vendredi 4 août 2023

A vida, nada mais do que a vida

A vida, nada mais do que a vida

“Venham todos vocês que estão com sede. Venham beber! E vocês que não têm dinheiro, venham comprar de graça vinho e leite. Venham comprar e comer! Por que vocês vivem gastando seu dinheiro, se esforçando à toa para comprar coisas que não matam a fome? Ouçam o que Eu digo e vocês poderão comer comidas deliciosas para alimentar suas almas”. 

Nasci em 1945, no Rio de Janeiro. Meu pai se chamava Amynthas, nasceu em 1899, e tinha uma diferença de idade de quase vinte anos em relação à minha mãe. Faleceu quando eu ainda era criança. Minha mãe, Maria José, veio de uma família de fazendeios e comerciantes de café em Minas Gerais. A família dela era formada por abolicionistas e republicanos históricos, e a partir da República sempre tivemos políticos na família e nas duas últimas gerações muitos jornalistas. Eu inclusive. 

Meu pai era socialista e foi convidado várias vezes para ser candidato pelo Partido Socialista Brasileiro. Era jornalista. Trabalhou no Jornal do Brasil e já na maturidade formou-se em Direito. Nos últimos anos de vida foi industrial. Comprou jazidas de areia monazítica em Barra de Itabapoana, no Estado do Espírito Santo. Dessa areia obtém-se a monazita, que fornece o fosfato natural de cério. O óxido do cério é utilizado na fabricação de mangas de incandescência dos reatores nucleares. Meu pai exportava a monazita para os Estados Unidos. 

Em 1953, o presidente Getúlio Vargas nacionalizou o subsolo brasileiro e como fruto dessa nacionalização meu pai perdeu o direito de exploração das jazidas. Sendo socialista nunca criticou o presidente. Meses depois, já muito doente, morreu de complicações cardíacas. Uma coisa que me marcou muito foi o trauma da guerra. O drama da guerra levou meu pai a me colocar numa escola para eu aprender a usar e a escrever com as duas mãos. Devia ser ambidestro, porque nas guerras, as pessoas mais afetadas são as crianças, e a parte do corpo que mais se perde são os braços. Hoje sou ambidestro. Na adolescência, fui criado por meu tio austríaco, Walter Thalhammer, casado com minha tia Iracema, que era estilista no Rio de Janeiro. 

Tive uma boa formação de cultura européia e na adolescência já era frequentador assíduo de bibliotecas. Aos 14 anos já tinha lido Platão, Aristóteles, Schopenhauer, Nietzsche, Spengler e os positivistas brasileiros, em especial Farias Brito. 

Em 1961, era dirigente estudantil secundarista. Nessa época o Brasil vivia um momento muito especial. O vice-presidente João Goulart estava na China, o presidente Jânio Quadros havia renunciado, e o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, iniciou uma campanha nacional para que João Goulart retornasse e ocupasse a presidência do país. Os militares não queriam que João Goulart assumisse a presidência. Comecei minha atividade política nesse momento. Era presidente do Centro Acadêmico da Escola Estadual José Pedro Varela. Fiz discurso na rua, em cima de caixote, envolvemos toda a escola nas mobilizações, que a esta altura aconteciam de norte a sul do país e pressionaram à opinião pública a apoiar a volta de João Goulart.

Em 1966, entrei para a Universidade Católica no Rio de Janeiro. Até aquele momento era um jovem sem comprometimento religioso e sem espiritualidade definida. Quando entrei para a universidade considerei-me ateu e passei a ter uma atividade política que norteou minha vida nos vinte anos seguintes. 

“Escutem-me com toda atenção! Ouçam bem, pois a sua vida depende disso. Eu vou fazer com vocês um acordo eterno, para lhes dar todo o amor e toda a bondade que um dia prometi ao rei Davi. Ele foi uma prova viva do meu poder, conquistando e dominando muitas nações. Vocês também darão ordens a outros povos, e eles obedecerão e viverão junto com vocês, mas não porque vocês tenham algum poder especial. Isso vai acontecer porque o Senhor seu Deus, o Santo de Israel, lhes deu uma nova glória”. 

