dimanche 16 juillet 2017

Berit, um conceito histórico-genético

Aliança 
Um conceito histórico-genético 
Jorge Pinheiro, PhD


Metodologia e definição 

Quando se estuda a religião de Israel, questões referentes à revelação e ao surgimento de determinados conceitos teológicos vêm à tona. Duas fortes correntes teológicas tentaram nos últimos duzentos anos apresentar respostas para essas questões. Uma apriorística, colocando a ênfase exclusivamente na revelação, e outra empirista, vendo a religião de Israel como fruto da experiência cultural e religiosa dos povos vizinhos. 

Essas duas correntes, embora tenham armazenado um arsenal considerável de informações, que não podem ser descartados, pecam ao nível da metodologia. Não levam em conta que todo conhecimento pressupõe uma elaboração nova, e exige do estudioso jamais esquecer as duas caras de qualquer processo social e histórico. A primeira dessas facetas está diretamente ligada ao homem, enquanto sujeito, se dá no terreno formal, e só se torna necessária depois de elaborada. A outra cara dessa moeda, acontece ao nível do objeto, no terreno do real, e possibilita a conquista da objetividade.

Assim, o que precisamos entender é como se dá a origem de um conhecimento específico, ou de uma estrutura nova. Em primeiro lugar, seria um erro, afirmar que uma nova estrutura pode ser fruto único de um processo exclusivo, apriorístico, revelado ou inato. Ou, ao contrário, que repousa em características preexistentes do objeto. Em ambas os casos, o erro consiste em definir o conhecimento como predeterminado, quer por estruturas internas ao sujeito, quer por características preexistentes no objeto. Descarta-se, assim, o conhecimento enquanto construção efetiva e contínua. 

O que acontece é que o conhecimento não começa com um sujeito plenamente consciente de seu ato histórico, nem de realidades definidas a priori. Resulta sim de interações que surgem da combinação de múltiplos fatores, que vão criando dependência e novas relações. Não é um intercâmbio entre formas diferentes, mas a construção de realidades com plasticidades inteiramente novas.

A este processo de surgimento de novas estruturas chamamos revolução. Isto porque são novas construções de conhecimento e não evolução ou reforma de uma estrutura já conhecida. Aqui, temos crise e ruptura de estruturas e conhecimentos anteriores, gerando fatores que criam novas relações e novos equilíbrios. Nesse processo haverá sempre um ou vários desequilíbrios iniciais, uma crise epistemológica, que rompe esquemas definidos, gerando movimentos que parecem estar fora do controle do sujeito.

Em relação à religião de Israel assistimos a essa revolução epistemológica na própria formação da aliança. Na construção dessa realidade, movimentos ao nível do indivíduo e da sociedade patriarcal desencadearam processos que revolucionaram o próprio conceito de religião e, por extensão, mudaram a face da fé no mundo.

Neste trabalho queremos mostrar como esse processo se desenvolveu e se realizou. Mais do que escrever a história da aliança abraâmica a intenção é definir uma metodologia de trabalho, que possibilite ao estudante entender o processo que gerou novas estruturas na religião de Israel e a partir daí compreender a afirmação de Kaiser, quando diz que “a natureza da teologia do AT (...) não é meramente uma teologia que está em conformidade com a Bíblia inteira, mas é aquela teologia que se descreve e se contém na Bíblia (...) e conscientemente vinculada de era em era, enquanto todo o contexto antecedente e mais antigo se torna a base para a teologia que se seguia em cada era. Sua estrutura é disposta historicamente, e seu conteúdo é exegeticamente controlado. Seu centro e conceitualidade unificada se acham nas descrições, explanações e conexões textuais”.[2]

Assim, a aliança sinaítica, ou mosaica, surgirá como um fenômeno de consolidação em relação à aliança anterior. É, na verdade, uma normatização. E o movimento liderado por Esdras, no período pós-exílio, é um momento de reforma. Aliás, convém notar que o judaísmo, alavancado por Esdras, é um movimento reformista dentro da religião de Israel. Outro revolução epistemológica acontecerá depois, no bojo da guerra dos macabeus. Entender esse processo, é definir o movimento de uma metodologia que leva à compreensão da religião de Israel e, por extensão, dos fenômenos sociais e históricos que eclodiram com o surgimento do cristianismo.

A tradição bíblica apresenta os pais da humanidade e os patriarcas como monoteístas. Adão, Sete, Noé, Abraão e seus descendentes conheciam Elohim e guardavam seus preceitos. O politeísmo surge como degeneração e distanciamento do Deus criador. Essa visão, ainda hoje, prevalece no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, e era hegemônica em toda a cultura ocidental até há duzentos anos. No entanto, a partir de Darwin, e do desenvolvimento das ciências naturais no século 19, essa crença foi seriamente abalada.

O criticismo clássico

A visão clássica da crítica bíblica, da qual J. Wellhausen é um dos expoentes, parte dessa postura empiricista e considera que a profecia clássica foi a fonte do monoteísmo israelita. Na verdade, para Wellhausen, os profetas literários criaram o monoteísmo ético, e a Torah é apenas a formulação sacerdotal-popular posterior do pensamento profético.

É importante notar que a hermenêutica crítica vê a Bíblia apenas como objeto histórico, fonte preservada de informações sobre a cultura e história dos hebreus. Assim, as bases de sua metodologia repousam sobre um arcabouço que combina racionalismo alemão, historicismo e idealismo filosófico. Em outras palavras, esta corrente que caracteriza a crítica acadêmica do século 19, considera a Bíblia, e no caso o Pentateuco, não como a palavra do Deus transcendental e imanente, que apresenta ao homem sua vontade e suas ações sobrenaturais, mas um documento histórico e textual, embora invulgar, que deve ser estudado à luz de outros textos religiosos, da história, da poesia e dos mitos dos povos vizinhos a Israel nos dois milênios que antecedem a Jesus Cristo.

O criticismo está preocupado com questões de autoria, data, circunstâncias, estilo e desenvolvimento do pensamento. O conteúdo da revelação tem valor secundário. Como conseqüência, esta postura leva a dois problemas: em primeiro lugar nega a história bíblica, como está apresentada no texto sagrado, e em segundo lugar propõe alterações em sua mensagem, a fim de que reflita o desenvolvimento do pensamento religioso.

Ao contrário, acreditamos que qualquer análise do surgimento da religião de Israel deve partir do homem Abraão e de seu contexto histórico e social. O mundo de Abraão é um mundo objetivo, não mitológico, e a aliança com o Deus Eterno a chave para entendermos todo o processo. Na primeira parte de nosso trabalho focalizamos a questão da aliança, como momento fundamental para a compreensão do livro de Gênesis e do Pentateuco, como um todo, já que nesses cinco livros estão as bases formais e necessárias da religião de Israel.

Mas, ao falar de aliança, colocamos em pauta uma outra pergunta: existiu entre o conhecimento formal de Abraão e a realidade histórica e social desse patriarca algum ponto de partida comum, algum elemento apriorístico? É claro que sim. E esse elemento, na questão da aliança, é o processo revelatório. Essa participação revelatória deve ser entendida como diferente das características inatas do sujeito, que estão ligadas aos sentidos, ao sistema nervoso e pertencem à ordem estrutural do sujeito. Já o processo revelatório, que abre caminho para um conhecimento novo, realiza-se ao nível da organização funcional. Caracteriza-se por ser ilimitado em sua possibilidade de construir noções e, acima de tudo, sobrepassa, vai além das informações sensíveis.

Apesar de seu empirismo, a crítica bíblica nos fornece uma série de informações que devem e precisam ser levadas em conta. O material colhido no campo da história, arqueologia, lingüística, sociologia e religião são imprescindíveis para entendermos o texto sagrado em seu contexto, historicidade e revelação progressiva.

A matriz do Pentateuco

Podemos dizer que a matriz do Pentateuco se encontra na aliança feita por Iaveh com Abraão, conforme encontramos em Gênesis 15. A consolidação dessa aliança acontecerá com Moisés, descrita em Êxodo 24 e reiterada em Deuteronômio 5, numa das montanhas do deserto do istmo, entre o Egito e Madiã-Seir. Essa é a idéia força de toda a religião de Israel. Um acordo que implica em salvação.

Berit, aliança, tem o sentido de obrigação, mas também de segurança. É um acordo entre duas pessoas, celebrado solenemente, com o derramamento de sangue. A parte mais forte fornece a segurança, ou a salvação, e a mais fraca se obrigava a determinados compromissos. Dessa maneira, a aliança impôs um relacionamento especial entre Deus e o povo. E os mandamentos e leis, dados no período da consolidação, transportam, assim, toda conotação legal e externa, para uma perspectiva de acordo maior. O centro da aliança está no primeiro mandamento do decálogo (as dez palavras, em hebraico) que proíbe a adoração de outros deuses, da milícia do céu e dos ídolos. 

Mas a aliança é também um pacto moral. Só que o fundamental desse pacto, que perpassa toda a Torah não é sua mera formalização, já que outros povos também possuíam noções desenvolvidas de lei e moralidade. O assassinato, o roubo, o adultério e o falso testemunho eram condenados não apenas pela lei moral universal, mas também duramente punidos pelos códigos de Ur-Nammu, de Lipit-Ishtar e de Hamurabi, para citar os mais representativos. Agora, no entanto, pela primeira vez a moralidade é apresentada pelo próprio Deus como fruto de um relacionamento entre Ele e o povo, com normas para o estabelecimento de um reino de novo tipo. É uma aliança com toda a nação. A consolidação sinaítica, fruto da aliança abraâmica, vai além das sabedorias babilônica e egípcia, que lidam com o indivíduo. A moralidade apresentada no Gênesis, por exemplo, que é individual, ganha aqui uma roupagem nova, passa a ser coletiva e nacional. 

Na verdade, a aliança que Iaveh faz com Abraão em Gênesis 15, historicamente, tem seu cumprimento em outra estrutura, no Sinai. Dessa maneira, literariamente, Gênesis não somente prepara o roteiro pentateuco, mas faz parte intrínseca dele. É bereshit não somente como saga da origem, mas como alicerce de todo o Pentateuco.

Equilíbrio e organização

É importante precisar que o conhecimento é sempre um processo de interação e organização, de construção de novas estruturas que se inserem nas já existentes. Todo conhecimento é sempre um padrão, uma medida de relação entre o sujeito e o objeto. Ou, se preferirmos, entre a nossa existência e o mundo. É impossível compreender a revolução da aliança abraâmica se não visualizarmos a dinâmica interior, que rasgou corações e mentes, assim como os fatores externos, que combinados geraram crise e ruptura numa relação anterior de interação e organização.

