vendredi 4 août 2023

A vida, nada mais do que a vida

A vida, nada mais do que a vida

“Venham todos vocês que estão com sede. Venham beber! E vocês que não têm dinheiro, venham comprar de graça vinho e leite. Venham comprar e comer! Por que vocês vivem gastando seu dinheiro, se esforçando à toa para comprar coisas que não matam a fome? Ouçam o que Eu digo e vocês poderão comer comidas deliciosas para alimentar suas almas”. 

Nasci em 1945, no Rio de Janeiro. Meu pai se chamava Amynthas, nasceu em 1899, e tinha uma diferença de idade de quase vinte anos em relação à minha mãe. Faleceu quando eu ainda era criança. Minha mãe, Maria José, veio de uma família de fazendeios e comerciantes de café em Minas Gerais. A família dela era formada por abolicionistas e republicanos históricos, e a partir da República sempre tivemos políticos na família e nas duas últimas gerações muitos jornalistas. Eu inclusive. 

Meu pai era socialista e foi convidado várias vezes para ser candidato pelo Partido Socialista Brasileiro. Era jornalista. Trabalhou no Jornal do Brasil e já na maturidade formou-se em Direito. Nos últimos anos de vida foi industrial. Comprou jazidas de areia monazítica em Barra de Itabapoana, no Estado do Espírito Santo. Dessa areia obtém-se a monazita, que fornece o fosfato natural de cério. O óxido do cério é utilizado na fabricação de mangas de incandescência dos reatores nucleares. Meu pai exportava a monazita para os Estados Unidos. 

Em 1953, o presidente Getúlio Vargas nacionalizou o subsolo brasileiro e como fruto dessa nacionalização meu pai perdeu o direito de exploração das jazidas. Sendo socialista nunca criticou o presidente. Meses depois, já muito doente, morreu de complicações cardíacas. Uma coisa que me marcou muito foi o trauma da guerra. O drama da guerra levou meu pai a me colocar numa escola para eu aprender a usar e a escrever com as duas mãos. Devia ser ambidestro, porque nas guerras, as pessoas mais afetadas são as crianças, e a parte do corpo que mais se perde são os braços. Hoje sou ambidestro. Na adolescência, fui criado por meu tio austríaco, Walter Thalhammer, casado com minha tia Iracema, que era estilista no Rio de Janeiro. 

Tive uma boa formação de cultura européia e na adolescência já era frequentador assíduo de bibliotecas. Aos 14 anos já tinha lido Platão, Aristóteles, Schopenhauer, Nietzsche, Spengler e os positivistas brasileiros, em especial Farias Brito. 

Em 1961, era dirigente estudantil secundarista. Nessa época o Brasil vivia um momento muito especial. O vice-presidente João Goulart estava na China, o presidente Jânio Quadros havia renunciado, e o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, iniciou uma campanha nacional para que João Goulart retornasse e ocupasse a presidência do país. Os militares não queriam que João Goulart assumisse a presidência. Comecei minha atividade política nesse momento. Era presidente do Centro Acadêmico da Escola Estadual José Pedro Varela. Fiz discurso na rua, em cima de caixote, envolvemos toda a escola nas mobilizações, que a esta altura aconteciam de norte a sul do país e pressionaram à opinião pública a apoiar a volta de João Goulart.

Em 1966, entrei para a Universidade Católica no Rio de Janeiro. Até aquele momento era um jovem sem comprometimento religioso e sem espiritualidade definida. Quando entrei para a universidade considerei-me ateu e passei a ter uma atividade política que norteou minha vida nos vinte anos seguintes. 

“Escutem-me com toda atenção! Ouçam bem, pois a sua vida depende disso. Eu vou fazer com vocês um acordo eterno, para lhes dar todo o amor e toda a bondade que um dia prometi ao rei Davi. Ele foi uma prova viva do meu poder, conquistando e dominando muitas nações. Vocês também darão ordens a outros povos, e eles obedecerão e viverão junto com vocês, mas não porque vocês tenham algum poder especial. Isso vai acontecer porque o Senhor seu Deus, o Santo de Israel, lhes deu uma nova glória”. 

A partir daí me tornei um ativista político. Comecei a ler os clássicos do marxismo. Quando entrei na universidade fui eleito para a diretoria do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da PUC. Participei de todas as mobilizações e passeatas estudantis da época. Assisti à morte de Edson Luís, o primeiro rapaz assassinado em uma manifestação no governo militar. Essa morte gerou mobilizações incríveis, que acabaram levando a uma passeata de cem mil pessoas no Rio de Janeiro. 

Nunca havia acontecido nada parecido no país. A situação nacional levou-me a radicalizar minha atividade política, ligado-me ao Movimento Nacionalista Revolucionário -- MNR, que era dirigido do exterior pelo ex-governador Leonel Brizola. A partir do final de 1966, além de estudante passei a trabalhar na revista Manchete. Comecei, então, a ter uma vida dupla, era jornalista, mas também ativista político clandestino. Recebi instrução e adestramento militar clandestino, com companheiros formados em Cuba. Especializei-me na construção de bombas e minas antitanques. 

Em 1969, o país vivia o momento mais duro de todo esse período de governo militar. As garantias e direitos democráticos estavam suspensos, havia censura de imprensa e perseguição violenta a toda e qualquer oposição, fosse ou não radical. Muitos companheiros meus tinham sido presos, outros torturados e mortos. Fui demitido da revista Manchete e a Universidade Católica definiu minha exclusão. Eu seria um dos próximos da lista de prisões. A situação ficou insustentável. Recebi ordens do Movimento Nacionalista Revolucionário para sair do país. Assim teve início meu primeiro exílio. 

Saí do país em 1970. Passei pela Argentina e fui para o Chile. Lá fui bem recebido. Entrei para a Universidade do Chile e fiz amizade com vários políticos brasileiros exilados, entre os quais o ex-ministro Mário Pedrosa, intelectual de expressão internacional. Mário Pedrosa acompanhou minha vida de exílio e acabei abraçando o trotskismo, uma das correntes mais ativas do comunismo internacional. Fundamos, então, o Grupo Ponto de Partida que tinha a finalidade de construir no Brasil um Partido Socialista. Tornei-me um dos dirigentes do trotskismo a nível internacional, atuando no Movimento de Esquerda Revolucionário/ MIR chileno. 

Vivi e atuei politicamente no Chile por três anos. Entre minhas atividades, fui operário numa fábrica metalúrgica. Eu era soldador. Em meados de 1973 houve a primeira tentativa de golpe para derrubar o presidente Salvador Allende. Junto com outros companheiros operários transformamos a metalúrgica numa fábrica de armamentos leves e começamos a produzir bombas de baixo poder destrutivo. Nossa intenção era preparar a fábrica para a produção de armas, caso houvesse um confronto prolongado com os setores militares que desejavam derrubar o governo socialista. E houve uma primeira tentativa de golpe, mas foi frustrada. Mas nós sabíamos que vinha uma outra. Todo mundo sabia. Então mudei da casa onde morava, porque era muito visada. Moravam aí: nós, militantes brasileiros, argentinos do Exército Revolucionário do Povo/ ERP e uruguaios do Movimento Tupamaro. 

Eu e uma amiga, a moça com quem vivia, fomos morar num hotel na Rua London, que fica mais ou menos a seis quarteirões do palácio La Moneda, sede da presidência da República. Nesta época, eu era dirigente do Grupo Ponto de Partida, da Internacional Trotskista e ativista do Movimento de Esquerda Revolucionária. Minha amiga trabalhava numa fábrica têxtil no Cordão Industrial de Cerrillos. 

“Busquem ao Senhor enquanto podem achar. Peçam sua ajuda, enquanto Ele está perto. Os pecadores devem abandonar seus maus caminhos, devem deixar de lado seus maus pensamentos. Todos devem se voltar para Deus, arrependidos. Assim, Deus mostrará a sua grande misericórdia, o Senhor mostrará como é imenso o seu perdão”.

No dia 11 de setembro de 1973, acordei tarde, estivera numa reunião política que varara a madrugada. Assim, levantei e liguei o rádio. Eram 10 horas da manhã. Foi um impacto. O general Augusto Pinochet exigia que o presidente Salvador Allende renunciasse à presidência e se entregasse aos militares. Caso contrário, em quinze minutos, o palácio La Moneda seria bombardeado. 

Não acreditei na ameaça do general. Bombardear o palácio significava bombardear o centro da cidade. Mandar tudo pelos ares. Mas Pinochet cumpriu o que prometeu. Quinze minutos depois, apareceram no horizonte quatro pequenos pontos. Eram aviões-caças, que foram crescendo, e depois lançaram seus mísseis sobre o palácio. Acertaram todos, de tal forma que o La Moneda pegou fogo, desabou por dentro, mas as paredes externas do palácio ficaram em pé. Eu nunca tinha visto nada igual. Em minutos o céu ficou coberto de fumaça. Uma fuzilaria tomou conta da cidade. 