A partir daí me tornei um ativista político. Comecei a ler os clássicos do marxismo. Quando entrei na universidade fui eleito para a diretoria do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da PUC. Participei de todas as mobilizações e passeatas estudantis da época. Assisti à morte de Edson Luís, o primeiro rapaz assassinado em uma manifestação no governo militar. Essa morte gerou mobilizações incríveis, que acabaram levando a uma passeata de cem mil pessoas no Rio de Janeiro. 

Nunca havia acontecido nada parecido no país. A situação nacional levou-me a radicalizar minha atividade política, ligado-me ao Movimento Nacionalista Revolucionário -- MNR, que era dirigido do exterior pelo ex-governador Leonel Brizola. A partir do final de 1966, além de estudante passei a trabalhar na revista Manchete. Comecei, então, a ter uma vida dupla, era jornalista, mas também ativista político clandestino. Recebi instrução e adestramento militar clandestino, com companheiros formados em Cuba. Especializei-me na construção de bombas e minas antitanques. 

Em 1969, o país vivia o momento mais duro de todo esse período de governo militar. As garantias e direitos democráticos estavam suspensos, havia censura de imprensa e perseguição violenta a toda e qualquer oposição, fosse ou não radical. Muitos companheiros meus tinham sido presos, outros torturados e mortos. Fui demitido da revista Manchete e a Universidade Católica definiu minha exclusão. Eu seria um dos próximos da lista de prisões. A situação ficou insustentável. Recebi ordens do Movimento Nacionalista Revolucionário para sair do país. Assim teve início meu primeiro exílio. 

Saí do país em 1970. Passei pela Argentina e fui para o Chile. Lá fui bem recebido. Entrei para a Universidade do Chile e fiz amizade com vários políticos brasileiros exilados, entre os quais o ex-ministro Mário Pedrosa, intelectual de expressão internacional. Mário Pedrosa acompanhou minha vida de exílio e acabei abraçando o trotskismo, uma das correntes mais ativas do comunismo internacional. Fundamos, então, o Grupo Ponto de Partida que tinha a finalidade de construir no Brasil um Partido Socialista. Tornei-me um dos dirigentes do trotskismo a nível internacional, atuando no Movimento de Esquerda Revolucionário/ MIR chileno. 

Vivi e atuei politicamente no Chile por três anos. Entre minhas atividades, fui operário numa fábrica metalúrgica. Eu era soldador. Em meados de 1973 houve a primeira tentativa de golpe para derrubar o presidente Salvador Allende. Junto com outros companheiros operários transformamos a metalúrgica numa fábrica de armamentos leves e começamos a produzir bombas de baixo poder destrutivo. Nossa intenção era preparar a fábrica para a produção de armas, caso houvesse um confronto prolongado com os setores militares que desejavam derrubar o governo socialista. E houve uma primeira tentativa de golpe, mas foi frustrada. Mas nós sabíamos que vinha uma outra. Todo mundo sabia. Então mudei da casa onde morava, porque era muito visada. Moravam aí: nós, militantes brasileiros, argentinos do Exército Revolucionário do Povo/ ERP e uruguaios do Movimento Tupamaro. 

Eu e uma amiga, a moça com quem vivia, fomos morar num hotel na Rua London, que fica mais ou menos a seis quarteirões do palácio La Moneda, sede da presidência da República. Nesta época, eu era dirigente do Grupo Ponto de Partida, da Internacional Trotskista e ativista do Movimento de Esquerda Revolucionária. Minha amiga trabalhava numa fábrica têxtil no Cordão Industrial de Cerrillos. 

“Busquem ao Senhor enquanto podem achar. Peçam sua ajuda, enquanto Ele está perto. Os pecadores devem abandonar seus maus caminhos, devem deixar de lado seus maus pensamentos. Todos devem se voltar para Deus, arrependidos. Assim, Deus mostrará a sua grande misericórdia, o Senhor mostrará como é imenso o seu perdão”.

