mercredi 19 mai 2021

Para compreender Paul Tillich

Jorge Pinheiro
Prof. Dr. Ciências da Religião.

Introdução

Como ler Tillich

Nossa abordagem visa procurar inspiração e não tomar as ideias e argumentos de Paul Tillich como cânone. Entendemos que seus escritos foram elaborados sob condições especiais e refletem conjunturas e realidades peculiares à modernidade do século vinte e por isso nos servem de roteiro para reflexão e não como palavra revelada.

Herdeiro do pensamento alemão do século dezenove, Paul Tillich é devedor do idealismo alemão, em especial de Hegel e Schelling, mas é a partir de 1919, na Alemanha destruída pela I Guerra Mundial que começa a trabalhar sobre a ideia de uma teologia da cultura. 

Para Tillich, a cultura tem uma leitura diferente daquela que terá para a antropologia da segunda metade do século vinte, que inclui a produção humana em toda a sua riqueza e diversidade. Para ele, cultura é a produção da intelectualidade ilustrada europeia. E por baixo das manifestações culturais específicas se faz presente a religião. Assim, para Tillich, a religião expressa o incondicionado, dando margem a manifestações especiais, que se apresentam enquanto cultura. Daí seu interesse em manter um permanente diálogo com artistas, escritores e com o mundo social-democrata da época. Dessa maneira, durante toda sua vida Tillich será um teólogo da cultura e um filósofo da religião. 

1. Breve resumo histórico

Paul Tillich nasceu na Prússia, na aldeia de Starzeddel, província de Brandeburgo, em 1886, filho de pastor luterano. Morreu em 1965 nos Estados Unidos.

1910 -- Graduou-se doutor em Filosofia, em Breslau.

1912 – Licenciou-se em Teologia (Halle) e tornou-se capelão militar. Burguês liberal e idealista, nessa época, chegou à conclusão que as classes pobres eram exploradas pela aristocracia fundiária, pelo Exército, pela Igreja e pelo Estado.

1915 – A grande transformação

“A transformação ocorreu durante a batalha de Champagne, em 1915. Houve um ataque noturno. Durante toda a noite, não fiz outra coisa senão andar entre feridos e moribundos. Muitos deles eram meus amigos íntimos. Durante toda aquela longa e terrível noite, caminhei entre filas de gente que morria. Naquela noite, grande parte da minha filosofia clássica ruiu em pedaços; a convicção de que o homem fosse capaz de apossar-se da essência do seu ser, a doutrina da identidade entre essência e existência... Lembro-me que sentava entre as árvores das florestas francesas e lia Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche, como faziam muitos outros soldados alemães, em contínuo estado de exaltação. Tratava-se da liberação definitiva da heteronomia. O niilismo europeu desfraldava o dito profético de Nietzsche, ‘Deus está morto’. Pois bem, o conceito tradicional de Deus estava mesmo morto”. Revista Time, 6/5/59, p. 47.

Para Tillich era preciso abandonar aquele Deus concebido pela teologia do século 19 e fazer o cristianismo responder aos problemas e às exigências contemporâneas.

1920 – Escreve Cristianismo e Socialismo.

Funda, então, na Alemanha, após a Primeira Grande Guerra, um movimento chamado Socialismo Religioso, que tinha por base a afirmação de que “sem fundamento religioso nenhuma sociedade pode salvar-se da destruição”. Apesar de seus esforços a classe operária alemã não adere ao movimento, como Tillich pretendia. O movimento fracassa.

1925 – Começa a escrever sua Teologia Sistemática, cujo primeiro volume só será publicado em 1952.

1933 – Escreve A Decisão Socialista, que é apreendida pela polícia nazista, levando-o a migrar para os Estados Unidos, nesse mesmo ano. Nos EUA, leciona primeiro no Union Theological Seminary, depois, já aposentado na Universidade de Harvard e no final de sua vida no Divinity School de Chicago, onde morre em 1965.

Paul Tillich sofreu influência da teologia dialética de Barth (mais tarde se tornarão adversários declarados) e do existencialismo de Heidegger. Mas, na verdade, sua reflexão terá dois direcionamentos: busca redefinir o conceito de religião (Filosofia da Religião, 1925) e mostrar a interdependência entre religião e cultura (Teologia da Cultura, 1959). Sua Teologia Sistemática está umbilicalmente ligada a essa preocupação.

“Caso perguntasse a uma pessoa que tivesse ficado impressionada com os mosaicos de Ravena ou com as pinturas da cúpula da Capela Sistina ou com os retratos do último Rembrandt, se sua experiência teria sido religiosa ou cultural, ela acharia difícil responder a tal pergunta. Poderia ser correto dizer que essa experiência é cultural na forma e religiosa na substância. É cultural porque não está vinculada a um ato ritual específico, mas é religiosa porque toca o problema do Absoluto e os limites da existência humana”.

2. Teologia

É considerado o maior pensador sistemático do século vinte. Sua teologia pode ser situada como um diálogo entre a teologia liberal e a neo-ortodoxia. 

Ø Barth (fideísmo) versus Harnack (razão).
Ø Tillich – princípio da correlação.

Seu princípio hermenêutico é o princípio da correlação

Princípio da Correlação

Ø Os elementos relacionados só podem existir juntos. É impossível que um aniquile a existência do outro. Com o princípio da correlação a reflexão teológica desenvolve-se entre dois pólos: a verdade da mensagem cristã e a interpretação dessa verdade, que deve levar em conta a situação em que se encontra o destinatário da mensagem. E situação não diz respeito ao estado psicológico ou sociológico do destinatário, mas “as formas científicas e artísticas, econômicas, políticas e éticas, nas quais [os indivíduos e grupos] exprimem as suas interpretações da existência”.

Exemplos

Ø O eu não pode existir sem o mundo, nem o mundo sem o eu.
Ø A fé não pode existir sem a dúvida, nem a dúvida sem a fé.

Outros pensadores, como Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino utilizaram o princípio da correlação, mas Tillich o transformou em princípio hermenêutico por excelência.

Para Tillich o fazer teologia deve partir de uma correlação epistemológica, que ele divide em três momentos:

Ø Razão/Revelação
Ø Razão/Fé
Ø Filosofia/Teologia

Sua Teologia Sistemática divide-se em cinco grandes blocos

Ø Razão e Revelação. “A razão não resiste à revelação. Ela pergunta pela revelação. Pois revelação significa a reintegração da razão”.
Ø O Ser e Deus. “É a finitude do ser que conduz à questão de Deus”. 

Ø A Existência e o Cristo. Para Tillich, o conceito Novo Ser, quando aplicado a Jesus como o Cristo, indica o poder que nele vence a alienação existencial. Expressa em forma negativa traduz o poder de resistir às forças da alienação. Experimentar o Novo Ser em Jesus como o Cristo significa experimentar o poder que nele venceu a alienação existencial em si mesmo e em todos aqueles que têm parte com ele. O Novo Ser é o Cristo. A imagem do Cristo expressa o que Deus quer que sejamos: o que os seres humanos são essencialmente e deveriam ser. Aquilo que todo ser humano é potencialmente foi expresso em Jesus, enquanto Cristo. Assim, a doutrina de salvação para Tillich é regeneração, a participação no Novo Ser, justificação, a aceitação do Novo Ser, e santificação, a transformação pelo Novo Ser. Com seu conceito de essencialização, Tillich subverteu a compreensão da existência e de seus conflitos, ao mostrar que servem para enriquecer o ser essencial. Ao voltar-se para o que é eterno, a existência é derrotada em sua reivindicação de ser positiva, ou seja, o eterno nega à finitude sua reivindicação de infinitude. Assim, Jesus, finito, tornou-se Cristo no seu auto-sacrifício e morte. Recusou a tentação demoníaca inerente à existência finita de reivindicar infinitude. Dessa maneira, a ontologia, através da análise da essência, existência e da essencialização, conduziu a uma releitura da compreensão de Deus na fé cristã. Por isso, Tillich, afirmou que Deus não tem existência, já que ele é além da essência e da existência. Falar de Deus enquanto existência é negá-lo, porque existência é alienação e finitude, mas não enquanto relação mecânica e formal como creram Schelling e Kierkegaard, por ele criticados. Para Tillich há uma finititude essencial e alienação existencial. 

Ø A Vida e o Espírito. 
Ø A História e o Reino de Deus.


ANEXOS


Além do Socialismo Religioso

Pareceu-nos interessante como forma de apresentar Paul Tillich, deixar que ele próprio nos fale de sua experiência norte-americana. Para isto, estamos partindo das idéias que apresenta em artigo publicado no Christian Century, em 15 de junho de 1949, e cujos direitos pertencem a Christian Century Foundation. Este artigo, em inglês, pode ser encontrado no site www.christiancentury.org e foi preparado por Ted & Winnie Brock para Religion Online. Aqui não nos interessa transcrever o artigo do Christian Century, mas discutir as idéias expostas pelo teólogo alemão.

Tillich conta que não viveu uma mudança dramática de vida e experiência intelectual nos anos 1940, mas uma lenta transformação, praticamente inconsciente, fruto de uma contínua adaptação aos modos e pensamento norte-americanos. 

Ele conta que no verão de 1948, quando voltou pela primeira vez à Alemanha, desde 1933, viveu um claro teste da enorme mudança que sofreu. Houve uma mudança em seu modo de se expressar. O idioma inglês trabalhou nele, produzindo algo que seus amigos alemães consideraram um milagre: o fez compreensível. Nenhum anglicismo apareceu nas palestras que fez, mas o espírito do idioma inglês dominou seu coração, dando-lhe clareza, sobriedade e concretude. 

Isto aconteceu indo contra suas inclinações naturais. Aprendeu a evitar o acúmulo de adjetivos, coisa freqüente no idioma alemão. Passou a evitar as ambigüidades, que é um vício freqüente do linguajar filosófico alemão. Além disso, o fez baixar à terra, rompendo com suas longas abstrações. “Tudo isso foi muito bem recebido por meus auditórios alemães, sendo visto como uma impressionante mudança de mente”. 