Naquele dia não consegui sair do hotel. Chovia bala. Ao lado do hotel havia uma sede do Partido Socialista. De lá matraqueava uma metralhadora e tiros esparsos de fuzil. A sede socialista estava cercada por militares entrincheirados. Um helicóptero do Exército apareceu, voou baixo, parou em frente ao prédio e abriu fogo de metralhadora contra os resistentes. Fizeram isso várias vezes durante aquele dia. A impressão que eu tinha era que as balas iam arrebentar as paredes do hotel. Era impossível por o pé na rua. Quando chegou a tarde recebi um telefonema da Base Aérea de Cerrillos. Era minha amiga: ela falou comigo chorando: 

-- Estou presa, você precisa vir me soltar. 

Passou pela minha cabeça que se eu não fosse soltá-la nunca mais iria vê-la. No dia seguinte, a primeira coisa que fiz, numa atitude tresloucada, foi, esgueirando-me o melhor que podia, dirigir-me ao Quartel General do Exército. Cheguei lá e pedi para falar com a assessoria de imprensa, como resposta recebi ordem de prisão: 

-- Você é brasileiro? Está preso. 

Não tinham onde me por: me deixaram no corredor, e aí fiquei de pé, de cara para a parede, desde o início da manhã até a tardinha, vigiado por um soldado. Era o segundo dia do levante militar, estava um confusão enorme, e lá pela tarde o Quartel General começou a ser bombardeado por obuses. Os estilhaços caiam dentro do corredor. Soldados corriam para todos os lados. Trocaram o soldado que me vigiava e eu aproveitei a confusão e dei uma ordem: 

-- Leve-me imediatamente ao quinto andar, à assessoria de imprensa.

O soldado reclamou, disse que não podia, mas diante de minha intransigência acabou concordando. Quando cheguei ao quinto andar, pedi ao assessor de imprensa que providenciasse um jipe militar, porque tinha que ir à Base Aérea de Cerrillos liberar uma jovem que tinha sido presa por engano. 

-- Nós não podemos fazer isto, estamos sendo atacados, é impossível te dar um jipe. Volta aqui amanhã, talvez seja possível ... 

Concordei com ele e o soldado, ainda confuso, me deixou sair do quartel. Chegar ao hotel não foi fácil. Havia trincheiras ao longo da avenida e nas esquinas das ruas. Até um ponto do trajeto, trincheiras dos militares, e daí em diante trincheiras da resistência. Então eu levantava minha carteira de jornalista, e gritava:

-- Sou jornalista. Corria e pulava na trincheira. Conversava um pouco explicava que tinha que seguir em frente e ouvia:

-- Se você for em frente vai morrer, vão atirar em você. Quando eu estava quase chegando a outra trincheira, voltava a gritar: 

-- Sou jornalista... 

E assim quando chegou a noite eu estava de novo no hotel. No dia seguinte resolvi ir direto à Base Aérea de Cerrillos, que ficava num bairro distante do centro da cidade. Passei o dia todo tentando encontrar algum transporte, mas não havia condução. Havia o toque de recolher, que proibia às pessoas de transitarem pelas ruas. Tudo estava parado. Quando eram quase cinco da tarde passou um táxi, o único táxi que eu vira nesses dois dias. Quando o táxi chegou próximo, lancei-me à frente dele e comecei a gritar para que parasse. Ele parou. O taxista me disse que estava indo para casa, que ficava longe, na cidade de Valparaíso. Então, lhe dei voz de prisão: 

-- Leve-me à Base Aérea de Cerrillos ou está preso. Ele olhou para mim, estupefato, e perguntou: 

-- O senhor é da embaixada brasileira? Eu sabia que o governo brasileiro estava apoiando o levante militar, por isso não hesitei: 

-- Sou. 

“Vocês nunca fariam um plano como esse, porque os meus pensamentos são muito diferentes dos seus. Minha maneira de agir é muito diferente da sua!”

Então ele me levou até a base aérea. Quando chegamos, a base aérea estava sendo bombardeada com morteiros. O táxi passou pelo portão principal, ouvíamos os morteiros zumbindo sobre nossas cabeças e explodindo lá a frente. Rapidamente, os oficiais da Aeronáutica nos cercaram. Caia uma garoa forte. Ordenaram que eu descesse do carro. Fiquei no meio de um gramado, nas guaritas via soldados armados com fuzis e metralhadoras. Deram uma segunda ordem:

-- Tira a roupa, toda a roupa.

Debaixo da garoa fina tirei a roupa e mergulhei numa imagem ancestral, que nunca vou esquecer: a do judeu nu, massacrado, prestes a ser fuzilado. Um oficial saiu de uma das guaritas e pediu o meu passaporte. Expliquei que vim buscar uma jovem brasileira. Debaixo da chuva fina, ele abriu o passaporte, olhou-o rapidamente e me devolveu. Mandou chamar a moça. Ela veio chorando, em prantos. Caminhamos para o táxi, mas o motorista, que também chorava de raiva, por ter sido enganado, negou-se a nos levar de volta. Voltei-me ao oficial e disse: 

-- Este homem não quer nos levar de volta.

O oficial respondeu: 

-- Tem que levar, vocês não podem ficar aqui.

E como entramos, assim saímos da base aérea, debaixo de explosões e do matraquear de metralhadoras.

Quando chegamos ao hotel, minha amiga contou que na manhã do dia 11 de setembro, a fábrica onde trabalhava resistiu ao golpe até acabar a munição. Então, os militares da Aeronáutica, que tinham cercado a fábrica, invadiram as instalações, prenderam todos, encostaram os dirigentes na parede da rua e os fuzilaram na frente de todo mundo. Ela por ser loura e brasileira foi poupada. Afinal não sabiam de quem se tratava. Foi levada para a Base Aérea e presa. Ela, porém, informou que era amiga de um jornalista brasileiro, correspondente da agência Dispatch News Service, de Washington. Teve, então, o direito de dar um telefonema, aquele que eu atendi no hotel.

No hotel o ambiente estava alvoroçado. A televisão apresentava uma lista de pessoas procuradas, exortando a população a denunciar todos os estrangeiros. Os militares tinham dado dois dias para todos os estrangeiros se entregarem. Eu, logicamente, não me entregara, nem esta era minha intenção. Eu e minha amiga sabíamos que podíamos ser denunciados, mas não tínhamos escolha. Então passamos aquela noite rasgando e jogando pela janela textos e manuais de guerrilha. 

Quando amanheceu tínhamos sido denunciados pelo dono do hotel. Os militares esmurraram a porta do pequeno apartamento, quase a arrombaram. Eu abri e fui imediatamente golpeado por coronhadas de fuzil. Foi tudo muito rápido. A cada coronhada eu desmaiava e quando voltava a mim era golpeado de novo. Levaram tudo o que podiam levar, roupas, máquina de escrever, livros. Presos, fomos obrigados a caminhar pelas ruas, com as mãos na nuca, numa estranha procissão. Depois nos jogaram num ônibus, deitados. Começaram então a maltratar minha amiga, chutando e pisando nela. Eu gritei: 

-- Não façam isso, ela está grávida. 

Era mentira, mas eles pararam. Nós não sabíamos, mas estávamos sendo levados para o Regimento de Tacna, um quartel onde políticos da resistência estavam sendo fuzilados. Nos largaram numa espécie de cozinha. Eu caí no chão e apesar de muito machucado tive uma sensação de alívio. O chão de ladrilho era frio e me transmitiu uma sensação agradável. Horas depois, chegou um coronel e nos informou: 

-- Vocês vão ser fuzilados no início da tarde. 

As horas passaram num relance. Estávamos cansados, machucados, tontos. Então, no começo da tarde fomos levados. Éramos umas oito pessoas, em fila indiana, caminhando para o paredão. 

De repente, um tenente me chamou. Eu estava na fila, caminhando, e ele me chamou. Saí da fila, fiz um sinal para minha amiga me acompanhar. E o oficial me perguntou:

-- Você foi preso com muito material subversivo, não é?

Afirmei que era verdade, mas que era jornalista, e que tudo tinha sido comprado. Ele então disse que também tinha muitos daqueles livros em casa. Tive uma empatia profunda com aquele jovem. Estava diante de um oficial de esquerda. Apenas nos olhamos. Olhares cúmplices de companheiros que viram seus sonhos queimarem nas chamas do palácio La Moneda.

Enquanto isso, os três ouvimos atrás de nós os tiros que abatiam os outros companheiros.

“Porque assim como o céu está mais alto do que a terra, os meus caminhos são mais altos do que os caminhos de vocês, e os meus pensamentos mais altos que os seus pensamentos. Como a chuva e a neve caem do céu e não voltam para lá antes de regar a terra, de fazê-la brotar, produzir e dar sementes ao lavrador e pão aos famintos, assim é a minha palavra”.

Fomos então mandados para interrogatório. Combinei com minha amiga, “apenas eu falarei para que não entremos em contradição”. Expliquei aos militares que estava estudando na Universidade do Chile, que amava aquele país e que nunca me passara pela cabeça sair do Chile. Foi um interrogatório leve, viram que eu era correspondente estrangeiro, e me entregaram um salvo-conduto para que eu tivesse livre trânsito. Saímos os dois só com a roupa do corpo. Andamos até que descobrimos um hotel perto da Plaza de Armas, onde já se encontravam vários exilados brasileiros.