O período histórico aberto com a decadência de Ur e outras cidades da Mesopotâmia, com as migrações de povos, entre os quais grupos semitas para a Palestina e o Egito, levou todo o Crescente Fértil a um profundo desequilíbrio. Era uma época de conflitos e guerras, que levaram a novas formas de interação e organização. Colocamos os conceitos nessa ordem, porque interagir e organizar são aspectos de um mesmo processo. Interagir é sempre o equilíbrio necessário que resulta da relação entre a inteligência e o ambiente. É a resposta que damos a novas questões, quer de forma reflexiva, a partir do sujeito, quer de maneira dinâmica, procurando adaptar a realidade aos nossos desejos e necessidades. Só que acontece em primeiro lugar ao nível do objetivo, formalizando-se a posteriori.

Interagir implica em transformar a realidade circundante. Por isso, podemos dizer que a face objetiva da interação é a mudança, a reforma ou mesmo a revolução, e a subjetiva é a organização.

A organização tem como finalidade restabelecer um equilíbrio e para isso trabalha ao nível daquilo que se deseja. Procura-se uma meta, um fim, que coloque as coisas em seus devidos lugares e nos mostre a razão de ser das coisas. Quando se deseja alguma coisa é porque não temos essa coisa. Assim, organizar é definir como alcançar esse objetivo. Só que a organização é sempre genética, está em movimento. Não se estabiliza. Aponta sempre para uma organização nova e está sempre em construção. É claro que a organização é um processo formal, que se resolve ao nível do pensamento intelectual, por isso quando as condições sociais são violentamente desequilibradas, esse processo nunca é plenamente consciente. Ele se realiza, enquanto processo, historicamente. E é esse fenômeno, riquíssimo, construtor de novas estruturas e conhecimentos, que leva à construção do conceito de aliança.

A discussão em torno de um centro para a teologia do AT é polêmica, pois o próprio conceito de centro, para muitos teólogos, limita um segundo conceito: o de revelação progressiva. Ora, dizem eles, se a revelação é progressiva toda definição de centro é descabida. 

Acontece que não devemos falar de um desenvolvimento linear, mas de uma expansão da revelação. Podemos tomar uma imagem, apesar dos perigos que um grafismo pode representar, de círculos concêntricos formados na água ao cair de uma pedra. Há sem dúvida uma progressão, assim como um centro, mas a expansão não é linear, se dá em todos os sentidos.

A teologia do AT tem por base o conceito da aliança, não como paradigma doutrinário gerador de dogmas, mas como descrição de um processo vivo, que tem origem em determinado momento histórico, numa relação entre Deus e um homem historicamente definido. 

Assim, ao entendermos o conceito de aliança como centro unificador do AT a partir do diálogo entre Deus e Abraão, em Gênesis, a leitura do texto bíblico passa a ter uma compreensão muito mais ampla, que cresce conforme a aliança se transforma em osso e carne, primeiramente, na vida dos patriarcas e, posteriormente, na formação da própria nação.

O livro de Gênesis apresenta a humanidade recém formada como monoteísta. Até o capítulo 11 não vemos nenhum traço de idolatria. Só após Babel surge a idolatria, que seria contemporânea ao aparecimento das nações da antigüidade. Assim, a partir de Gênesis 12, temos nações idólatras e politeístas e indivíduos que adoravam ao Deus único. Entre estes estão Abraão e Melquisedeque. A compreensão desse fato é importante para tirarmos das costas de Abraão a responsabilidade de ter criado a primeira religião monoteísta. Ele não criou a religião do Deus único, mas viveu uma tradição, no sentido de transmissão de conhecimento e cultura, que vinha, em parte, de seus antepassados.

Homem ou mito

Vejamos um pouco mais sobre a vida desse homem, conforme descrita em Gênesis 12:1 a 25:18. Ele vivia na terra formada entre os rios Tigre e Eufrates, às margens de um afluente do Eufrates, chamado Balique. Viveu com sua família em Harã, uma cidade altamente desenvolvida. Seus parentes, Terá, Naor, Pelegue, Serugue, têm seus nomes registrados nos documentos de Mari e dos assírios como nomes de cidades naquelas regiões. 

A cidade de Ur, onde vivera antes de ir para Harã, é situada pelos arqueólogos na região da moderna Tell el-Muqayyar, a catorze quilômetros de Nasiryeh, no sul do Iraque. Segundo estudos de Sir Leonard Woolley, do Museu Britânico, que reconstruiu a história de Ur desde o quarto milênio até o ano 300 a.C., o deus-lua Nanar, que era adorado em Ur, também era a principal divindade em Harã.

É interessante agregar, que todas as ofensivas da teologia liberal, que se baseavam principalmente nos estudos de Graf-Wellhausen, e que afirmam que Abraão, Isaque e Jacó não existiram como indivíduos, mas são personagens criados pela literatura mitológica israelita entre os anos 950 e 400, estão em franco descrédito. Isto porque a partir de 1925, uma série de descobertas arqueológicas produziu uma revolução de informação até então inédita. “Temos agora textos, literalmente dezenas de milhares, contemporâneos ao período das origens de Israel”. E Bright cita os 25 mil textos de Mari; os milhares de textos capadócios; os das execracões, os do médio império egípcio; e os tabletes de Nuzi, Alalakh, e Ras Shamra, produzidos entre os séculos 20 a.C. e 14 a.C.

Segundo os documentos diplomáticos de Mari, cidade situada na região do rio Eufrates, o início do segundo milênio se caracterizou pelo tráfego de tribos nômades por toda a região da Mesopotâmia e Babilônia. Essas tribos tinham sua economia baseada na pecuária, ovinocultura e criação de camelos. 

A necessidade básica desses grupos era água e pastagens. Assim, a escassez desses elementos determinavam o movimento de toda a comunidade. Sendo uma economia ajustada, com mútua dependência de seus membros, forte sentido coletivo de propriedade, e consciência de uma descendência comum, o grande fator de desequilíbrio, fora questões climáticas, era o aumento natural da população tribal. Esse fator levava ao fracionamento do grupo, quando este crescia em demasia, à aglutinação de parcela de uma tribo a outro grupo tribal, ou a uma postura guerreira na tentativa de apossar-se de territórios controlados por comunidades agrícolas e sedentárias.

Normalmente, quando a terceira opção acontecia, essas tribos nômades, com o tempo, acabavam sendo assimiladas pela cultura sedentária. Nesses casos, os líderes nômades e seus descendentes, geralmente, passavam a ocupar a liderança da comunidade conquistada.

Abraão, seu pai e seus irmãos, assim como seu filho Isaque e seu neto, Jacó, foram nômades, ou melhor, seminômades, já que todos conheceram também a vida sedentária. Mas, Abraão, sem dúvida, foi um homem que viveu sob tendas, acompanhando seu rebanho às nascentes de água e pastagens. Enfrentou as guerras, que caracterizaram o período e o modo de vida tribal. Essa vida dura e cheia de dificuldades fazia desses homens pessoas bastante especiais para sua época. 

Ao sair de Harã, Abraão deixava para trás a cultura politeísta babilônica. Mas isso não significa que todos os seus parentes compartilhavam suas idéias sobre a adoração do Deus único. Em Josué 24:2 vemos que membros de sua família eram politeístas. Em Canaã, também estava rodeado de idólatras, mas mesmo assim erigiu um altar a Elohim. 

Este homem Abraão era, sem dúvida, alguém peculiar. Sua fé no Deus único produziu em sua vida um fruto muito especial. Era um homem que procurava a paz (13:8-9), generoso (14:21-24), hospitaleiro (18:1-8), intercessor (18:23-33), que buscava a justiça e o direito (18:19). Era um homem moral e temente a Deus. 

Dessa maneira, os livros de Gênesis e Êxodo apresentam a fé israelita, enquanto construção, fundamentada em dois acontecimentos históricos. O primeiro, é a escolha de um homem historicamente definido, chamado Abrão, que foi tirado da cidade de Ur e levado para Canaã, uma terra prometida a ele e sua descendência (Gn.12:1-3; 13:14-17). Essa promessa foi selada com um pacto, uma aliança entre Iaveh e Abraão, conforme Gênesis 15:5-10. E o segundo fato histórico é a libertação dos descendentes de Abraão da escravidão do Egito, através de Moisés, e sua entrada na terra prometida (Ex.3:6-10).

Esses dois acontecimentos expressam a materialidade da aliança, que se traduz como escolha de Deus a favor de um homem, gerador de um povo, para uma missão definida. Realidade esta que foi reafirmada, centenas de anos depois, pelo príncipe dos profetas israelitas:

“Ouvi-me, vós, que estais à procura da justiça, vós que buscais a Iaveh. Olhai para a rocha da qual fostes talhados, para a cova de que fostes extraídos. Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, aquela que vos deu à luz. Ele estava só quando o chamei, mas eu o abençoei e o multipliquei”. Isaías 51:1-2.

A aliança com Abraão foi selada com sangue, conforme os versículos 9 e 10 do capítulo 15 de Gênesis. Segundo os costumes semitas, o berit (pacto ou aliança) era feito através da degola de animais, geralmente um bezerro, que era dividido em duas partes, colocadas uma em frente à outra, e os contratantes passavam entre os pedaços (Jr.34:18-20) e diziam: “que a divindade corte em pedaços, como a estes animais, os violadores deste pacto”. 

Daí as expressões, “karot berit”, imolar uma vítima para concluir um pacto; “bo ba berit”, entrar na aliança (Jr.34:10); “abor ba berit”, passar pela aliança (Dt. 39:2); “amod ba berit”, parar na aliança (2 Rs.23: 3). Assim, Deus deu a Abraão uma formalização do pacto. Ou seja, o próprio Deus selou o acordo com um costume humano, a fim de que a aliança pudesse ser visualizada por Abraão. E o Eterno, em seu amor pelo contratante mais fraco, passa no meio dos animais partidos (Gn.15:17). O versículo seguinte agrega: 

“Naquele dia, o eterno estabeleceu uma aliança com Abrão nestes termos: à tua posteridade darei esta terra(...)”. 

