Poder e virtualidade – leituras a partir de Marramao, Taylor e Tillich
Jorge Pinheiro, PhD
Resumo
Nesta conversa Jorge Pinheiro, a partir de Marramao, Taylor e Tillich, apresenta tendências que pavimentam o pensamento evangélico, a secularização, o poder político e a virtualidade. E a partir daí analisa como o poder das imagens, que em parte se traduziu como fake news, norteou ações políticas e interferências na sociedade civil. Assim, Jorge Pinheiro confronta a laicidade e pensa uma República evangélica para o país.
Abstract
In this conversation Jorge Pinheiro, from Marramao, Taylor e Tillich, presents the secularization, politic power and virtuality as an evangelical thought. And from there it analyzes how the imagology guides political actions and interferences in the civil society. It confronts secularity and thinks an evangelical republic for the country.
Um querido amigo, já falecido, Antonio Gouvêa Mendonça, disse que “o velho protestantismo está cada vez mais distanciado dos novos movimentos de lastro cristão. Não se pode mais ignorar as significativas diferenças que há entre eles, sob pena de cometer equívocos nos resultados das pesquisas. O pesquisador atual não pode furtar-se ao, às vezes, penoso labor de precisar classificações e conceitos. É preciso que distinga bem, ao estudar qualquer novo movimento religioso, o limite exato em que o velho protestantismo deixa de estar presente. Quando seus princípios básicos de liberdade – a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes – não estiverem presentes ou se apresentarem obscurecidos por outras práticas religiosas, não há mais protestantismo”.
Para início de conversa
Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a academia encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se no século dezenove e primeiras décadas do século vinte É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos.
Conhecemos as dificuldades e limitações de Marx para entender o fenômeno religioso como criador e fundante de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora tenha caminhado no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formatou leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis.
Depois que o marxismo congelado pela burocracia estalinista entrou em crise, fato notório nas universidades europeias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reconhecido, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam como típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente.
Assim, o que poderia fazer a academia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E a explosão d a religiosidade evangélica passou a ser analisada como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal.
Mas, com o esfacelamento daquele marxismo que desabou com o muro de Berlim, nos anos 1980, e com o boom neoliberal que varreu o mundo, a academia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil apenas como um subproduto do mercado capitalista.
Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a academia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas, e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos?
Por que lá podemos utilizar o conceito de conversão trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas.
Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Mas, nessa conversa queremos utilizar como referencial três escritos, um de Giacomo Marramao, Potere e secolarizzazione, e outro de Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, Emerging Network Culture e um terceiro de Paul Tillich, La dimension religieuse de la culture. Desejamos, dessa maneira, conversar sobre a religiosidade evangélica a partir da virtualidade dos seus fundamentos, e do tempo e presença deste pensamento hoje no Brasil.
Em 2006, quando fiz a defesa de minha tese de doutorado, eu disse que meu objetivo era analisar desde um ponto de vista teológico o pensamento democrático solidáriona esquerda brasileira. E parti do teólogo Paul Tillich porque em seus escritos, principalmente na sua fase alemã, ele procurou mostrar que, por sua origem, a democracia solidária tem base religiosa e mais precisamente cristã. Nesse sentido, Tillich apresentou um roteiro e bases teóricas que permitiram tal abordagem teológica da democracia e do solidarismo nos movimento e partidos de trabalhadores.
Em A Decisão Socialista, afirmou que o socialismo, que entendemos como democracia social ou democracia solidária, foi um movimento de oposição, mas também de mão dupla, porque se por um lado era um movimento de oposição à sociedade burguesa, por outro, enquanto mediação, uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz da social democracia ajuda a compreender as raízes do pensamento político. Assim, na teologia política de Tillich seu primeiro referencial é o ser.
Nesse sentido, podemos dizer que Tillich fez uma fenomenologia política quando analisou questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procurou trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político conservador. E é a partir da análise do pensamento conservador que Tillich vai explicar o surgimento da democracia e do socialismo.
Caminhos da religiosidade
Uma das questões que nos perguntamos quando pensamos a crescente força da religiosidade evangélica é se, de fato, esta religiosidade outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, quando partimos da teologia, entendemos que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade tende a se expressar de diferentes formas de religiosidades.
E essas religiosidades nos grandes centros brasileiros ocupam um espaço privilegiado. Ora, se a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano, na realidade brasileira essa busca, por várias razões, foi e é direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a comunidade evangélica cresceu 61,45% em dez anos, conforme dados do IBGE de 2012. Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade foi catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos cento e cinquenta anos.
A espiritualidade traduzida nas religiosidades das cidades da alta modernidade está presente na cultura, na educação, na ética e na política. Por isso, na última década expoentes das comunidades se pronunciaram publicamente sobre questões que antes pertenciam estritamente a esfera civil não-religiosa.
De forma geral, numa leitura teológica judaico-cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade tende a ser traduzida na religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.
Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos. Diante dessa espiritualidade podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes e evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.
No Brasil de hoje podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para cristãos e não-cristãos, mas agora com a criação e combinação dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, os ritmos e tempos se interpenetram.
Em 1983, o cientista político italiano Giacomo Marramao lançou Potere e secolarizzazione, em que trabalha a controvérsia sobre tempo pagão e tempo cristão e, como consequência, a questão das imagens do mundo e as representações do tempo.