Do hotel telefonei para Nova Iorque, para um amigo, Peter Camejo, que na época pertencia ao Socialist Workers Party e que mais tarde entrou para o Partido Democrata. Não consegui falar com ele, pedi então a uma jovem que trabalhava no consulado brasileiro em Nova Iorque para entrar em contato com Camejo. Expliquei a situação e pedi para me mandarem duas passagens de avião Santiago/Buenos Aires e dinheiro via ordem de pagamento. Ficamos no hotel. O dinheiro chegou. Compramos roupas. Quando os aeroportos abriram, chegaram também as passagens.

Assim, um mês depois do golpe, viajamos via Pan American para Buenos Aires. Nesses trinta dias ajudamos a duas dezenas de líderes operários chilenos a deixar o país, atravessando a fronteira em direção à Argentina. Eram companheiros marcados, que não tinham condições de manter-se na clandestinidade. 

Em Buenos Aires voltei às minhas atividades políticas. Organizei um grupo socialista com a finalidade de atuar politicamente nas universidades de São Paulo e nas fábricas do ABC paulista, principalmente no setor automobilístico. 

Em 1974 entrei clandestinamente no Brasil. Por sugestão de meu advogado desisti de morar no Rio de Janeiro e instalei-me em São Paulo. Regularizei minha documentação e voltei a trabalhar como jornalista, agora no Diário do Comércio e Indústria. 

Em 1975, nasceu minha primeira filha, Marcela. Nossa organização política cresceu no meio estudantil e sindical, mas em 1977 foi golpeada pelas forças de repressão do governo militar. Eu estava viajando, atuando na Espanha e em Portugal, e diante de tal situação permaneci aquele ano na Europa. Nasceu, então, minha segunda filha, Patrícia, em Lisboa, no verão de 1977. 

Essa viagem à Europa começou a mudar a minha vida. Antes acreditávamos que a revolução só poderia ser vitoriosa se acontecesse também nos países desenvolvidos. Mas não foi isso o que eu vi na Europa no final dos anos 70.

Apesar da queda das ditaduras na Grécia, Espanha e Portugal, a Europa começava a viver a ascensão do neoliberalismo. A classe operária e os sindicatos não lutavam pelo socialismo, mas mobilizavam-se por melhores condições de vida. Eu não estava contra esses anseios, mas comecei a ver que o mundo, ao menos por hora, não caminhava para o socialismo. Isso me levou a constatar que a proposta de construção de um partido marxista-leninista no Brasil era uma utopia, sem base na realidade.

Assim, em 1978, quando voltei para o Brasil, sugeri aos meus companheiros a formação de um Movimento de Convergência Socialista, que reunisse o socialismo histórico em direção à formação de um Partido Socialista de tipo europeu. 

Mas, infelizmente, em 1978 vivemos novas prisões. Jornalistas e editores do jornal Versus, do qual era diretor de redação, foram presos. Fui acusado pelos serviços de inteligência de organizar a formação do Partido Socialista e incurso nos artigos 14, 43, 45, incisos I, II e III do decreto-lei no 898/69 pela 2a Auditoria da 2a CJM, em São Paulo. Com ordem de prisão decretada e procurado pelos serviços de segurança, fui obrigado a entrar para a clandestinidade. E fiquei clandestino quase um ano. 

Depois, através de acordo de meus advogados com a Justiça Militar, fui levado a julgamento na 2a. Auditoria da Justiça Militar em São Paulo. O juiz, um coronel do Exército, me deu o direito de expor minha defesa, e eu argumentei que nunca tinha cometido crime contra a pessoa, nem contra a propriedade, ou seja, não tinha ferido ninguém, não tinha matado ninguém, nem assaltado bancos.

Meu crime era ter lutado por uma sociedade justa, que possibilitasse direitos iguais a seus filhos. Depois de falar durante duas horas, o tribunal deixou em suspenso todas as acusações contra mim. Mas por que? Porque sabiam que a anistia seria sancionada a qualquer momento. Assim, no dia 11 de setembro de 1979, por sentença do Conselho Permanente de Justiça foi julgada extinta a minha punibilidade com base na Lei de Anistia. 

A profunda crise existencial que vivi a partir de 1977 não era exclusividade minha. Intelectuais europeus, que participaram das grandes mobilizações do maio francês de 1968, estavam vivendo angústias semelhantes. Um deles chegou a escrever um livro que tinha como título “Deus está morto, Marx está morto e eu não me sinto muito bem”. Era o que muitos de nós, uma parte da liderança da esquerda mundial, sentíamos. Mesmo assim, na volta ao Brasil, havia fundado a Convergência Socialista e nos três anos seguintes trabalhei para a formação do Partido dos Trabalhadores. 

Em 1979, depois de sete anos de convivência me separei de minha amiga e companheira. Era um trapo existencial. Não acreditava mais nas profecias do comunismo. Deixei a Convergência Socialista. Fiz uma autocrítica pública do marxismo e do leninismo. Sozinho, sem amigos, passei a ser olhado pelos antigos companheiros como um renegado. 

“Quando Eu falo, ela (ela, a Palavra de Deus) sempre produz o fruto que desejo, sempre traz o resultado que determinei”. 

Um ano depois, precisamente no dia 22 de setembro de 1980 aconteceu uma novidade na minha vida: conheci minha futura esposa. Naquele dia tinha sido ameaçado de morte pelo Comando de Caça aos Comunistas/ CCC. Era um sábado e o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo realizou um ato de desagravo às pessoas ameaçadas pelo CCC. Depois do ato no sindicato, fui a um baile popular no Clube Paulistano da Glória, no bairro da Liberdade. Aí conheci uma estudante de Administração de Empresas na Fundação Getúlio Vargas, Naira, que vinha de uma reunião do recém criado do Partido dos Trabalhadores. Quatro anos depois eu me casaria com ela.

Setembro de 1984

Começamos os dois, juntos, mas não no mesmo ritmo uma longa caminhada em direção ao cristianismo. Os valores estáveis de Naira e de sua família italiana me agradaram muito. Debrucei-me cautelosamente em direção ao catolicismo. Assisti a algumas missas e até me emocionei diante de alguns sermões, mas senti que não era ali que meus questionamentos seriam respondidos.

Então me voltou à lembrança as conversas com meu pai e as aulas de religião no Colégio Hebreu Brasileiro, no Rio de Janeiro. Comecei a estudar com afinco o misticismo judaico. Já casado com Naira, estudamos juntos um texto que foi fundamental na minha conversão: O Discurso da Servidão Voluntária, escrito no século XVI por Etienne La Boétie, pensador que influenciou o movimento huguenote na França. Estudei, estudei muito. Mas, também, levantei nas madrugadas e rezei em hebraico: Baruch atá Adonai, Elohénu Méleh haolam... Bendito sejas ó Eterno, nosso Deus, rei do universo... 

Recitava os nomes de Deus e pedia a Ele que me mostrasse a sua vontade, que me brindasse uma vida nova. Dias depois, estava trabalhando numa agência de publicidade em São Bernardo do Campo, quando entrou na sala um jovem publicitário. Seu nome era Douglas. Pastor, esse homem se tornou um amigo. Rapidamente me ensinou duas coisas.

Primeiro, que só uma pessoa podia preencher meu vazio: Jesus, o Messias. Isso, se eu o aceitasse como meu Senhor e Salvador. E segundo, que orar é diferente de recitar os nomes de Deus em hebraico. É conversar com Deus através de nosso único mediador, Jesus Cristo. Pode não parecer, mas essas foram palavras duras. Jesus para mim era um profeta intransigente, que acusava os sacerdotes judeus de hipócritas e de sepulcros caiados. Antes de minha conversão, Jesus me dava medo, um medo terrível. Nessa época, eu ganhara uma Bíblia, mas só lia o Antigo Testamento.

Mas numa tarde de chuva muito forte, ali no bairro de Rudge Ramos, em São Bernardo do Campo, no auditório da agência Drall, de propriedade dos meus amigos Luzo e Débora, eu aceitei a Jesus Cristo como Senhor da minha vida. De joelhos no chão frio do auditório, sozinho, reconheci minha pecaminosidade e meu afastamento da vontade de Deus. Implorei a Deus o perdão e fui justificado pelo sacrifício vicário de Jesus Cristo. O fim do ano se aproximava e no Natal comecei a ler o Evangelho de João. 

“Vocês sairão da terra da escravidão com alegria, e serão levados de volta à sua terra em paz. Montanhas e morros cantarão de alegria enquanto vocês caminham. Onde havia moitas de espinho haverá pinheiros, onde brotava o mato bravo nascerão flores”.

Quase ao mesmo tempo em que vivi esses acontecimentos, Deus me deu meu primeiro ministério: falar a meus antigos companheiros, políticos e intelectuais de esquerda, sobre o poder transformador da cruz.