Aqui voltamos ao início dessa análise: por que o conceito de aliança fornece uma base para a compreensão do livro de Gênesis? Em primeiro lugar, porque o diálogo de Deus com Adão e Eva em Gênesis 3:15 aponta para um salvador. E em Gênesis 15 temos a primeira realização dessa promessa através da aliança com Abraão, que produzirá descendência, com duas missões: ser testemunha entre as nações, e ser a nação separada, da qual nasceria o Messias prometido.

“É de suma importância entender que a aliança iniciou uma nova relação entre Deus e Israel, uma relação imposta por Iaveh, mas exclusiva e íntima em seu ideal”. 

Embora, na tradição judaica, o livro de Êxodo seja o livro da aliança, o conceito está presente e é desenvolvido no primeiro livro do Pentateuco.

Na aliança está embutida a idéia de salvação e de relacionamento pessoal com Deus. Esta realidade nova dentro do plano de redenção do homem, está implícita na declaração de Deus a Abraão: “Estabelecerei uma aliança entre eu e você, e a sua raça depois de você, de geração em geração, uma aliança perpétua, para ser o seu Deus e o da tua raça depois de você”. Gn.17:7. E como todo pacto, além do “berit milah” (pacto da circuncisão), Abraão e seus descendentes são chamados à responsabilidade moral (v.1) e à uma adoração permanente (vs.7 e 19). 

Elementos estes, que a partir de Moisés serão desenvolvidos, dando origem à religião de Israel, que tem por base, num primeiro momento histórico a primazia do culto e suas ordenanças e, num segundo momento, com o surgimento da profecia literária, da justiça social. Assim, é impossível fazer uma completa separação entre aliança e reino. Este último será uma construção que tem como primeiro tijolo a nova relação estabelecida por Deus com homens. Aqui, somos obrigados a recorrer a alguns conceitos da epistemologia, para entendermos o papel da transmissão do conhecimento de Deus e de sua vontade, realizado através da aliança, que Gênesis nos apresenta. Segundo Piaget, quando estudamos o desenvolvimento e a construção das estruturas de conhecimento, vemos que esta construção se dá através de uma dissociação de conteúdos e da elaboração de novas formas, mediante uma abstração reflexiva de conhecimentos anteriores.

Ora, a relevância da epistemologia está em que ela nos mostra que, por mais importantes que sejam as origens de dado conhecimento, o que determinará sua essência é seu movimento genético. Assim, quando temos a formalização desse processo temos de fato um conhecimento inteiramente novo, que extrapola os dados iniciais, transbordando o real. Sabemos que a circuncisão na época de Abraão era um costume generalizado, associado aos poderes da reprodução humana, que servia de distintivo tribal. Também sabemos, como vimos anteriormente, que os pactos eram selados com sangue e o seu rompimento significava a morte do transgressor.

Esses conteúdos faziam parte da cultura de Abraão e de seu clã. Da mesma forma, outros conteúdos, como adoração / “edificar um altar” (Gn.12:8), obediência / “foi habitar nos carvalhais de Manre” (13:17-18), entrega de bens e posses / “e de tudo lhe deu o dízimo” (14:20), fidelidade / “ele creu no Senhor” (15:6), e consciência da onipotência divina / “não fará justiça o juiz de toda a terra?” (18:25) são conteúdos espirituais da fé de Abraão e dos homens santos que o antecederam.

Dessa maneira, a questão não está centrada nas origens desses conteúdos que, sem dúvida, são históricos e refletem as culturas das civilizações mesopotâmica e da bacia do Nilo, assim como a tradição monoteísta na época de Abraão. O fundamental aqui é entender que esses conteúdos se organizam em nova estrutura: a aliança abraâmica, que se constrói geneticamente, com história peculiar. Esta aliança, cuja gênese e história mostram uma elaboração sucessiva, que é o próprio Pentateuco, como síntese lingüística, não é pré-formada. Sua construção histórico-genética é autenticamente constitutiva e não se reduz a um mero conjunto de conteúdos acessíveis.

O conhecimento que se origina na atividade reflexa do sujeito recebe com a revelação esta organização funcional, que o torna possível. Aqui, convém notar que para o conhecimento que tem por base o processo da revelação a organização funcional sempre se mantém invariável. Ou seja, essa organização funcional se mantém em equilíbrio, apesar dos processos vividos nas estruturas. E mais do que isso, se impõe a elas como necessárias.

É um bereshit, um fiat, um momento especial que dá origem à essa estrutura nascente: é a revelação. A partir da promessa de Gênesis 3:15 temos uma revelação. A aliança surge como revelação, como ruptura que dá vida a antigos conteúdos, colocando em movimento um processo histórico-genético que vai-se construir enquanto estrutura (povo escolhido / terra prometida) e dar novo salto com a formalização maior realizada no Sinai.

Esta realidade leva à uma outra, que é o da linguagem do Pentateuco, na seqüência da aliança. Considerando a moderna lingüística, do ponto de vista estrutural, vemos que a linguagem tem duas grandes características: por um lado é universal, enquanto estrutura geral, humana e, por outro, é livre e não serve apenas à função comunicativa, “mas é antes um instrumento para a livre expressão do pensamento e para a resposta apropriada às novas situações”.

Isto é o que explica o fato das grandes revoluções do conhecimento serem sempre acompanhadas pelo surgimento de uma linguagem nova e de novas estruturas de pensamento. Ora, a aliança descrita em Gênesis 15 e 17 vai abrir um processo de revolução em relação ao conhecimento de Deus e de sua vontade, e vai gerar uma nova linguagem.

De forma crescente vemos nos capítulos seguintes de Gênesis e dos demais livros do Pentateuco essa nova linguagem ganhar forma e consolidar-se enquanto linguagem da teologia da aliança.

Algumas palavras serão fundamentais nessa nova linguagem: acordo / aliança / pacto (berit, conforme Gn.12:2; 15:17; 17:7-8; 22: 16-18); altar / holocausto / sacrifício (conforme Gn. 12:7; 22:9; 35:1,7; Êx. 17:5; 24:4; 27:1-8; 30: 1-10; Lv. 16:16-19); circuncisão (berit milah, conforme Gn. 17:9-14; Êx. 4:24-26; Dt. 10:16); justiça / misericórdia (conforme Gn. 15:6) e santidade (conforme Gn.17:1; Êx. 19:6; Lv. 20:6).

Assim, tem razão Mullins, citado por Harbin, quando diz que “no Antigo Testamento, a aliança entre Deus e Israel era a base de todo trato de Deus com seu povo. O significado da aliança foi que Israel pertenceu a Deus e Deus pertenceu a Israel. A relação foi às vezes descrita com semelhante àquela entre pai e filho, ou como aquela de marido e esposa. Eis a declaração freqüente no Antigo Testamento que Deus é Deus ciumento (Êx.20:5; 34:14; Dt.4:24; Is.54:5; 62:5; Os.2:19)”. 

Dessa maneira, através de Abraão, a aliança é em primeiro lugar pessoal, abrangendo cada vez um espectro maior: tribal, nacional, universal. Mas, quer no primeiro caso, pessoal, quer historicamente, como redenção, ela é sempre estrutural.

Mas, se aliança é eleição, escolha, implica em preferência por alguém, escolher por prazer ou por amor. E essa conceituação entre aliança e amor é muito claramente enunciada em 1 Reis 11:13, quando Deus afirma que escolheu Jerusalém por amor.

Aliança e amor não podem ser separados, embora não sejam a mesma coisa. A aliança é o selo, o pacto. O amor, o motivo que leva à aliança. No livro de Gênesis vemos o amor de Deus na criação, na conversa com Adão e Eva e na promessa de um salvador. Mas é na aliança que o amor pelo homem caído torna-se material e compreensível.

A saga dos patriarcas descendentes de Abraão, que se torna um pai de muitos povos, mostra o caminho da concretização dessa aliança. Eis o tema central de Gênesis e de todo o Pentateuco: Deus ama e casa-se com um povo, criado por ele, e comissionado por ele. O resto da história, nós conhecemos. E por amor estamos dentro da aliança abraâmica.


Bibliografia recomendada

Bright, J., História de Israel, Paulinas, São Paulo, 1978
Eichrodt, Walter, O Homem no Antigo Testamento, A. A. João Wesley, SP, 1965
Hasel, Gerhard, Teologia do AT: Questões Fundamentais no Debate Atual, Juerp, 1992
Kidner, Derek, Gênesis, Introdução e Comentário, Mundo Cristão, SP, 1991
Rowley, H. H., A Fé em Israel: Aspectos do Pensamento do AT, Paulinas, SP, 1977
Schultz, Samuel J., A História de Israel no Antigo Testamento, Vida Nova, SP, 1992
Scott, R. B. Y., Os Profetas de Israel: Nossos Contemporâneos, ASTE, SP, 1968.
Wolff, Hans Walter, Antropologia do Antigo Testamento, Loyola, SP, 1975.