O conceito secularização não é apenas uma metáfora, que expressa o distanciamento progressivo da esfera religiosa enquanto poder, já que seu significado semântico continua em permanente construção. Para Marramao, é impossível reconstruir uma concepção unitária entre esfera religiosa e poder, devido suas polissemias, mas é necessário compreender suas ambivalências estruturais de significado. Assim, o paradoxo maior da secularização mostra-se enquanto conflito igreja versus secularidade, já que a igreja assume um caráter burocrático e a secularidade, cada vez mais, discute, opina e legisla sobre questões religiosas. Ou seja, há uma interseccionalidade de valores. Vemos, então, que a religiosidade evangélica busca institucionalidade e a secularidade cria características religiosas.
É de se entender que a secularização, enquanto fenômeno interseccional, possui significado de afirmação e de oposição entre o espiritual e o secular. Dessa maneira, a secularização se apresenta hoje, na alta modernidade sob três formas, o princípio da ação eletiva, o princípio da diferenciação e especialização progressiva, e o princípio da legitimação. E se falamos do princípio da ação eletiva, estamos a falar da emersão progressiva da pessoa na busca do significado do seu "eu" e da "consciência de si mesmo". Por isso, para Marramao, essa busca de sentido da pessoa, comporta um modo cultural particular de estabelecer uma linha demarcatória entre subjetividade e objetividade ... ou seja, de construir a realidade social.
Já o princípio da diferenciação e especialização progressiva nos mostra que quando o princípio eletivo se torna afirmativo, a adoção do critério de escolha fica em aberto. Esse critério de escolha está no âmbito da racionalidade instrumental, assim, Marramao dirá que a consequência será uma relação de mão dupla entre secularização e o crescimento da complexidade da vida social.
Ou seja, não se pode entender a secularização como um processo simples de dissolução da religião tradicional, mas como uma transformação de sua ordem de valores em diferentes ideologias institucionais. Assim, a secularização é sempre uma transformação. E a diferença entre dissolução e transformação na religiosidade evangélica pode ser vista hoje no Brasil.
Mas tal tendência não é novidade no mundo protestante. Marramao viu que dois teólogos protestantes procuraram analisar o processo de secularização e a consequente transformação da igreja protestante no século vinte. Para ele, não foi apenas “radical e profundo o enfoque do problema em Barth e Gogarten, cujo exame das relações entre cristianismo e mundo secularizado deu lugar em duas fases históricas diferentes a uma atualização substancial do estatuto teórico do conceito de secularização”.
E, de certa forma, devemos também fazer uma atualização da relação entre cristianismo e secularização hoje no Brasil, pois o movimento evangélico caminhou no sentido da secularização e da transformação da religiosidade evangélica, tendo agora já criado bases de poder.
Ou, como explica Marramao, “a progressiva secularização do poder se realiza, certamente, no âmbito de um desenvolvimento do sistema social, que ao mesmo tempo vê se prolongar o domínio do seu ‘ratio’ e fazer-se infinita a trama de suas relações internas. Mas ambos processos pressupõem ... uma seletividade do fazer e da experiência viva cada vez mais consciente”.
A Reforma protestante desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame dos textos sagrados cristãos e o sacerdócio universal dos fiéis. A partir desses conceitos de autonomia surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia reformada como fundamento de todos os protestantismos e também do movimento evangélico, com seus diferentes matizes e leituras.
Assim, a academia quando se debruçou sobre o fundamentalismo do movimento evangélico viu principalmente o seu lado integrista. É certo que a religiosidade evangélica é fundamentalista. Mas Mendonça explica o que isso significa:
“O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente".
Na verdade, a utilização da expressão fundamentalista para a religiosidade evangélica brasileira ou setores dela não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica.
O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE de 2007, hoje 83% da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Portanto, 8 em cada 10 brasileiros vivem em núcleos urbanos. Parte da população urbana concentra-se no Sudeste do país, em especial em grandes áreas metropolitanas como São Paulo, 17 milhões na Grande São Paulo, e Rio de Janeiro, mais de 10 milhões na Grande Rio.
Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações. O processo de modernização do país, na segunda metade do século vinte, gerou duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, que foram constituídas coração cultural e econômico do país, concentrando recursos e articulando em seu entorno uma constelação de aglomerações urbanas e cidades médias. Por outro lado, ocorreu nos últimos anos uma tendência à desconcentração de atividades - sobretudo industriais -, com o deslocamento de unidades produtivas do núcleo central de metrópoles como São Paulo para outras cidades e aglomerações urbanas de diferentes portes e localizadas em diferentes estados e regiões. E a redução no ritmo de crescimento populacional de São Paulo e do Rio de Janeiro é fato marcante, embora não signifique a redução do poder e influência nacional e internacional de ambas.
Crescem também outras aglomerações urbanas metropolitanas e não-metropolitanas e também o número de cidades médias por todo o país. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos.