A princípio foi difícil, pois começou a correr entre a esquerda a notícia de que eu tinha enlouquecido. Mas com o passar dos meses e depois dos anos começaram a ver que algo profundo tinha acontecido na minha vida. Viram que eu não tinha me transformado num reacionário, mas que ao contrário levantava com consciência a bandeira de uma ética cristã de compromisso social, preocupada em desenvolver a tarefa histórica de transformar o Brasil num país onde todos tivessem acesso a condições dignas de vida e à justiça social.

Hoje, graças à misericórdia de Deus, sou um ministro de Deus: prego, ensino e escrevo. Por tudo isso, considero Isaías 55 o livro-texto da minha vida. 

“Este milagre trará glória ao nome do Senhor e será uma lembrança eterna do poder e amor de Deus”.

Isaías 55 é a tradução do que aprendi quando criança, do que vivi enquanto homem distante de Deus, e do que sou pelo amor de Cristo. É o roteiro da minha vida, a entrega do perdão e a certeza do paraíso.









vendredi 26 mai 2023

Os caminhos da ruach

A correr com a ruach

Pr. Jorge Pinheiro


רוּח


No testamento hebraico a palavra mais usada para espírito, sopro, vento é רוּחַ (ruach), conforme Bereshit 3.8 e Shemot 10.13 e 14.6, entre outros textos. No cristianismo, a ruach, pneuma em grego, vem geralmente acompanhado do adjetivo santo e é a terceira prosopon da Trindade, juntamente com o Pai e o Filho. É Deus todo poderoso, entendido como uma das pessoas do Deus Triuno, que revelou seu Santo Nome YHWH ao seu povo em Israel, enviou seu Filho, eternamente gerado, Jesus para salvá-los do pecado e da morte … e a ruach hakadosh para santificar e dar vida à sua comunidade. O Deus Triuno se manifesta como três hypostasis de uma única ousia, que chamamos Deus.

Duas ilustrações

1. Os meninos e a ruach

2. A ruach e a corrida -- Elias estava correndo na chuva enquanto a noite caía. Ele tinha um longo caminho a percorrer até Jezreel, e não era mais jovem. Mesmo assim, correu sem parar, porque “a própria mão do Deus eterno” estava sobre ele. A energia que fluía pelo seu corpo sem dúvida era diferente de tudo o que já tinha sentido na vida. Afinal, ele havia acabado de ultrapassar os cavalos que puxavam a carruagem do Rei Acabe. — 1 Reis 18:46.

Atos 2.1-13 – PENTECOSTES

“E, ao cumprir-se o dia de Pentecostes, encontravam-se todos reunidos no mesmo lugar. Então surgiu do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a casa, onde se encontravam assentados. E apareceram-lhes línguas dispersas, como de fogo, e pousou uma sobre cada um deles. E todos ficaram cheios da ruach hakadosh, e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espirito lhes concedia que falassem. Já em Jerusalém habitavam judeus, homens piedosos e todos os povos debaixo do céu. Quando, então, surgiu aquele ruído, acorreu a multidão e ficou perplexa, pois cada qual os ouvia falando em seu próprio idioma. Ficaram, pois, atônitos e se admiravam, dizendo: Vede! Não são galileus todos estes, que estão falando? E como ouvimos nós, cada qual em seu próprio idioma materno: partos, medos, elamitas, os que moram na Mesopotâmia, na Judia, na Capadócia, em Ponto, na Ásia, na Frigia, na Panfília, no Egito, e nas regiões da Líbia perto de Cirene, e os romanos, que aqui residem, judeus e prosélitos, cretenses e árabes - como ouvimo-los falando em nossos idiomas os grandes feitos de Deus? Todos, porém, ficaram atônitos e desconcertados, dizendo uns aos outros: Que quer dizer isto? Outros, contudo, zombando, diziam: Estão embriagados!”

A ruach é paradoxal

Quando falamos que a ruach hakadosh é a espontaneidade da realidade, estamos dizendo que a ruach é paradoxal. Exemplo disso foi o derramamento da ruach no dia de Pentecostes, que se apresentou como fim e princípio. Foi o fim da aliança anterior e o surgimento de uma nova. É o fim de uma era e o início de uma nova. O que era escrito nas pedras da lei agora seria, pela ruach, escrito nos corações. As comunidades de fé deixavam de estar restritas a uma raça.

No Pentecostes, ao citar o profeta Joel (2.28-32), Pedro deixa claro: o fim começou. A compreensão de que o Pentecostes marca o tempo do fim traz para nós duas lições: a primeira, é que somos chamados à vigilância, pois o fim se abrevia. A segunda, é que devemos fazer a crítica daqueles que pensam poder apresentar os tempos e as épocas que Deus reservou para si.

É interessante observar que Lucas (Atos 1.4) diz que os discípulos deveriam esperar o tempo da promessa em Jerusalém. Depois (Atos 2.2) fala que de repente a ruach se fez presente. Eles esperavam, mas não sabiam quando. Eles tinham certeza, mas não sabiam a hora. A ruach é a espontaneidade da realidade. Ele vem quando e da forma que não esperamos. Quem anda com a ruach aprende a estar preparado para surpresas. É certo que Ele não falha nas promessas, mas não faz como e quando esperamos.

Quando a ruach vem Ele controla a todos. Aquela hora do Pentecostes ninguém escolheu. Mas ninguém estava sem controle, porque a ruach controlava a todos. Era conforme a ruach queria. Ser cheio da ruach não é ser avião sem piloto. Ser cheio da ruach é ser conduzido por sua soberania. Eis o paradoxo de Espírito.

“Mas quem não tem a ruach de Deus não pode receber os dons que vêm da ruach e, de fato, nem mesmo pode entendê-los. Essas verdades são loucura para essa pessoa porque o sentido delas só pode ser entendido de modo espiritual”. 1Coríntios 2.14.

A ruach é missionária

A ruach é missionária. Vejam as palavras de Lucas: “Essas notícias chegaram à igreja de Jerusalém, que resolveu mandar Barnabé para Antioquia. (...) Barnabé era um homem bom, cheio da ruach e de fé. E muitos se converteram ao Senhor”. Atos 11.22 e 24.

Atos dos Apóstolos é um livro sobre a prática de missões sob o comando da ruach. Por isso, o livro de Atos é único em seu estilo no Novo Testamento, porque revela a ruach como missionária. E se a ruach é missionária, o que lemos em Atos é a consequência natural da história de uma comunidade que é formada como igreja missionária. A relação ruach/ comunidade é a chave do sucesso em Atos.

Lucas deixa claro que a ruach é quem comanda a igreja em sua missão. A ruach é Deus soberano. Ele conduziu em triunfo a jovem comunidade cristã em sua missão de comunicar. E o mesma ruach quer hoje conduzir nossas comunidades na tarefa missionária. Afinal, é a ruach quem vocaciona, capacita e dirige os chamados para a missão.

“Naquele tempo alguns profetas foram de Jerusalém para Antioquia. Um deles, chamado Ágabo, levantou-se e, pelo poder da ruach hakadosh, anunciou: Haverá uma grande falta de alimentos no universo inteiro. Isso aconteceu quando Cláudio era o Imperador romano”. Atos 11.27-28.

Mas qual a relação entre Espírito cósmico e missão? Seguindo Irineu, um dos pais da Igreja, podemos dizer que Deus pela Palavra deu existência ao universo, e a ruach transformou o existente em cosmo, todo ordenado, com vida e sentido.

A ruach dá sentido à vida

Esse Espírito vivo deu sentido ao universo. Ele tem como propósito dar sentido à vida humana, por isso é Ele quem vai adiante: abre as portas e prepara o caminho para o sucesso da comunicação das boas novas da salvação. E o mesma ruach, além de preparar cada região, cada pedaço deste planeta, é quem transforma pessoas e povos para que se dê a expansão do Evangelho. A visão da expansão da comunicação é uma dádiva da ruach para as comunidades de fé do Senhor Jesus. Praticar esta visão, como o fez as comunidades de Atos, é entender o propósito para o qual a própria comunidade de Jesus existe.

Comunicar é semear. Por isso, Jesus disse: “Eu pedirei ao Pai, e ele lhes dará outro Auxiliador, a ruach da verdade, para ficar com vocês para sempre. O mundo não pode receber esse Espírito porque não o pode ver, nem conhecer. Mas vocês o conhecem porque ele está com vocês e viverá em vocês”. João 14.16-17.

Para a comunidade de fé, a unidade só é válida na variedade: nunca na uniformidade. A aceitação das pessoas com suas diferenças e particularidades é uma condição indispensável para a saúde da comunidade cristã.





mercredi 24 mai 2023

Vamos construir uma economia social e solidária

A vida como desafio
A construir uma economia social e solidária

Jorge Pinheiro

A partir de meados do século dezenove, o mundo passou a sofrer com o pensamento lógico-matemático e naturalista que minou a liberdade das pessoas e clausurou o sentido comunitário da vida. O racionalismo analítico transformou tudo em objetos de cálculo e controle, incluindo as pessoas. Da mesma maneira, o humanismo secularizado separou as gentes e o mundo do mistério supremo da existência. Ou seja, o pensamento lógico e naturalista, assim como o humanismo secularizado possibilitaram a construção de um novo mundo, biotecnológico, desumano e sem alma.