Notas

[1] “Não existe uma experiência da Revelação sem mediação histórico-social; além disso, a Revelação tem também, na realidade, um papel de mediação com relação à autocompreensão das comunidades, de modo que a Revelação tem, inclusive, uma função ideológica. Este fato é analisado de duas maneiras: de uma maneira histórico-crítica e de uma maneira temática; em ambos os casos constata-se que a experiência da Revelação implica sempre uma ‘teologia política’, seja no sentido afirmativo (e renovador), seja em sentido pioneiro (abrindo o futuro)”. Schillebeeckx, Edward / Iersel, B. Van, Revelação e Experiência, Editora Vozes, Petrópolis, 1978, pág. 5. 
[2] Walter C. Kaiser, Jr., Teologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Vida Nova, 1997, p. 10. 
[3] Epsztein, León, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, Ed. Paulinas, São Paulo, 1990, "As Leis Mesopotâmicas", págs. 11 a 26. 
[4]"Yahweh não elegeu Israel para fundar um novo culto mágico em benefício dele; elegeu-o para ser seu povo, para realizar nele o seu arbítrio. Portanto, por sua natureza, também a aliança religiosa foi uma aliança moral-legal, envolvendo não apenas o culto, mas também a estrutura e os regulamentos da sociedade. Assim, colocou-se o alicerce da religião da Torá, incluindo tanto o culto como a moralidade e concebendo a ambos como expressões da vontade divina". Kaufmann, Yehezkel, "A Religião de Israel", Editora Perspectiva, São Paulo, 1989, pág. 232. 
[5] "O exegeta Rashi quer que o primeiro versículo do Gênesis seja traduzido da seguinte maneira: "No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, 2)2) a terra era vã," etc., pois a Escritura Sagrada não quer mostrar aqui a ordem da criação. A prova disso é que o fim do segundo versículo dá a entender que as águas já existiam antes dos céus e da terra". Haroldo de Campos, Bere'shith, A Cena da Origem, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1993, pág. 24. 
[6] ”Não é necessário verificarmos a evolução do problema nos últimos dois séculos, quando surgiram apreciações bastante divergentes da teologia bíblica. A publicação da teologia de Eichrodt projetou a questão para uma nova dimensão. No seu entender, o “conceito central” e “símbolo apropriado” que garante a unidade da fé bíblica é a “aliança”.” Hasel, Gerhard F., “Teologia do Antigo Testamento / Questões Fundamentais no Debate Atual”, Juerp, São Paulo, 1992, p. 57. 
[7] “A centralidade da aliança para a religião do ATt já possuía defensores muito antes de Eichrodt”.: August Kayser, Die Theologie des AT in ihrer Geschichtlichen Entwicklung Dargestellt (Strassburg, 1886), p. 74. : “A concepção dominante dos profetas, a âncora e o alicerce da religião do AT em geral, é a noção de teocracia ou, utilizando a expressão do próprio AT, a noção de aliança”. G. F. Oehler, Theologie des AT (Tubingen, 1873), I, p. 69.: “O fundamento da religião do AT é a aliança por meio da qual Deus recebeu a tribo escolhida, a fim de realizar seu plano de salvação”, in Gerhard Hasel, obra citada, p. 57. 
[8] Kaufmann, Yehezkel, A Religião de Israel, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1989, p. 220. 
[9] Schultz, Samuel J., A História de Israel no Antigo Testamento”, Ed. Vida Nova, São Paulo, 1992, p. 31. 
[10] Wellhausen, J. Prolegomena to the History of Israel, Edinburgo, p. 331. 
[11] Bright, J. , História de Israel, Ed. Paulinas, São Paulo, 1978, p. 97. 
[12]Epsztein, León, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, Edições Paulinas, São Paulo, 1990, pág. 107, 108. “No deserto não existem muros para se protegerem, e daí a importância capital da liderança, a necessidade urgente de uma disciplina. Todavia, a mobilidade da vida nômade impede a fixação definitiva do poder em determinado grupo. Não há privilégio hierárquico. Quando surgem dificuldades, quando a guerra ameaça a segurança do grupo nômade, qualquer indivíduo de sagacidade maior ou de grande coragem impõe-se como chefe, mas não passa de primus inter pares: uma vez afastado o perigo, volta a seu lugar habitual. Diante de tais condições, o poder político dificilmente pode adquirir suficiente influência ou prestígio para prevalecer sobre a ética, sobre os valores morais, mormente com a crença dos hebreus, segundo a qual os homens, criados por Deus à sua imagem, beneficiam-se dos mesmo direitos e devem assumir as mesmas responsabilidades”. 
[13] Em Gênesis 17:5 Deus muda o nome de Abrão para Abraão. Essa mudança de nome traduz o seu chamado. Abrão significa “tão grande quanto seu pai”. Mas Deus o chama “ab hamôn”, pai de multidão. 
[14] Melamed, Meir Matzliah, A Lei de Moisés e as Haftarót”, Flórida, 1962, p. 33. 
[15] Harbin, Byron, Teologia do Antigo Testamento”, apostila, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, São Paulo, 1996, p. 4. 
[16] ”A formalização constitui, desde o ponto de vista genético, um prolongamento das abstrações reflexivas que já atuam no desenvolvimento do pensamento, mas este prolongamento acontece através de especializações e generalizações que se tornam dominantes, adquirindo uma liberdade e uma fecundidade combinatória que sobrepassam amplamente e em todas as partes os limites do pensamento natural, mediante um processo análogo àquele, segundo o qual o possível transborda o real”. Piaget, Jean, La Epistemologia Genética”, A. Redondo Editor, Barcelona, 1970, p. 84. 
[17] Davidson, F, O Novo Comentário da Bíblia”, Ed. Vida Nova, São Paulo, 1994, p. 160 
[18] “O estudo da interação entre experiência e revelação leva a explorar três tópicos distintos, mas inter-relacionados. O primeiro é a especificação ou codificação da experiência. (...) Um segundo tópico é como essa experiência codificada consegue status de revelação numa comunidade. (...) O terceiro tópico refere-se à própria revelação como fonte de nova experiência. (...) Um dos elementos comuns a unir esses tópicos é a linguagem. (...) No encontro entre experiência e revelação é primariamente em sua linguagem que tanto a experiência como a revelação sofrem a mudança mais notável. A criatividade neste âmbito mostrar-se-á pela inovação linguística”. Schreiter, Robert, Especificação da Experiência e Linguagem da Revelação, in Revelação e Experiência, obra citada, pp. 58 e 59. 
[19] “A aquisição da linguagem é uma questão de crescimento e maturação de capacidades relativamente fixas, em condições externas adequadas. A forma da linguagem adquirida é determinada em grande parte por fatores internos”. Chomsky, Noam, Lingüística Cartesiana”, Ed. Vozes, Petrópolis, 1972, p. 80. 
[20] Chomsky, Noam, obra citada p. 23. 
[21] Mullins, Edgard Young, The Christian Religion in the Doctrinal Expression”, Philadelphia, Judson, 1954, pp. 237, 431, in Harbin, obra citada, p. 5. 
[22] É o “escândalo da história” ou “escândalo da particularidade” , segundo Dodd, C. H., The Apostolic Preaching and Its Development, Hodden and Stoughton, Londres, 1963, pág. 88, citado por Gabriel Moran, Teologia da Revelação, Editora Herder, São Paulo, 1969, p. 54. 




samedi 15 juillet 2017

Evangélicos, a partir de Marramao e Taylor

A virtualidade das religiosidades evangélicas e seus desafios 
Uma conversa a partir de 
Giacomo Marramao e Mark C Taylor 

Jorge Pinheiro [1]


“O velho protestantismo está cada vez mais distanciado dos novos movimentos de lastro cristão. Não se pode mais ignorar as significativas diferenças que há entre eles, sob pena de cometer equívocos nos resultados das pesquisas. O pesquisador atual não pode furtar-se ao, às vezes, penoso labor de precisar classificações e conceitos. É preciso que distinga bem, ao estudar qualquer novo movimento religioso, o limite exato em que o velho protestantismo deixa de estar presente. Quando seus princípios básicos de liberdade – a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes – não estiverem presentes ou se apresentarem obscurecidos por outras práticas religiosas, não há mais protestantismo”. Antonio Gouvêa Mendonça. [2]

Para início de conversa 

Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a academia encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se no século dezenove. É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos. 

Conhecemos as dificuldades e limitações de Marx para entender o fenômeno religioso como criador e fundante de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora tenha caminhado no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formatou leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis. 

Depois que o marxismo congelado pela burocracia estalinista entrou em crise, fato notório nas universidades europeias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reconhecido, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam como típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente. 

Assim, o que poderia fazer a academia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E a explosão d a religiosidade evangélica passou a ser analisada como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal. 

Mas, com a débâcle daquele marxismo que desabou com o muro de Berlim, nos anos 1980, e com o boom neoliberal que varreu o mundo, a academia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil apenas como um subproduto do mercado capitalista. 

Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a academia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas, e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos? 

Por que lá podemos utilizar o conceito de conversão [3] trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas. 

Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Mas, nessa conversa queremos utilizar como referencial dois escritos, um de Giacomo Marramao, Potere e secolarizzazione, e outro de Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, Emerging Network Culture. Desejamos, dessa maneira, conversar sobre a religiosidade evangélica [4] a partir da virtualidade dos seus fundamentos, e do tempo e presença deste pensamento hoje no Brasil. 

Caminhos da religiosidade 

Uma das questões que nos perguntamos quando relacionamos cidade e religião é se, de fato, a religiosidade evangélica outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, partindo de Tillich, podemos dizer que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade tende a se expressar de diferentes formas, mas que a religiosidade no mundo urbano, nos grandes centros brasileiros, ocupa um espaço privilegiado enquanto tradução dessa espiritualidade. 

Ora, a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano e no mundo urbano brasileiro essa busca, por várias razões, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a igreja evangélica cresceu 267% na última década (Ronaldo Lidório, Rede Sepal). Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade é catalisada pelo permanente processo de evangelização [5] protestante dos últimos cento e cinquenta anos. 

A espiritualidade traduzida nas religiões das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na ética, na estética, no conhecimento, isso é fato registrado pelas ciências da religião. Por isso, quando na cidade alguém conscientemente rejeita a religião, ou seja, se diz agnóstico ou ateu em nome de uma ética, de uma estética, ou por causa da busca de conhecimento, está a rejeitar a religião em nome da religião. Isto porque ela é o fundamento, a profundidade e a substância da vida espiritual do ser humano. 

Numa leitura antropológica judaico-cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade tende a ser traduzida na religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano. 

Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã invisível, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes/ evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais. 

Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano a religiosidade evangélica é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante os anos da ditadura militar no Brasil, algumas igrejas e denominações apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores protestantes e evangélicos, membros de igrejas importantes. Assim, o evangelicalismo é desagregador quando se liga à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agrega quando defende a vida humana. Com isso, constatamos que a religiosidade evangélica pode ser uma coisa ou outra ou mesmo, dialeticamente, ambas. 

Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos no período dos governos militares, até mesmo porque muitos evangélicos também foram torturados. O certo é que pessoas, em nome de suas ideologias e preconceitos, foram cúmplices de torturas e mortes. 

No Brasil de hoje podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para cristãos e não-cristãos, mas agora com a criação e combinação dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, os ritmos e tempos se interpenetram. 

Em 1983, o cientista político italiano Giacomo Marramao [6] lançou Potere e secolarizzazione [7], em que trabalha a controvérsia sobre tempo pagão e tempo cristão e, como consequência, a questão das imagens do mundo e as representações do tempo. 

O conceito secularização não é apenas uma metáfora, que expressa o distanciamento progressivo da esfera religiosa enquanto poder, já que seu significado semântico continua em permanente construção. Para Marramao (1997), "a impossibilidade de reconduzir essa noção a uma concepção unitária não depende meramente, como no caso de outros termos característicos da modernidade, da sua polissemia ou polivalência semântica", mas necessita de uma "estrutural ambivalência de significado, a qual dá lugar a premissas antitéticas ou diametralmente inversas". [8] 

Assim, o paradoxo maior da secularização mostra-se enquanto conflito igreja versus secularidade, já que a igreja assume um caráter burocrático e a secularidade, cada vez mais, discute, opina e legisla sobre questões religiosas. Ou seja, há ou não uma interseccionalidade de valores? Vemos, então, que a religiosidade evangélica busca institucionalidade e a secularidade cria características religiosas. 