Falando na Alemanha sobre a situação da teologia no EUA, Tillich disse aos seus conterrâneos que a América estava adiante da Europa em teologia histórica e sistemática e mais ainda em relação à ética. Podia dizer isso porque tinha se dado conta de que as éticas são um elemento integrante de teologia sistemática, e teve muito tempo para aprender sobre as éticas individuais no pensamento americano. 

No que se refere às éticas sociais, Tillich havia partido de sua experiência militante e teórica como socialista religioso na Alemanha. Mas foi nos Estados Unidos que ele percebeu a importância central que as éticas sociais têm para a teologia norte-americana. Por isso, considerava que ganhou teologicamente com sua experiência estadunidense. 

"Nos meus primeiros anos nos Estados Unidos fiquei surpreso e preocupado com a tremenda ênfase dada à questão do pacifismo, algo que me parecia de importância secundária e de resultado confuso. Mais tarde, descobri que todos os problemas teológicos giravam ao redor desta questão. Quando nos anos anteriores, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, a ideologia pacifista foi quebrada, vi que esta era uma indicação de que surgia uma atitude nova em relação à doutrina do homem e em relação ao Cristianismo. Esta mudança de mentalidade tornou tudo mais fácil para mim e me fez sentir em casa em meu trabalho teológico. 

Quando vim para América, em 1933, fui rotulado de neo-ortodoxo ou neo-supernaturalista. O que era incorreto, mas tenho de admitir que algumas das expressões que utilizava diante das audiências americanas levaram a tal uma impressão. Minha tarefa nos anos trinta era dar a meus alunos e aos outros ouvintes conta de minhas idéias teológicas, filosóficas e políticas, como tinham se desenvolvido durante os anos críticos de 1914 a 1933. 

Trouxe comigo da Alemanha a teologia de crise, a filosofia de existência e o socialismo religioso. Tentei traduzir essas expressões para meus alunos e leitores. Em todos os três destes campos -- o teológico, o filosófico e o político -- meu pensamento sofreu mudanças, em parte por causa de experiências pessoais, em parte por causa das transformações sociais e culturais que estes anos testemunhou. 

A maior das mudanças ao nível mundial foi o político -- das incertezas dos anos trinta ao estabelecimento, nos anos quarenta, de um mundo de intenso dualismo -- assim como o ideológico. Antes da Segunda Guerra Mundial havia espaço para a esperança de que o espírito religioso-socialista penetrasse no Leste e no Ocidente, mesmo que de forma diferente, diminuindo os contraste e prevenindo os conflitos entre eles. Hoje não há base para nenhuma esperança. A expectativa que tínhamos depois da Primeira Guerra Mundial era de um kairós, de plenitude do tempo, mas tal esperança foi duas vezes abalada, primeiro pela vitória do fascismo e depois por sua derrota militar. 

Não duvido que as concepções básicas do socialismo religioso sejam válidas, que apontem ao modo político e cultural de vida pela qual a Europa pode ser construída. Mas não estou seguro de que a adoção dos princípios do socialismo religioso seja uma possibilidade num futuro previsível. Em vez de um kairós criativo, vejo um vazio que só pode ser feito criativo se aceitar e suportar, rejeitando todos os tipos de soluções prematuras. Esta visão significa uma diminuição de minha participação naturalmente em atividades políticas. Minha mudança de mente também foi influenciada pelo desarranjo completo de uma tentativa política séria que fiz durante a guerra para atravessar a abertura entre Leste e Oeste com respeito à organização de Alemanha pós-guerra”. 

Tillich diz que fala-se muito do repúdio das liberdades civis e os direitos do homem nos países comunistas, que significou uma desilusão para os liberais no mundo inteiro. Mas não pode ser negado que este repúdio dos direitos humanos teve também um efeito devastador naqueles que defendiam o socialismo religioso, como ele, que sem ser utópico, acreditava no amanhecer de uma era criativa, mas viu o mundo mergulhar num momento de profunda escuridão. 

“Existencialismo era bem familiar para mim, antes mesmo da palavra entrar em uso geral. A leitura de Kierkegaard em meus anos de estudante, o estudo completo dos trabalhos posteriores de Schelling, a devoção apaixonada por Nietzsche durante a Primeira Guerra Mundial, o encontro com Marx (especialmente com os escritos filosóficos dele), e finalmente minhas próprias tentativas religioso-socialistas me levaram a uma interpretação existencial da história. Assim, eu estava preparado para a ilosofia existencial desenvolvida por Heidegger, Jaspers e Sartre. 

Apesar de o existencialismo virar moda, confirmei minha convicção de que sua verdade básica para a condição presente. A verdade básica desta filosofia, como vejo, é sua percepção da liberdade finita do homem, e, por conseguinte, da situação dele como perigoso, ambíguo e trágico. Existencialismo ganha sua significação especial para nosso tempo no imenso aumento em ansiedade, perigo e conflito na vida pessoal e social devido à estrutura destrutiva presente dos negócios humanos. 

A filosofia existencial se aliou com a psicologia profunda. Só pela recente guerra e seu resultado se tornou manifesto que doença psíquica -- a inabilidade para usar criativamente a liberdade finita da pessoa -- é mais difundida neste país que qualquer outra doença. Ao mesmo tempo psicologia de profundidade removeu sobras do pensamento do século 19 - ao nível do sociológico, ontológico e até mesmo implicações teológicas de fenômenos como ansiedade, culpa e neurose de compulsão. Fora desta nova cooperação da ontologia e da psicologia (inclusive psicologia social) uma doutrina do ser humano exerceu influência considerável em todos os reinos culturais, especialmente em teologia”. 

Segundo Tillich foi sob esta influência que elaborou seu sistema teológico: da possibilidade de unir o poder religioso de teologia neo-ortodoxa com a necessidade de levar a mente contemporânea à reflexão existencial, o que resultou na concepção do "método de correlação", quer dizer, perguntas existenciais e respostas teológicas. A situação humana, como interpretado pela filosofia existencial, a psicologia e sociologia posiciona a pergunta; a revelação, interpretado a partir dos símbolos de teologia clássica, dá a resposta. A resposta, claro, deve ser reinterpretada à luz da pergunta, como a pergunta deve ser formulada à luz da resposta. 

“Parece mim, é possível evitar dois erros contraditórios em teologia, o supernaturalista e o naturalista. O primeiro faz da revelação uma pedra que cai em acima da história, aceita obedientemente, eliminando qualquer suficiência da natureza humana. O segundo substitui revelação por uma estrutura de pensamento racional derivada que julga através de natureza humana. O método de correlação superan o conflito entre supernaturalismo e naturalismo, eliminando a contradição permanente entre fundamentalismo ou neo-ortodoxia por um lado e humanismo teológico ou liberalismo por outro. 

No curso desta tentativa ficou claro para mim que a denominada teologia liberal tem que ser defendida com paixão ética e científica. Isto é, permanece o direito e dever da crítica filológico-histórica da literatura bíblica sem qualquer condição, a não ser a integridade de pesquisa e honestidade científica. Qualquer interferência dogmática com este trabalho nos dirigiria a superstições novas ou velhas -- mitos e símbolos -- o que não pode ser feito sem a supressão de conhecimento. O poder deste neobiblicismo é óbvio na Europa continental, mas já pode ser sentido também aqui, e até mesmo entre liberais antiquados. 

Olhando para a última década de minha vida eu não vejo nenhuma mudança dramática de mente, mas um desenvolvimento lento de minhas convicções na direção de maior claridade e certeza. Acima de tudo eu vim perceber que algumas grandes e duradouras coisas são decisivas para a mente humana, e que agarrá-las é mais importante que procurar mudanças dramáticas”.

A dimensão religiosa na vida espiritual do homem

"Em tais circunstâncias, desprovida de um lar, de um lugar onde estabelecer sua morada, a religião descobre logo que não é necessária tal morada, que não necessita procurar um lar. Seu lar está em todas partes, quer dizer, na profundeza de todas as funções da vida espiritual do homem. 

A religião é a dimensão da profundidade em todas elas, é o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano.

O que significa a metáfora profundidade? Significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do homem, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano.

Manifesta-se na esfera moral com a seriedade incondicional do imperativo moral; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função moral do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

Manifesta-se no reino do conhecimento como a busca apaixonada de uma realidade última; por isso, quando alguém rechaça a religião em nome da função cognitiva do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

Manifesta-se na função estética do espírito humano como o anelo infinito de expressar um significado último; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função estética do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

A religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do homem. Eis o aspecto religioso do espírito humano".

A luta entre o tempo e o espaço

"O Deus do tempo é o Deus da história. Isso significa em primeiro lugar, que é o Deus que atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela e por intermédio dela.

Essa meta designa-se de várias maneiras: bem-aventurança universal, vitória sobre os poderes demoníacos representados pelas nações imperialistas, chegada do Reino de Deus na história e, mais além da história, transformação da forma do mundo, etc.

Os símbolos são muitos – alguns mais imanentes, como no profetismo antigo e no moderno protestantismo, outros mais transcendentes, como nas doutrinas apocalípticas posteriores e no cristianismo tradicional --, mas em todos os casos o tempo dirige, cria algo novo, uma “nova criatura”, como chama Paulo. 

O trágico círculo do espaço foi superado. A história tem um princípio e um fim definidos.

No profetismo, a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais, as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, o sofrimento da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma.

Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo. Em sua tentativa de criar uma consciência humana indivisa, as missões têm um caráter universal. O tempo alcança plenitude na história e a história a alcança no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz.

Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço. O monoteísmo profético é o monoteísmo da justiça. Os deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade poder de um dos grupos não pode fazer justiça ao outro. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro da nação e para as próprias nações.

O politeísmo, a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula o universalismo implícito na idéia de justiça. 

Este é o único significado do monoteísmo profético. Deus é um porque a justiça é uma. A ameaça profética que pende sobre o povo eleito, de ser rechaçado por Deus, por causa da injustiça, é a verdadeira vitória sobre os deuses do espaço. 

A interpretação da história que nos dá o dêutero-Isaías, segundo o qual Deus chama os demais povos para castigar o povo por Ele escolhido, devido à sua injustiça, confere a Deus um caráter universal.

