londres).
Ö proletariado romano viveu à custa da sociedade, enquanto que a sociade moderna vive à custa do proletariado”.
Sismondi citado por Karl Marx in The Eighteemth Brumaire. Ver também: Engels, Principles of Communism (questão 2). (retornar ao texto)
[7] Mas ver Tertuliano (c. 160-230): “somos irmãos na nossa propriedade familiar com a qual a maior parte das vezes se dissolve a irmandade. Nós, portanto, que estamos unidos de alma e espírito, não temos dúvidas em ter bens em comum. Entre nós todas as coisas são distribuídas promiscuamente, exceto as esposas. Somente nisto nós dividimos a amizade, aí onde outros (pagãos gregos e romanos) somente a exercem”. (retornar ao texto)
[8] Abbé Bareille, Jean Chrysostome, Paris, 1869, vol. VII, pp. 599-603. (retornar ao texto)
[9] Certamente, contudo, os ministros locais, tal como aparecem nas epístolas de S. Paulo e nos Atos, parecem estar sob autoridade. No entanto eram eleitos, e muitas vezes provavelmente pela nomeação dos profetas locais; Apóstolos foram nomeados por Paulo e Barnabé. Perante a evidência de Atos 6 e das epístolas pastorais penso, com Harnock, que não podemos duvidar razoavelmente de que a nomeação era feita pela oração com imposição de mãos, e “sacramental”. E quando eram durante a vida de S. Paulo eram certamente controlados de cima”. Gore, Dr. Streeter and the Primitive Church, pp 12 e 13. (retornar ao texto)


samedi 26 novembre 2016

Cristo Jesus é Deus e homem

O Cristo
Jorge Pinheiro, PhD


A paixão é um marco/ Parabólica/ Dilatada/ Estrada que dói/ Encanto de flor/ Labirinto/ Espera de redes/ Parece toda raiz/ Só raiz/ Quando não canta o trovão/ Transfiguração”.
Transfiguração, Cordel do Fogo Encantado


Jesus, o Cristo, é uma identidade construída. Cristo significa Ungido, Messias. E logos, palavra. Portanto, Cristologia é a palavra sobre Cristo, pensamento ou fala sobre Cristo. Cristo exprime uma identidade e sem reconhecer essa identidade, essa pessoa, o Filho de Deus, mediante a fé, não há Cristologia, apenas um estudo sobre a historicidade de Jesus de Nazaré. Através da fé, o Espírito torna a pessoa do Cristo contemporânea, isto é, pessoal e relacional.

Fator histórico. Helenos e cristãos. O cristianismo deixou de ser judeu e palestino já no final do primeiro século e se tornou helênico. Em um sentido amplo, helenismo refere-se à influência que a cultura grega (helênica, de Hellas, Grécia) passou a ter no Império Próximo (Mediterrâneo Oriental: Síria, Egito, Palestina, chegando até a Pérsia e Mesopotâmia) após a morte de Alexandre (323 a.C.) e em conseqüência de suas conquistas. 

Ao estudar os últimos oitocentos anos da história da filosofia grega, vemos que ela vai da morte de Aristóteles (322 a.C.) até o fechamento das escolas pagãs de filosofia no Império do Oriente pelo imperador Justiniano (525 d.C.). O helenismo foi marcado na filosofia pelo desenvolvimento das escolas vinculadas a determinadas tradições, destacando-se a Academia de Platão, a escola aristotélica, as escolas epicurista e estóica, o ceticismo e o pitagorismo. Já na época do apóstolo Paulo havia uma tendência ao ecletismo e filósofos sofreram influências de diferentes escolas. A partir do primeiro século cristão, o principal centro da cultura helênica era Alexandria, no Egito. E foi da correlação entre a Revelação e o uso da Filosofia grega, como ferramenta hermenêutica, que nasceu a Teologia.

Nesse primeiro momento de expansão do Cristianismo no mundo helênico, a doutrina do Cristo foi um escândalo para os judeus, já que a deidade de Jesus era vista como heresia, e também porque os judeus esperavam um messias político e não um messias de amor. E era considerado um perigo pelos Romanos, uma ameaça a ideologia de culto à César, e nesse sentido uma ameaça política. 

A busca pela expansão da fé cristã foi naquela época, e é ainda hoje, um fato naturalm porque o Cristianismo tem um caráter missionário quanto ao querigma, ou seja, quanto à pregação. Dessa maneira, a pregação foi destemida: “é honra morrer por Cristo”; os cristãos arriscavam a vida e quando presos ou mortos eram considerados heróis por sua lealdade a Cristo. Desconsideravam a autoridade de César, caso se opusesse aos ensinos do Cristo. De 96 d.C. (Dominiciano) a 180 d.C. (Marco Aurélio), a prudência política dos romanos evitou, por razões humanitárias, processos sem bases reais e condenações à morte. Mas Tertuliano, advogado e defensor da fé cristã, apologista, diante das perseguições disse que “o sangue é semente”, ou seja, as prisões e martírios só faziam o Cristianismo crescer. Após 235 d.C., com a morte de Alexandre Severo houve uma perseguição acirrada e milhares de conversões. Por volta do ano 300 a.C., um terço da população do império já era cristã.