É de se entender que a secularização, enquanto fenômeno interseccional, possui significado de afirmação e de oposição entre o espiritual e o secular. Dessa maneira, a secularização se apresenta hoje, na alta modernidade sob três formas, o princípio da ação eletiva, o princípio da diferenciação/especialização progressiva, e o princípio da legitimação. E se falamos do princípio da ação eletiva, estamos a falar da emersão progressiva da pessoa na busca do significado do seu "eu" e da "consciência de si mesmo". Por isso, para Marramao (1995), "este aspecto comporta um modo cultural particular de estabelecer a linha de demarcação entre subjetividade e objetividade e, portanto, de construir a realidade social." 

Já o princípio da diferenciação/especialização progressiva nos mostra que quando o princípio eletivo se torna afirmativo, a adoção do critério de escolha fica em aberto. Esse critério de escolha está no âmbito da racionalidade instrumental, assim, Marramao (1995) nos dirá que "a consequência disto é a relação estreitamente biunívoca que se instaura entre secularização e aumento de complexidade do mundo social." 

Ao analisar o pensamento político da religiosidade evangélica no Brasil, dois autores traçam linhas demarcadas, sobre como se lançaram contra os direitos civis, democráticos, seculares. Para Cowan, “a direita política evangélica no Brasil tornou-se presuntiva, mas foram prefiguradas durante os processos simultâneos de redemocratização nacional e de politização evangélica na década de 1970. Nesta encruzilhada, os líderes de várias denominações religiosas adotaram a linguagem de uma crise moral aguda, lançando as bases para uma direita evangélica. 

A própria crise moral tornou-se “nosso terreno”, o ponto de inserção dos evangélicos de direita na esfera política, e uma das várias questões-chave que dividem evangélicos reacionários e seus correligionários progressistas. Até o momento da Constituinte, a posição dos Batistas e Assembleianos, como vozes dos conservadores que apoiaram amplamente o regime militar e se opuseram às iniciativas de justiça social do ecumenismo de esquerda e ao comunismo, tinha sido estabelecida após anos de pronunciamentos que ligavam essas questões à crise moral.” [9]

E para Carneiro, “no Brasil, o evangelicalismo evoluiu cada vez mais para a direita ao longo do período ditatorial e pós-ditatorial, constituindo o que já foi chamado de uma “nova direita” baseada na reação moral e cultural. Na ditadura houve uma distinção clara entre setores protestantes e evangélicos democráticos que se opuseram ao regime, como o pastor presbiteriano James Wright, fundador do Brasil Nunca Mais, e os grupos mais conservadores e anti-ecumênicos que apoiaram os governos militares. 

“Esta ala direita se aproveitou de benesses do regime, cresceu e predominou. Sua atuação política mais destacada se deu em torno ao combate à pornografia, o alcoolismo, o tabagismo, o jogo, o divórcio, e a emancipação feminina. Defensores de que o lugar da mulher é no lar, se juntaram à Igreja Católica para se opor ao controle populacional e aos anticonceptivos.” [10]

A Reforma protestante desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes. A partir desses conceitos de liberdade surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia reformada como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras. 

Assim, a academia quando se debruçou sobre o fundamentalismo do movimento evangélico, viu apenas o lado integrista. É certo que a religiosidade evangélica é fundamentalista, e Mendonça explica o que isso significa: 

“Seu apego à letra da Bíblia, ao mesmo tempo em que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente. [11]

Na verdade, a utilização da expressão fundamentalista para o evangelicalismo brasileiro ou setores dele não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica. 

O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE (2007), hoje 83% da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Portanto, 8 em cada 10 brasileiros vivem em núcleos urbanos. 

Parte da população urbana concentra-se no Sudeste do país, em especial em grandes áreas metropolitanas como São Paulo, 17 milhões na Grande São Paulo, e Rio de Janeiro, mais de 10 milhões na Grande Rio. 

Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações. O processo de modernização do país, na segunda metade do século vinte, gerou duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, que foram constituídas coração cultural e econômico do país, concentrando recursos e articulando em seu entorno uma constelação de aglomerações urbanas e cidades médias. Por outro lado, ocorreu nos últimos anos uma tendência à desconcentração de atividades - sobretudo industriais -, com o deslocamento de unidades produtivas do núcleo central de metrópoles como São Paulo para outras cidades e aglomerações urbanas de diferentes portes e localizadas em diferentes estados e regiões. E a redução no ritmo de crescimento populacional de São Paulo e do Rio de Janeiro é fato marcante, embora não signifique a redução do poder e influência nacional e internacional de ambas. 

Crescem também outras aglomerações urbanas metropolitanas e não-metropolitanas e também o número de cidades médias por todo o país. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos. 

E a religiosidade evangélica montou a cavalo no processo de urbanização. A procura evangélica por fundamentos é uma mostra de que o fenômeno não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe deem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos e são um fenômeno urbano. E tal processo nesta alta modernidade não ter definições precisas e sólidas, o evangelicalismo urbano necessita de um permanente olhar a frente. Assim, as necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descon­tentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos evangélicos presentes no espaço urbano. 

Ao acrescentarmos a variável urbanização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas, e o movimento evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido, esperança e vida para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade. 

Os estudos publicados pelo IBGE mostram que, em 1970, a população protestante/ evangélica tinha 4,8 milhões de fiéis. Em 1980, passou a marca dos 7,9 milhões. Em 1991, avançou a barreira dos 13,7 milhões. Em 2000, acima de todas as previsões estatísticas, ultrapassou os 26 milhões de adeptos. Durante a década de 90, a velocidade de crescimento das igrejas protestantes e evangélicas foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Atualmente, o movimento como um todo tem 20% da população, ou seja, 35 milhões de adeptos. 

Devemos reconhecer, porém, que a multiculturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, coladas cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Assim, dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direção à alta modernidade. 

Como vimos, uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra a religiosidade evangélica em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. E é expressão profunda de sua virtualidade. 

A virtualidade como razão de ser 

No protestantismo clássico, os teólogos magisteriais controlaram suas produções a partir de estruturas e procedimentos ordenados. Se isso é tudo o que podemos fazer em um mundo complexo, a institucionalidade das confissões judaico-cristãs estão destinadas a seguir o caminho do Tyrannosaurus rex. A tentativa de estabilizar o sistema leva a torná-lo incapaz de interagir com o mundo e possibilitar a criação de alternativas futuras. Os intérpretes modernos enfatizaram que as culturas e os valores compartilhados são essenciais para fazer a leitura da religiosidade judaico-cristã. Em condições dinâmicas, onde fé e linguagem religiosas são formados por múltiplas e variadas possibilidades, onde hermenêuticas monolíticas falharão na geração da criatividade religiosa necessária para dotar as confissões de compreensões adequadas. Por isso, as diversidades de opiniões e abordagens são importantes. 

O pensamento único, que não comporta diferentes visões, pode ter sido um dos fatores cruciais para a crise de parte das confissões judaico-cristãs no mundo moderno e, em especial, nas últimas décadas do século vinte. Os hermeneutas modernos acreditaram que o sucesso da fé e linguagem religiosas poderia repousar exclusivamente na manutenção do equilíbrio interno da origem fundante, mas se isso fosse possível, a própria fundação teria deixado de apresentar novidade e a liberdade da religiosidade no século vinte deveria ter sido reduzida à escolha da adaptação certa ou errada. 

Mas no mundo da complexidade hermenêutica os riscos são muito maiores. Primeiro porque equilíbrio exclusivo e permanente da internalidade religiosa significa morte, exatamente o contrário do que pensava a velha hermenêutica. Segundo porque em condições não-estáveis o ambiente humano também se fez presente na religiosidade, tanto quanto ele no ambiente humano. As implicações disto significam que as compreensões hermenêuticas não podem culpar o mundo por suas falhas: elas devem ser vertiginosamente livres para criar o próprio futuro religioso. 

Há um verso de Nietzsche que pode nos servir de guia para uma hermenêutica da religiosidade evangélica na alta-modernidade: 

“Agora celebramos, seguros da vitória comum, a festa das festas: O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes! Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina, É hora do casamento entre a Luz e as Trevas...” [12]

Nietzsche pensava a ausência de horizontes. Em Além do Bem e do Mal, ele pensa contra a modernidade: faz um libelo contra os valores da modernidade, como o sentido histórico, a objetividade científica e, logicamente, a fé numa razão autônoma. Assim, é o caso de perguntar: é possível continuar existindo algum contato com a chamada realidade hermenêutica, quando a virtualidade, por exemplo, fica indistinguível e até mesmo mais autêntica que o original, quando podemos criar mundos sintéticos que são mais reais que o real, quando a tecnologia glosa a natureza? Quando a hermenêutica livre das dogmáticas confessionais faz caminhos como o filme Matrix? 

Mark C. Taylor, hermeneuta estadunidense, percorre sob outras condições questionamentos idênticos aos levantados por Nietzsche. Ao trabalhar a questão da virtualidade na comunidade da alta-modernidade, utiliza um conceito que já vinha sendo usado na crítica literária, a idéia de imagologia. Antes, na teoria literária, e agora na hermenêutica de Taylor, a identidade do texto não pode ser encarada como uma forma de ser plena e apriorística, mas como realidade dinâmica ou relacional, onde se cruzam questões de identidade textual e comunitária, o que também se dá na virtualidade, que acaba sempre por revelar uma dimensão estrangeira, que é manifestação de um outro. Na medida em que há constante busca identitária, o confronto com este outro supõe sempre uma comparação, explícita ou implícita, e se integra naquilo que na terminologia de Taylor será a imagologia, estudo das representações do outro, que também pode ser entendido como virtualidade. 

Nos últimos anos essa questão tem sido tema da simbologia da revelação, como da própria teologia. As mídias têm demonstrado a força das realidades artificiais. Essa questão, realidade e imagem na comunidade imagológica, já tinha sido analisada por psicólogos da escola piagetiana. Segundo eles, é difícil ensinar a pensar de modo lógico a um menino que está sob o bombardeio de imagens distantes da lógica, como acontece nos programas infantis. E onde até mesmo as entrevistas ao vivo fazem parte da criação de algum gênio da publicidade. A moda e os shows de rock, por exemplo, fazem parte desta realidade onde o que é apresentado pelo entrevistador não tem nada a ver com a realidade da audiência ou com o próprio intérprete/produto, já que suas imagens sofrem uma transformação mágica para poder ser popular, ou pelo menos este é o objetivo. 