Para pensadores da Reforma protestante, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Tal conceituação traduz a ansiedade teórica do século dezesseis, mas expressa sobretudo a superação da subjetividade alienada. O ser humano é senhor de todas as coisas, não deve estar submetido a uma economia externa às suas necessidades de existência e vida. Sua liberdade é fruto do exercício da vida real e comunitária, que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter profundo da autonomia da pessoa se dá como processo. Morre o imediato alienado e tem início a construção de uma segunda natureza.

A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em conflito diante da servidão voluntária, criando tensão e luta. Mas é necessário ir além, desesperar-se por nós mesmos, fazer com que deixemos o isolamento da solidão do individualismo, e escapemos desta prisão. Superada a tensão, temos a liberdade enquanto construção solidária, uma dimensão a favor da vida.

O ser humano, quando vive essa transformação, tem a liberdade que vai além, a liberdade que é fonte de ação e realidade. Assim, ao construir caminhos transforma-se em receptáculo e semeador de justiça, paz e alegria.

E por ser este um momento de pensar o futuro, vamos visitar uma interessante experiência econômica, construída na França, com muita força a partir do pós-guerra. E vamos falar de economia, pensando o futuro que deve e pode se abrir após a pandemia do Covid 19.

Não estou sozinho no mundo

Foi Charles Gide (1847-1932), economista protestante do século dezenove, quem criou o conceito de solidariedade, que depois deu origem a um outro conceito, o de economia social e solidária / ESS. A economia social e solidária -- segundo dados apresentados por Frédéric Rognon, professor de filosofia da religião na Universidade de Estrasburgo -- hoje na França é responsável por cerca de 12% dos empregos assalariados. Está presente em quase todos os setores de atividade.

As origens da economia social solidária remontam à idéia de solidariedade, desenvolvida por Charles Gide, a partir de sua compreensão de textos do Novo Testamento. Normalmente, quando falamos de economia e protestantismo, frequentemente nos referimos ao sociólogo Max Weber. Mas Frédéric Rognon, autor de "Charles Gide - Ética Protestante e Solidariedade Econômica" (Olivetan ed., 2016), prefere nos falar de Charles Gide, porque este intelectual é o pai de um caminho econômico iniciado no final do século dezenove, cujo legado é a economia social e solidária.



Foi por volta de 1870 que surgiu a ideia de que todos estamos relacionados uns com os outros do ponto de vista econômico, quando Charles Gide e outros pensadores foram inspirados pelos textos neotestamentários, em especial, do apóstolo Paulo, que disse: “Se um membro sofre, todos os membros compartilham seu sofrimento, se um membro é honrado, todos compartilham sua alegria. Você é o corpo de Cristo, e cada um de vocês é um membro desse corpo."

O solidarismo criou o sentido sociopolítico de solidariedade, e recorreu ao termo latino "in solidum", que se refere à ideia de um todo coerente. Implica na idéia de que se uma pessoa sofre uma agressão ou por algum motivo tem uma dívida, todos os demais estão envolvidos. O termo solidariedade é também usado na biologia, para descrever o modo como todo o corpo é tocado quando um órgão é afetado.

Assim, de acordo com Charles Gide, estamos ligados uns aos outros, ou seja, quando pessoas sofrem é importante que todos ajudem aqueles menos afortunados. Hoje, segundo o departamento de Economia e Finanças francês, a economia social e solidária gera de 6% a 10% do PIB e emprega mais de 2,3 milhões de franceses: cerca de 13% do emprego privado.

O modo de fazer

Uma economia de libertação deve se esforçar para apresentar um princípio universal: o dever da produção e reprodução da vida de cada ser humano. Princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela economia capitalista liberal.

Donde, o desenvolvimento sustentável, a produção orgânica e o comércio justo são objetivos fáceis de entender, mas teoricamente podemos dizer que há um objetivo fundador, tornar a economia significativa, reunindo empresas que conciliam atividade econômica e função social, dando primazia às pessoas e não exclusivamente aos lucros.

Uma das características desta economia é de que ela não é um setor econômico, mas sim um modo de conciliar exigências de solidariedade e desempenho econômico, utilidade social e eficiência. Tal característica exige paciência dos investidores e envolvimento das partes interessadas: membros voluntários, funcionários, mas também fornecedores e clientes, conforme relatório do Ministério da Economia francês, em 2014.

Este modo de gerar empresas e realizar negócios está fundado sobre cinco princípios:

1. Não à lucratividade individual

Este princípio não proíbe ou elimina a realização de lucros, mas a apropriação individual deles. Pode ser absoluta: é o caso de associações, onde qualquer pagamento de dividendos, remuneração paga aos acionistas de uma empresa em troca de seu investimento no capital da empresa, é proibido. Pode ser parcial, em cooperativas, onde os funcionários podem receber até metade dos lucros obtidos, de diferentes formas. Na mesma linha, escalas de pagamento são controladas dentro da economia solidária, e qualquer aumento no capital resultante da atividade da estrutura é, prioritariamente, atribuído ao desenvolvimento de seus projetos.

2. Gestão democrática

Toda decisão tomada dentro de uma estrutura governada pela economia social e solidária responde ao princípio de uma pessoa = um voto. Assim, qualquer que seja o capital investido ou o tempo gasto dentro da estrutura, cada um de seus membros tem o mesmo peso.

3. Utilidade coletiva ou social do projeto

O interesse coletivo do projeto é um princípio comum às estruturas da economia social e solidária, mas esse princípio é vasto. Pode ser manter empregos de qualidade, montar um projeto que respeite os três pilares do desenvolvimento sustentável (social, econômico e ambiental), pensar em montar uma organização mútua que tenha suas próprias características.

A utilidade social, desde que esteja sujeita a uma gestão solidária, é garantida quando os conselheiros desempenhem suas funções de forma voluntária, e não realizem qualquer distribuição direta ou indireta de lucros. E deve ser aprovada se a atividade satisfaz uma necessidade não levada em conta pelo mercado ou insuficientemente; se a atividade é realizada em benefício de pessoas que justifiquem a concessão de vantagens especiais em vista de sua situação econômica e social; se os preços dos produtos estão abaixo dos custos de mercado; e se a publicidade em torno deste projeto destina-se apenas a coletar doações ou a informar sobre as ações realizadas pela estrutura.

4. Recursos mistos

Os projetos das estruturas da ESS são financiados graças ao rendimento das atividades de mercado, aos subsídios públicos e às contribuições voluntárias.

5. Livre adesão

Ninguém deve ser obrigado a participar de um projeto de economia social e solidária. Nesse sentido, um membro de uma cooperativa pode vender livremente suas ações se não desejar embarcar em um projeto da ESS ou se desejar sair de tal estrutura.

Assim, a economia social e solidária agrupa organizações definidas primeiro por seu status, administração sem fins lucrativos e democrática, e pelo que fazem, finalidade social, reivindicando uma utilidade social específica em domínio econômico, social ou ambiental.

Tais organizações traduzem o fato de que a empresa privada capitalista não é a única forma de organização capaz de produzir bens e serviços e que o enriquecimento pessoal não é o único motivo que pode fazer uma pessoa empreender. Esta economia é, portanto, uma forma de empreender, e tais estruturas podem aparecer em todos os setores de atividades, desde que os princípios acima mencionados sejam respeitados.

A experiência francesa

O sistema-mundo nesta alta-modernidade, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida caminha no sentido de aprofundar seu próprio caos e crise ao semear doenças, fome, terror e morte. As vítimas são esses bilhões de seres humanos, cujas dignidades e vidas são permanentemente destruídas. A alta-modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa. São os cavalos do apocalipse. É o fetichismo do capital, que se apresenta como sistema formal performático, onde dinheiro produz dinheiro.

Por isso, em parte na contra-mão deste sistema-mundo, nos interessa a experiência francesa, onde as organizações e empresas de economia social e solidária são as primeiras empregadoras do setor social, 62% dos empregos, e na áreas de esporte e recreação representam 55% dos empregos no setor. É também o segundo maior empregador nas atividades financeiras, bancárias e de seguros, (30% dos empregos no setor, e tem peso significativo nas artes, 27% dos empregos no setor, e na educação, 19%.

Assim, 90% dos serviços prestados às pessoas são gerenciados por uma estrutura da ESS, enquanto mais de 85% das instalações para pessoas com deficiências são gerenciadas por um modo associativo. Para dar exemplos concretos destas estruturas, o crédito cooperativo é o banco histórico da economia social e solidária. E a maioria dos profissionais que trabalham em associações esportivas estão vinculados a esta economia, enquanto as associações de ensino, complementares à escola pública, assim como as federações de educação popular, que atuam em tempo extracurricular, também são administradas sob os princípios da economia social e solidária.

Longe de ser um setor à margem, a economia social e solidária na França administra 30% das instalações de saúde: nove de cada dez pessoas com deficiência são cuidadas por instituições da economia social, e 68% dos serviços de cuidados a domicílio. Dentro da mesma perspectiva, pessoas dependentes são usadas por empresas da economia social.