E a religiosidade evangélica montou a cavalo no processo de urbanização, o que naturalmente levou à secularização e a uma permanente transformação. A procura evangélica por fundamentos é uma mostra de que o fenômeno não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe deem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos, que diante do fenômeno urbano visa minorar a força e presença crescente da secularização. E porque tal processo nesta alta modernidade não tem definições precisas e sólidas, as religiosidades evangélicas urbanas necessitam de um permanente olhar a frente. Assim, as necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descontentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos evangélicos presentes no espaço urbano.
Ao acrescentarmos a variável urbanização/secularização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobalizantes, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas, e o movimento evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido, esperança e vida para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade.
Os estudos publicados pelo IBGE mostram que em 1970 a população protestante e evangélica tinha 4,8 milhões de fiéis, e que em 1980 passou a 7,9 milhões. Constatou que na década de 90, a velocidade de crescimento das comunidades protestantes e evangélicas foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Assim, em 1991 chegou a 13,7 milhões; em 2000 a 26 milhões. E em 2010, a 42,3 milhões, ou seja 22,2% dos brasileiros. Atualmente, o movimento como um todo caminha para ser um quarto da população.
E dentro deste quadro, a construção de bases de poder acompanhou o processo de secularização. Devemos reconhecer, porém, que a multiforme culturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, coladas cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Assim, dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direção à alta modernidade.
Como vimos, uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra a religiosidade evangélica em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. E é expressão profunda de sua virtualidade.
Ortodoxia e heterodoxia
O pensamento solidário é o produto da evolução econômica e espiritual, que foi lentamente preparado e que se apresentou como pensamento político a partir da Renascença, da Reforma e com o surgimento do capitalismo. Ele surgiu em oposição ao pensamento autoritário da Idade Média e sedimentou suas bases nas criações culturais dos últimos séculos.
A ideia da busca da construção de sociedades mais justas e solidárias só pode ser compreendida a partir desse desenvolvimento e seu surgimento esteve ligado diretamente a esta evolução. Deve-se reafirmar, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as ideias de economias e políticas solidárias e que um pensar solidário sem estes pressupostos é um equívoco. Aqueles que defendem uma economia, uma política, enfim, uma sociedade solidária devem compreender sob que princípios tal solidarismo repousou.
A organização econômica e religiosa da Idade Média estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que, ancorado em leituras do sobrenatural, associava a natureza e o transcendente numa unidade que submetia pessoas e instituições.
A Reforma protestante, surgida a partir do pensamento humanista, que brotou a partir da Renascença, golpeou o sistema de autoridade, trouxe a fé pessoal, livre de amarras, para o plano formal, ao recorrer à autoridade das Escrituras. E, no plano material, valorizou a subjetividade da consciência.
Assim, apoiada formalmente sobre as Escrituras, a religião protestante produziu novas contradições, apesar do sistema centralizado da autoridade medieval já estar em frangalhos. Coube, a partir daí, às pessoas decidirem a que grupo queriam ligar-se: aos católicos ou aos protestantes.
Tal situação, no entanto, por razões geopolíticas, levou às guerras religiosas, fazendo com que as ideias de construção de sociedades livres e solidárias vivessem um processo lento, pois de cada lado, católicos e protestantes viviam a falsa esperança de que poderiam chegar a uma vitória exclusiva. Com o fim dos combates o que se viu foi que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, brotou a consciência autônoma nos mais variados campos, que se plasmou como consciência europeia ocidental, passando assim a atacar as muralhas autoritárias das religiosidades. E não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que os destroços do constrangimento autoritário.
E, ao nível do pensamento e da metodologia da produção científica, René Descartes deu o golpe decisivo no autoritarismo eclesiástico ao afirmar que a certeza que temos de nós mesmos é o princípio de toda certeza objetiva. E que, embora a autoridade não possa me livrar da dúvida, é em mim mesmo, na minha pessoa, somente, que se enraíza a certeza. Temos então, o Iluminismo, que constata como conclusão definitiva: toda tradição deve ser submetida à crítica. Está dada a partir desse momento, no plano teórico, a possibilidade da busca da construção de sociedades justas e solidárias.
Foi o processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão. E foi a vitória da razão que deu cara ao mundo moderno. A razão da razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pela ciência da natureza. Mas junto com o conhecimento via as ciências da natureza se construiu a cultura moderna. Surgiu com uma força irresistível na Renascença e levou a uma afirmação alegre do mundo, que durante muito tempo tinha sido desdenhado, negado e rebaixado por um outro mundo, místico.
Os outros mundos empalideceram diante da astronomia, diante da universalidadedas leis da natureza, da redescoberta da beleza na arte, da consciência de unidade entre finito e infinito na filosofia da natureza. E a imanência ressoou no humanismo e na filosofia das Luzes, da mesma maneira que o socialismo se uniu à consciência da autonomia e à fé no poder transformador da razão. Este é o terceiro fato que o cristianismo deve levar em conta, afirmou Tillich. Se este solidarismo social é uma herança da cultura universal, ele tem, no entanto, uma originalidade que não se restringe aos conceitos, mas à experiência da vida vivida.
O conceito de humanidade, que manifesta a vitória da idéia de solidariedade – justiça, paz e alegria --, não teve na evolução da burguesia mais que uma realização acidental. A consciência da humanidade foi neutralizada pela consciência de classe, pela educação para uma elite e de dependência nacional. A humanidade se colocou antes de tudo no campo das confissões religiosas, sob formas absolutamente contrárias a idéia de uma transformação racional do mundo. Foi pela pressão dos trabalhadores nos primeiros decênios do moderno capitalismo -- bem unidos façamos, nesta luta final, duma Terra sem amos, a Internacional --, que nasceu uma consciência solidária, na qual está presente o sentimento universal de humanidade.