No dia 11 de setembro de 1973, acordei tarde, estivera numa reunião política que varara a madrugada. Assim, levantei e liguei o rádio. Eram 10 horas da manhã. Foi um impacto. O general Augusto Pinochet exigia que o presidente Salvador Allende renunciasse à presidência e se entregasse aos militares. Caso contrário, em quinze minutos, o palácio La Moneda seria bombardeado. 

Não acreditei na ameaça do general. Bombardear o palácio significava bombardear o centro da cidade. Mandar tudo pelos ares. Mas Pinochet cumpriu o que prometeu. Quinze minutos depois, apareceram no horizonte quatro pequenos pontos. Eram aviões-caças, que foram crescendo, e depois lançaram seus mísseis sobre o palácio. Acertaram todos, de tal forma que o La Moneda pegou fogo, desabou por dentro, mas as paredes externas do palácio ficaram em pé. Eu nunca tinha visto nada igual. Em minutos o céu ficou coberto de fumaça. Uma fuzilaria tomou conta da cidade. 

Naquele dia não consegui sair do hotel. Chovia bala. Ao lado do hotel havia uma sede do Partido Socialista. De lá matraqueava uma metralhadora e tiros esparsos de fuzil. A sede socialista estava cercada por militares entrincheirados. Um helicóptero do Exército apareceu, voou baixo, parou em frente ao prédio e abriu fogo de metralhadora contra os resistentes. Fizeram isso várias vezes durante aquele dia. A impressão que eu tinha era que as balas iam arrebentar as paredes do hotel. Era impossível por o pé na rua. Quando chegou a tarde recebi um telefonema da Base Aérea de Cerrillos. Era minha amiga: ela falou comigo chorando: 

-- Estou presa, você precisa vir me soltar. 

Passou pela minha cabeça que se eu não fosse soltá-la nunca mais iria vê-la. No dia seguinte, a primeira coisa que fiz, numa atitude tresloucada, foi, esgueirando-me o melhor que podia, dirigir-me ao Quartel General do Exército. Cheguei lá e pedi para falar com a assessoria de imprensa, como resposta recebi ordem de prisão: 

-- Você é brasileiro? Está preso. 

Não tinham onde me por: me deixaram no corredor, e aí fiquei de pé, de cara para a parede, desde o início da manhã até a tardinha, vigiado por um soldado. Era o segundo dia do levante militar, estava um confusão enorme, e lá pela tarde o Quartel General começou a ser bombardeado por obuses. Os estilhaços caiam dentro do corredor. Soldados corriam para todos os lados. Trocaram o soldado que me vigiava e eu aproveitei a confusão e dei uma ordem: 

-- Leve-me imediatamente ao quinto andar, à assessoria de imprensa.

O soldado reclamou, disse que não podia, mas diante de minha intransigência acabou concordando. Quando cheguei ao quinto andar, pedi ao assessor de imprensa que providenciasse um jipe militar, porque tinha que ir à Base Aérea de Cerrillos liberar uma jovem que tinha sido presa por engano. 

-- Nós não podemos fazer isto, estamos sendo atacados, é impossível te dar um jipe. Volta aqui amanhã, talvez seja possível ... 

Concordei com ele e o soldado, ainda confuso, me deixou sair do quartel. Chegar ao hotel não foi fácil. Havia trincheiras ao longo da avenida e nas esquinas das ruas. Até um ponto do trajeto, trincheiras dos militares, e daí em diante trincheiras da resistência. Então eu levantava minha carteira de jornalista, e gritava:

-- Sou jornalista. Corria e pulava na trincheira. Conversava um pouco explicava que tinha que seguir em frente e ouvia:

-- Se você for em frente vai morrer, vão atirar em você. Quando eu estava quase chegando a outra trincheira, voltava a gritar: 

-- Sou jornalista... 