A tragédia e a injustiça são próprias dos deuses do espaço; a realização histórica e a justiça o são de Deus que atua no tempo, e por seu intermédio, unindo no amor o vasto espaço de seu universo".

Entre a heteronomia e a autonomia

"Todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento mudo ou manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos.

Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia, relação que em meu ensaio Der Start als erwartung und aufgabe (O Estado como promessa e como tarefa) caracterizei como segue: 

“Toda estrutura política pressupõe poder e, conseqüentemente, um grupo que o assume. Posto que um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses, sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política. (...) Os sistemas ditatoriais carecem de correções contra o abuso da autoridade por parte do grupo de poder. O resultado é a escravidão da nação inteira e a corrupção da classe dirigente”.

Entre o luteranismo e o socialismo 

"É relativamente simples chegar ao socialismo quando se parte do calvinismo, em especial em suas formas mais secularizadas da última época; o caminho está muito mais cheio de obstáculos quando passa pelo luteranismo.

Sou luterano de berço, educação, experiência religiosa e reflexão teológica. Nunca me situei no limite entre o luteranismo e o calvinismo, nem sequer depois de experimentar as desastrosas conseqüências da ética social luterana e de reconhecer o inestimável valor da idéia calvinista do Reino de Deus para a solução dos problemas sociais.

A essência de minha religião continua sendo luterana. Ela abarca uma consciência de corrupção do existir, o repúdio de todo tipo de Utopia social (incluindo a metafísica do progressismo), a compreensão da natureza irracional e demoníaca da existência, o reconhecimento do elemento místico na religião, e o rechaço do legalismo puritano na vida privada e corporal.

Também meu pensamento filosófico expressa esse conteúdo singular. Até agora, só Jacob Bohéme, porta-voz filosófico do misticismo alemão, tentou uma elaboração especificamente filosófica do luteranismo. Através dele o misticismo luterano influenciou Schelling e o idealismo alemão, e através de Schelling, por sua vez, os filósofos irracionalistas e vitalistas que emergiram nos séculos XIX e XX.

Na medida em que grande parte da ideologia anti-socialista se baseou sobre estes últimos, o luteranismo atuou indiretamente através da filosofia e também diretamente como forma de controle sobre o socialismo"


Bibliografia

Paul Tillich, Die sozialistische Entscheidung. In: Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus. Gesammelte Werke II, Stuttgart, Evangelisches Verlagswerk, 1962, 219-265. Trad. fr. in: Écrits contre les nazis (1932-1935). Paris/Genève, Le Cerf/Labor et Fides, 1994. Trad. ing. in: Against the Third Reich, Paul Tillich’s Wartime Radio Broadcasts into Nazi Germany, editado por Ronald H. Stone, Mathew Lon Weaver.


A conversation with Dr. Paul Tillich -- Part 1

Title: A conversation with Dr. Paul Tillich and Mr. Werner Rode, a graduate student of theology [videorecording]. Published: [New Haven, CT] : Yale Broadcast & Media Center, [2010] Description: 1 DVD (28 min.) : sd., b&w ; 4 3/4 in. Notes: Telecast in 1956 on the NBC-TV series Frontiers of faith and produced by the National Council of Churches of Christ in the U.S.A., Broadcasting and Film Commission. Reproduced in new format on Sept. 30, 1986, by Union Theological Seminary in Virginia, Library Media Services Department. DVD copy of original VHS videocassette: [Virginia : Union Theological Seminary, 1986] Summary: Werner Rode, a graduate student at Union Theological Seminary, New York, interviews the theologian Paul Tillich in 1956 concerning his life and developments in theology during his career.






lundi 17 mai 2021

O universo na mística judaica 2

O universo na mística judaica – II 
Jorge Pinheiro


Para os rabinos expositores da criação ex nihilo (a partir do nada), assim como para os defensores do processio Dei ad extra (processo dentro do Eterno) a intenção primeira de Gênesis-Um é apresentar o Eterno como criador, que utiliza tohu e bohu (sem forma e vazio, o caos) como matéria-prima para a formação do universo. E é a partir dessa relação entre surgimento do universo e revelação, que os estudiosos judeus entenderão a redenção, já que o estágio final do mundo revelado significa uma volta ao começo, uma nova criação.

“A Redenção deveria ser conseguida não por um movimento tempestuoso na tentativa de apressar crises e catástrofes históricas, mas antes pela remarcação do caminho que conduz aos primórdios da Criação e da Revelação, ao ponto em que o processo do mundo (a história do universo e de Deus) principiou-se a desenvolver-se dentro de um sistema de leis. Aquele que conhecia a senda pela qual viera podia ter esperanças eventualmente de poder retornar sobre seus passos”. [Gershom Scholem, A Mística Judaica, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 248].

Assim, mais do que qualquer intencionalidade em apresentar a cronologia do surgimento do universo, Gênesis Um apresenta uma ordem enquanto dialética da estrutura e acidentalidade. Esse processo é interpretado por Scholem como “o primeiro ato, o ato do tzimtzum, no qual Deus determina e (...) limita a Si mesmo, é um ato de julgamento que revela as raízes dessa qualidade em tudo o que existe. Essas raízes do julgamento divino subsistem em mistura caótica com o resíduo da luz divina que remanesceu, após a retirada ou retraimento original, dentro do espaço primário da criação de Deus. Então um segundo raio de luz emanado da essência do Ein-Sof traz ordem ao caos e põe o processo cósmico em movimento, ao separar os elementos ocultos e moldá-los em nova forma” [Iossef ibn Tabul in Gershom Scholem, Kiriat Sefer, vol. XIX, pp. 197-199]. 

E dois escritos antigos nos mostram que a hipótese da creatio ex nihilo tem base num texto do profeta Isaías, “assim diz Adonai, teu redentor, aquele que te modelou desde o ventre materno. Eu, Adonai, é que fiz tudo, e sozinho estendi os céus e firmei a terra. Com efeito, quem estava comigo? ” (Is 44.24), como num apócrifo intertestamentário: “Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma”. 2 Macabeus 7.28. 

À primeira vista, a cosmogonia judaica define a centralidade de Gênesis-Um no ato criativo do Eterno apenas enquanto espacialidade. Seria uma busca do lugar, da centralidade espacial. O que leva alguns especialistas a afirmarem que não há nenhum elemento espaço-temporal em Gênesis. Mas, isso não é verdade. Em 1740, Anton Lazzaro Moro, cristão novo, geólogo e exegeta italiano, desenvolveu uma sofisticada defesa da hipótese espaço-temporal em Gênesis Um. Dizia ele que tudo que está “envolto e fechado” precisa de um tempo para libertar-se e tornar-se evidente, e que o Eterno, ao criar a natureza, colocou-se como administrador das leis criadas. Daí concluiu: 

“Quando a Escritura afirma que ‘Spiritus Dei ferebatur super aquas (...)’ indica uma função que traz consigo sucessão de tempo” [Anton Lazzaro Moro, De Crostacei e degli altri Corpi Marini che si Truovano su Monti, 1740, apud Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos, São Paulo, Editora Unesp, 1992, p. 345].

Desenvolvendo sua tese espaço-temporal, explicou que toda a criação sofreu duas produções diferentes, que precisam ser cuidadosamente separadas: “a primeira é a do nada pela mão imediata do criador; a outra provém do seio das segundas causas acionadas pelo administrador da natureza. A primeira produção é instantânea e é ato divino proporcionado pela onipotência e eternidade de Deus; a segunda [produção] implica que o ato divino seja adaptado às exigências da natureza que Deus estabeleceu em cada coisa” [idem, op. cit., p. 345]. 

A partir daí sua cosmogonia é surpreendente. Explica que foi o Eterno quem moveu circularmente “a celeste matéria de todo o planetário vórtice”, obrigando essa matéria que formaria o Sol a colocar-se no lugar que lhe era destinado. Constatando que seja qual for a velocidade que se queira atribuir ao movimento diário do Sol e de seu vórtice, “isso não aconteceu num só dia e em só vinte e quatro horas”.

A formação do Sol, assim como a produção dos planetas, “comprova que aqueles seis dias não foram de medida igual aos dias modernos, mas que foram espaços de tempo de duração muito mais longa, ou seja, de uma duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos; espaços esses que foram chamados dias, conforme o costume freqüentemente usado nas Escrituras de exprimir com o nome de dias certos espaços de tempo longos e indeterminados”, afirmou Moro [idem, op. cit., p. 347].

É interessante ver como a física do século XX, principalmente aquela que sofreu influências dessa mesma cosmogonia, traduziu para uma nova linguagem antigos conceitos. 

É verdade, que desde Aristóteles a ciência avaliou equivocadamente o conceito tempo, considerando-o absoluto, sem relação imediata e causal com o espaço. Pensou um tempo sem ambigüidades, achando que se fosse medido corretamente, entre dois espaços ou eventos, o intervalo de mensuração seria sempre igual. Durante séculos, inclusive para Newton, o tempo foi independente do espaço. Mas, em 1905, Einstein tornou pública uma nova teoria de espaço, tempo e movimento, que ele chamou de relatividade especial. Comprovada em experiências de laboratório, essa teoria, aceita pela maioria dos físicos, levanta algumas hipóteses, como a equivalência da massa e da energia, a elasticidade do espaço e do tempo e a criação e destruição da matéria. Dez anos depois, na seqüência da teoria anterior, Einstein publicou a sua teoria da relatividade geral, com novas afirmações: a curvatura do espaço e do tempo, a possibilidade de que o universo seja finito, mas ilimitado e a possibilidade de o espaço e o tempo se esmagarem, deixando de existir.

”Estas considerações levou-nos a conceber teoricamente o universo real como um espaço curvo, de curvatura variável no espaço e no tempo, de acordo com a densidade de distribuição da matéria, susceptível porém, quando considerada em larga escala, de ser tomado como um espaço esférico. Esta concepção tem, pelo menos, a vantagem de ser logicamente irrepreensível, e de ser aquela que melhor se cinge ao ponto da teoria da relatividade geral”. [Albert Einstein, Considerações Cosmológicas sobre a Teoria da Relatividade, in O Princípio da Relatividade, H. A Lorentz, A. Einstein, H. Minkowski, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1958, pp. 239-240].