O combate contra o feudalismo, contra o capitalismo, contra o nacionalismo e contra o confessionalismo religioso constituiu uma expressão da consciência de humanidade, que derruba barreiras e reconhece o humano em cada pessoa. Este é o quarto fato que o cristianismo deve levar em conta, afirmou Tillich.
O que fica claro é que autonomia e socialismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade europeia no período que se abriu a partir do Iluminismo e que pôs em xeque o autoritarismo e a tradição, serviria de base para a ação social democrata. Autonomia é o momento supremo da imanência e da razão, e é a partir daí que o solidarismo construiu um sentimento unitário do mundo e da vida.
A luta dos trabalhadores contra a alienação e exclusão social gerou consciência solidária e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo da autonomia, sem uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da própria autonomia, o socialismo deixa aberto o caminho para o autoritarismo e o arbítrio.
Quando olhamos o socialismo latino-americano a partir da crítica ao eurocentrismo, podemos dizer que hoje se repete o que sucedeu há quinhentos anos com a conquista da América: o homem europeu, e por extensão estadunidense, constituiu o sentido do ser latino-americano e do brasileiro, encontrado a partir da totalidade de sentido europeia. Na verdade, o habitante da América índia, negros e mestiços não foramvistos como um outro, autônomo, mas como o mesmo já conhecido e, em seguida ocultado e negado, transformado em objeto do ego moderno.
O ponto fundamental dessa crítica é que a Europa, num primeiro momento, e os Estados Unidos depois descobriram um novo espaço geográfico, compreendeu-o como horizonte fundamental do ser do centro, campo de batalha no qual deveria exercer uma práxis de dominação [20]. Tal formulação reconstruiu o sistema ontológico, e a partir da exterioridade negou o outro, seu rosto, sua corporeidade, negou-o como sujeito ético, que grita e reclama justiça. Os excluídos de tal sistema cultural ocidental deveriam ser domesticados, entendidos como periferia cuja salvação repousaria na absorção da racionalidade eurocêntrica.
Diante das massas crescentes de deserdados que tomaram consciência de sua negação originária como subjetividade excluída ou objetivada dentro do sistema dominante, os poderosos utilizaram a guerra e, se admitiram o diálogo, foi no interior de sua comunidade de comunicação hegemônica, que não garante o desenvolvimento e a reprodução da vida humana. A teologia deve pensar a realidade mundial além dasfronteiras do centro, que distinguem entre populações dotadas de direitos e poderes e populações excluídas e utilizadas como instrumentos manipuláveis.
A virtualidade como razão de ser
No protestantismo clássico, os teólogos magisteriais controlaram suas produções a partir de estruturas e procedimentos ordenados. Isso é tudo o que podemos fazer em um mundo complexo? Se for, a institucionalidade das confissões judaico-cristãs estão destinadas a seguir o caminho do Tyrannosaurus rex. A tentativa de estabilizar o sistema leva a torná-lo incapaz de interagir com o mundo e possibilitar a criação de alternativas futuras. Os intérpretes modernos enfatizaram que as culturas e os valores compartilhados são essenciais para fazer a leitura da religiosidade judaico-cristã.
Em condições dinâmicas, onde fé e linguagem religiosas são formados por múltiplas e variadas possibilidades, onde hermenêuticas monolíticas falharão na geração da criatividade religiosa necessária para dotar as confissões de compreensões adequadas. Por isso, as diversidades de opiniões e abordagens são importantes. O pensamento único, que não comporta diferentes visões, pode ter sido um dos fatores cruciais para a crise de parte das confissões judaico-cristãs no mundo moderno e, em especial, nas últimas décadas do século vinte. Os hermeneutas modernos acreditaram que o sucesso da fé e linguagem religiosas poderia repousar exclusivamente na manutenção do equilíbrio interno da origem fundante, mas se isso fosse possível, a própria fundação teria deixado de apresentar novidade e a liberdade da religiosidade no século vinte deveria ter sido reduzida à escolha da adaptação certa ou errada.
Mas no mundo da complexidade hermenêutica os riscos são muito maiores. Primeiro porque equilíbrio exclusivo e permanente da internalidade religiosa significa morte, exatamente o contrário do que pensava a velha hermenêutica. Segundo porque em condições não-estáveis o ambiente humano também se fez presente na religiosidade, tanto quanto ele no ambiente humano. As implicações disto significam que as compreensões hermenêuticas não podem culpar o mundo por suas falhas: elas devem ser vertiginosamente livres para criar o próprio futuro religioso.
Há um verso de Nietzsche que pode nos servir de guia para uma hermenêutica da religiosidade evangélica na alta-modernidade:
“Agora celebramos, seguros da vitória comum, a festa das festas: O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes! Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina, é hora do casamento entre a Luz e as Trevas...”