E assim quando chegou a noite eu estava de novo no hotel. No dia seguinte resolvi ir direto à Base Aérea de Cerrillos, que ficava num bairro distante do centro da cidade. Passei o dia todo tentando encontrar algum transporte, mas não havia condução. Havia o toque de recolher, que proibia às pessoas de transitarem pelas ruas. Tudo estava parado. Quando eram quase cinco da tarde passou um táxi, o único táxi que eu vira nesses dois dias. Quando o táxi chegou próximo, lancei-me à frente dele e comecei a gritar para que parasse. Ele parou. O taxista me disse que estava indo para casa, que ficava longe, na cidade de Valparaíso. Então, lhe dei voz de prisão: 

-- Leve-me à Base Aérea de Cerrillos ou está preso. Ele olhou para mim, estupefato, e perguntou: 

-- O senhor é da embaixada brasileira? Eu sabia que o governo brasileiro estava apoiando o levante militar, por isso não hesitei: 

-- Sou. 

“Vocês nunca fariam um plano como esse, porque os meus pensamentos são muito diferentes dos seus. Minha maneira de agir é muito diferente da sua!”

Então ele me levou até a base aérea. Quando chegamos, a base aérea estava sendo bombardeada com morteiros. O táxi passou pelo portão principal, ouvíamos os morteiros zumbindo sobre nossas cabeças e explodindo lá a frente. Rapidamente, os oficiais da Aeronáutica nos cercaram. Caia uma garoa forte. Ordenaram que eu descesse do carro. Fiquei no meio de um gramado, nas guaritas via soldados armados com fuzis e metralhadoras. Deram uma segunda ordem:

-- Tira a roupa, toda a roupa.

Debaixo da garoa fina tirei a roupa e mergulhei numa imagem ancestral, que nunca vou esquecer: a do judeu nu, massacrado, prestes a ser fuzilado. Um oficial saiu de uma das guaritas e pediu o meu passaporte. Expliquei que vim buscar uma jovem brasileira. Debaixo da chuva fina, ele abriu o passaporte, olhou-o rapidamente e me devolveu. Mandou chamar a moça. Ela veio chorando, em prantos. Caminhamos para o táxi, mas o motorista, que também chorava de raiva, por ter sido enganado, negou-se a nos levar de volta. Voltei-me ao oficial e disse: 

-- Este homem não quer nos levar de volta.

O oficial respondeu: 

-- Tem que levar, vocês não podem ficar aqui.

E como entramos, assim saímos da base aérea, debaixo de explosões e do matraquear de metralhadoras.

Quando chegamos ao hotel, minha amiga contou que na manhã do dia 11 de setembro, a fábrica onde trabalhava resistiu ao golpe até acabar a munição. Então, os militares da Aeronáutica, que tinham cercado a fábrica, invadiram as instalações, prenderam todos, encostaram os dirigentes na parede da rua e os fuzilaram na frente de todo mundo. Ela por ser loura e brasileira foi poupada. Afinal não sabiam de quem se tratava. Foi levada para a Base Aérea e presa. Ela, porém, informou que era amiga de um jornalista brasileiro, correspondente da agência Dispatch News Service, de Washington. Teve, então, o direito de dar um telefonema, aquele que eu atendi no hotel.

No hotel o ambiente estava alvoroçado. A televisão apresentava uma lista de pessoas procuradas, exortando a população a denunciar todos os estrangeiros. Os militares tinham dado dois dias para todos os estrangeiros se entregarem. Eu, logicamente, não me entregara, nem esta era minha intenção. Eu e minha amiga sabíamos que podíamos ser denunciados, mas não tínhamos escolha. Então passamos aquela noite rasgando e jogando pela janela textos e manuais de guerrilha. 

Quando amanheceu tínhamos sido denunciados pelo dono do hotel. Os militares esmurraram a porta do pequeno apartamento, quase a arrombaram. Eu abri e fui imediatamente golpeado por coronhadas de fuzil. Foi tudo muito rápido. A cada coronhada eu desmaiava e quando voltava a mim era golpeado de novo. Levaram tudo o que podiam levar, roupas, máquina de escrever, livros. Presos, fomos obrigados a caminhar pelas ruas, com as mãos na nuca, numa estranha procissão. Depois nos jogaram num ônibus, deitados. Começaram então a maltratar minha amiga, chutando e pisando nela. Eu gritei: 

-- Não façam isso, ela está grávida. 