E ao criticar a teoria do tempo absoluto, Einstein mostrou que à medida que o deslocamento de um objeto se aproxima da velocidade da luz, sua massa aumenta mais rapidamente, de forma que gasta mais energia para aumentar sua velocidade. Por isso, muito possivelmente nunca possa atingir a velocidade da luz, pois deixaria de ter massa intrínseca. O importante dessa teoria é ter modificado a compreensão de tempo e de espaço. Antes, considerava-se que a velocidade da luz fosse a distância que ela percorre, dividida pelo tempo que leva para fazer isso. Agora, compreendemos que a velocidade pode ser a mesma, mas não a distância percorrida. A partir da teoria da relatividade, o conceito de simultaneidade, ou seja, da existência de um mesmo momento em dois lugares diferentes, deixou de ter qualquer significado em termos de universo.

O tempo não-determinado

Em linguagem da física da relatividade o tempo gasto é a velocidade da luz multiplicada pela distância que a luz percorreu. Temos então várias medidas de tempo, ou seja, medições diferentes entre dois eventos ou espaços. Gênesis nos apresenta este conceito de tempo com yom que aparece como tempo não determinado/quando em Gn 3.5; tempo não determinado/período em Gn 1.14, 16, 18; tempo não determinado/época em Gn 2.4.

Deixamos de ter, então, dois conceitos separados e absolutos: o tempo e o espaço, para termos um, o espaço-tempo. Ora, um evento é algo que acontece num determinado ponto do espaço e logicamente num tempo também determinado. Só que não há separação entre essas duas unidades. Uma das premissas da teoria da relatividade, conforme expõe Stephen Hawking, é que o tempo corre mais lentamente perto de um corpo volumoso [Uma breve História do Tempo, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, pp. 35-60]. Assim, na Terra, para tomarmos um exemplo próximo, o tempo é mais lento que em outros planetas ou luas de menor massa. Isto porque existe uma relação entre energia da luz e sua freqüência. Quanto maior a energia, maior a sua freqüência.

Dessa maneira, à medida que a luz percorre verticalmente o campo gravitacional da Terra perde energia e sua freqüência diminui. Em outras palavras, espaço e tempo são quantidades dinâmicas. Quando um corpo se move no universo afeta a curva do espaço-tempo e, por sua vez, a curva do espaço-tempo afeta a forma como os corpos se movem e as forças atuam. Só que, e esse conceito é importante para a relatividade geral, não há como falar de espaço-tempo fora dos limites do universo. Essa premissa é interessante, pois descarta a idéia de um universo imutável, que sempre existiu, para trabalhar com a possibilidade de um universo que teve início e é plástico.

Assim, para a teoria da relatividade o universo teve começo como singularidade, o possível Big Bang, e deverá ter um fim também singular, o possível Big Crunch. E como o espaço-tempo é finito, mas sem limites, o Big Crunch poderia levar a uma concentração de energia tal que muito possivelmente possibilitaria a formação de um novo universo.

“De forma semelhante, se o universo explodisse novamente, deveria haver outro estado de densidade infinita no futuro, o Big Crunch, que seria o fim do tempo. Mesmo que o universo como um todo não entrasse novamente em colapso, haveria singularidades em algumas regiões determinadas, que explodiriam para formar buracos negros. Essas singularidades seriam o fim do tempo para quem ali caísse. Na grande explosão e demais singularidades todas as leis são inoperantes. Então, Deus ainda teria tido completa liberdade para escolher o que aconteceu e como o universo começou”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., p. 236].

Ora, como a expansão do universo implica em perda de temperatura, que é uma medida de energia, quando o universo dobra de tamanho, sua temperatura cai pela metade. Assim, quando o Eterno criou o universo, supõe-se que tinha tamanho zero e temperatura infinitamente quente. Mas à medida que se expande, a temperatura cai. Isso explica porque o universo é tão uniforme, e parece igual mesmo nos mais diferentes pontos do espaço. Uma das consequências, caso consideremos o fiat divino como o Big Bang, é que a partir da grande explosão não houve tempo de a luz se deslocar por ilimitadas distâncias. É por isso que Gênesis apresenta em primeiro lugar tohu e bohu, as trevas e o abismo, e só no versículo três o surgimento da luz.

É interessante ver que uma das possibilidades que alguns físicos baralham é a de que o Eterno escolheu a configuração inicial do universo por razões que não temos condições de compreender. Consideram que os acontecimentos da criação não se deram de forma arbitrária, mas refletem um ordem comum. Hawking opta por uma variável que chama limitação caótica ou escolha ao acaso. Dentro desse ponto de vista, o universo primordial surgiu como caos. Ora, a segunda lei da termodinâmica mostra que há essa tendência no universo, e que a ordem e o equilíbrio, ou seja, a vida, que é a forma mais organizada da matéria, surge como oposição a este caos.

“Einstein uma vez formulou a pergunta: ‘Que nível de escolha Deus teria tido ao construir o universo?’ Se a proposta do não limite for correta, ele não teve qualquer liberdade para escolher as condições iniciais. Teria tido, ainda naturalmente, a liberdade de escolher as leis a que o universo obedece. Isto, entretanto, pode não ter sido um grau assim tão elevado de escolha. Pode ter sido apenas uma, ou um pequeno número de teorias completas unificadas, tal como a teoria do filamento heterótico, que são autoconsistentes e permitem a existência de estruturas tão complexas quanto os seres humanos, que podem investigar as leis do universo e fazer perguntas acerca da natureza de Deus”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., p. 237].

E Prigogine e Stengers explicaram que “toda variação de entropia no interior de um sistema termodinâmico pode ser decomposta em dois tipos de contribuição: a entrada exterior de entropia, que mede as trocas com o meio e cujo sinal depende da natureza dessas trocas, e a produção de entropia, que mede os processos irreversíveis no interior do sistema. É essa produção de entropia que o segundo princípio define como positiva ou nula”. [Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, Entre o Tempo e a Eternidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 53].

E a partir da termodinâmica, Hawking trabalha com as setas do tempo. “As leis científicas não distinguem entre as direções para frente e para trás do tempo. Entretanto, há pelo menos três setas de tempo que distinguem o passado do futuro, que são a seta termodinâmica, direção do tempo em que a desordem aumenta; a seta psicológica, direção do tempo na qual se recorda o passado e não o futuro; e a seta cosmológica, direção do tempo em que o universo se expande mais do que se contrai. Demonstrei que a seta psicológica é essencialmente a mesma que a termodinâmica, de modo que ambas sempre apontam para a mesma direção. A proposta do não limite para o universo prevê a existência de uma seta termodinâmica do tempo bem definida, porque o universo deve começar num estado plano e ordenado. E a razão por que se observa esta seta termodinâmica se adequar à cosmologia é que os seres inteligentes só podem existir na fase de expansão”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., pp. 210, 211].

Coerente com sua visão de que o Eterno não joga dados com o universo, Einstein combateu às teses de acausalidade na mecânica quântica, defendidas pelas escolas de Copenhagem e Gottingen.

“Não posso suportar a idéia de que um elétron exposto a um raio de luz possa, por sua própria e livre iniciativa, escolher o momento e a direção segundo o qual deve saltar. Se isso for verdade, preferia ser sapateiro ou até empregado de uma casa de jogos em vez de ser físico”. Citado por Franco Selleri, Paradoxos e realidade, Ensaios sobre os Fundamentos da Microfísica, Lisboa, Fragmentos, 1990, p. 41.

Em 1944, voltaria à carga: “Nem sequer o grande sucesso inicial da teoria dos quanta consegue convencer-me de que na base de tudo esteja o indeterminismo, embora saiba bem que os colegas mais jovens considerem esta atitude como um efeito de esclerose. Um dia saber-se-á qual destas duas atitudes instintivas terá sido a atitude correta”. [Einstein, idem, op. cit. p. 59].

Ao finalizar este artigo desejo colocar em relevo algumas constatações presentes nessas reflexões sobre a origem do universo a partir da mística judaica.

A primeira é que a descrição do primeiro versículo de Gênesis-Um está fora do espaço-tempo. O surgimento do espaço-tempo teve início com o caos, que não deve ser entendido como negação ou pura ausência, mas como entropia. É universo espaço/temporal que repousa nos quatro conceitos enumerados por Noach: determinação, proclamação, trabalho e ordem.

Em segundo lugar, o tempo de Gênesis Um não é o tempo que conhecemos e no qual nos movemos, mas é o tempo da ordem/organicidade, tempos não determinados, épocas. Ou seja, o surgimento do universo implicou na expansão do espaço-tempo, assim o espaço-tempo de Gênesis 1.3 é totalmente diferente do espaço-tempo de Gênesis 1.12.

E, por fim, a expressão hebraica yom, presente nos textos de Gênesis Um, também não é a medida dos dias atuais, mas espaços de tempo de duração longa ou de duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos. Tivemos, então, um processo de expansão permanente, dentro dos limites das leis naturais e da liberdade de possibilidades.



dimanche 16 mai 2021

Judeus e palestinos, reivindicações históricas pela terra

A questão judaico-palestina
Reivindicações históricas pela terra


Jorge Pinheiro
Doutor em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo, UMESP. 


O termo Palestina é originário de Philistines ou filisteus, povo egeu que, no século 12 a.C. se estabeleceu ao longo da planície costeira do Mediterrâneo, conhecida hoje como a Faixa de Gaza. No século dois a.C., após derrotar os judeus, os romanos deram o nome de Palestina à terra. 

Em 638, a conquista árabe da planície costeira do Mediterrâneo deu início a 1.300 anos de presença árabe na região. Porém, o país nunca foi exclusivamente árabe. Após as invasões muçulmanas do século sete, o árabe tornou-se gradualmente a língua da maioria da população da região. 

A cidade de Jerusalém é considerada a terceira mais sagrada na religião islâmica: as primeiras são Meca e Medina. Acredita-se que Jerusalém seja o local onde o maior profeta islâmico, Maomé, subiu aos Céus. A mesquita al-Aqsa, onde o domo da Rocha foi posteriormente construído, marca este ponto, que é sagrado para os muçulmanos. 