Nietzsche pensava a ausência de horizontes. Em Além do Bem e do Mal, ele pensa contra a modernidade: faz um libelo contra os valores da modernidade, como o sentido histórico, a objetividade científica e, logicamente, a fé numa razão autônoma. Assim, é o caso de perguntar: é possível continuar existindo algum contato com a chamada realidade hermenêutica, quando a virtualidade, por exemplo, fica indistinguível e até mesmo mais autêntica que o original, quando podemos criar mundos sintéticos que são mais reais que o real, quando a tecnologia glosa a natureza? Quando a hermenêutica livre das dogmáticas confessionais faz caminhos como o filme Matrix?
Mark C. Taylor, hermeneuta estadunidense, percorre sob outras condições questionamentos idênticos aos levantados por Nietzsche. Ao trabalhar a questão da virtualidade na comunidade religiosa da alta-modernidade, utiliza um conceito que já vinha sendo usado na crítica literária, a idéia de imagologia. Antes, na teoria literária, e agora na hermenêutica de Taylor, a identidade do texto não pode ser encarada como uma forma de ser plena e apriorística, mas como realidade dinâmica ou relacional, onde se cruzam questões de identidade textual e comunitária, o que também se dá na virtualidade, que acaba sempre por revelar uma dimensão estrangeira, que é manifestação de um outro. Na medida em que há constante busca identitária, o confronto com este outro supõe sempre uma comparação, explícita ou implícita, e se integra naquilo que na terminologia de Taylor será a imagologia, estudo das representações do outro, que também pode ser entendido como virtualidade.
Nos últimos anos essa questão tem sido tema da simbologia da revelação dos textos sagrados, como da própria teologia. As mídias têm demonstrado a força das realidades artificiais. Essa questão, realidade e imagem na comunidade imagológica, já tinha sido analisada por psicólogos da escola piagetiana. Segundo eles, é difícil ensinar a pensar de modo lógico a um menino que está sob o bombardeio de imagens distantes da lógica, como acontece nos programas infantis. E onde até mesmo as entrevistas ao vivo fazem parte da criação de algum gênio da publicidade. A moda e os shows de rock, por exemplo, fazem parte desta realidade onde o que é apresentado pelo entrevistador não tem nada a ver com a realidade da audiência ou com o próprio intérprete e seu produto, já que suas imagens sofrem uma transformação mágica para poder ser popular, ou pelo menos este é o objetivo.
Para Taylor, a comunidade imagológica leva à ansiedade que circula acima e debaixo do chão, que tem crescido e emaranhou-se num complexo tecnológico e financeiro.
“Com a informação e o dinheiro que correm ao redor do mundo à velocidade da luz, nenhum de nós está seguro, porque qualquer um está no controle. As redes de terroristas assombram a estrutura e através da Web atuam nas comunicações e sistemas financeiros globais. Eles foram mais efetivos utilizando as tecnologias contra nós do que nós em nossa capacidade de usar essas tecnologias contra eles. Nós não seremos capazes de enfrentar redes de terroristas até que melhoremos a compreensão da lógica e operação de nossas próprias redes. Nestas teias emaranhadas e nas redes, está o limite entre nós e eles, dentro e fora, para quem nada é fixo e imóvel, mas restos fluidos e móveis”.
E essa é uma discussão sobre o sentido da hermenêutica, porque vivemos um momento de complexidade sem precedentes, onde as coisas mudam mais rapidamente que nossa habilidade de compreender. Por isso devemos resistir à tentação de procurar respostas simples, pois o que antes era força interpretativa da hermenêutica moderna agora é fraqueza que nos deixa abandonados à mercê da sorte. Diante disso, será possível distinguir entre realidade e virtualidade na comunidade imagológica evangélica, se a tecnologia constrói a nova realidade? Bem, vivemos um mundo colocado em processo de equilíbrio instável, e para entendê-lo devemos ir às margens do sistema.
A complexidade hermenêutica, na alta modernidade, é vista como marginal e fenômeno emergente. Não está fixa, porque a complexidade é móvel, momentânea e o momento marginal de seu aparecimento é inevitavelmente complexo. Longe de ser um estado, esse momento emergente da hermenêutica reconstitui o fluxo de tempo, enquanto impulso que mantém a religiosidade em movimento. É significante que a palavra momento derive da idéia de impulso em latim, mostrando movimento como sendo também impulso. Embora frequentemente representasse um ponto simples, o momento hermenêutico é inerentemente complexo. Seus limites não podem ser firmemente estabelecidos, porque sempre estão trocando de modos, que dão fluidez ao momento. Na hermenêutica da alta modernidade vivemos o domínio do intermediário, que a teoria da complexidade procura entender.
A dinâmica do caos e da complexidade da hermenêutica parte de certas características que diferem em importância e modos. Um sistema complexo é um sistema único composto de partes compatíveis, que interagem entre si e que contribuem para sua função básica, sendo que a remoção de uma das partes faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente. Um sistema de tal complexidade não pode ser produzido diretamente, isto é, pelo melhoramento contínuo da função inicial, que continua a atuar através do mesmo mecanismo, mediante modificações leves, sucessivas, de um sistema precursor.