Era mentira, mas eles pararam. Nós não sabíamos, mas estávamos sendo levados para o Regimento de Tacna, um quartel onde políticos da resistência estavam sendo fuzilados. Nos largaram numa espécie de cozinha. Eu caí no chão e apesar de muito machucado tive uma sensação de alívio. O chão de ladrilho era frio e me transmitiu uma sensação agradável. Horas depois, chegou um coronel e nos informou: 

-- Vocês vão ser fuzilados no início da tarde. 

As horas passaram num relance. Estávamos cansados, machucados, tontos. Então, no começo da tarde fomos levados. Éramos umas oito pessoas, em fila indiana, caminhando para o paredão. 

De repente, um tenente me chamou. Eu estava na fila, caminhando, e ele me chamou. Saí da fila, fiz um sinal para minha amiga me acompanhar. E o oficial me perguntou:

-- Você foi preso com muito material subversivo, não é?

Afirmei que era verdade, mas que era jornalista, e que tudo tinha sido comprado. Ele então disse que também tinha muitos daqueles livros em casa. Tive uma empatia profunda com aquele jovem. Estava diante de um oficial de esquerda. Apenas nos olhamos. Olhares cúmplices de companheiros que viram seus sonhos queimarem nas chamas do palácio La Moneda.

Enquanto isso, os três ouvimos atrás de nós os tiros que abatiam os outros companheiros.

“Porque assim como o céu está mais alto do que a terra, os meus caminhos são mais altos do que os caminhos de vocês, e os meus pensamentos mais altos que os seus pensamentos. Como a chuva e a neve caem do céu e não voltam para lá antes de regar a terra, de fazê-la brotar, produzir e dar sementes ao lavrador e pão aos famintos, assim é a minha palavra”.

Fomos então mandados para interrogatório. Combinei com minha amiga, “apenas eu falarei para que não entremos em contradição”. Expliquei aos militares que estava estudando na Universidade do Chile, que amava aquele país e que nunca me passara pela cabeça sair do Chile. Foi um interrogatório leve, viram que eu era correspondente estrangeiro, e me entregaram um salvo-conduto para que eu tivesse livre trânsito. Saímos os dois só com a roupa do corpo. Andamos até que descobrimos um hotel perto da Plaza de Armas, onde já se encontravam vários exilados brasileiros.

Do hotel telefonei para Nova Iorque, para um amigo, Peter Camejo, que na época pertencia ao Socialist Workers Party e que mais tarde entrou para o Partido Democrata. Não consegui falar com ele, pedi então a uma jovem que trabalhava no consulado brasileiro em Nova Iorque para entrar em contato com Camejo. Expliquei a situação e pedi para me mandarem duas passagens de avião Santiago/Buenos Aires e dinheiro via ordem de pagamento. Ficamos no hotel. O dinheiro chegou. Compramos roupas. Quando os aeroportos abriram, chegaram também as passagens.

Assim, um mês depois do golpe, viajamos via Pan American para Buenos Aires. Nesses trinta dias ajudamos a duas dezenas de líderes operários chilenos a deixar o país, atravessando a fronteira em direção à Argentina. Eram companheiros marcados, que não tinham condições de manter-se na clandestinidade. 

Em Buenos Aires voltei às minhas atividades políticas. Organizei um grupo socialista com a finalidade de atuar politicamente nas universidades de São Paulo e nas fábricas do ABC paulista, principalmente no setor automobilístico. 

Em 1974 entrei clandestinamente no Brasil. Por sugestão de meu advogado desisti de morar no Rio de Janeiro e instalei-me em São Paulo. Regularizei minha documentação e voltei a trabalhar como jornalista, agora no Diário do Comércio e Indústria. 

Em 1975, nasceu minha primeira filha, Marcela. Nossa organização política cresceu no meio estudantil e sindical, mas em 1977 foi golpeada pelas forças de repressão do governo militar. Eu estava viajando, atuando na Espanha e em Portugal, e diante de tal situação permaneci aquele ano na Europa. Nasceu, então, minha segunda filha, Patrícia, em Lisboa, no verão de 1977. 