Dessa maneira, podemos dizer que a vida no mundo ocidental se dividiu em antes e depois dele, e que hoje nas festas cristãs, em especial Natal e Páscoa, cerca de dois bilhões de pessoas celebram Jesus, o Messias, um judeu que morreu de condenação ignominiosa sob ordens das autoridades romanas na Palestina. E, assim, dias, semanas, meses, anos passaram a ser contados a partir de seu nascimento, cuja data no entanto não se sabe ao certo.

Nenhuma vida foi tão pesquisada. Filho de Deus, rompeu o terceiro milênio cercado da fé, mas também de questões levantadas por cristãos e não-cristãos. Como teria nascido? Como viveu? Quem foi ele? Bilhões de pessoas seguem extasiadas esse personagem inacabado, obra aberta a desafiar teólogos. Mas não há explicação capaz de oferecer a versão definitiva, irrefutável, sobre o homem de Nazaré.

E no correr dos séculos foi transformado no símbolo de um dilema: ou os povos assimilam a convivência respeitosa num mundo marcado por diferenças -- daí os diálogos interreligiosos que procuram produzir convivência entre católicos, judeus e protestantes -- ou aprofundam os contrastes, raiz da proliferação do fundamentalismo. O mais estranho é que, na encruzilhada da civilização, cristãos e não-cristãos voltam ao começo de tudo.

Não restam dúvidas sobre sua passagem pelo planeta: Jesus viveu nesta Terra. Muitos estudiosos consideraram que em relação a tal fato existem mais fontes confiáveis do que em relação a Sócrates, cuja existência foi basicamente testemunhada por um único discípulo, Platão. Mas não é possível discorrer com a mesma segurança sobre a data de nascimento e a de morte de Jesus.

Um recenseamento promovido na Palestina por Herodes, interessado em regularizar a cobrança de impostos, forneceu evidências de que ele teria nascido cerca de seis anos antes do chamado ano zero. Teria morrido às vésperas da Páscoa judaica, numa sexta-feira. Conferindo calendários antigos, verifica-se que duas sextas-feiras coincidiram com a celebração naquele período: nos anos 30 e 33 da Era Cristã.

Juntamente com a Trindade, a teologia da encarnação ocupa uma posição central nos ensinamentos da igreja. Jesus é mais que um homem santo ou um mestre de moralidade. Ele é o Filho de Deus que se tornou Filho do Homem. A teologia da encarnação é uma expressão da experiência do Cristo na igreja. Nele, a divindade está unida à humanidade, sem a destruição de nenhuma dessas realidades. Jesus Cristo é verdadeiramente Deus, que tem em comum a mesma realidade igualmente com o Pai e o Espírito. Ele é verdadeiramente homem que compartilha com todos nós o que é humano. E como único Deus-homem, Jesus Cristo colocou a humanidade em comunhão com Deus.

Pela manifestação da Trindade, pelo ensinamento do significado da autêntica vida humana, e pela vitória sobre os poderes do pecado e da morte (1Co 15, Cl 1.19-20) através da ressurreição, Cristo é a expressão suprema do amor de Deus o Pai, por seu povo, tornado presente em cada época e em cada lugar pelo Espírito Santo através da vida da igreja. Os pais da igreja resumiram o ministério do Cristo nesta clara afirmação: "Deus tornou-se o que nós somos de tal maneira que podemos nos tornar o que Ele é."

É um risco separar Jesus e Cristo, ou ver a ação salvífica num e em outro não, ou teologicamente afirmar que há uma ação salvífica no Cristo em sua divindade, separada da humanidade do Cristo encarnado. É fundamental levar em conta, teologicamente, os dois aspectos complementares da cristologia. Ao dado da união das duas naturezas de Jesus, o Cristo, temos que compreender a questão da distinção, que nos alerta para o fato de que não há confusão entre essas duas naturezas.

O monofisismo (veja Glossário) se apresenta entre nós, quando iniciamos uma caminhada em direção à predileção por uma das naturezas do Cristo, no caso, a tendência de absorção da natureza humana na divina. Mas há um monofisismo invertido, que é um outro risco, atualmente menos comum, que é o da absorção da natureza divina na humana, ocasionando uma redução da divindade da pessoa do Verbo. 