O exemplo mais popular de complexidade irredutível foi apresentado por Michael Behe, em seu estudo A caixa preta de Darwin: é a ratoeira. Ela tem uma função simples, pegar ratos, e possui várias partes: uma plataforma, uma trava, um martelo, uma mola e uma barra de retenção. Se qualquer uma dessas partes for removida, o aparelho não funciona. Portanto, é irredutivelmente complexo. Um automóvel, em contrapartida, pode funcionar com os faróis queimados, sem as portas, sem para-choques, embora chegará um momento em que haverá um mínimo de peças essenciais para seu funcionamento. Originariamente, a teoria do caos foi desenvolvida como um corretivo para os sistemas fechados e lineares de físicas de Newton, pois diante da ausência de ordem, caos é uma condição na qual a ordem não pode ser averiguada por causa da insuficiência de informação. Enquanto a física de Newton imagina um mundo abstrato governado por leis definidas, que determinavam completamente as coisas reais, a globalidade não é transparente porque não temos a informação adequada e necessária para estabelecer leis, assim toda operação é sempre inacessível. A partir dessa compreensão da teoria do caos e da complexidade, duas razões hermenêuticas podem ser destacadas na abordagem das religiosidades evangélicas.
Primeiro que os sistemas finitos, como é o caso dessas religiosidades, não estão fechados, mas são sistemas abertos. E segundo que os sistemas ou estruturas das religiosidades evangélicas envolvem relações que não podem ser entendidas apenas em termos de modelos lineares de causalidade. Nos sistemas religiosos evangélicos recorrentes é impossível medir as condições iniciais com precisão para determinar as relações causais num período limitado de tempo. Então, a imprevisibilidade é inevitável. Ao contrário dos sistemas lineares, nos quais causas e efeitos são proporcionais, nos sistemas das religiosidades evangélicas recorrentes, a avaliação é complexa, porque esses sistemas se auto-alimentam da vida de seus fiéis e na recorrência geram causas que podem ter efeitos desproporcionados. Em contraste com a teoria do caos, a teoria da complexidade está menos interessada em estabelecer a fuga ou o caos determinado, pois oscila entre ordem e caos. Assim, o momento de complexidade é o ponto no qual ecossistemas organizados emergem para criar novos padrões de coerência e estruturas de relação.
Embora tenha se desenvolvido fora das investigações hermenêuticas das religiosidades evangélicas, a percepção de teoria da complexidade pode ser usada para iluminar as questões da interpretação desta religiosidade hoje no Brasil. Aliás, poderíamos até nos perguntar o que há de comum entre as moléculas que se apressam em auto-reproduzir metabolismos, as células que coordenam esses comportamentos para formar organismos multicelulares e os sistemas das religiosidades evangélicas? E a resposta, complexa, é óbvia: a possibilidade da vida, que faz a travessia de um regime equilibrado de ordem e caos, é o que há de comum entre esses processos. Donde a hipótese hermenêutica maior é esta: a vida existe enquanto extremidade do caos. Partindo da metáfora da física, a vida existe ao lado de um tipo de transição de fase. A água existe em três estados, gelo sólido, água líquida e vapor gasoso. Começamos a ver que idéias semelhantes podem ser aplicadas aos sistemas hermenêuticos complexos. Sabemos que as redes de genomas que controlam o desenvolvimento do zigoto podem existir em três regimes: ordenado congelado, caótico gasoso e líquido aquoso, localizados na região entre ordem e caos. É uma hipótese impressionante que sistemas de genomas ordenem regimes de transição entre uma ordem e o caos. Em tais sistemas, o regime ordenado congelado também coordena as sucessões complexas das atividades genéticas necessárias. Mas, nessas redes, também o regime gasoso caótico, perto da extremidade de caos, pode coordenar atividades complexas e evoluir. A partir das redes, a análise pode ser estendida às comunidades e às dimensões culturais, ou seja, por extensão às leituras interpretativas. Assim, equilibrado entre uma pequena ou grande ordem, o momento de complexidade da hermenêutica na alta modernidade é o meio no qual emerge a cultura de rede.
Taylor projeta a discussão da teoria da complexidade para a hermenêutica ao afirmar que a noção de que as fundações tenham desaparecido é ameaçadora para muitas pessoas, mas que esse assunto é um tema recorrente nas ciências da religião. Pensadores importantes na história de filosofia ocidental, como Nietzsche, colocaram tal discussão na ordem do dia e influenciaram pensadores da alta modernidade como Derrida. Uma das coisas que golpeia o pensamento moderno é a ênfase desses filósofos na importância de entender que a idéia de fim de fundamentos é uma metáfora, assim como a teoria da complexidade também é uma metáfora. Ou como afirma Derrida, a metáfora é determinada pela filosofia como perda provisória de sentido, economia sem prejuízo irreparável de propriedade, desvio inevitável, mas história com vista e no horizonte da reapropriação circular do sentido.
É por isso que a avaliação filosófica foi sempre ambígua: a metáfora é estranha ao olhar da intuição, do conceito e da consciência. E Derrida dirá que a metafísica é a superação da metáfora, donde ao discutir a hermenêutica devemos levar em conta que há rastros da metafísica nas palavras que usamos: entender é um exemplo disso. Entender algo é não agarrar alguma coisa superficialmente.