Para Taylor, a comunidade imagológica leva à ansiedade que circula acima e debaixo do chão, que tem crescido e emaranhou-se num complexo tecnológico e financeiro. “Com a informação e o dinheiro que correm ao redor do mundo à velocidade da luz, nenhum de nós está seguro, porque qualquer um está no controle. As redes de terroristas assombram a estrutura e através da Web atuam nas comunicações e sistemas financeiros globais. Eles foram mais efetivos utilizando as tecnologias contra nós do que nós em nossa capacidade de usar essas tecnologias contra eles. Nós não seremos capazes de enfrentar redes de terroristas até que melhoremos a compreensão da lógica e operação de nossas próprias redes. Nestas teias emaranhadas e nas redes, está o limite entre nós e eles, dentro e fora, para quem nada é fixo e imóvel, mas restos fluidos e móveis”. [13] 

E essa discussão é uma discussão sobre o sentido da hermenêutica, porque vivemos um momento de complexidade sem precedentes, onde as coisas mudam mais rapidamente que nossa habilidade de compreender, por isso devemos resistir à tentação de procurar respostas simples, pois o que antes era força interpretativa da hermenêutica moderna agora é fraqueza que nos deixa abandonados à mercê da sorte. [14] Diante disso, será possível distinguir entre realidade e virtualidade na comunidade imagológica evangélica, se a tecnologia constrói a nova realidade? Bem, vivemos um mundo colocado em processo de equilíbrio instável, e para entendê-lo devemos ir às margens do sistema. 

A complexidade hermenêutica, na alta modernidade, é vista como marginal e fenômeno emergente. Não está fixa, porque a complexidade é móvel, momentânea e o momento marginal de seu aparecimento é inevitavelmente complexo. Longe de ser um estado, esse momento emergente da hermenêutica reconstitui o fluxo de tempo, enquanto impulso que mantém o texto em movimento. É significante que a palavra momento derive da idéia de impulso em latim, mostrando movimento como sendo também impulso. Embora frequentemente representasse um ponto simples, o momento hermenêutico é inerentemente complexo. Seus limites não podem ser firmemente estabelecidos, porque sempre estão trocando de modos, que dão fluidez ao momento. Na hermenêutica da alta modernidade vivemos o domínio do intermediário, que a teoria da complexidade procura entender.[15]

A dinâmica do caos e da complexidade da hermenêutica parte de certas características que diferem em importância e modos. Um sistema complexo é um sistema único composto de várias partes compatíveis, que interagem entre si e que contribuem para sua função básica, sendo que a remoção de uma das partes faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente. Um sistema de tal complexidade não pode ser produzido diretamente, isto é, pelo melhoramento contínuo da função inicial, que continua a atuar através do mesmo mecanismo, mediante modificações leves, sucessivas, de um sistema precursor. O exemplo mais popular de complexidade irredutível foi apresentado por Michael Behe (A caixa preta de Darwin): é a ratoeira. Ela tem uma função simples, pegar ratos, e possui várias partes, uma plataforma, uma trava, um martelo, uma mola e uma barra de retenção. Se qualquer uma dessas partes for removida, o aparelho não funciona. 

Portanto, é irredutivelmente complexo. Um automóvel, em contrapartida, pode funcionar com os faróis queimados, sem as portas, sem pára-choques, etc, embora chegará um momento em que haverá um mínimo de peças essenciais para seu funcionamento. Originariamente, a teoria do caos foi desenvolvida como um corretivo para os sistemas fechados e lineares de físicas de Newton, pois diante da ausência de ordem, caos é uma condição na qual a ordem não pode ser averiguada por causa da insuficiência de informação. Enquanto a física de Newton imagina um mundo abstrato governado por leis definidas, que determinavam completamente as coisas reais, a globalidade não é transparente porque não temos a informação adequada e necessária para estabelecer leis, assim toda operação é sempre inacessível. A partir dessa compreensão da teoria do caos e da complexidade, duas razões hermenêuticas podem ser destacadas na abordagem das religiosidades evangélicas. 

Primeiro que os sistemas finitos, como é o caso dessas religiosidades, não estão fechados, mas são sistemas abertos. E segundo que os sistemas ou estruturas das religiosidades evangélicas envolvem relações que não podem ser entendidas apenas em termos de modelos lineares de causalidade. Nos sistemas religiosos evangélicos recorrentes é impossível medir as condições iniciais com precisão para determinar as relações causais num período muito limitado de tempo.[16] Então, a imprevisibilidade é inevitável. 

Ao contrário dos sistemas lineares, nos quais causas e efeitos são proporcionais, nos sistemas das religiosidades evangélicas recorrentes, a avaliação é complexa, porque esses sistemas se auto-alimentam da vida de seus fiéis e na recorrência geram causas que podem ter efeitos desproporcionados. Em contraste com a teoria do caos, a teoria da complexidade está menos interessada em estabelecer a fuga ou o caos determinado, pois oscila entre ordem e caos. Assim, o momento de complexidade é o ponto no qual ecossistemas organizados emergem para criar novos padrões de coerência e estruturas de relação. 

Embora tenha se desenvolvido fora das investigações hermenêuticas das religiosidades evangélicas, a percepção de teoria da complexidade pode ser usada para iluminar as questões da interpretação desta religiosidade hoje no Brasil. Aliás, poderíamos até nos perguntar o que há de comum entre as moléculas que se apressam em auto-reproduzir metabolismos, as células que coordenam esses comportamentos para formar organismos multicelulares[17] e os sistemas das religiosidades evangélica? E a resposta, complexa, é óbvia: a possibilidade da vida, que faz a travessia de um regime equilibrado de ordem e caos, é o que há de comum entre esses processos. Donde a hipótese hermenêutica maior é esta: a vida existe enquanto extremidade do caos.[18] 

Partindo da metáfora da física, a vida existe ao lado de um tipo de transição de fase. A água existe em três estados, gelo sólido, água líquida e vapor gasoso. Começamos a ver que idéias semelhantes podem ser aplicadas aos sistemas hermenêuticos complexos. Sabemos que as redes de genomas que controlam o desenvolvimento do zigoto podem existir em três regimes: ordenado congelado, caótico gasoso e líquido aquoso, localizados na região entre ordem e caos. É uma hipótese impressionante que sistemas de genomas ordenem regimes de transição entre uma ordem e o caos. Em tais sistemas, o regime ordenado congelado também coordena as sucessões complexas das atividades genéticas necessárias. Mas, nessas redes, também o regime gasoso caótico, perto da extremidade de caos, pode coordenar atividades complexas e evoluir. A partir das redes, a análise pode ser estendida às comunidades e às dimensões culturais, ou seja, por extensão às leituras interpretativas. Assim, equilibrado entre uma pequena ou grande ordem, o momento de complexidade da hermenêutica na alta modernidade é o meio no qual emerge a cultura de rede.[19]

Taylor projeta a discussão da teoria da complexidade para a hermenêutica ao afirmar que a noção de que as fundações tenham desaparecido é ameaçadora para muitas pessoas, mas que esse assunto é um tema recorrente na teologia. Pensadores importantes na história de filosofia ocidental, como Nietzsche, colocaram tal discussão na ordem do dia e influenciaram pensadores da alta modernidade como Derrida. Uma das coisas que golpeia o pensamento moderno é a ênfase desses filósofos na importância de entender que a idéia de fim de fundamentos é uma metáfora, assim como a teoria da complexidade também é uma metáfora. Ou como afirma Derrida, a metáfora é determinada pela filosofia como perda provisória de sentido, economia sem prejuízo irreparável de propriedade, desvio inevitável, mas história com vista e no horizonte da reapropriação circular do sentido. 

É por isso que a avaliação filosófica foi sempre ambígua: a metáfora é estranha ao olhar da intuição, do conceito e da consciência. [20] E por isso Derrida dirá que a metafísica é a superação da metáfora, donde ao discutir a hermenêutica devemos levar em conta que há rastros da metafísica nas palavras que usamos: entender é um exemplo disso. Entender algo é não agarrar alguma coisa superficialmente. 

O ato cognitivo envolve apreensão dentro de condições de superfície e relativos à profundidade. A distinção entre informação e entendimento é muito complexa. No domínio onde as pessoas pensam em informação devemos falar de sobrecarga de informação. Somos bombardeados com informação de todos os tipos. Entender é um modo de organizar e estruturar a informação. Na revolução da informação, dispositivos filtrantes estão começando a emergir. É crucial entender o poder das hermenêuticas que criam estas grades culturais. Este é um dos temas de Imagologies.[21] 

E essas grades culturais, por sua vez, desenvolvem-se e mudam para prover vigamentos interpretativos que criam possibilidades de construção da compreensão de informação na qual estamos imersos. Temos, então, dois mundos, um é o mundo tradicional, o mundo da religiosidade protestante clássica tal como o recebemos. É um mundo platônico, no qual o assunto percebido é colocado num nível agradável de fundação. Este mundo está presente, mas também está acima, é a transcendência. Esse modelo se torna um modo de saber. Quando começamos a conceber algo, concebemos figurando em termos de modelo. Através do contraste descrevemos um mundo no qual um modelo diferente predomina. Temos interações de planos, modelos e processos. 

As religiosidades evangélicas, assim entendidas, podem ser chamadas de locais de consumo. Mas uma estrutura não é aquilo que alguém busca, pois o texto enfatiza movimento e troca, troca de informação, etc. Os modelos hermenêuticos de que estamos falamos não são apenas conceituais, pois o conhecimento simbólico das religiosidades evangélicas emerge de uma interação entre entendimento e as formas de fé, que são filtros através dos quais foram processadas a informação. Se alguém pensa tais categorias como um vigamento historicamente emergente de interpretação, em constante processo de formação, deformação e reforma, estamos diante de um salto como o das tecnologias de produção e reprodução em uma comunidade determinada. Começamos então a ver os modos em que processamos a experiência, onde o conhecimento é constituído em fluxo constante. Não é apenas uma questão de como pensamos, é uma questão de como vemos, ouvimos e tememos. As novas mídias abrem uma percepção nova e capacidades de apercebimento. O ponto em que se faz a troca também é uma questão importante. Uma das coisas que o estruturalismo nos ensinou é que em lugar de ser um local de origem, o texto deve ser entendido como constituído dentro e pelas redes de troca no qual está imbricado. É um tipo complexo de reversão. Pensando nessas estruturas como criadas por um tema original, temos que pensar no assunto como uma função das redes estruturais nas quais está situada. Essas redes estruturais levam a todos os tipos de formas. Podem ser econômicas, sociais, culturais, etc. Entender as religiosidades evangélicas como constituídas por redes de troca é muito importante. 