E o uso da etiqueta “solidariedade corporativa”, permitido a organizações que não estão listadas nos mercados financeiros, possibilita que elas se beneficiem de certos subsídios. A obtenção desta etiqueta está sujeita a algumas condições específicas. De maneira simples, uma empresa que deseja obter esta etiqueta deve cumprir pelo menos uma das duas condições: (1) pelo menos 30% de sua força de trabalho contrata jovens, deficientes, e beneficiários de condições sociais mínimas; (2) a empresa cumpre duas condições relacionadas tanto com a natureza jurídica da empresa como com o nível de remuneração.

A natureza jurídica da empresa -- associação, mutualidade, cooperativa, instituição de previdência – deve estar sob estes parâmetros da economia social e solidária. O nível de remuneração é controlado: para empresas com um a dezenove empregados ou membros, o executivo não deve receber remuneração superior a quatro vezes o salário mínimo. Para empresas com vinte ou mais funcionários ou membros, a condição acima deve ser atendida por dezenove funcionários ou membros e nenhuma remuneração deve exceder oito vezes o salário mínimo. Além disso, a faixa de salários não deve exceder a proporção de um para sete.

A distribuição de empresas e organizações da ESS estão presentes em todo o território, mas concentram-se no grande oeste de França, nas regiões da Bretanha e do Loire. Nessas regiões, o peso dos estabelecimentos de empregadores da economia social e solidária em todos os estabelecimentos patronais no território excede 11,5%.

O desafio é a vida

Para que uma economia social liberte é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico nos entendemos como o falar diante. Mas falar diante de quem? Na modernidade, este falar diante nos levou a leitura formal do ir: deveríamos ir para falar diante. Ora, falar do sentido dos acontecimentos presentes através da vida, nesta alta-modernidade de caos e crise, não somos chamados a ir, mas receber. Vivemos a localidade global, não somos chamados a ir, mas a receber, porque os excluídos e expropriados bens e possibilidades estão entre nós, conosco. Assim, contra a lógica que não aceita a exterioridade da pessoa, a solidariedade na alta-modernidade é receber, construir e viver a realidade no chão da vida.

Eu sei que você, caro leitor e leitora, levou um susto e talvez diga, isso é impossível aqui. Mas se começarmos a pensar em solidariedade e em economia social vamos encontrar os nossos próprios caminhos.

Sim, a solidariedade traduz uma ação desconstrutiva, nesta alta-modernidade de caos e crise, do fazer e pensar da economia capitalista liberal, mas, por outro lado, uma economia social e solidária promove transformações construtivas que possibilitam a produção e reprodução da vida. E assim a solidariedade deixa de ser apenas um desejo e se transforma em economia social.





mardi 23 mai 2023

Sejamos radicais

Ser radical é ir à raiz
Jorge Pinheiro


Diante da vergonha de evangélicos corruptos, de votos mercadejados no púlpito, da Palavra deturpada e enlameada por lobos travestidos de cordeiros, faço uma pergunta -- afinal, que relação existe entre o presente e o espírito crítico e transformador do protestantismo?

E exorto homens e mulheres de boa vontade a uma reflexão sobre o que significa o presente enquanto desafio político para os protestantes brasileiros.

Bem, falar do presente, em primeiro lugar, significa dizer que vamos de uma contingência a algo diferente, que pode ser inferior ou superior, mas nunca igual.

O presente é sempre parte de uma situação mais geral e está enquadrado no caminhar de um processo. E para fazer a leitura do presente pode-se recorrer à análise histórica, à avaliação crítica ou à construção filosófica. Algumas vezes, porém, algum desses elementos falha. Por isso, não basta observar o presente. Estamos excessivamente ligados a ele, o que pode nos levar a escorregar num julgamento do aqui e agora e esquecer que devemos estar voltados para o futuro.

O momento é importante, mas transformar o exame do presente em apreciação subjetiva é realizar uma redução, é ver a situação como totalidade e permanência. Olhando assim colocamos a situação num patamar muito elevado e a perspectiva que temos se torna global, apesar de seu caráter individual e limitado.

Tal análise do presente pode levar a uma ampla aprovação e tocar emocionalmente setores expressivos de comunidades inteiras. Esta é uma maneira de ver, mas é irresponsável, mesmo quando apresenta análises de conjuntura e perspectivas para o futuro. E por que irresponsável? Por não aceitar suas responsabilidades. Por não reconhecer os limites daquele que observa, assim como de seu próprio horizonte.

Mas se existe um nível mais amplo do que este analisado, somos levados a falar da situação do presente como possibilidade. Mas é possível chegar a tal patamar de observação? Caso exista um ponto de vista mais amplo, a partir do qual se posicione um observador do presente, ele precisa estar livre das amarras do historicismo.

Busque a justiça

Voltem para Deus todos os humildes deste país, todos os que obedecem às leis de Deus. Façam o que é direito e sejam humildes. Talvez assim vocês escapem do castigo no Dia da ira do SENHOR. (Sofonias 2.3).

Pode-se dizer que pessoas, militantes e revolucionários, souberam interpretar uma época dada. Eis aqui o ponto de intersecção entre o presente e o espírito crítico e transformador do protestantismo. Seguindo a trilha aberta, é possível afirmar que o protestantismo radical traduz inquietude e descontentamento em relação aos acontecimentos sociais concretos.

Há uma busca ética de respostas entre o protestantismo radical e a ação consciente do intelectual orgânico. Ambos representam determinada comunidade, têm função superestrutural e, apesar de sua organicidade, precisam exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofrem. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder.

O protestantismo radical diante do presente não pode ser apreendido a partir da leitura do apresentado no passado, porque procura uma compreensão que não possa ser abalada. E essa interpretação não pode estar pousada sobre experiência própria e nem mesmo sobre a história da Igreja.

Pratique a justiça

O SENHOR já nos mostrou o que é bom, ele já disse o que exige de nós. O que ele quer é que façamos o que é direito, amemos uns aos outros com dedicação e vivamos em humilde obediência ao nosso Deus. (Miquéias 6.8).

Mas um terceiro elemento deve ser levado em conta: a tendência dialética do protestantismo radical, que se expressa de forma paradoxal, ao fazer a crítica de pontos de vista estabelecidos.

Quando analisamos o protestantismo a partir desta problemática, vamos constatar que ele não testemunha em benefício do presente, mas profere um não ao presente. Um não amplo, já que não critica cada detalhe do presente, e também por não discordar inteiramente do presente. Ao renunciar a um não de cada detalhe do presente, apresenta um sim às conquistas e vitórias obtidas no processo.

O individualismo e o criticismo se transformaram, quando analisamos o presente, em movimentos reacionários. Mas estão, muitas vezes, sob a proteção de religiosidades cujas essências e mensagens consistem em declarar um não para tudo que está no presente.

O espírito crítico e transformador do protestantismo radical está envolvido no presente concreto, tem a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito crítico e transformador no tempo, que nos remetemos às três posições que definem diferentes compreensões do presente. Primeiro, vamos analisar duas: a concepção conservadora e a concepção progressista, que se apresentam com variáveis e modulações.

A concepção conservadora admite o surgimento do criativo e da novidade no tempo, mas considera que isso aconteceu no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura. A força dessa concepção repousa no fato de que considera o criativo e a novidade como dados e não como resultados da ação cultural e social do ser humano.

A concepção conservadora também reconhece necessidade e transformação como componentes do presente, mas também os situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado, necessidade e transformação se revelam em todas as positividades e negatividades do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousam os conservadorismos. Perderam o sentido de necessidade e transformação.

Faça o bem, atenda à justiça, repreenda o opressor

Aprendam a fazer o que é bom. Tratem os outros com justiça; socorram os que são explorados, defendam os direitos dos órfãos e protejam as viúvas. (Isaías 1.17).

A concepção progressista considera necessidade e transformação alvos a serem projetados no futuro, existentes em cada época, mas que não se apresentam enquanto irrupção no presente. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível aqui e agora a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade definitiva.

Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim incondicional às questões concretas. É o adversário do protestantismo radical.

Conservadorismo e progressismo, reação e progresso, estão entrelaçados na consciência do presente que surge enquanto necessidade e transformação. E é esse entrelaçamento que leva a um terceiro caminho.

E o terceiro caminho é a utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem crítica radical. A utopia quer responder às necessidades e transformar o tempo, mas esquece que criatividade e novidade não abalam todos os tempos e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Assim, o resultado da utopia desencantada é o deslumbramento sem compromissos.

Mas a idéia de necessidade e transformação nasce da discussão com a utopia. Necessidade e transformação clamam pela irrupção de criatividade e novidade no tempo, cujo caráter é decisivo no instante histórico enquanto destino. Mas, com a irrupção da criatividade e novidade que respondem às necessidades e transformam o tempo concreto, é preciso ter consciência de que não existe um estado de perfeição no tempo, a consciência de que o ideal e perfeito nunca se fixam num presente eterno.

Assim, toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há na busca permanente da justiça um choque entre necessidade/ transformação e criatividade/ novidade. Tal desafio não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais protestante e radical que seja. O sujeito da transformação será, em última instância, o sujeito social, as massas em mobilização. Mas o protestantismo radical, assim como a intelectualidade orgânica têm aí um importante papel a cumprir, serem voz e ação críticas para que o sonho de Amós aconteça no presente concreto: que o juízo corra como as águas e a justiça como ribeiro perene.