O ato cognitivo envolve apreensão dentro de condições de superfície e relativos à profundidade. A distinção entre informação e entendimento é muito complexa. No domínio onde as pessoas pensam em informação devemos falar de sobrecarga de informação. Somos bombardeados com informação de todos os tipos. Entender é um modo de organizar e estruturar a informação. Na revolução da informação, dispositivos filtrantes estão começando a emergir. É crucial entender o poder das hermenêuticas que criam estas grades culturais. Este é um dos temas de Imagologies.E essas grades culturais, por sua vez, desenvolvem-se e mudam para prover vigamentos interpretativos que criam possibilidades de construção da compreensão de informação na qual estamos imersos. Temos, então, dois mundos, um é o mundo tradicional, o mundo da religiosidade protestante histórica tal como o recebemos. É um mundo platônico, no qual o assunto percebido é colocado num nível agradável de fundação. Este mundo está presente, mas também está acima, é a transcendência. Esse modelo se torna um modo de saber. Quando começamos a conceber algo, concebemos figurando em termos de modelo. Através do contraste descrevemos um mundo no qual um modelo diferente predomina. Temos interações de planos, modelos e processos.
As religiosidades evangélicas, assim entendidas, podem ser chamadas de locais de consumo, e apontam para a utopia de uma República evangélica. Mas uma estrutura não é aquilo que alguém busca, pois as religiosidades enfatizam movimento e troca, troca de informação, etc. Os modelos hermenêuticos de que estamos falamos não são apenas conceituais, pois o conhecimento simbólico das religiosidades evangélicas emerge de uma interação entre entendimento e as formas de fé, que são filtros através dos quais foram processadas a informação. Se alguém pensa tais categorias como um vigamento historicamente emergente de interpretação, em constante processo de formação, deformação e reforma, estamos diante de um salto como o das tecnologias de produção e reprodução em uma comunidade determinada. Começamos então a ver os modos em que processamos a experiência, onde o conhecimento é constituído em fluxo constante. Não é apenas uma questão de como pensamos, é uma questão de como vemos, ouvimos e tememos.
E aí entram cultura e política, e questões como aborto, feminismo e homossexualidade, entre outros. E neste ver, ouvir e temer, as mídias abrem uma percepção nova e capacidades de apercebimento. O ponto em que se faz a troca também é uma questão importante. Uma das coisas que o estruturalismo nos ensinou é que em lugar de ser um local de origem, a religiosidade deve ser entendida como constituída dentro e pelas redes de troca na qual está imbricada. É um tipo complexo de reversão. Pensando nessas estruturas como criadas por um tema original, temos que pensar no assunto como uma função das redes estruturais nas quais está situada. Essas redes estruturais levam a todos os tipos de formas. São culturais, políticas, sociais. Entender as religiosidades evangélicas como constituídas por redes de troca é muito importante.
Assim, há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo, o que implica em ressignificar o estudo da literatura sagrada, a liturgia nas comunidades e até mesmo os currículos dos seminários de teologia. A caminhada em direção às tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta na alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a comunidade local contribua para a espiritualidade mundial.
O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptações às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade.
A maioria do movimento evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanos. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento evangélico são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam. Tal fenômeno não é negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que a religiosidade evangélica local só é possível numa base cada vez mais global. Ou seja, para os as religiosidades evangélicas urbanas pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de religiosidade urbana viável.
O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente complicações dispersas. A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade. Mas, e esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformidade. Ou seja, dentro do conjunto movimento evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uniformidades. Podemos definir essa idéia dizendo que a urbanização do evangelicalismo envolve simultaneamente globalidade e localidade.
É por isso que, quando falamos em religiosidade evangélica urbana, apontamos para a comunicação entre grupos, comunidades locais e confissões. Tal fenômeno é uma reação ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos. Essa comunicação, que chamo de interdenominacional, se faz em todos os níveis, está presente nas salas de aula, na mídia, e já chegou aos cultos e às liturgias. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferença autêntica, mas faz uma descrição simbólica ao adequar religiosidade evangélica e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões.
E deixamos a conversa
Michael Löwy trabalha o desafio do pensamento das religiosidades evangélicas a partir de uma leitura weberiana, o que matiza os contornos aparentemente demoníacos da presença evangélica na política brasileira. Para ele, “os evangélicos são, no fundo, uma religião mágica. Eles acreditam que, fazendo certos rituais, orações ou mesmo dando dinheiro para a igreja, terão seus problemas resolvidos. Isso, para parte da população, sempre foi assim. Mas devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família, é fato. Por outro lado, essas igrejas são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas e, na maioria das questões sociais, regressivas. Além do quê, desenvolvem uma pretensa teologia da prosperidade que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo, que é bastante negativo.”
Podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente agradáveis e facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura, que nos leva, a partir de Marramao, a falar de conflitualidade endêmica do mundo e, como consequência, dos dilemas que traz para a política e para a religião. Assim, faz a crítica da sociedade contemporânea, onde o presente é dominado pelo movimento incessante, onde ninguém consegue saborear o presente. E reconstrói a etimologia do tempo latino, onde são colocados o sentido interno de tempo, a síndrome temporal da pressa e a busca insana para se recuperar a posse da existência.