Essa viagem à Europa começou a mudar a minha vida. Antes acreditávamos que a revolução só poderia ser vitoriosa se acontecesse também nos países desenvolvidos. Mas não foi isso o que eu vi na Europa no final dos anos 70.

Apesar da queda das ditaduras na Grécia, Espanha e Portugal, a Europa começava a viver a ascensão do neoliberalismo. A classe operária e os sindicatos não lutavam pelo socialismo, mas mobilizavam-se por melhores condições de vida. Eu não estava contra esses anseios, mas comecei a ver que o mundo, ao menos por hora, não caminhava para o socialismo. Isso me levou a constatar que a proposta de construção de um partido marxista-leninista no Brasil era uma utopia, sem base na realidade.

Assim, em 1978, quando voltei para o Brasil, sugeri aos meus companheiros a formação de um Movimento de Convergência Socialista, que reunisse o socialismo histórico em direção à formação de um Partido Socialista de tipo europeu. 

Mas, infelizmente, em 1978 vivemos novas prisões. Jornalistas e editores do jornal Versus, do qual era diretor de redação, foram presos. Fui acusado pelos serviços de inteligência de organizar a formação do Partido Socialista e incurso nos artigos 14, 43, 45, incisos I, II e III do decreto-lei no 898/69 pela 2a Auditoria da 2a CJM, em São Paulo. Com ordem de prisão decretada e procurado pelos serviços de segurança, fui obrigado a entrar para a clandestinidade. E fiquei clandestino quase um ano. 

Depois, através de acordo de meus advogados com a Justiça Militar, fui levado a julgamento na 2a. Auditoria da Justiça Militar em São Paulo. O juiz, um coronel do Exército, me deu o direito de expor minha defesa, e eu argumentei que nunca tinha cometido crime contra a pessoa, nem contra a propriedade, ou seja, não tinha ferido ninguém, não tinha matado ninguém, nem assaltado bancos.

Meu crime era ter lutado por uma sociedade justa, que possibilitasse direitos iguais a seus filhos. Depois de falar durante duas horas, o tribunal deixou em suspenso todas as acusações contra mim. Mas por que? Porque sabiam que a anistia seria sancionada a qualquer momento. Assim, no dia 11 de setembro de 1979, por sentença do Conselho Permanente de Justiça foi julgada extinta a minha punibilidade com base na Lei de Anistia. 

A profunda crise existencial que vivi a partir de 1977 não era exclusividade minha. Intelectuais europeus, que participaram das grandes mobilizações do maio francês de 1968, estavam vivendo angústias semelhantes. Um deles chegou a escrever um livro que tinha como título “Deus está morto, Marx está morto e eu não me sinto muito bem”. Era o que muitos de nós, uma parte da liderança da esquerda mundial, sentíamos. Mesmo assim, na volta ao Brasil, havia fundado a Convergência Socialista e nos três anos seguintes trabalhei para a formação do Partido dos Trabalhadores. 

Em 1979, depois de sete anos de convivência me separei de minha amiga e companheira. Era um trapo existencial. Não acreditava mais nas profecias do comunismo. Deixei a Convergência Socialista. Fiz uma autocrítica pública do marxismo e do leninismo. Sozinho, sem amigos, passei a ser olhado pelos antigos companheiros como um renegado. 

“Quando Eu falo, ela (ela, a Palavra de Deus) sempre produz o fruto que desejo, sempre traz o resultado que determinei”. 

Um ano depois, precisamente no dia 22 de setembro de 1980 aconteceu uma novidade na minha vida: conheci minha futura esposa. Naquele dia tinha sido ameaçado de morte pelo Comando de Caça aos Comunistas/ CCC. Era um sábado e o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo realizou um ato de desagravo às pessoas ameaçadas pelo CCC. Depois do ato no sindicato, fui a um baile popular no Clube Paulistano da Glória, no bairro da Liberdade. Aí conheci uma estudante de Administração de Empresas na Fundação Getúlio Vargas, Naira, que vinha de uma reunião do recém criado do Partido dos Trabalhadores. Quatro anos depois eu me casaria com ela.