Sobre os batistas e o ecumenismo
Algumas sugestões de textos


Os Batistas e o ecumenismo. E. Cavalcanti, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1970.

A celebração do indivíduo: a formação do pensamento batista brasileiro. Israel Belo de Azevedo, Editora Unimep, 1996.

Pós-modernidade e identidade: uma leitura dos desafios pós-modernos ao campo religioso batista e suas dificuldades dialógicas. A. Gonçalves in Protestantismo em Revista, 2010 (periodicos.est.edu.br).

Para que todos sejam um - o estilo batista de ser e a questão ecumênica: retrocessos e avanços no discurso ecumênico brasileiro. N. Tavares Silva, 2011.

Do Confronto ao Diálogo: O estilo batista de ser e a questão ecumênica no Brasil. N. T. Silva, Clube de Autores, 2012.



Jardin des plantes, Montpellier








lundi 22 mai 2023

A doçura do amanhecer livre

A amplidão

A doçura do amanhecer livre


3 780 / juin

La Pentecôte était un moment spécial où le ciel s'est ouvert et des langues comme du feu sont descendues sur les disciples.  C'était le moment où l'amour de Dieu le Père et la grâce du Christ ressuscité se manifestaient dans l'effusion du Saint-Esprit promis. Un moment de rencontre, où les cœurs et les esprits ont été transformés et ces disciples ont été envoyés pour annoncer la bonne nouvelle au monde.


Une leçon de plus reste... Dans les cinquante jours de la fête de la résurrection, à partir de Pâques, nous devons travailler notre cœur et notre esprit en tant que communauté, en tant qu'église, pour recevoir la force et la puissance de l'Esprit.


Une vie pleine de sens doit grandir dans l'Esprit.  La connaissance et la sagesse que nous recevons dans l'effusion de l'Esprit fusionnent dans nos cœurs et nos esprits.  Et c'est cette finalité, née d'une Pentecôte vécue par nous, qui motive la Croix huguenote.  C'est une mission et un service.  Amen.


Oração Solidária

A Cruz Huguenote


3.780 / junho

O Pentecostes traduziu um momento especial em que o céu se abriu e línguas como de fogo desceram sobre os discípulos.  Foi o momento em que o amor do Deus Pai e a graça do Cristo ressuscitado se manifestaram no derramar do Espírito Santo prometido.  Um momento de encontro, quando coração e mente foram transformados e aqueles discípulos enviados para anunciar a boa nova ao mundo.


Mas fica uma lição ... Nos cinquenta dias a partir da festa da ressurreição, da páscoa, devemos trabalhar coração e mente como comunidade, como igreja, para  receber a força e o poder do Espírito.


Uma vida plena de sentido deve crescer no Espírito. O conhecimento e a sabedoria  que recebemos no derramar do Espírito fundem-se em nossos corações e mentes. E é este propósito, nascido num Pentecostes vivido por nós, que motiva a Cruz Huguenote. É missão e serviço. 

הצלחה היא כמו עלות השחר

Le succès est comme l'aube.

Amém.










samedi 20 mai 2023

A paixão explode em chamas

A paixão explode em chamas 
Jorge Pinheiro 


Imaginei um pensar transverso entre Teresa de Ávila (1515-1582), Baruch de Spinoza (1632-1677) e Georges Bataille (1897-1962). Não uma conversa que deve levar a leituras definitivas, mas a matutar percepções sobre a experiência religiosa, a paixão e a morte. Assim, lemos Teresa em Versos nacidos al fuego del amor.

Vivo sin vivir en mí, 
y de tal manera espero, 
que muero porque no muero 

Spinoza considerava a teologia um pensar primevo, que caía muito bem na construção pré-científica da realidade, mas não na sua contemporaneidade. Achava que a tal busca das últimas causas não acrescentou nada à compreensão da natureza. E, que, só quando a humanidade parou de olhar para cima e olhou para si própria e ao seu redor pode pensar a física e as ciências possibilitaram a expansão do conhecimento. Gosto de Spinoza, mas acho que estava enganado ao colocar a teologia fora do humanismo e do naturalismo que defendia. Na verdade, se olharmos a teologia e, por extensão, a experiência religiosa apenas como formas de um supranaturalismo, elas se mostram, sem dúvida, superficiais. 

Vivo ya fuera de mí 
después que muero de amor; 
porque vivo en el Señor, 
que me quiso para sí; 
cuando el corazón le di 
puse en él este letrero: 
que muero porque no muero. 

Há algo no pensar de Spinoza que é desnorteador, em parte por sua veracidade: o comportamento humano deve ser explicado de modo semelhante ao dos demais comportamentos na natureza. E a partir daí ia fundo, radicalizava: a princípio, não há liberdade, nem responsabilidade no comportamento humano. O fazer humano, até o mais íntimo, deve ser explicado por suas causas mecânicas, como fenômenos da natureza. Assim, bom é simplesmente aquilo que dá prazer; e mal o que causa dor. Mas, o que isso significa, amigo Spinoza? 

Esta divina prisión 
del amor con que yo vivo 
ha hecho a Dios mi cautivo, 
y libre mi corazón; 
y causa en mí tal pasión 
ver a Dios mi prisionero, 
que muero porque no muero. 

Gostaria que você, amigo Spinoza, tivesse lido as confissões de uma jovem monja carmelita, chamada Teresa, no Livro de sua vida, onde contou um dos seus muitos momentos de êxtase:

Vi nele uma comprida lança de ouro e sua ponta parecia ser um ponto de fogo. Parece que ele a enterrou muitas vezes em meu coração e perfurou minhas entranhas. Quando retirava a lança, parecia também retirar minhas entranhas e me deixar toda em fogo do grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer, porém, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia pensar em ficar livre dela... A dor não é corporal, mas espiritual, embora o corpo tenha sua parte e mesmo uma grande parte. É uma carícia de amor tão doce, que então acontece entre a alma e Deus, que rogo a Deus em sua bondade faça com que seja experimentada por quem possa pensar que estou mentindo”. 

Vamos ouvir um pensador maldito, Bataille. Para ele a experiência religiosa está marcada pelo prazer. O prazer de viver. E é esse tropismo ao prazer que leva à superação, no cristianismo, da acentuação de uma teologia do pecado, com sua culpa infindável. Mas, aqui estamos diante de um paradoxo, pois a tradição cristã enfrenta esta pedra de tropeço, pois enquanto construção simbólica pesa sobre ela a sombra de um instrumento de tortura do qual pendeu seu fundador. De todas as maneiras, mesmo sem negar a culpa, a experiência religiosa recupera o prazer de viver e leva o fiel em êxtase a saborear as frutas que a vida oferece, doces e amargas. 

¡Ay, qué larga es esta vida! 
¡Qué duros estos destierros, 
esta cárcel, estos hierros 
en que el alma está metida! 
Sólo esperar la salida 
me causa dolor tan fiero, 
que muero porque no muero. 

É por isso que Teresa, em meio à solidão da cela, falava da liberdade do êxtase.

Durante os dias em que isso acontecia, ficava meio abobada; não queria ver nem falar, mas ficar abraçada com meu sofrimento que para mim era a maior glória. Isto ocorria algumas vezes, quando o Senhor queria que me viessem estes arrebatamentos intensos, que mesmo estando entre pessoas, não podia resistir. Antes que esse sofrimento de que falo agora comece, parece que o Senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para dor e padecimento, porque logo vem o gozar”. 

E Bataille, em O Erotismo, ao falar sobre a experiência mística, que está presente em todos os movimentos cristãos, mesmo os mais conservadores, diz que, como a proibição criou, na violência organizada das transgres­sões, o erotismo inicial, ao proibir a transgressão organizada, por sua vez aprofundou os graus da expressão sensual. E dá como exemplos as noites dos sabbats, ou da solidão celas, onde, por exemplo, o marquês de Sade escreveu Cent Vingt Journées. E cita Baudelaire quando afirmou que a única e suprema volúpia do desejo jaz na certeza de fazer o mal. Ou seja, homem e mulher sabem que é no mal que se acha a volúpia.

¡Ay, qué vida tan amarga 
do no se goza el Señor! 
Porque si es dulce el amor, 
no lo es la esperanza larga. 
Quíteme Dios esta carga, 
más pesada que el acero, 
que muero porque no muero. 

Bem, se o prazer se liga à transgressão, como explicar o êxtase religioso, que não produz culpa? E aí é onde Bataille dá um show de bola, e completa Spinoza quando aquele criticava o pensar teológico. Para Bataille, o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E foi do pecado que Baudelaire falou. Da mesma maneira, as narrações dos sabbats falam de uma procura pelo pecado. Mas, Sade e Teresa negam o mal e o pecado, embora trabalhem com a idéia da irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. 

Sólo con la confianza 
vivo de que he de morir, 
porque muriendo, el vivir 
me asegura mi esperanza. 
Muerte do el vivir se alcanza, 
no te tardes, que te espero, 
que muero porque no muero. 