Enquanto os muçulmanos lideraram a região, cristãos e judeus viviam em paz, já que eram considerados os povos do Livro. Cristãos e judeus tinham controle autônomo em suas comunidades e era-lhes permitido praticar suas crenças com liberdade e segurança. Tal tolerância religiosa demonstrada pelo povo muçulmano é rara na história humana.

Em 1517, os turcos otomanos da Ásia Menor conquistaram a região e, com poucas interrupções, governaram a Palestina, até o inverno de 1917-1918. A região foi então dividida em diversos distritos, dentre eles, Jerusalém. A administração dos distritos foi cedida em grande parte aos árabes palestinos. As comunidades cristãs e judaicas, porém, receberam grande autonomia. A Palestina compartilhou a glória do Império Otomano durante o século 16, mas foi negligenciada quando o império começou entrar em declínio no século 17. 

Em 1882, menos de 250.000 árabes viviam no local. Uma parte significante da terra pertencia aos senhores que viviam no Cairo, Damasco e Beirute. Oitenta por cento dos árabes palestinos eram camponeses, nômades ou beduínos. 

Em 1917-1918, com apoio dos árabes, os britânicos capturaram a Palestina dos turcos otomanos. Na época, os árabes palestinos não se consideravam como sendo uma nacionalidade em separado. Eram parte de uma Síria árabe. O nacionalismo árabe palestino é, em grande parte, um fenômeno do pós Primeira Guerra Mundial. 

Em 1921, o Secretário Colonial britânico Winston Churchill separou quase 4/5 da Palestina – aproximadamente 35.000 milhas quadradas -- para criar um emirado árabe, a Transjordânia, conhecida hoje como Jordânia. Este país, que é uma monarquia árabe, é em sua maioria composto por palestinos que hoje representam aproximadamente 70% da população. 

Assim, o conflito árabe-israelense teve origem com a constituição do Estado de Israel nos territórios da antiga Palestina britânica e os movimentos de reação árabe, após um processo que inclui a migração organizada de judeus para a Palestina, a aquisição de terras, a instalação de empresas, colônias agrícolas, escolas e a organização militar dos imigrantes. 

A administração britânica na Palestina, recomposta após o fim da 2a Guerra Mundial, adotou uma política de dividir para reinar, apoiando-se ora os árabes, ora os judeus. Os dois lados adotam o terrorismo como forma de luta. 

Em 1939, os britânicos anunciaram o White Paper (Carta Branca), um documento relatando que um estado árabe independente e não dividido seria estabelecido na planície costeira do Mediterrâneo dentro de 10 anos. O nacionalismo árabe cresceu com a promessa de um estado forte. Mas, os britânicos não foram capazes de manter sua promessa aos árabes. 

O estado de Israel e as guerras na região

Em 1947, a Assembleia Geral da ONU e a Agência Judaica aprovam a divisão da planície costeira do Mediterrâneo, mas os árabes a rechaçam. Um exército da Liga Árabe ocupou a Galileia e atacou Jerusalém. Em 14 de maio de 1948, o Conselho Nacional Judeu proclamou o Estado de Israel, enquanto o ataque árabe foi contido pela mediação da ONU e pela superioridade da aviação israelense. Grande parte da população árabe abandonou a Palestina. Em maio de 1948 o Reino Unido renunciou ao mandato sobre a Palestina e retirou suas tropas, deixando a região no caos. 

Entre 1948 e 1956 o Estado israelense se consolidou com a migração maciça de judeus, o pagamento de US$ 3,5 bilhões pela Alemanha Ocidental como reparação de guerra, a implantação da agricultura coletivizada nos chamados kibutzim, indústrias de alta tecnologia, serviço militar obrigatório para homens e mulheres e a manutenção de um Exército moderno. Foi então, em 1948, estabelecido o estado de Israel. 

No fim da guerra (1949), Israel ocupou áreas cedidas pela ONU aos palestinos, principalmente na Galileia. Gaza ficou sob domínio egípcio, e a Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, sob domínio da Jordânia.

A guerra de 1956 teve origem nas tensões fronteiriças geradas pelo projeto de utilização das águas do rio Jordão por Israel, em 1952. Agrava-se com ataques de comandos árabes (fedayin) aos colonos judeus e a nacionalização do Canal de Suez pelo Egito, com apoio soviético, em 1956. Milícias palestinas realizaram ataques contra Israel do Líbano, da Cisjordânia e de Gaza. 

Assim, em 1967, após mobilização de tropas árabes contra suas fronteiras, Israel atacou o Egito com o objetivo de manter o canal aberto e controlar o golfo de Ácaba. Em outubro, com o apoio tácito do Reino Unido e da França, os israelenses ocuparam o Sinai e a Faixa de Gaza em uma semana. 

Em novembro foi criada uma força de paz da ONU para supervisionar o cessar-fogo. A ocupação da Faixa de Gaza e a consolidação do Estado de Israel aguçaram a questão dos refugiados palestinos, cuja integração é negada tanto por Israel quanto pelos países árabes. 

Em 1967 teve início outra guerra, a dos Seus Dias. Surgiu da reação egípcia contra a permanência das tropas da ONU, o bloqueio do porto de Eliat, no golfo de Ácaba, e a assinatura de um acordo militar com a Jordânia, em maio de 1967. Os israelenses, usando como pretexto o bloqueio no golfo de Ácaba e a intensificação do terrorismo palestino contra Israel, atacam o Egito, Síria e Jordânia em 5 de junho. Conquistam toda a península do Sinai até o canal de Suez (Egito), a Cisjordânia e as colinas de Golan (Síria).

A guerra do Yom Kippur teve como motivo a ocupação permanente dos territórios conquistados em 1967 por Israel e a instalação de colônias judaicas. Em 6 de outubro (dia do Yom Kippur ou do Perdão, feriado religioso judaico) de 1973, os sírios atacam as colinas de Golan pelo norte, enquanto os egípcios atacam pelo sudoeste, a partir do Canal de Suez. Forçam os israelenses a abandonar suas linhas de defesa fortificada (Bar-Lev) e os campos petrolíferos de Balayim e ocupam toda a área do canal. Contra-ataque israelense obriga o recuo egípcio e sírio, bombardeia Damasco e bases de mísseis e artilharia do Egito e ameaça expandir-se. Em 22 de outubro, a intervenção diplomática soviético-americana impõe um cessar-fogo.

Em 1977, Israel iniciou conversações com o Egito, que culminaram em um acordo de paz e a devolução do deserto do Sinai.

Em 1993, palestinos e israelenses iniciaram um processo de paz que previa retirada gradual de Israel dos territórios em troca de reconhecimento palestino do Estado judeu. Israel passou a se retirar paulatinamente dos centros urbanos palestinos.

Mas Israel seguiu expandindo suas colônias em Gaza e Cisjordânia, enquanto palestinos seguiram cometendo atentados.

Em julho de 2000, o líder palestino Iasser Arafat rejeitou uma proposta de acordo de paz de Israel, com devolução da quase totalidade de Gaza e Cisjordânia e representação palestina em Jerusalém. A questão da volta dos refugiados palestinos, que acabaria com a maioria judaica em Israel, era o principal entrave. A atual revolta palestina contra a ocupação israelense começou em setembro do mesmo ano.

O moderno estado de Israel está situado em um território que já foi conquistado por muitos povos: assírios, babilônios, persas, gregos, romanos, árabes muçulmanos e turcos otomanos. O país, localizado na costa oriental do Mar Mediterrâneo, é conhecido como a Terra Santa. Para os judeus, a terra é santa porque lhes foi prometida por Deus; para os cristãos, porque Jesus nasceu e viveu lá; para os muçulmanos, porque Jerusalém é o local da subida do profeta Maomé aos Céus.

Em 1948, o estado de Israel foi estabelecido e, desde então, esteve envolvido em guerras e conflitos com seus vizinhos árabes. 

Resumo da história dos judeus na terra

O laço judeu à terra de Israel data de mais de 3.700 anos. De acordo com a Bíblia, Deus prometeu que os descendentes do patriarca Abraão herdariam a terra. A Bíblia revela que os hebreus foram escravizados no Egito, até que Deus o libertou. Após sua libertação do Egito, os hebreus foram liderados por Moisés -- o maior profeta da história judaica -- e levado à terra de Israel. No entanto, foi Josué, sob o comando de Deus, que conquistou a terra, iniciando a penetração hebréia na região. 

Os judeus não tinham um nome especial para seu país. Chamavam-no simplesmente “eretz” (a terra), “eretz Israel”, “Israel”, “Cana’an”. O nome Palestina, como vimos, só surgiu com os romanos. É uma corruptela de Filístia e, originalmente, significava apenas o litoral sul daquilo que hoje chamamos Palestina.

Não é possível para a mentalidade gentílica apreciar plenamente o sentimento do judeu para com a terra. Para ele, significava o cenário divino para a execução da salvação. A terra do judaísmo era uma parte da religião do judaísmo. A terra por excelência, a dádiva especial de Iaveh ao Israel eleito. 

Os hebreus formaram a sua primeira monarquia constitucional por volta do ano 1000 a.C. O segundo rei dos judeus, Davi, estabeleceu Jerusalém como a capital do país e seu filho Salomão liderou a construção do templo de Jerusalém. 

Mais tarde, nos anos da ocupação helênica, Israel estava restrito ao distrito de Iahud (Judá), delimitado desde a época do império persa. A capital de Iahud era Jerusalém, mas também pertenciam ao distrito as cidades de Emaús, Belém, Mizpá, Betel e Lida. O distrito de Iahud era uma pálida lembrança da eretz Israel dos tempos de Davi e Salomão.