Temos que ver, a partir de Marramao, que a realidade se expressa de forma imagológica na política das religiosidades evangélicas, fazendo com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelacem e produzam, como diz Giner, “mutações na vivencia e qualidade desses tempos”. Assim, a bancada evangélica presente no Congresso, ou os ministros de Estado do governo Temer expressem produções imagológicas de tempos, que apesar de suas volatilidades, acumulam de forma caleidoscópica mudanças no momento presente.
Em seu livro Passagio a Occidente: loso a e globalizzazione, Marramao faz uma análise do pensamento contemporâneo e como este se debruçou sobre a investigação da globalização. Mas procura evitar a ocidentalização da abordagem, delineando uma política global. Assim fez leituras de F. Fukuyama e Kojève e, consequentemente, do fim da História e à universalidade do individualismo competitivo. Atravessa, então, o conflito de civilizações que, após o colapso do muro de Berlim, viu o globo mergulhado num conflito intercultural mundial. E, chegou com S. Latouche, à concepção da expansão planetária de dominação da tecnologia sob o controle da razão instrumental.
Mas, para Marramao, a globalização deve ser vista como pressuposto típico da modernidade, na transição de um mundo fechado a um universo circum-navegável, que possibilita o encontro, mas também o choque de culturas, levando a sociedade a ser transformada por esse encontro diário, que se espraia a partir das megalópolis, mas que permanentemente desafia a nossa identidade.
No percurso dessa compreensão da globalidade, vai além da crise do Estado-nação, agora personificada pelo Leviatã democratizado de John Rawls. Aqui temos a reconstrução do princípio de universalidade da diferença, que se dá em esfera global, onde o mundo aparece como presença-imagem da racionalidade técnica e econômica, que influencia tudo e todos através da criação de um modelo único de sociedade e pensamento. E que, ao mesmo tempo, tira proveito da riqueza das diferenças para construir uma globalidade cosmopolita, onde todos podemos cultivar nosso politeísmo de valores. Globalidade e temporalidade, para Marramao, estão imbricadas. E para chegar à sua construção da temporalidade da globalização, fez a reconstrução das concepções de tempo nascidas na reflexão ocidental a partir da análise de Timeu de Platão, até chegar às discussões sobre a flecha do tempo na física. Mas, construindo uma reflexão sobre temporalidade e identidade, onde busca os pontos de contato entre as abordagens focadas na pessoa e as sociais.
A síndrome da pressa, do tempo que falta, tornou-se parte do projeto moderno, numa racionalização da escatologia judaico-cristã, onde se busca o fim último do domínio da razão instrumental. Essa homogeneização, que se procura planetária, responde à síndrome da pressa repetindo, eternizando, a mesma cena neurótica, por não ser capaz de parar, considerando normal chegar sempre fora do tempo certo, tarde demais, vivendo a angústia e o trauma permanente da perda da oportunidade certa. Mas este projeto moderno, afirma Marramao, está em crise, e devemos olhá-lo com distanciamento, superando Weber, já que a racionalidade instrumental é um fenômeno típico do Ocidente, que não surgiu em nenhuma outra cultura, nem mesmo na China. É com este distanciamento que devemos analisar o capitalismo, debruçando sobre outras culturas, humildes na certeza de que têm algo a dizer e que podem nos ensinar a escapar da sociedade contemporânea e aprender a viver no presente, renunciando à idéia de que lá na frente algo bom e definitivo deve acontecer.
Donde, o kairós, o tempo bom, tão caro à escatologia judaico-cristã, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. Ou seja, as religiosidades evangélicas por sua virtualidade colocam desafios culturais – éticos e políticos – à laicidade brasileira, isto porque o tempo privado deixou de ser humano e passou a depender de condições e variáveis que incluem desde a situação mundial às situações físicas e psíquicas, plasmando tempos que esmagam pessoas e comunidades.
E vale a pena lembrar ao deixar esta conversa que não estamos diante de uma teoria do colapso do protestantismo histórico, porém daquilo que ainda não foi examinado com suficiente atenção. Donde estamos desafiados à recolocação de diferentes e novas expressões teóricas. E o caráter desorientador que estudiosos e pesquisadores veem nas religiosidades evangélicas não devem se traduzir em demonização, mas buscar compreensões culturais e históricas que nos levem a uma atualização do pensar a religião no Brasil, reconhecendo que não estamos diante de nuvem passageira, mas de realidades que interagem profundamente com os problemas do estar brasileiro hoje.
Se entendermos esse processo de construção da dominação, podemos analisar o processo de gestação do Partido dos Trabalhadores a partir da exposição que Tillich fez acerca da passagem da heteronomia à autonomia e, posteriormente, à teonomia, enquanto ciclos que procuram romper a lógica de ferro da dominação. Para ele, os movimentos de massa são encontrados em movimentos religiosos, nos movimentos políticos e raciais de imigrantes e nos movimentos econômicos do socialismo [21].Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, também o são em diferentes esferas da cultura. Mas sempre são movimentos de libertação: já que é parteira de escravos, de povos excluídos, ou de escravos livres, trabalhadores assalariados, que a industrialização levou a uma dinâmica de massa que transbordou a história [22].
Notas
[20] Alessia Ansaloni, A nova Conquista: análise de um filósofo periférico, Universidade de Bolonha.
[21] Idem, op.cit., p. 81.
[22] Idem, op. cit., p.81.
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