O cristianismo negou o caráter sagrado da atividade erótica encarada na transgressão. E os místicos negaram o que a igreja considerava divino. Nessa negação, o cristianismo, com o tempo, perdeu o poder religioso de evocar a pre­sença demoníaca: perdeu-o na medida em que o diabo deixou de estar na base de qualquer perturbação fundamental. Hoje, os movimentos ligados ao neopentecostalismo estão fazendo o caminho inverso. Mas, o certo é que os místicos, aqueles que foram marcados pela experiência religiosa do êxtase, deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o erotismo, deixando de ser um pecado, deixava de ser uma certeza de fazer o mal. Já na experiência profana, somos chamados a dar atenção a Spinoza, o erotismo seria pura mecânica animal. Mas, a partir da experiência religiosa e, mais exatamente, do êxtase místico, como aqueles de Teresa de Ávila, há um ultrapassar, sem que isso signifique voltar ao ponto de partida. 

Mira que el amor es fuerte, 
vida, no me seas molesta; 
mira que sólo te resta, 
para ganarte, perderte. 
Venga ya la dulce muerte, 
el morir venga ligero, 
que muero porque no muero. 

E por quê? Porque, nos explica Bataille, há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As a­ções dos corpos podem, na lucidez, abrir-se à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cu­jos aspectos não deixarão de estar disponíveis. Veremos, então, que, por caminhos não prescritos o erotismo se reencontra. Chegamos, então, ao erotismo dos corações, ao erotismo mais ardente, quando, aparentemente, o erotismo dos corpos já sucumbiram. E voltamos aos Versos nacidos al fuego del amor.

Vida, ¿qué puedo yo darle 
a mi Dios, que vive en mí, 
si no es el perderte a ti 
para mejor a Él gozarle? 
Quiero muriendo alcanzarle, 
pues tanto a mi Amado quiero, 
que muero porque no muero. 

Ou como diz uma canção, lá no primeiro Testamento, o desejo é poderoso como a morte; e a paixão é forte como a sepultura. O desejo e a paixão explodem em chamas e queimam como fogo furioso. 


Caminhar em meio à floresta





vendredi 21 avril 2023

Brasil, terra prometida, Arnaldo Bloch

Brasil, terra prometida
Arnaldo Bloch

As comemorações dos 500 anos  que tiveram como ápice a monumental »Mostra do redescobrimento » - evidenciaram, como era de se esperar, o papel de portugueses, índios e negros na formação da nação brasileira. Porém, nunca é tarde para inscrever no rol das glórias (e desventuras) árabes, japoneses, italianos, alemães, judeus, enfim, outros povos que, em menor escala, adicionaram sabor à grande geléia
geral. Até porque neste fim de ano a trajetória de um desses grupos é
retratada em duas oportunidades: o recém-lançado livro « Entre Moisés e
Macunaíma/Os judeus que descobriram o Brasil » (Garamond), de Moacyr Scliar e
Márcio Souza, e o gigantesco conjunto documental da exposição « A comunidade
judaica no Rio de Janeiro do Século XX/Coleção Samuel Malamud », que
ocupará o Arquivo Geral da Cidade em dezembro. 

No relato do gaúcho Moacyr Scliar, a saga de seus pais, imigrantes da
Bessarábia assombrados pelos pogroms (massacres) czaristas no final do
século XIX, dá as chaves para o escritor equilibrar-se entre
nacionalidade brasileira e identidade cultural judaica, que, por mais
afastado que esteja o judeu das suas origens, permanece em seus traços ou
comportamento: « A marca judaica pode tornar-se tênue, mas não se desfaz »,
escreve Scliar, citando o exemplo de Clarice Lispector, que pouco falava de
judaísmo mas em cuja literatura o humor melancólico e o universo
torturado dos personagens são reveladores. 

Percurso inverso é o do « judeu novo » (daprès Hildegard Angel) Márcio
Souza: os ancestrais do atual presidente da Funarte, marroquinos que
no início do século estabeleceram-se na Amazônia, acabaram assimilando-se
completamente, por isolamento. Só homem maduro Márcio descobriu suas
origens, iniciando um trabalho de resgate mais documental que emocional
do seu atavismo. Já o arquivo do ativista judeu Samuel Malamud,
falecido em julho, traz o testemunho das reviravoltas do século XX,
partindo da efervescência da velha Praça Onze - o berço dos judeus na
cidade nos anos 20 e 30 - e chegando aos dias atuais. 

No entanto, muito além dos relatos e testemunhos, a contemplação desses
trabalhos revela uma « judeidade » brasileira moldada pelos sobressaltos
da Diáspora (dispersão), até que uma integração estável pudesse ser
almejada - e alcançada - evocando a figura cíclica do povo errante em
busca de uma terra prometida. 

A esse propósito, é oportuno recordar que, quase concomitantemente à
expulsão dos judeus da Península Ibérica, judeus e cristãos-novos eram
homens de destaque na Escola de Sagres e na própria expedição que trouxe
Cabral ao Brasil. O que não impediria que, décadas depois, a visita do
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição à colônia anestesiasse o pouco que
havia de judaísmo no território; fato que não está desligado da adesão dos
cristãos-novos aos holandeses - adeptos da liberdade religiosa - no
período de ocupação em Pernambuco. Lá foi construída a primeira sinagoga
brasileira e de lá saíram os 23 judeus que, após a expulsão dos invasores,
foram parar em Nova Amsterdã, fundando uma das primeiras comunidades judaicas
da futura Nova York. 

Pela lente de Malamud, percorremos os fluxos migratórios pós-Primeira Guerra
nas décadas de 20 e 30 - que trouxeram quase cem mil judeus vindos da Europa
Oriental e do arrasado império Otomano (hoje a população é próxima de 200
mil) - e a linha dura do Estado Novo, que proibiu a concessão de vistos a
 »pessoas de origem semita », controlando a imigração judaica, sob a
sombria perspectiva da deportação em massa. Por conta disso, vistos foram
negados a figuras como Thomas Mann, num momento em que, na Europa, os
judeus não tinham para onde ir. 

A chegada dos refugiados do Holocausto, a criação do Estado de
Israel, o movimento sionista (inclusive o de feição socialista), a
integração econômica e cultural e o engajamento de judeus na luta armada
durante a ditadura militar (além das guerras no Oriente Médio que se
sucederam à criação do estado judeu) marcariam as décadas seguintes de uma
comunidade que, à medida que se integrava e se assimilava, mostrava-se
diversificada como a própria sociedade brasileira, sem perda de identidade e
background. 

Paralelamente a este percurso tumultuado, o livro de Scliar e Souza
e o acervo de Malamud dão espaço generoso ao anedótico, ao exótico e ao
lendário. Afinal, travamos contato com a tese de que a misteriosa cidade
bíblica de Ofir - para onde o Rei Salomão enviava naus fenícias - seria
na verdade o Norte ou o Nordeste do Brasil, e os índios, a tribo perdida
de Israel! Não faltaram pesquisadores dispostos a encontrar paralelos entre
os idiomas e os mitos das nações indígena e judaica. Saboreamos
histórias que misturam chimarrão e samovar, que mostram prospectos
coloridos vendendo o Brasil na Diáspora como paraíso onde porcos
comem o excedente de bananas e laranjas, ao passo que nos shtetl
(aldeiazinhas) russos, laranjas são importadas a peso de ouro; imaginamos
mães judias correndo atrás dos filhos nas ruas do Bom Fim com pratos de
comida, ou um « menino de cor » que circula na Praça Onze falando um
iídiche (idioma da Diáspora ashkenazi) castiço; conhecemos São Moisesinho, um
missionário judeu que vira santo no Norte; e observamos as ácidas
controvérsias entre sefaradis e ashkenazis, as duas principais
correntes do judaísmo. Menos engraçada, num período em que a
comunidade judaica carioca começava a se afirmar cultural e economicamente,
é a vida das polacas, as judias prostitutas « importadas » da Europa
Oriental, que os mais bem-estabelecidos procuravam ocultar,
mas que eram judias fervorosas, tinham sinagoga e um cemitério próprio, onde,
ainda hoje, os descendentes choram por suas almas no Rio.
Fonte: www.pletz.com/artigos/brasil
Artigos para Debater

Bibliografia sobre as lendas
referentes ao Mundo Antigo e o Brasil

Youri Sanada, BRAASI, Rio de Janeiro, Ediouro, 2001.
Paul Gallez: « La Cola del Dragón - América del Sur en los mapas antiguos, medievales y renacentistas », Bahía Blanca (Argentina), Instituto Patagónico, 1990.
Avezac-Macaya,  Marie Armand Pasacal d: « Memoire sur le pays dOphir oú les flotes de Salomon áillent chercher lor ». LAcademie des Inscripcions et Belles Lettres 30 (1864), Paris.
Richard Hennig: « Terra Incognitae », Vo. 4, Leiden, Brill, 1950.
Lienhardt Delekat: « Phönizier in Amerika », Bonn, 1960.
Dick Edgar Ibarra Grasso: « La representación de América en mapas romanos de los tiempos de Cristo »,