Durante a guerra dos macabeus, Israel foi reconquistando seu território histórico. E sob o governo de Alexandre Ianai (102 a 72 a.c.) voltou a ocupar o máximo de sua extensão territorial. Essa Palestina histórica mede, aproximadamente, 20 mil quilômetros quadrados de área. Ao norte, encontram-se os picos elevados do Líbano e do antilíbano. No leste e sul - durante séculos - estiveram as habitações nômades dos beduínos (árabes) e o reino dos Nabateus. Esses vizinhos eram sinônimos de rixas permanentes. É importante notar que o conceito de limite não era preciso. Não havia uma fronteira legalmente estabelecida, delimitando a Palestina ou separando seus vários distritos. Não podemos, por exemplo, falar com precisão de uma linha demarcatória entre a Judeia e a Samaria.

Os diferentes distritos eram separados por uma orla indefinida, com um ou vários quilômetros de largura, reconhecida como terra de ninguém. As “partes de Tiro e Sidom” (Mateus 15:21) eram a orla de terra entre a Galileia e a Fenícia, ocupada tanto pelos judeus como pelos gentios. E as “partes de Cesareia de Filio” (Mateus 16:13) eram as faixas dos domínios de Filipe.

A Judeia, tendo Jerusalém como centro, era o verdadeiro coração da “terra”. Contudo, havia em torno da Palestina uma larga faixa territorial que o judaísmo considerava potencial e legitimamente “a terra de Israel”, Embora realmente não fosse assim. A Palestina está localizada no grande distrito desértico da Ásia sudoeste e, por isso, seu clima deveria ser bem seco. Entretanto, sua vizinhança com o mar Mediterrâneo vem mitigar em grande parte a situação.

Ali, o ano na Palestina pode ser dividido em duas estações: a úmida e a seca. A estação úmida começa em outubro e a seca em abril. Daí segue que a maior parte da semeadura acontece nos meses de inverno, a fim de aproveitar as chuvas, que em média são de apenas 50 a 60 centímetros por ano.

Quanto à temperatura, o clima da Palestina é temperado. A neve é rara, mesmo na Galileia, exceto nos pontos mais altos. A temperatura média é de 30o c, subindo raramente acima dos 42o c no verão, ou caindo abaixo dos 18o c.

A topografia da Palestina define-se através de quatro caracteres físicos distintos. São a costa mediterrânea; as montanhas do Líbano, com sua extensão para o sul; o vale do Jordão; e as montanhas do antilíbano, também se estendendo para o sul.

A costa da Palestina é regular. Em todo o seu comprimento, a única baía de tamanho algo apreciável é a do Aco (Acre). Ao sul do monte Carmelo, o contorno da costa é praticamente reto, não oferecendo um porto natural. Mas ao norte do Carmelo há numerosas projeções pequenas de terra, que foram amplamente utilizadas pelos fenícios. As montanhas do Líbano e do antilíbano são divisões de uma longa cordilheira, que se ramifica a partir das montanhas do Cáucaso. A cadeia do Líbano desce até a península sinaítica, com duas interrupções: uma na planície do Esdraelom; a outra no deserto de Parã. Do Hermon, os montes antilibaneses mergulham subitamente para a planície de Basã, erguendo-se em seguida para o planalto de Gileade e Moabe, ponto em que a cadeia entra gradativamente em declive, resolvendo-se nuns poucos montes esparsos, situados no centro do deserto arábico.

Entre as montanhas do Líbano e antilíbano fica a vasta depressão que forma o vale do Jordão. Tanto o rio, como o vale, principiam no ponto em que a volumosa cadeia se divide, no norte da Palestina. O rio Jordão desce 216 quilômetros em direção ao mar Morto. A partir daí, o rio desliza gradativamente para o golfo de Ácaba.

Esta é a “eretz”. A terra da promessa e bênçãos divinas, terra de sagradas tradições e de proezas santas. Uma terra pequena, mas peculiar. 

No ano 70 d.C., os romanos destruíram o templo. Tudo o que restou de pé foi sua muralha ocidental, conhecido por todos como muro das lamentações, considerado pelo judaísmo como o local mais sagrado do mundo. Sendo assim, pessoas de vários países, judeus e não-judeus, visitam o muro em Jerusalém. Elas escrevem bilhetes com pedidos a Deus e os colocam entre suas pedras. 

Além de destruir o templo de Jerusalém, os romanos expulsaram os judeus de sua terra, dando início à diáspora, que significa a dispersão dos judeus para outros países do mundo. Contudo, apesar de terem sido conquistados pelos romanos, muitos judeus continuaram a viver na região. 

Por volta do século IX, comunidades judaicas foram restabelecidas em Jerusalém e Tibérias. No século XI, a população judaica crescia nas cidades de Rafah, Gaza, Ashkelon, Jaffa e Caesarea. Durante o século XII, muitos judeus que viviam na região foram mortos pelas Cruzadas, mas nos séculos seguintes, a imigração para a terra continuou. Mais comunidades religiosas judaicas se fixaram em Jerusalém e em outras cidades.

Um dos pontos fundamentais da fé judaica é que todo o povo será liderado de volta à terra e que o templo será restabelecido. Muitos judeus acreditam que o Messias, que será enviado por Deus, irá liderar o retorno de todo o povo judeu à terra. 

Contudo, muitos judeus acreditavam que eles próprios deveriam iniciar o retorno à terra. A ideia de estabelecer um estado judeu moderno ganhou grande popularidade no século 19 na Europa. Em parte isso foi fruto do aparecimento do anti-semitismo, que levou ao surgimento de pogroms – massacres organizados de judeus – na Rússia e na Europa Oriental. 

Esta violência notória contra judeus europeus ocasionou imigrações maciças para a Terra de Israel. Em 1914, o número de imigrantes vindos da Rússia para a Palestina já alcançava os 100 mil imigrantes. Simultaneamente, muitos judeus vindos do Iêmen, Marrocos, Iraque e Turquia imigraram para a região. Quando os judeus começaram, em 1882, a imigrar para seu antigo território em grande escala, viviam por lá menos de 250.000 árabes. 

Um jornalista austríaco chamado Theodor Herzl levou adiante a ideia do sionismo, definido como o movimento nacional de libertação do povo judeu. O sionismo afirma que o povo judeu tem direito ao seu próprio estado, soberano e independente, e cresceu como reação ao anti-semitismo e influenciado pelo nacionalismo na Europa.

No início do século 20, viviam na Palestina sob domínio do Império Otomano cerca de 500 mil muçulmanos e 50 mil judeus. Após a Primeira Guerra (1914-1918), a Palestina passou para mãos britânicas, cujo chanceler, Arthur Balfour, declarou, em 1917, apoio à "instalação de um lar nacional judeu" no local.

A população judaica na Palestina chegou a cerca de 300 mil na década de 1930, causando reação violenta dos árabes. Pressionada Londres restringiu a imigração judaica à região, mesmo com o avanço nazista na Europa.

Após o Holocausto, que matou cerca de seis milhões judeus europeus, o movimento sionista ganhou força. A ONU aprovou a partilha da região em dois Estados, um judeu e outro palestino, com Jerusalém sob administração internacional. Os sionistas aceitaram a partilha, rechaçada pelos líderes árabes.

Argumentos judaicos a favor da terra

1. A terra de Israel foi prometida por Deus aos judeus. Esta é a antiga terra dos patriarcas e profetas bíblicos. As principais orações judaicas falam sobre o retorno do povo à sua cidade sagrada. As orações judaicas são feitas em direção a Jerusalém. Durante as festas judaicas, as orações são encerradas recitando a frase “ano que vem em Jerusalém”. 

2. Desde que os judeus foram exilados pelos romanos, a terra de Israel nunca foi estabelecida como um estado. A região foi colonizada por diversos impérios, mas nunca voltou a ser um estado soberano. Foram imigrantes judeus que desenvolveram a agricultura e construíram cidades para restabelecer um estado no seu lar histórico.

3. O estado de Israel foi criado pelas Nações Unidas em 1947. É um estado democrático, moderno e soberano. 

4. A terra de Israel foi comprada ou conquistada por Israel em guerras de defesa, após o país ter sido atacado por seus vizinhos árabes. 

5. Os árabes controlam 99.9% do território no Oriente Médio. Israel representa apenas um décimo de 1% da região. 

6. A segurança do povo judeu apenas pode ser garantida através da existência de um estado judeu forte e soberano.

A questão palestina e as guerras na região

A questão palestina surgiu como resultado do projeto de instauração do Estado de Israel e da decisão da ONU de dividir a Palestina em dois Estados. O Estado judeu ocupa uma área de 10 mil km², incluindo a Galileia oriental, a faixa que vai de Haifa a Telaviv e a região do deserto do Neguev até o golfo de Ácaba. O Estado palestino, associado à Jordânia, ocupa uma área de 11,5 mil km², incluindo a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Jerusalém recebe status internacional. 

A guerra de 1948 liquidou a decisão da ONU, já que o acordo de armistício de 1949 resulta na anexação da Cisjordânia pela Jordânia e na ocupação da Faixa de Gaza pelo Egito. Nenhum passo posterior é dado para implementar a decisão da ONU. A Constituição de um Estado que represente os 1,3 milhão de palestinos vivendo na região vira letra morta. 

Ao mesmo tempo, organizações extremistas israelenses, estimuladas pela omissão do Estado de Israel, das grandes potências e da ONU, desencadeiam ações terroristas contra os palestinos, visando expulsá-los e deixar o território livre para colonos judeus. O massacre de todos os 254 habitantes de Deir Yassin, em 1948, é o sinal para o êxodo em massa. Cerca de 300 mil palestinos permanecem em Israel após o êxodo para os países árabes vizinhos, mas sua situação é de cidadãos de segunda classe.

Argumentos palestinos a favor da terra

1. Os árabes muçulmanos viveram no local por muitos séculos. 

2. O povo palestino tem o direito à independência nacional e à soberania sobre a terra onde viveu. 

3. Jerusalém é a terceira cidade sagrada na religião muçulmana, local de elevação do profeta Maomé aos Céus. 

4. O Oriente Médio é dominado por árabes. Outras religiões ou nacionalidades não pertencem à região. 

5. Todos os territórios árabes que foram colonizados tornaram-se estados completamente independentes, exceto a Palestina. 

6. Os palestinos tornaram-se refugiados. Outros países árabes nunca os aceitaram completamente e eles vivem frequentemente em campos para refugiados tomados pela pobreza. 