Assim, há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo brasileiro, o que implica em ressignificar o estudo da literatura sagrada, a liturgia nas igrejas e até mesmo os currículos dos seminários de teologia. A caminhada em direção às tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta da alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a comunidade local contribua para a espiritualidade mundial. O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptações às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade. 

A maioria do movimento evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanos. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento evangélico são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam. Tal fenômeno não é negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que o evangelicalismo local só é possível numa base cada vez mais global. 

Ou seja, para os as religiosidades evangélicas urbanas pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de religiosidade urbana viável. O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente complicações dispersas. A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade. Mas, e esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformida­de. Ou seja, dentro do conjunto movimento evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uniformidades. Podemos definir essa idéia dizendo que a urbanização envolve simultaneamente globalidade e localidade. 

É por isso que, quando falamos em religiosidade evangélica urbana, apontamos para a comunicação entre grupos, comunidades locais e confissões. Tal fenômeno é uma reação ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos. Essa comunicação, que chamo de interdenominacional, se faz em todos os níveis, está presente nas salas de aula, na presença marcada da mídia, e já chegou aos cultos e às liturgias. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferen­ça autêntica, mas faz uma descrição simbólica ao adequar religiosidade evangélica e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões. 

E deixamos a conversa 

Michael Löwy trabalha o desafio do pensamento das religiosidades evangélicas a partir de uma leitura weberiana, o que matiza os contornos aparentemente demoníacos da presença evangélica na política brasileira. Para ele, “os evangélicos são, no fundo, uma religião mágica. Eles acreditam que, fazendo certos rituais, orações ou mesmo dando dinheiro para a igreja, terão seus problemas resolvidos. Isso, para parte da população, sempre foi assim. Mas devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família, é fato. Por outro lado, essas igrejas são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas e, na maioria das questões sociais, regressivas. Além do quê, desenvolvem uma pretensa teologia da prosperidade que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo, que é bastante negativo.” [22]

Podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente agradáveis e facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura, que nos leva, a partir de Marramao, a falar de conflitualidade endêmica do mundo e, como consequência, dos dilemas que traz para a política e para a religião. Assim, faz a crítica da sociedade contemporânea, onde o presente é dominado pelo movimento incessante, onde ninguém consegue saborear o presente. E reconstrói a etimologia do tempo latino, onde são colocados o sentido interno de tempo, a síndrome temporal da pressa e a busca insana para se recuperar a posse da existência. 

Temos que ver, a partir de Marramao, que a realidade se expressa de forma imagológica na política das religiosidades evangélicas, fazendo com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelacem e produzam, como diz Giner, “mutações na vivencia e qualidade desses tempos”. [23] Assim, a bancada evangélica presente no Congresso brasileiro, ou seus representantes executivos expressem produções imagológicas de tempos, que apesar de suas volatilidades, acumulam de forma caleidoscópica mudanças no momento presente. 

Em seu livro Passagem ao Ocidente, filosofia e globalização, de 2003, Marramao faz uma análise do pensamento contemporâneo e como este se debruçou sobre a investigação da globalização. Mas procura evitar a ocidentalização da abordagem, delineando uma política global. Assim fez leituras de F. Fukuyama e Kojève e, consequentemente, do fim da História e à universalidade do individualismo competitivo. Atravessa, então, o conflito de civilizações que, após o colapso do Muro de Berlim, viu o globo mergulhado num conflito intercultural mundial. E, chegou com S. Latouche, à concepção da expansão planetária de dominação da tecnologia sob o controle da razão instrumental. 

Mas, para Marramao, a globalização deve ser vista como pressuposto típico da modernidade, na transição de um mundo fechado a um universo circum-navegável, que possibilita o encontro, mas também o choque de culturas, levando a sociedade a ser transformada por esse encontro diário, que se espraia a partir das megalópolis, mas que permanentemente desafia a nossa identidade. 

No percurso dessa compreensão da globalidade, vai além da crise do Estado-nação, agora personificada pelo Leviatã democratizado de John Rawls[24]. Aqui temos a reconstrução do princípio de universalidade da diferença, que se dá em esfera global, onde o mundo aparece como presença-imagem da racionalidade técnica e econômica, que influencia tudo e todos através da criação de um modelo único de sociedade e pensamento. E que, ao mesmo tempo, tira proveito da riqueza das diferenças para construir uma globalidade cosmopolita, onde todos podemos cultivar nossos politeísmo de valores. Globalidade e temporalidade, para Marramao, estão imbricadas. E para chegar à sua construção da temporalidade da globalização, fez a reconstrução das concepções de tempo nascidas na reflexão ocidental a partir da análise de Timeu de Platão, até chegar às discussões sobre a flecha do tempo na física. Mas, construindo uma reflexão sobre temporalidade/identidade, onde busca os pontos de contato entre as abordagens focadas na pessoa e as sociais. 

A síndrome da pressa, do tempo que falta, tornou-se parte do projeto moderno, numa racionalização da escatologia judaico-cristã, onde se busca o fim último do domínio da razão instrumental. Essa homogeneização, que se procura planetária, responde à síndrome da pressa repetindo, eternizando, a mesma cena neurótica, por não ser capaz de parar, considerando normal chegar sempre fora do tempo certo, tarde demais, vivendo a angústia e o trauma permanente da perda da oportunidade certa. Mas este projeto moderno, afirma Marramao, está em crise, e devemos olhá-lo com distanciamento, superando Weber, já que a racionalidade instrumental é um fenômeno típico do Ocidente, que não surgiu em nenhuma outra cultura, nem mesmo na China. É com este distanciamento que devemos analisar o capitalismo, debruçando sobre outras culturas, humildes na certeza de que têm algo a dizer e que podem nos ensinar a escapar da sociedade contemporânea e aprender a viver no presente, renunciando à idéia de que lá na frente algo bom e definitivo deve acontecer. 

Donde, o tempo kairós, tão caro à escatologia da religiosidade evangélica, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. Isto porque o tempo privado deixa de ser humano e passa a depender de condições e variáveis que incluem desde a situação mundial às situações físicas e psíquicas, plasmando tempos que esmagam pessoas e comunidades. 

Notas

[1] Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). Atua na área das Ciências da Religião, com especialização nas relações entre religião e política. 

[3] É importante notar que o ensino faz parte da ação protestante. E essa ação de ensino potencializa a conversão, que é novo sentido de vida, e deve alcançar todas as pessoas. Assim, a arte do educador está em sua capacidade de transformar o literalismo dos símbolos cristãos em interpretações conceituais sem destruir seu poder simbólico. Mas, nem todos educadores acham que isso seja possível. Outros se recusam a ajudar os alunos no caminho dessa transformação, ou se recusam a transmitir esses símbolos aos jovens enquanto eles não tiverem condições de interpretá-los. Para Tillich, as duas atitudes estão erradas, pois se deixamos de transmitir os símbolos cristãos aos jovens, estes só experimentarão seu poder numa conversão tardia. Paul Tillich, Teologia da Cultura, São Paulo, Fonte Editorial, 2009, pp. 206-207. 

[4] Entendemos religiosidade evangélica ou evangelicalismo conforme situado por Mendonça, quando diz que “a vertente vitoriosa do protestantismo, seu lado conservador, cuja extensão vai do evangelicalismo ao fundamentalismo radical, com sua rigorosa racionalidade, negou-se a rever suas posições tradicionais em relação às mudanças e desafios das novas realidades. Mantendo firme seu perfil de Deus e a correspondente configuração do mundo, perdeu sua maneira de agir e, portanto, a ética dinâmica de que foi portadora. Sua ética ascética mundana cedeu lugar a uma ética monástica”. Antonio Gouvêa Mendonça, idem, op. cit., pp. 99. 

[5] O ensino e o evangelismo são funções dinâmicas da igreja protestante. Tillich explica que “a igreja tem a função de responder à questão implícita na existência humana, isto é, a questão a respeito do sentido da existência. O evangelismo é um dos meios que ela usa para esse fim. O princípio do evangelismo consiste em mostrar às pessoas fora da igreja que os símbolos que ela usa são respostas às questões implícitas em sua existência. Porque se trata de mensagem de salvação e porque significa cura, a mensagem é apropriada à nossa situação”. Paul Tillich, idem, op. cit., p. 91. 

[6] Nasceu em Catanzaro, a 18 de outubro de 1946, e é filósofo, professor de Filosofia Política na Universidade de Roma III, diretor da Fundação Lelio Basso e membro do Colégio Internacional de Filosofia em Paris. Seus estudos se iniciaram com o marxismo e atualmente versam sobre questões políticas, culturais e simbólicas da globalização. 

[7] Giacomo Marramao, Poder e secularização, as categorias do tempo, São Paulo, UNESP, 1995. 

[8] Saulo Barbosa, A secularização e seus problemas conceituais. webartigos.com. Acesso 03/10/2015. 

[9] Benjamin Arthur Cowan, Nosso Terreno, crise moral, política evangélica e a formação da “Nova Direita” brasileira, VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 30, no 52, pp.101-125, jan/abr 2014. 

[10] Henrique Carneiro, O proibicionismo na gênese do evangelicalismo na política: a nova direita. WEB: blogconvergência.org. Acesso 03/10/2015. 

[11] Antonio Gouvêa Mendonça, Protestantes, pentecostais & ecumênicos, o campo religioso e seus personagens, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2009, pp. 97-98. 

[12] Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 205. 

[13] Mark C. Taylor, Awe and Anxiety, Los Angeles, Los Angeles Times, 28.09.2001. 

[14] Mark C. Taylor, About Religion: Economies of Faith in Virtual Culture, University of Chicago Press, 1999. 

[15] Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, Emerging Network Culture, Capítulo 1, “From Grid to Network”, University of Chicago, 2002, pp. 19-46. 