A ação humana de Jesus é a ação do Cristo encarnado, mas há uma ação divina que permanece sempre distinta da humana. Há uma ação contínua do Logos antes e depois da encarnação, mas sem que isto signifique a negação do evento cristológico como concentração insuperável da auto-revelação divina. Isto porque a economia do Cristo encarnado constitui a revelação de uma economia mais ampla, a do Cristo eterno de Deus. 

A revelação de nosso Jesus, o Cristo, oferece à humanidade tudo o que é necessário para a salvação, não necessitando ser completada por qualquer outra ação ou processo, que não seja o arrependimento e a obediência. O evento Jesus, sem deixar de ser revelação universal da vontade de Deus, permanece particular em razão de sua historicidade. Significa que tal evento não diminui a potência salvífica de Deus, pois a ação universal do Cristo e do Espírito Santo não se circunscreve à humanidade de Jesus. Por isso não se pode reduzir Jesus a uma figura salvífica entre outras. A revelação operada em Jesus Cristo é definitiva e insuperável. 

Seria um erro entender a ação do Espírito deslocada da economia salvífica universal do Cristo encarnado. Na historicidade da igreja, é fundamental insistir na conjunção da cristologia com a pneumatologia, a fim de preservar a centralidade do evento Cristo. Irineu, pai da igreja, utiliza uma metáfora para nos explicar essa conjunção – que logicamente como qualquer metáfora tem suas limitações. Ele fala das duas mãos de Deus que operam juntas economia da salvação: a mão do Cristo e a mão do Espírito Santo. Mãos que atuam unidas, mas são distintas e complementares. A presença do Espírito na obra do Cristo encarnado não põe um fim na atuação do Espírito Santo depois do evento-Cristo. O Espírito Santo estava presente e operante antes da glorificação do Cristo e continua presente hoje. 

A revelação universal do Cristo não pode nos levar a considerar as religiões do mundo como caminhos complementares ao do corpo do Cristo. Quando muito a universalidade da revelação presente nessas religiões assumem um papel de preparação evangélica para a compreender no evento Cristo, não podendo ser consideradas caminhos de salvação. Ao longo da história cristã foram comuns injustiças e a perseguições aos grupos, denominações e religiões que discordavam do cristianismo hegemônico naquele momento. Ações essas que violentam a imago Dei, o livre-arbítrio e a compreensão da ação salvífica do Cristo.

Grupos, denominações e mesmo religiões não-cristãs não se resumem à mera representação de uma busca humana de Deus, mas traduzem a revelação universal de Deus, através da qual Ele tem se automanifestado à humanidade. São parte do processo de envolvimento pessoal de Deus com a humanidade, que atravessa a história, tendo como centro salvífico o evento Cristo. 

Jesus, o Cristo, é aquele que revela o Pai. Quando Deus dá-se a conhecer, de forma direta e especial, o faz através de seu Filho, em carne e osso. E é justamente essa verdade revelada em Cristo, que deve dirigir toda a nossa compreensão do ser humano e da igreja do Cristo.

Cristo Jesus é Deus e homem, consubstancialmente perfeito e pleno. Nesse sentido, entendemos que o Cristo encarnado possibilita uma compreensão do que é a humanidade, traduzindo numa linguagem cheia de vida os conteúdos fundamentais daquilo que está dito em Gênesis sobre o homem, antes do pecado.

O Cristo revelado é a dimensão mais profunda do humano, a dimensão que traduz aquilo que o cristão é: filho adotado do amor e da graça de Deus, criado para o louvor, honra e glória do Deus eterno.

O corpo do Cristo sobre a terra é uma nova vida com Cristo e em Cristo, dirigida pelo Espírito Santo. A luz da ressurreição do Cristo reina sobre a igreja (I Co 15.3-8) e a alegria da ressurreição, do triunfo sobre a morte, compenetra-se nela. O Senhor ressuscitado vive conosco e nossa vida é uma vida misteriosa em Cristo. Os cristãos levam este nome precisamente porque são do Cristo, vivem em Cristo e Cristo vive neles. A encarnação não é unicamente uma idéia ou uma teologia; é antes de tudo um fato que se produziu uma vez no tempo, mas que possui a força da eternidade. E esta encarnação perpetua, sem confusão, as duas naturezas: a natureza divina e a natureza humana.

A igreja é o corpo místico do Cristo, enquanto unidade de vida com Ele. Expressa-se a mesma idéia quando se dá à igreja o nome de esposa do Cristo ou esposa do Verbo. A igreja, enquanto corpo do Cristo não é Cristo-Deus-homem, pois ela não é mais que sua humanidade; mas é a vida em Cristo e com Cristo, a vida do Cristo em nós: "Não sou mais eu quem vive, é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20). 