Algumas considerações

O conflito entre israelenses e palestinos é acima de tudo uma questão geopolítica e religiosa. Acreditamos que acontecimentos históricos que levaram tanto ao estabelecimento do estado de Israel quanto ao conflito entre palestinos e israelenses envolvem questões geopolíticas e religiosas que exigem a desmilitarização do conflito e a formação de estados leigos e democráticos que possibilitem a convivência pacífica entre os povos, com plena liberdade de expressão religiosa para todas as nacionalidades envolvidas no conflito. 

Para isso, é necessário que as grandes potências, em parte responsáveis por esta guerra geopolítica e religiosa, parem de favorecer esta ou aquela parte, esta ou aquela etnia, esta ou aquela religião. Sabemos que tal proposta esbarra na questão do petróleo e no desejo de controle geopolítico da região.

De todas as maneiras, não haverá paz na região e muito menos fim do terrorismo se as democracias ocidentais não respeitarem o direito a autodeterminação dos povos, suas culturas e crenças.






vendredi 14 mai 2021

O universo da mística judaica -- 1

 O universo na mística judaica – I

Jorge Pinheiro

 

Aos olhos de Hitler e de seus fiéis, conforme descreve Raphaël Draï, existia um perigoso pensamento judaico, caracterizado por sua essência maléfica, inspiradora da física de Einstein, da literatura de Kafka, da música de Schoenberg e da psicanálise de Freud. [La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1966, p.1].

 
Deixando de lado os delírios hitlerianos, podemos dizer que há um criativo pensamento judaico que, através dos séculos, soube combinar Torah e conhecimento, ética e epistemologia. Nosso propósito é, numa primeira aproximação, mostrar que os estudos judaicos dos conteúdos de Gênesis Um produziram uma epistemologia que interliga o conceito espaço/tempo em Gênesis Um com a teoria da relatividade. Essa dialética tem especial importância para a teologia, já que a partir dela podemos entender melhor a literalidade poética de Gênesis Um.

 
“No começar Deus criando o fogoágua e a terra./ E a terra era lodo torvo e a treva sobre o rosto do abismo/ E o sopro-Deus revoa sobre o rosto da água”. [Augusto de Campos, Bere’shith, A Cena da Origem, São Paulo, Perspectiva, 1988, p. 45].

 
O desafio maior para quem analisa significações é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a linguagem pode levar a uma solução oposta àquela se pretende. Considerar o simbólico como abstrato e irrelevante é, em última instância, separar signo e objeto. Assim quando um texto passa a ser apenas e somente um conjunto fechado costumamos dizer que compreendemos o referido texto. Mas ao fazer isso, na verdade, eliminamos a possibilidade de restaurar sua intenção original e de ultrapassar a literalidade para captar o sentido primeiro de seu autor. Logicamente, esse midrash tem como ponto de partida, e exige como garantia, a compreensão do primeiro discurso.

 
Em novembro de 1942, o poeta e crítico Ezra Pound afirmava que “o mistério profundo da vida é descobrir porque os outros não compreendem aquilo que se escreve e diz. A coisa parece simples e clara ao escritor, mas outros o tomam em sentido diferente. E se gastam anos para saber porque e como” [Ezra Pound, Lettere 1907-1958, Milão, Feltrinelli Editore, 1980, p. 7].

 
Logicamente, como autor e crítico, Pound falava de hermenêutica em seu sentido laico. Ou seja, quando um texto pode ser percorrido em sua literalidade, e a partir daí é possível arrancar do discurso poético os elementos lógicos que lhe deram constituição. Mas mesmo assim, como alerta Pound, isso pode transformar-se em tarefa de anos.

 
Interpretar um texto considerado revelado, quando há um processo constante de interação dele com suas interpretações, arrancar dele significações é um desafio que não se resume à vida de uma pessoa ou a um curto período de anos. É nosso pressuposto que Gênesis Um enquanto palavra/ordem do Eterno apresenta mais receptáculos do que é perceptível na leitura de toda uma geração. Aqui há uma dialeticidade que permanece no equilíbrio de seus contrários, sem síntese definitiva: a revelação, essa interação do texto com suas interpretações, dá-se através da linguagem humana. Nossa necessidade histórica de interpretar nasce daí, dessa inadequação entre significante e significado.

 
“A tarefa do intérprete consiste, pois, na explicitação da mensagem divina, através do raciocínio bem dirigido. As conclusões a que se chega nada acrescentam ao significado do texto, pois já estavam contidas ali desde sempre; embora para ele sejam novas, uma vez que diferem do que está escrito, em si mesmas não o são, porque estavam gravadas no subsolo do texto que se interpretou. Contudo, sendo a Bíblia obra de um ser infinito, as interpretações jamais se esgotam. Cada novo corte no texto aprofunda o seu sentido, mas é sempre possível avançar mais. Elas se sucedem através do tempo, porém, por mais surpreendentes que pareçam, têm a garantia de se situarem no mesmo campo inicial”. [Renato Mezan, Freud: A Trama dos Conceitos, São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 342].

 
Por isso, parto do pressuposto de que a Judische kopf nos últimos 1.900 anos apresentou uma hermenêutica bastante criativa de Gênesis Um. Esse midrash não ficou restrito aos círculos rabínicos, mas fez parte da tradição e da cultura do judaísmo através dos séculos. Escritores, artistas e cientistas judeus utilizaram esses conhecimentos em seus campos de trabalho. Einstein conhecia essas fontes, em parte desconhecidas para o mundo cristão, mas ricas e cheias de significados para todo intelectual judeu. Por isso, esta releitura da teoria do caos tem como roteiro a cosmogonia judaica e as idéias centrais da teoria da relatividade.

 
Albert Einstein era judeu. Foi um sionista militante durante toda sua vida, a ponto de em 1952 lhe ser oferecida a presidência de Israel. Não aceitou. Estava casado com a física. “As equações são mais importantes para mim porque a política é feita para o presente, ao passo que uma equação é algo para toda a eternidade”. [Stephen W. Hawking, Uma Breve História do Tempo, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, pp. 240-241].

 
O tzimtzum

 
O judaísmo mostrou uma coerência em relação à hermenêutica de Gênesis Um. O retrair-se do Eterno para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo, é desenvolvido na teoria da contração, em hebraico tzimtzum. Essa teoria formalizada pelo Rebe Luria (1534-1572) é uma das concepções mais surpreendentes do pensamento judaico. Isaac Luria, um dos maiores expoentes da tradição mística do judaísmo, nasceu no Cairo, mas desenvolveu seu ministério em Safed, na Palestina.

 
A expressão tzimtzum significa originariamente concentração, mas acabou sendo entendida como retirada. Segundo Scholem, Luria partiu de textos do Midrash, onde encontramos que o Eterno concentrou sua Shekiná, sua presença no Santo dos Santos, Assim todo seu poder retraiu-se num único ponto. Foi daí que surgiu a expressão tzimtzum. [Exod Raba ao Êx 25.10, Lev. Raba ao Lv 23.24; Pessikta de Rab Kahana, Ed. Buber 20a; Midrasch Schir Ha-Schidim, Ed. Griinhut, 1899, f. 15b, apud Gershom Scholem, A Mística Judaica, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 263].

 
Infelizmente, as duas idéias, concentração e retirada, que deveriam ser entendidas como complementares, já que o Eterno se retira e então concentra a sua luz sobre este ponto, dividiu os estudiosos em dois grandes grupos: os que defendem o tzimtzum como base para a doutrina da creatio ex nihilo e também para aqueles que defendem a doutrina da emanação (em hebraico atsilu) ou processio Dei ad extra.


O próprio Luria torna-se o principal expositor do processio Dei ad extra, que tem por base não um processo no tempo, mas uma estrutura da realidade, enquanto emanação, criação, formação e ação. Assim, para Luria e seus discípulos, níveis inferiores de realidade emanaram de níveis superiores que, por sua vez, tiveram origem no Eterno. Dentro dessa concepção há um midrash, a teoria do vaso quebrado, que trabalha com a hipótese de que o mundo foi feito de remanescentes de mundos anteriores, que o Eterno havia destruído. Uma conhecida lenda rabínica explica esse processo como o desprender de uma chama de carvão da roupa do Eterno.


“No princípio (Gênesis 1.1), a vontade do Rei começou a gravar signos na esfera superior. Do recesso mais oculto, uma negra chama brotou do mistério do ein sof, o Infinito, como um novelinho de massa informe, como que inserido no aro dessa esfera, nem branca nem preta, nem vermelha nem verde, de nenhuma cor. Somente depois de distender-se como um fio, produziu ela cores para luzir em si. Do âmago da chama, jorrou uma fonte da qual brotaram cores e se espalharam sobre tudo embaixo, oculto na ocultação mais misteriosa do ein sof. Mal rompeu ela, inteiramente irreconhecível, seu círculo de éter, sob o impacto da irrupção, um ponto oculto, superno fulgiu da irrupção final. Aquém desse ponto está excluído todo conhecimento e por isso ele é chamado reschit, princípio, a primeira palavra do Todo” . [O Princípio, Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor), apud J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, SP, Perspectiva, 1968, p. 605].

 
Apesar de sua riqueza teológica, podemos classificar a doutrina da emanação como um evolucionismo teísta, que define o mundo material como o desdobramento do Eterno em diferentes níveis. E porque o mundo existe dentro do Eterno, o processio Dei ad extra leva à pergunta pelo que existe de divino nos fenômenos do cotidiano.

 
Se entendermos, porém, a teoria do tzimtzum, como a relação dialética de dois movimentos, o da retirada e o da concentração ficará mais fácil aproveitar os estudos de Luria. O tzimtzum explica o recuo do Eterno para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo. Como o Eterno é infinito, sem o tzimtzum não haveria o nada no qual pudesse produzir a estrutura espaço/tempo de uma criação separada.

 
É interessante notar, que se por um lado a dialética da autocontração e concentração divinas deu origem ao mundo material, o choque entre o movimento restritivo e o transbordante amor do eterno criou também a possibilidade do mal. Nesse sentido, a cosmogonia judaica vê o surgimento do universo em primeiro lugar como consciente autolimitação e na seqüência como revelação e julgamento. E como julgamento é a imposição de limites, julgamento faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação do Eterno. Em outras palavras: se o mal é uma probabilidade que surge da dialética amor/ retração, o julgamento passa a ser inerente a tudo na criação, já que todas as coisas estão determinadas por seus limites.