[16] Mark C. Taylor, The Moment of Complexity,op. cit., pp. 19-46. 

[17] Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, op. cit., pp. 19-46. 

[18] Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, op. cit., pp. 19-46. 

[19] Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, op. cit., pp. 19-46. 

[20] Jacques Derrida, Margens da Filosofia, Campinas, Papirus, 1997, p.312. 

[21] Mark C. Taylor e Esa Saarinen, Imagologies, Routledge, New York, 1994. 

[22] Michael Löwy, À brasileiros, sociólogo Michael Löwy propõe outra alternativa: o ecossocialismo. WEB: Brasileiros. Acesso em 03/10/2015. 

[23] Salvador Giner in Marramao, op. cit., p. 13. 

[24] John Rawls, A theory of justice, Steven M. Cahn (ed.), 1999.




Alegria infinita e eterna

Como é que as pessoas que abandonaram a fé podem se arrepender de novo? Elas já estavam na luz de Deus. Já haviam experimentado o dom do céu e recebido a sua parte do Espírito Santo. (5) Já haviam conhecido por experiência que a palavra de Deus é boa e tinham experimentado os poderes do mundo que há de vir. (6) Mas depois abandonaram a fé. É impossível levar essas pessoas a se arrependerem de novo, pois estão crucificando outra vez o Filho de Deus e zombando publicamente dele. (7) Deus abençoa a terra que recebe a chuva, a qual muitas vezes cai sobre ela e produz plantas úteis para aqueles que trabalham nela. (8) Mas a terra que produz mato e espinhos não serve para nada; ela corre o perigo de ser amaldiçoada por Deus e acaba sendo queimada”. (Hebreus 6.4-8).

Quem aceitou a Cristo como salvador e senhor e vive sua vontade não é uma pessoa piedosa, que foi à frente diante do apelo do pastor, ou cresceu numa família cristã. Tudo isso pode fazer parte da experiência, não é isso o que faz um cristão. É uma pessoa que recebeu a Cristo, através da fé, e ao aceitar a graça derramada fez dele seu Senhor e Salvador (João 3:16; Atos 16:31; Efésios 2:8-9).

Redenção que liberta

Quem aceitou a Cristo e foi regenerado é uma nova criação. “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; {criatura; ou criação} as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2 Coríntios 5:17). Esse versículo está falando de uma pessoa que se torna uma criatura completamente nova como resultado do estar em Cristo. Para um cristão perder salvação, a nova criação teria que ser cancelada. Deus deveria abortar a sua criação.

É uma pessoa redimida, pois “não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula” (1 Pedro 1:18-19). A palavra redimido (resgatado) significa a uma compra feita, com preço pago. Para um cristão perder a salvação, Deus mesmo deveria devolver a compra que foi paga com o sangue de Cristo. 

É justificado. “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Romanos 5:1). Justificar significa declarar justo. Todo aquele que recebe a Jesus como Salvador é declarado justo por Deus. Para um cristão perder salvação, Deus teria que negar a sua declaração. 

E tem a promessa da vida eterna. “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3:16). Esta é uma promessa de eternidade (para sempre) com Deus. Deus diz que para acreditarmos e assim alcançaremos a vida eterna. Para um cristão perder salvação, Deus deveria quebrar sua promessa e retirar a vida eterna.

E como presente eterno tem a garantia da glorificação. “E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou” (Romanos 8:30). Como aprendemos em Romanos 5:1, a justificação é declarada no momento da fé. De acordo com Romanos 8:30, a glorificação é garantida a todos a quem Deus justifica. Esse termo se refere a um cristão recebendo um corpo de ressurreição perfeito. Se um cristão pode perder a salvação, então Romanos 8:30 não é bem assim, porque Deus não garantiria a glorificação dos que Ele predestinou, chamou e justificou. 

Triunfo que liberta

As escrituras sagradas nos dizem que uma pessoa ao receber a Jesus Cristo como Senhor e Salvador não pode ter a salvação revertida. Um cristão não pode deixar de ser uma nova criatura. A redenção não pode ser desfeita. A vida eterna não pode ser perdida.

As objeções frequentes à doutrina cristã de que um cristão não pode perder a salvação são as seguintes: (1) o que dizer sobre aqueles que são cristãos e estão vivendo continuamente em um estilo de vida imoral? e (2) o que dizer daqueles que são cristãos mas rejeitam a fé e negam a Cristo? O problema com essas duas objeções é a suposição de que essas pessoas são cristãs. 

As escrituras sagradas dizem que um cristão não vai viver continuamente em um estilo de vida imoral (1 João 3:6). A Bíblia declara que aquele que abandona a fé demonstra que nunca foi cristão de fato (1 João 2:19). 

Se o verbo "recair" ou a expressão “perder a fé” que encontramos em Hebreus quer dizer pecar, então, ninguém jamais recebeu a salvação. E ninguém terá a salvação, porque quem não peca? Qual o crente que não peca? A Bíblia admite essa possibilidade (Prov. 24:16) e em suas páginas encontramos pecados dos discípulos de Cristo: Pedro pecou ao negar a Jesus.

Caso aceitemos que Pedro ao pecar apostatou, numa interpretação equivocada de Hebreus 6:4-8, teria sido impossível ele ser outra vez renovado pelo arrependimento.

Mais tarde também, Pedro cometeu pecado. E isso aconteceu depois dele ter presenciado várias vezes a manifestação do poder de Deus, inclusive na ressurreição de Tabita. E por causa do seu pecado foi repreendido pelo apóstolo Paulo (Gal.2:11).

Caso se admita a interpretação de apostasia/ perda da salvação, nem [mesmo] Pedro teria sido salvo. Tal interpretação de Hebreus, quando dirigida aos cristãos apresenta o sacrifício de Cristo como ineficaz. Mas, o texto de Hebreus, no entanto, não trata de crentes. Graças a Deus!

No capítulo anterior da carta aos Hebreus vemos que foi endereçada a três destinatários diferentes: aos cristãos, aos acomodados e aos nominais, ou seja, aos falsos irmãos (2Cor.11:26). Nos três últimos versos do capítulo cinco de Hebreus, a carta menciona os negligentes/ acomodados, sempre necessitados de leite, e os nominais/ falsos irmãos, que antes foram iluminados, mas não aceitaram a luz (6:4-6).

Nesses versículos dirigidos aos falsos irmãos a carta aos Hebreus não fala do que está acontecendo, mas do que aconteceu, foram iluminados, provaram, se fizeram, crucificaram, expuseram. Ao finalizar sua advertência aos que quase creram, a partir do v.9 volta a se dirigir aos cristãos (6:10). Dirigindo-se a estes que vivem Cristo a carta aos Hebreus exorta a que prossigamos (6:1).

No quadro de Hebreus 6 vemos duas categorias de pessoas: os cristãos e os nominais. Entre o versículo 1 e os versos 4-8, há uma profunda diferença de experiência. Os nominais ou falsos irmãos gozam de oportunidades, mas não se deixaram transformar, pois não aceitaram dar o passo da conversão de suas vidas.

Um cristão não perde a salvação. Nada separa um cristão do amor de Deus (Romanos 8:38-39). Nada remove um cristão da mão de Deus (João 10:28-29). Deus está disposto, garante e mantem a salvação que nos prometeu. Ou como afirma a carta de Judas 24-25: 

Deus pode evitar que vocês caiam e pode apresentá-los sem defeito e cheios de alegria na sua gloriosa presença. Por meio de Jesus Cristo, o nosso Senhor, louvemos o único Deus, o nosso Salvador, a quem pertencem a glória, a grandeza, o poder e a autoridade, desde todos os tempos, agora e para sempre! Amém!



jeudi 13 juillet 2017

Sim, eu creio


Você vai explodir!


Eis a potência termonuclear, poderosa e sutil, difícil de imaginar quando olhamos na materialidade do cotidiano. Mas ao detonar, a passagem se faz. É a páscoa de cada um, de todos nós. É travessia com potência não antes imaginada, mas que os humanos através de suas estórias relatam de formas diferentes.

É a passagem que o mestre de Nazaré relatou no seu último jantar com os amigos chegados. Ele sabia da explosão, da concentração que se expande em calor e luz, projetada no caminhar da existência, a iluminar os seus amigos e depois com energia todos que no correr da estória, e mais do que depois, se debruçassem sobre o eu sou o que sou, e num sussurro quase inaudível murmurassem quero a carne vicária, a aliança nova, que é eterna.

A travessia é momento único porque é o derramar da existência na eternidade. É momento de glória, que parece triste porque os olhos da materialidade sentem a explosão mas veem apenas o estar. Para isso somos potência termonuclear, para ir longe, mais além do que parece. É o ir destinado a todos, mas é ir especial para aqueles que atravessaram a existência com fome de eternidade. Por isso é pão e vinho. É alegria, é festa, porque rompe grilhões, escravidão, e abre o voo para o espaço prometido, para além do tempo, para o sem tempo sem fim.

O que era fermento, o que inchava de ar, numa alquimia supérflua do ego, está fora. Temos concentração que se faz expansão, força e luz. E é isso que celebramos no 14 nissan, para além das terras, sejam elas prometidas ou não, para além da busca de explicações com cores, dizeres e fazeres religiosos. 

O momento da explosão é banquete e o mestre de Nazaré ensinou isso. É momento vicário, onde carne é pão, onde sangue é vinho, onde existência é eternidade. O momento da explosão é aliança nova, não vivida antes, onde há comunhão entre o aqui e o mais além, entre o agora e o depois eterno. É chegada porque é encontro, porque se chega indo, ternamente, nesse abrir os braços que nasce da explosão termonuclear que somos, projetados em cores, energia e luz pelo eterno a dentro.

Esse é o momento da passagem, é minha, é sua, é páscoa humana. E diante dela, dizeres e fazeres religiosos repousam no passado, ficam fora do eterno. E nesse sentido somos libertos, projetados na eternidade, para a celebração eterna da vida. E isso é a páscoa de cada um, é a páscoa de todos. É a explosão da vitrine, que aqui chamamos concentração termonuclear de cada um. 

Para isso somos, para explodir em cores, energia e luz em direção ao espaço sem fim, ao eterno que se abre a partir do momento em que os olhos se fecham, para que todo o meu ser possa ver. 

(Pequena meditação numa manhã de seis de março de dois mil e dezesseis -- o nascer do mestre de Nazaré no coração, por Jorge Pinheiro).


A anteceder o aniversário de Mix Murakami
com alegria, amor e paz!