Setembro de 1984

Começamos os dois, juntos, mas não no mesmo ritmo uma longa caminhada em direção ao cristianismo. Os valores estáveis de Naira e de sua família italiana me agradaram muito. Debrucei-me cautelosamente em direção ao catolicismo. Assisti a algumas missas e até me emocionei diante de alguns sermões, mas senti que não era ali que meus questionamentos seriam respondidos.

Então me voltou à lembrança as conversas com meu pai e as aulas de religião no Colégio Hebreu Brasileiro, no Rio de Janeiro. Comecei a estudar com afinco o misticismo judaico. Já casado com Naira, estudamos juntos um texto que foi fundamental na minha conversão: O Discurso da Servidão Voluntária, escrito no século XVI por Etienne La Boétie, pensador que influenciou o movimento huguenote na França. Estudei, estudei muito. Mas, também, levantei nas madrugadas e rezei em hebraico: Baruch atá Adonai, Elohénu Méleh haolam... Bendito sejas ó Eterno, nosso Deus, rei do universo... 

Recitava os nomes de Deus e pedia a Ele que me mostrasse a sua vontade, que me brindasse uma vida nova. Dias depois, estava trabalhando numa agência de publicidade em São Bernardo do Campo, quando entrou na sala um jovem publicitário. Seu nome era Douglas. Pastor, esse homem se tornou um amigo. Rapidamente me ensinou duas coisas.

Primeiro, que só uma pessoa podia preencher meu vazio: Jesus, o Messias. Isso, se eu o aceitasse como meu Senhor e Salvador. E segundo, que orar é diferente de recitar os nomes de Deus em hebraico. É conversar com Deus através de nosso único mediador, Jesus Cristo. Pode não parecer, mas essas foram palavras duras. Jesus para mim era um profeta intransigente, que acusava os sacerdotes judeus de hipócritas e de sepulcros caiados. Antes de minha conversão, Jesus me dava medo, um medo terrível. Nessa época, eu ganhara uma Bíblia, mas só lia o Antigo Testamento.

Mas numa tarde de chuva muito forte, ali no bairro de Rudge Ramos, em São Bernardo do Campo, no auditório da agência Drall, de propriedade dos meus amigos Luzo e Débora, eu aceitei a Jesus Cristo como Senhor da minha vida. De joelhos no chão frio do auditório, sozinho, reconheci minha pecaminosidade e meu afastamento da vontade de Deus. Implorei a Deus o perdão e fui justificado pelo sacrifício vicário de Jesus Cristo. O fim do ano se aproximava e no Natal comecei a ler o Evangelho de João. 

“Vocês sairão da terra da escravidão com alegria, e serão levados de volta à sua terra em paz. Montanhas e morros cantarão de alegria enquanto vocês caminham. Onde havia moitas de espinho haverá pinheiros, onde brotava o mato bravo nascerão flores”.

Quase ao mesmo tempo em que vivi esses acontecimentos, Deus me deu meu primeiro ministério: falar a meus antigos companheiros, políticos e intelectuais de esquerda, sobre o poder transformador da cruz.

A princípio foi difícil, pois começou a correr entre a esquerda a notícia de que eu tinha enlouquecido. Mas com o passar dos meses e depois dos anos começaram a ver que algo profundo tinha acontecido na minha vida. Viram que eu não tinha me transformado num reacionário, mas que ao contrário levantava com consciência a bandeira de uma ética cristã de compromisso social, preocupada em desenvolver a tarefa histórica de transformar o Brasil num país onde todos tivessem acesso a condições dignas de vida e à justiça social.

Hoje, graças à misericórdia de Deus, sou um ministro de Deus: prego, ensino e escrevo. Por tudo isso, considero Isaías 55 o livro-texto da minha vida. 

“Este milagre trará glória ao nome do Senhor e será uma lembrança eterna do poder e amor de Deus”.

Isaías 55 é a tradução do que aprendi quando criança, do que vivi enquanto homem distante de Deus, e do que sou pelo amor de Cristo. É o roteiro da minha vida, a entrega do perdão e a certeza do paraíso.









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