A igreja, em sua qualidade de corpo do Cristo, que vive da vida do Cristo, é por Ele mesmo o domínio, onde está presente e onde opera o Espírito Santo. Eis aqui, porque se pode definir a igreja como uma vida bendita no Espírito Santo. A igreja é obra da encarnação do Verbo, ela é encarnação: na igreja Deus se assimila à natureza humana e através da igreja o corpo se assimila à natureza divina. É a santificação, que os pais chamavam deificação, teose (veja Glossário), da natureza humana, conseqüência da união de duas naturezas em Cristo. Assim, a igreja é o corpo do Cristo: enquanto comunidade de fé participamos da vida divina da Trindade. Ela é a vida em Cristo, é o corpo do Cristo, que permanece unida à Trindade.


Fonte
Jorge Pinheiro, Teologia Bíblica e Sistemática, o ultimato da práxis protestante, São Paulo, Fonte Editorial, 2012, pp. 87-93.



vendredi 25 novembre 2016

A dimensão religiosa na vida espiritual

Paul Tillich 
é considerado um dos pensadores mais influentes do século 20. Ensinou teologia e filosofia em várias universidades alemãs e foi para os Estados Unidos em 1933. Por muitos anos, foi professor de Teologia e Filosofia no Union Theological Seminary em Nova Iorque e, mais tarde, na Universidade de Harvard. Entre suas obras mais conhecidas podemos citar: Teologia Sistemática, A Coragem para Ser, Dinâmica da Fé, Amor, Poder e Justiça, e Teologia da Cultura.

Aqui analisaremos textos de Paul Tillich para reflexão sobre quatro temas: a dimensão religiosa; tempo e universalidade; da heteronomia à teonomia; do luteranismo ao socialismo religioso.

"Em tais circunstâncias, desprovida de um lar, de um lugar onde estabelecer sua morada, a religião descobre logo que não é necessária tal morada, que não necessita procurar um lar. Seu lar está em todas partes, quer dizer, na profundeza de todas as funções da vida espiritual da pessoa.

A religião é a dimensão da profundidade em todas elas, é o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano.

O que significa a metáfora profundidade? Significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual da pessoa, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano.

Manifesta-se na esfera moral com a seriedade incondicional do imperativo moral; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função moral do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

Manifesta-se no reino do conhecimento como a busca apaixonada de uma realidade última; por isso, quando alguém rechaça a religião em nome da função cognitiva do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

Manifesta-se na função estética do espírito humano como o anelo infinito de expressar um significado último; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função estética do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

A religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano. Eis o aspecto religioso do espírito humano".

Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17. (Este texto foi publicado originalmente em Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954). 

A luta entre o tempo e o espaço


"O eterno do tempo é o Eterno da história. Isso significa em primeiro lugar, que é o Deus que atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela e por intermédio dela.

Essa meta designa-se de várias maneiras: bem-aventurança universal, vitória sobre os poderes demoníacos representados pelas nações imperialistas, chegada do Reino de Deus na história e, mais além da história, transformação da forma do mundo, etc.

Os símbolos são muitos – alguns mais imanentes, como no profetismo antigo e no moderno protestantismo, outros mais transcendentes, como nas doutrinas apocalípticas posteriores e no cristianismo tradicional --, mas em todos os casos o tempo dirige, cria algo novo, uma “nova criatura”, como chama Paulo.

O trágico círculo do espaço foi superado. A história tem um princípio e um fim definidos.

No profetismo, a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais, as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, o sofrimento da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma.

Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo. Em sua tentativa de criar uma consciência humana indivisa, as missões têm um caráter universal. O tempo alcança plenitude na história e a história a alcança no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz.

Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço. O monoteísmo profético é o monoteísmo da justiça. Os deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade poder de um dos grupos não pode fazer justiça ao outro. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro da nação e para as próprias nações.

O politeísmo, a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula o universalismo implícito na idéia de justiça.

Este é o único significado do monoteísmo profético. Deus é um porque a justiça é uma. A ameaça profética que pende sobre o povo eleito, de ser rechaçado por Deus, por causa da injustiça, é a verdadeira vitória sobre os deuses do espaço.

A interpretação da história que nos dá o dêutero-Isaías, segundo o qual Deus chama os demais povos para castigar o povo por Ele escolhido, devido à sua injustiça, confere a Deus um caráter universal.

A tragédia e a injustiça são próprias dos deuses do espaço; a realização histórica e a justiça o são de Deus que atua no tempo, e por seu intermédio, unindo no amor o vasto espaço de seu universo".

Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A luta entre o tempo e o espaço, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 40-42.

Entre a heteronomia e a autonomia

"Todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento mudo ou manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos.

Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia, relação que em Tillich no ensaio O Estado como promessa e como tarefa caracteriza como segue:

“Toda estrutura política pressupõe poder e, conseqüentemente, um grupo que o assume. Posto que um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses, sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política. Os sistemas ditatoriais carecem de correções contra o abuso da autoridade por parte do grupo de poder. O resultado é a escravidão da nação inteira e a corrupção da classe dirigente”.

Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, Entre a heteronomia e a autonomia, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 239-240.

Entre o luteranismo e o socialismo

É relativamente simples chegar ao socialismo quando se parte do calvinismo, em especial em suas formas mais secularizadas da última época; o caminho está muito mais cheio de obstáculos quando passa pelo luteranismo.

Sou luterano de berço, educação, experiência religiosa e reflexão teológica. Nunca me situei no limite entre o luteranismo e o calvinismo, nem sequer depois de experimentar as desastrosas conseqüências da ética social luterana e de reconhecer o inestimável valor da idéia calvinista do Reino de Deus para a solução dos problemas sociais.

A essência de minha religião continua sendo luterana. Ela abarca uma consciência de corrupção do existir, o repúdio de todo tipo de Utopia social (incluindo a metafísica do progressismo), a compreensão da natureza irracional e demoníaca da existência, o reconhecimento do elemento místico na religião, e o rechaço do legalismo puritano na vida privada e corporal.

Também meu pensamento filosófico expressa esse conteúdo singular. Até agora, só Jacob Bohéme, porta-voz filosófico do misticismo alemão, tentou uma elaboração especificamente filosófica do luteranismo. Através dele o misticismo luterano influenciou Schelling e o idealismo alemão, e através de Schelling, por sua vez, os filósofos irracionalistas e vitalistas que emergiram nos séculos XIX e XX.

Na medida em que grande parte da ideologia anti-socialista se baseou sobre estes últimos, o luteranismo atuou indiretamente através da filosofia e também diretamente como forma de controle sobre o socialismo. 

Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, Entre o luteranismo e o socialismo, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 259-263.

Além do Socialismo Religioso

Pareceu-nos interessante como forma de apresentar Paul Tillich, deixar que ele próprio nos fale de sua experiência norte-americana. Para isto, estamos partindo das idéias que apresenta em artigo publicado no Christian Century, em 15 de junho de 1949, e cujos direitos pertencem a Christian Century Foundation. Este artigo, em inglês, pode ser encontrado no site www.christiancentury.org e foi preparado por Ted & Winnie Brock para Religion Online.  Aqui não nos interessa transcrever o artigo do Christian Century, mas discutir as idéias expostas pelo teólogo alemão.
 
Tillich conta que não viveu uma mudança dramática de vida e experiência intelectual nos anos 40, mas uma lenta transformação, praticamente inconsciente, fruto de uma contínua adaptação aos modos e pensamento norte-americanos.

Ele conta que no verão de 1948, quando voltou pela primeira vez à Alemanha, desde 1933, viveu um claro teste da enorme mudança que sofreu. Houve uma mudança em seu modo de se expressar. O idioma inglês trabalhou nele, produzindo algo que seus amigos alemães consideraram um milagre: o fez compreensível. Nenhum anglicismo apareceu nas palestras que fez, mas o espírito do idioma inglês dominou seu coração, dando-lhe clareza, sobriedade e concretude.

Isto aconteceu indo contra suas inclinações naturais. Aprendeu a evitar o acúmulo de adjetivos, coisa freqüente no idioma alemão. Passou a evitar as ambigüidades, que é um vício freqüente do linguajar filosófico alemão. Além disso, o fez baixar à terra, rompendo com suas longas abstrações. 

“Tudo isso foi muito bem recebido por meus auditórios alemães, sendo visto como uma impressionante mudança de mente”. 

Falando na Alemanha sobre a situação da teologia no EUA, Tillich disse aos seus conterrâneos que a América estava adiante da Europa em teologia histórica e sistemática e mais ainda em relação à ética. Podia dizer isso porque tinha se dado conta de que as éticas são um elemento integrante de teologia sistemática, e teve muito tempo para aprender sobre as éticas individuais no pensamento americano.

No que se refere às éticas sociais, Tillich havia partido de sua experiência militante e teórica como socialista religioso na Alemanha. Mas foi nos Estados Unidos que ele percebeu a importância central que as éticas sociais têm para a teologia norte-americana. Por isso, considerava que ganhou teologicamente com sua experiência estadunidense. 

“Nos meus primeiros anos nos Estados Unidos fiquei surpreso e preocupado com a tremenda ênfase dada à questão do pacifismo, algo que me parecia de importância secundária e de resultado confuso. Mais tarde, descobri que todos os problemas teológicos giravam ao redor desta questão. Quando nos anos anteriores, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, a ideologia pacifista foi quebrada, vi que esta era uma indicação de que surgia uma atitude nova em relação à doutrina do homem e em relação ao Cristianismo. Esta mudança de mentalidade tornou tudo mais fácil para mim e me fez sentir em casa em meu trabalho teológico”. 