 
A tradição do debate sobre a creatio ex nihilo é antiga no pensamento judaico. Na verdade, podemos dizer que começa a ser realizada no segundo século. Por isso, não é de estranhar que encontremos reflexões profundas sobre Gênesis Um nos séculos posteriores. Assim, em um dos textos mais representativos do pensamento caraíta, movimento medieval de retorno à letra da Escritura, considerado por muitos um protestantismo judeu de coloração pietista, a “Explanação dos Mandamentos”, de Aha Nissi ben Noah de Bassorá, que ensinou em Jerusalém na segunda metade do século IX, lemos:

“No primeiro dia, Deus criou sete coisas: o céu, a terra, as trevas, a luz, a água, o abismo e o vento (Gn.1:1-12). Primeiro criou tohu e bohu (a solidão e o caos), dos quais surgiu a terra (Gn.1:1-2). Criou as trevas: ‘Ele formou a luz e criou as trevas’ (Isaías 45:6). Criou o vento, conforme a palavra: ‘e criou o vento’. Criou a água, pois com a criação da terra havia água. Criou o abismo, para que a água tivesse uma profundidade e uma submersão. Criou a luz (Gn.1.3). Para a criação do mundo foram necessárias quatro coisas: a ordem, o trabalho, a determinação e a proclamação” [Nissi ben Noach, Explanação dos Mandamentos, apud J. Guinsburg, op. cit., p.309].

 
Nesse texto aparentemente tão simples, encontramos uma idéia fundamental: tohu (sem forma) e bohu (vazio) fazem parte da criação e para que haja criação é necessário ordem.

Outro pensador judeu, que fez oposição ao pensamento caraíta, foi Saadia Gaon (892-942). Influenciado pela efervescente teologia do Islã e pelo pensamento helenístico clássico, Gaon combateu a presença heterodoxa, de tendência maniqueísta, os remanescentes de Filo e a crítica gnóstica. Seu texto sobre a doutrina da creatio ex nihilo é de uma profunda beleza, apesar de apresentar imperfeições normais ao conhecimento da época, como, por exemplo, sua visão geocêntrica. Mas, de forma brilhante enfrenta opositores bem parecidos aos que encontramos hoje em dia.

 
“Aqueles que acreditam na eternidade do mundo procuram provar a existência de algo que não tem começo nem fim. Por certo, nunca depararam com uma coisa que percebessem, pelos sentidos, sem ser começo nem fim, mas procuram estabelecer sua teoria por meio de postulados da razão. Semelhantemente, os dualistas empenham-se em provar a coexistência de dois princípios separados e opostos, cuja mistura fez que o mundo viesse a ser. Sem dúvida, nunca testemunharam dois princípios separados e opostos, nem o pretenso processo da mistura, mas tentaram suscitar argumentos derivados da razão pura em favor de sua teoria. De maneira similar aqueles que acreditam numa matéria eterna consideram-na como um hilo, isto é, algo em que não há originalmente qualidade de quente ou frio, de úmido ou seco, mas que se transforma por uma determinada força e assim produz aquelas quatro qualidades. Indubitavelmente, seus sentidos nunca perceberam uma coisa carente de todas essas quatro quantidades, nem jamais perceberam um processo de transformação e a geração das quatro qualidades como é sugerido. (...) Assim sendo, é claro que todos concordam em admitir alguma opinião concernente à origem do mundo que não tem base na percepção sensorial” . [Saadia Gaon, Criação Ex-Nihilo apud J. Guinsburg, idem, op. cit., p. 316].

 
Para sua defesa da criação ex-nihilo, Gaon trabalhou com quatro argumentos, três dos quais muito bem expostos: de finitude do universo, estrutura e acidentalidade.

 
“Continuou a afirmar que nosso Senhor, louvado e enaltecido seja, informou-nos que todas as coisas foram criadas no tempo, e que Ele as criou do nada (...). Ele nos comprovou essa verdade por meio de sinais e milagres, e nós a aceitamos. Examino ainda mais nesta matéria com o intuito de saber se ela podia ser comprovada por especulação como foi comprovada por profecia. Achei que era este o caso por certo número de razões, da quais, devido à brevidade, selecionei as quatro seguintes: 1. A primeira prova baseia-se no caráter finito do universo (...). 2. A segunda prova é derivada da união de partes e da composição de segmentos. Vi que os corpos consistem de partes combinadas e de segmentos ajustados entre si (...). 3. A terceira prova baseia-se na natureza dos acidentes. Verifiquei que nenhum dos corpos são desprovidos de acidentes que os afetem direta ou indiretamente. Animais, por exemplo, são gerados, crescem até que alcançam sua maturidade, então, definham e se decompõem. Então eu disse a mim mesmo: Será que a terra como um todo é livre destes acidentes? (...) 4. A quarta prova baseia-se na natureza do tempo. Sei que o tempo é triplo: passado, presente, futuro. Embora o presente seja menor do que qualquer instante, tomo o instante como se toma um ponto e digo: Se um homem tentasse em seu pensamento ascender deste ponto no tempo ao ponto mais elevado, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, porquanto o tempo é agora admitido como infinito e é impossível ao pensamento penetrar no ponto mais remoto daquilo que é infinito.” [Saadia Gaon, Quatro Argumentos para a Criação, idem, op. cit., pp. 317-320].

 
De todos os pensadores judeus medievais, talvez o mais conhecido fora dos meios judaicos, seja o talmudista francês Shlomo bar Itzhak, o rabi Rashi de Troyes (1040-1105). Exegeta, Rashi apresentou uma tradução para o versículo um de Gênesis que leva em conta estrutura e acidentalidade: “No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã...” E segundo seu midrash, o texto não está preocupado em mostrar a ordem do surgimento do universo, mas em afirmar o ato criador do Eterno. Rashi mostrou-se preocupado com o sentido literal, mas definiu claramente sua hermenêutica:

 
“Todo texto se divide em muitos significados, mas, afinal nenhum texto está destituído de seu sentido literal” [Herman Hailperin, Rashi and the Christian Scholars, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1963].






 

 

jeudi 13 mai 2021

Dá para ver o caminho ?

Dá para ver o caminho?

Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a sociologia brasileira encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se nos séculos dezoito e dezenove. É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos. Isso só para falar do movimento protestante no Ocidente. 


Mas conhecemos as dificuldades de Marx para entender o fenômeno religioso como fundante e criador de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora caminhe no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formata leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis. 


Depois que o pensamento marxiano entrou em crise, fato marcado nas universidades européias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reverenciado, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente. 


O que poderia fazer a sociologia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E assim é. E a explosão do fenômeno evangélico passou a ser olhada como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal. 


Mas, com a débâcle do marxismo, nos anos 1980, e o boom neoliberal que varreu o mundo, a sociologia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil apenas como um subproduto do mercado capitalista. 


Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a sociologia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas, e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos?


Porque lá podemos utilizar o conceito de conversão trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas. 


Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para a sociologia e para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Agora, no entanto, queremos utilizar como referencial um trabalho de Paul Tillich, Teologia da Cultura. Desejamos, dessa maneira, a partir da teologia da cultura, analisar a relação entre evangelicalismo, urbanização e a busca por fundamentos, e construir uma leitura própria dos caminhos transitados pelo evangelicalismo urbano brasileiro, em suas diferentes formas. Mas também, aqui neste transposto, vamos caminhar com Orlando, que vencido por Medoro na luta pelo amor de Angélica, é tomado pela loucura, segundo relata Ludovico Ariosto (1474-1533) no poema épico Orlando Furioso, em tradução de Pedro Garcez Ghirardi.

 

Cansado cai, e aflito, no
relvado,
Fita os olhos nas nuvens, e
emudece.
Sem dormir, sem comer, fica
parado
Enquanto o sol três vezes
sobe e desce.


Uma das questões que nos perguntamos quando relacionamos cidade e religião é se, de fato, o evangelicalismo outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, podemos dizer que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, mas que a religião no mundo urbano, nos grandes centros brasileiros, ocupa um espaço privilegiado enquanto tradução dessa espiritualidade, isso é verdade. Ora, a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano, busca do sentido da vida, e no mundo urbano brasileiro essa busca, por vários fatores, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a igreja evangélica cresceu cerca de 250%, dados de 2009, nos últimos dez anos. Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade é catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos cento e cinquenta anos.

 

Que a espiritualidade traduzida nas religiões das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na ética, na estética, no conhecimento, isso é fato registrado pelas ciências da religião e pela teologia. Por isso, quando na cidade alguém conscientemente rejeita a religião, ou seja, se diz agnóstico ou ateu em nome de uma ética, de uma estética, ou por causa da busca de conhecimento, está a rejeitar a religião em nome da religião. Isto porque ela é o fundamento, a profundidade e a substância da vida espiritual do ser humano.


De forma geral, numa leitura antropológica cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. Por exemplo, quando multidões assistiram ao filme
A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e foram despertadas, cada qual à sua maneira, para a miserabilidade humana, temos aí uma expressão da espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade sempre será traduzida em religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.


Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã diversificada, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes/ evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.


A dor aguda o deixa
exasperado
E tanto vai crescendo, que o
enlouquece.


Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano o evangelicalismo é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante os anos da ditadura militar no Brasil, algumas igrejas e denominações apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores protestantes e evangélicos, membros de igrejas importantes. Assim, o evangelicalismo é desagregador quando se liga à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agrega quando defende a vida humana. Com isso, constatamos que o evangelicalismo pode ser uma coisa ou outra ou mesmo, dialeticamente, ambas.


Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos no período dos governos militares, até mesmo porque protestantes foram torturados. O certo é que pessoas, em nome da agregação, do fanatismo e de preconceitos, foram cúmplices de torturas e mortes. 


Ao quarto dia, o furor dele
se apossa,
Couraça e malha em fúria
ele destroça.