"Quando vim para América, em 1933, fui rotulado de neo-ortodoxo ou neo-supernaturalista. O que era incorreto, mas tenho de admitir que algumas das expressões que utilizava diante das audiências americanas levaram a tal uma impressão. Minha tarefa nos anos trinta era dar a meus alunos e aos outros ouvintes conta de minhas idéias teológicas, filosóficas e políticas, como tinham se desenvolvido durante os anos críticos de 1914 a 1933".

"Trouxe comigo da Alemanha a teologia de crise, a filosofia de existência e o socialismo religioso. Tentei traduzir essas expressões para meus alunos e leitores. Em todos os três destes campos -- o teológico, o filosófico e o político -- meu pensamento sofreu mudanças, em parte por causa de experiências pessoais, em parte por causa das transformações sociais e culturais que estes anos testemunhou. 

A maior das mudanças a nível mundial foi o político -- das incertezas dos anos trinta ao estabelecimento, nos anos quarenta, de um mundo de intenso dualismo -- assim como o ideológico. Antes da Segunda Guerra Mundial havia espaço para a esperança de que o espírito religioso-socialista penetrasse no Leste e no Ocidente, mesmo que de forma diferente, diminuindo os contraste e prevenindo os conflitos entre eles. Hoje não há base para nenhuma esperança. A expectativa que tínhamos depois da Primeira Guerra Mundial era de um kairós, de plenitude do tempo, mas tal esperança foi duas vezes abalada, primeiro pela vitória do fascismo e depois por sua derrota militar.

Não duvido que as concepções básicas do socialismo religioso sejam válidas, que apontem ao modo político e cultural de vida pela qual a Europa pode ser construída. Mas não estou seguro de que a adoção dos princípios do socialismo religioso seja uma possibilidade num futuro previsível. Em vez de um kairós criativo, vejo um vazio que só pode ser feito criativo se aceitar e suportar, rejeitando todos os tipos de soluções prematuras. Esta visão significa uma diminuição de minha participação naturalmente em atividades políticas. Minha mudança de mente também foi influenciada pelo desarranjo completo de uma tentativa política séria que fiz durante a guerra para atravessar a abertura entre Leste e Oeste com respeito à organização de Alemanha pós-guerra". 

Tillich diz que fala-se muito do repúdio das liberdades civis e os direitos do ser humano nos países comunistas, que significou uma desilusão para os liberais no mundo inteiro. Mas não pode ser negado que este repúdio dos direitos humanos teve também um efeito devastador naqueles que defendiam o socialismo religioso, como ele, que sem ser utópico, acreditava no amanhecer de uma era criativa, mas viu o mundo mergulhar num momento de profunda escuridão. 

"Existencialismo era bem familiar para mim, antes mesmo da palavra entrar em uso geral. A leitura de Kierkegaard em meus anos de estudante, o estudo completo dos trabalhos posteriores de Schelling, a devoção apaixonada por Nietzsche durante a Primeira Guerra Mundial, o encontro com Marx (especialmente com os escritos filosóficos dele), e finalmente minhas próprias tentativas religioso-socialistas me levaram a uma interpretação existencial da história. Assim, eu estava preparado para a ilosofia existencial desenvolvida por Heidegger, Jaspers e Sartre.

Apesar de o existencialismo virar moda, confirmei minha convicção de que sua verdade básica para a condição presente. A verdade básica desta filosofia, como vejo, é sua percepção da liberdade finita do ser humano, e, por conseguinte, da situação dele como perigoso, ambíguo e trágico. Existencialismo ganha sua significação especial para nosso tempo no imenso aumento em ansiedade, perigo e conflito na vida pessoal e social devido à estrutura destrutiva presente dos negócios humanos. 

A filosofia existencial se aliou com a psicologia profunda. Só pela recente guerra e seu resultado se tornou manifesto que doença psíquica -- a inabilidade para usar criativamente a liberdade finita da pessoa -- é mais difundida neste país que qualquer outra doença. Ao mesmo tempo psicologia de profundidade removeu sobras do pensamento do século 19 - ao nível do sociológico, ontológico e até mesmo implicações teológicas de fenômenos como ansiedade, culpa e neurose de compulsão. Fora desta nova cooperação da ontologia e da psicologia (inclusive psicologia social) uma doutrina do ser humano exerceu influência considerável em todos os reinos culturais, especialmente em teologia. 

Segundo Tillich foi sob esta influência que elaborou seu sistema teológico: "da possibilidade de unir o poder religioso de teologia neo-ortodoxa com a necessidade de levar a mente contemporânea à reflexão existencial, o que resultou na concepção do "método de correlação", quer dizer, perguntas existenciais e respostas teológicas. A situação humana, como interpretado pela filosofia existencial, a psicologia e sociologia posiciona a pergunta; a revelação, interpretado a partir dos símbolos de teologia clássica, dá a resposta. A resposta, claro, deve ser reinterpretada à luz da pergunta, como a pergunta deve ser formulada à luz da resposta. 

Parece mim, é possível evitar dois erros contraditórios em teologia, o supernaturalista e o naturalista. O primeiro faz da revelação uma pedra que cai em acima da história, aceita obedientemente, eliminando qualquer suficiência da natureza humana. O segundo substitui revelação por uma estrutura de pensamento racional derivada que julga através de natureza humana. O método de correlação superan o conflito entre supernaturalismo e naturalismo, eliminando a contradição permanente entre fundamentalismo ou neo-ortodoxia por um lado e humanismo teológico ou liberalismo por outro. 

No curso desta tentativa ficou claro para mim que a denominada teologia liberal tem que ser defendida com paixão ética e científica. Isto é, permanece o direito e dever da crítica filológico-histórica da literatura bíblica sem qualquer condição, a não ser a integridade de pesquisa e honestidade científica. Qualquer interferência dogmática com este trabalho nos dirigiria a superstições novas ou velhas -- mitos e símbolos  -- o que não pode ser feito sem a supressão de conhecimento. O poder deste neobiblicismo é óbvio na Europa continental, mas já pode ser sentido também aqui, e até mesmo entre liberais antiquados. 

Olhando para a última década de minha vida eu não vejo nenhuma mudança dramática de mente, mas um desenvolvimento lento de minhas convicções na direção de maior claridade e certeza. Acima de tudo eu vim perceber que algumas grandes e duradouras coisas são decisivas para a mente humana, e que agarra-las é mais importante que procurar mudanças dramáticas". 


Bibliografia


Paul Tillich, Die sozialistische Entscheidung. In: Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus. Gesammelte Werke II, Stuttgart, Evangelisches Verlagswerk, 1962, 219-265. Trad. fr. in: Écrits contre les nazis (1932-1935). Paris/Genève, Le Cerf/Labor et Fides, 1994. Trad. ing. in: Against the Third Reich, Paul Tillich’s Wartime Radio Broadcasts into Nazi Germany, editado por Ronald H. Stone, Mathew Lon Weaver.

A alegria é a prova dos nove

... ou sexo e rede no colo da cunhã
Jorge Pinheiro

“Tupi or not tupi that is the question”. (Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).

[Paris] – Você já parou para pensar que em menos de cinco anos, entre 1555 e 1560, cerca de quatrocentos franceses emprenharam mulheres tupinambás e tiveram mais de mil filhos, segundo alguns, na verdade, dois mil brasileirinhos. Bem, talvez você não saiba porque a história é sempre situada, espacial e ideologicamente.

Quando se faz uma pesquisa na área acadêmica, geralmente, há um subproduto que não utilizamos, porque não está diretamente ligado ao nosso objeto, embora seja cientificamente interessante. É o caso desse artigo: surgiu a partir de elementos da pesquisa que desenvolvo na Europa, mas especificamente em Montpellier e Paris, sobre os huguenotes, protestantes franceses que estiveram no Rio de Janeiro, em 1557.

Neste artigo sobre o início da presença francesa no Brasil e dos relacionamentos entre franceses e tupinambás utilizo o caminho da correlação, como forma de aproximação de um fato histórico fundante. O método da correlação relaciona polos, o discurso eurocêntrico, no caso, e a interpretação desse discurso, que deve levar em conta a situação daqueles a quem ela se destina. Situação, aqui, são as formas políticas e sociais através das quais os franceses exprimiram as suas interpretações da existência tupinambá, geradora do mito do bom selvagem. Nesse sentido, o método da correlação possibilita que perguntas venham à tona, que haja individuação das respostas, permitindo travessias correlatas às perguntas colocadas pela própria existência dos brasis e seus costumes.

Nicolau Durand de Villegagnon (1510-1571) foi colega de João Calvino durante seus estudos em Paris. Junto com os Cavaleiros de Malta, a partir de 1531, participou das expedições militares de Carlos V contra Argel. Mas ficou conhecido como navegador. Vice-almirante da Bretanha, sua aventura mais empolgante e polêmica foi a fundação, em 1555, de um projeto de colonização que ficou conhecido como França Antártica, na baia de Guanabara. Para desenvolver tal projeto recebeu o apoio do almirante Gaspard de Coligny, homem de confiança do rei e militar de importante presença protestante, e dez mil libras para financiar a empreitada. 

A intenção francesa era fundar uma colônia no Brasil, a fim de fazer frente a expansão espanhola e portuguesa nas Índias Ocidentais e no Novo Mundo, onde calvinistas pudessem praticar o seu catolicismo reformado e evangelizar os brasis. Três navios partiram de Le Havre, com mais de quatrocentos colonos, a maioria ex-presidiários indultados por se juntarem à aventura de Villegagnon. E assim chegaram ao Brasil em novembro de 1555. Villegagnon construiu, então, o forte Coligny em uma ilha na baía de Guanabara e passou a usar o título de vice-rei da França Antártica. 

As relações com os brasis da região se mostraram tão boas, que Villegagnon e os colonos passaram a frequentar as festas, travaram contato com o comunismo libertário dos brasis, e muitos colonos acabaram por optar por essa nova forma de vida.

A França Antártica a princípio foi tolerante com os costumes dos brasis e as opções dos colonos, mas, com o tempo, Villegagnon percebeu que estava a perder seus homens. Estes passaram a ter companheiras tupinambás, a viver nas aldeias e adotavam a cultura dos brasis. Foi, então, que Villegagnon, por razões militares e de ocupação do território, proibiu todo comércio com os brasis, os acasalamentos e exigiu que seus colonos abandonassem as aldeias e voltassem ao forte. Ora, exigência quase impossível de ser respeitada, afinal aqueles homens tinham sido libertos das prisões franceses com a proposta de viajar para um novo mundo de aventuras inimagináveis. E tinham encontrado esse mundo, com espaços sem fim, mulheres brasis e sexo sem constrangimentos. Tinham descoberto que a alegria é a prova dos nove.

Uma das dimensões importantes da cultura tupinambá era o cunhadismo. Este elemento fundante da cultura dos brasis no litoral do Rio de Janeiro é uma hipótese fundante para se compreender a construção das ótimas relações que tupinambás e franceses construíram entre si. Os franceses se uniram sexual e matrimonialmente com as mulheres brasis, e assim se inseriram na estrutura social tupinambá, como genros ou cunhados. Pesquisas acadêmicas mostram que muitos europeus, e aí se incluem os franceses, e não apenas portugueses, se adaptaram com facilidade aos costumes brasis, a ponto de alguns tornarem-se lideranças expressivas entre os tupinambás.

Darcy Ribeiro considerou o cunhadismo a instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro. O cunhadismo estruturava as relações de parentesco entre os tupinambás ao incorporar pessoas estranhas à comunidade. O homem agregado à tribo recebia uma moça tupinambá como cunhã, ou seja, esposa. E quando a assumia, estabelecia laços de parentesco com todos os membros da comunidade.

“Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro”. (Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).

O cunhadismo, enquanto sistema de parentesco relacionava um brasil ou agregado com os outros e, por extensão, com todos os membros da tribo. Assim, ao receber a cunhã, o francês passava a ter nela sua temericó e nos parentes da geração dos pais, outros pais ou sogros. O mesmo ocorria em sua própria geração, em que todos passavam a ser irmãos ou cunhados. Na geração inferior eram todos seus filhos ou genros. Esses termos de afinidade classificavam o grupo com quem podia ou não manter relações sexuais. Com os sogros e sogras devia evitar relações, mas podia manter relações abertas com os cunhados e cunhadas, assim como com genros e noras. 

Segundo Ribeiro, os franceses fundaram criatórios na baía de Guanabara com base no cunhadismo. E citou Capistrano de Abreu, quando este afirmou que por muito tempo não se sabia se o Brasil seria francês ou português, tal a força da presença e o poder da influência francesa junto aos brasis do litoral do Rio de Janeiro. Ainda segundo Ribeiro, mais de mil brasileiros, no caso franco-brasis, foram gerados como fruto do cunhadismo, quando franceses, tamoios e tupinambás viviam ao longo dos rios que deságuam na baía, inclusive na ilha do Governador, onde deveria ser implantada a França Antártica.

Assim, fruto da boa vida no paraíso dos brasis, os colonos não concordaram com seu vice-rei, se revoltaram, e aliados aos brasis, agora seus parentes, passaram a tramar o assassinato de Villegagnon. Diante de guerrilha que se avizinhava, o vice-rei recorreu ao amigo Calvino que, por esses tempos, exilara-se em Genebra, e pediu para mandar reforço religioso a fim de restaurar a moral e os bons costumes. E, em setembro de 1556, quatorze huguenotes, entre os quais dois pastores, Chartier e Richer, e um jovem muito promissor, Jean de Léry, deixaram a Suíça, embarcaram em Honfleur, sob a liderança de Du Pont de Corguilleray, e chegaram ao forte de Coligny em março 1557. Mas essa já é outra história. 

“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”. (Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).