vendredi 5 avril 2013

O conceito de Aliança como referência simbólica na teologia de Gênesis

por Jorge Pinheiro

[Em especial, para meus alunos de Filosofia II, 
para a discussão de historicidade e símbolo na construção da linguagem religiosa]  


Índice

1. Introdução

2. Um personagem transistórico num contexto real

3. A materialidade da Aliança

4. Uma construção histórico genética

5. Considerações



A
discussão em torno de referências simbólicas na teologia de Gênesis é polêmica, pois o próprio conceito de referência simbólica, para muitos teólogos, seria um limitação para um outro conceito: o de revelação progressiva. Ora, dizem eles, se a revelação é progressiva toda definição de referência é descabida [1]. Acontece que não devemos falar de uma referência linear em progressão, mas de uma expansão. Poderíamos tomar uma imagem, apesar dos perigosos que um grafismo pode representar, de círculos concêntricos formados na água ao cair de uma pedra. A expansão se dá em todos os sentidos, há sem dúvida uma progressão, mas temos uma referência, criada pelo choque da pedra com a água. 

Um personagem transistórico num contexto real

A teologia de Gênesis tem como referência simbólica o conceito da aliança, não como paradigma doutrinário gerador de dogmas, mas como descrição de um processo vivo, que tem origem em determinado momento histórico, numa relação entre o Eterno e um homem transistoricamente definido [2]. Assim, ao entendermos o conceito de aliança como centro unificador do livro de Gênesis e, por extensão, do Hexateuco, a leitura do texto bíblico passa a ter uma compreensão definida, que cresce conforme a aliança se transforma em osso e carne, primeiramente, na vida dos patriarcas e, posteriormente, na formação da própria nação.

O livro de Gênesis apresenta a humanidade recém formada como monoteísta[3]. Até o capítulo 11 não vemos nenhum traço de idolatria. Só após Babel surge a idolatria, que seria contemporânea ao aparecimento das nações da Antigüidade. Assim, a partir de Gênesis 12, temos nações idólatras e politeístas e indivíduos que adoravam ao Deus único. Entre estes estão Abrão e Melquisedeque. A compreensão desse fato é importante para tirarmos das costas de Abrão a responsabilidade de ter criado a primeira religião monoteísta. Ele não criou a religião do Eterno único, mas deu seqüência a uma tradição, no sentido de transmissão de conhecimento e cultura, que vinha, em parte, de seus antepassados.

Vejamos um pouco mais sobre a transistoriedade  desse homem, conforme descrita em Gênesis 12:1 a 25:18. Ele vivia na terra formada entre os rios Tigre e Eufrates, às margens de um afluente do Eufrates, chamado Balique. Viveu com sua família em Harã, uma cidade altamente desenvolvida. Seus parentes - Terá, Naor, Pelegue, Serugue - têm seus nomes registrados nos documentos de Mari e dos assírios como nomes de cidades naquelas regiões[4].

A cidade de Ur, onde vivera antes de ir para Harã, é situada pelos arqueólogos na região da moderna Tell el-Muqayyar, a catorze quilômetros de Nasiryeh, no sul do Iraque. Segundo estudos de Sir Leonard Woolley, do Museu Britânico, que reconstruiu a história de Ur desde o quarto milênio até o ano 300 a.C., o deus-lua Nanar, que era adorado em Ur, também era a principal divindade em Harã.

É interessante agregar, que a ofensiva da teologia liberal, que se baseava principalmente nos estudos de Graf-Wellhausen[5], e que afirmam que Abraão, Isaque e Jacó não existiram como pessoas, mas são personagens criados pela literatura oral israelita entre os anos 950 e 400. Porém, essa visão entra em confronto com informações arqueológicas atuais. A partir de 1925, uma série de descobertas arqueológicas produziu uma revolução de informação até então inédita. “Temos agora textos, literalmente dezenas de milhares, contemporâneos ao período das origens de Israel”[6]. E Bright cita os 25 mil textos de Mari; os milhares de textos capadócios; os das Execracões, os do médio Império Egípcio; e os tabletes de Nuzi, Alalakh, e Ras Shamra, produzidos entre os séculos 20 a.C. e 14 a.C..

Ao sair de Harã, Abrão deixava para trás a cultura politeísta babilônica. Mas isso não significa que todos os seus parentes compartilhavam suas idéias sobre a adoração do Deus único. Em Josué 24:2 vemos que membros de sua família eram politeístas. Em Canaã, também estava rodeado de idólatras, mas mesmo assim erigiu um altar ao Senhor.

Este homem Abrão era, sem dúvida, alguém especial. Sua fé no Deus único produziu em sua vida um fruto muito especial. Era um homem que procurava a paz (13: 8+), generoso (14:21+), hospitaleiro (18:1+), intercessor (18:23+), que busca a justiça e o direito (18:19). Era um homem moral e temente a Deus.

A materialidade da Aliança

Dessa maneira, os livros de Gênesis e Êxodo apresentam a fé israelita, enquanto construção, fundamentada em dois acontecimentos históricos. O primeiro, é a escolha de um homem transistoricamente definido, chamado Abrão, que foi tirado da cidade de Ur e levado para Canaã, uma terra prometida a ele e sua descendência (Gn.19:31; 12:7). Essa promessa foi selada com um pacto, uma aliança entre o Eterno e Abrão, conforme Gênesis 15: 5-10. E o segundo fato histórico é a libertação dos descendentes de Abrão da escravidão do Egito, através de Moisés, e sua entrada na terra prometida (Ex. 3:6-10). Esses dois acontecimentos expressam a materialidade da aliança, que se traduz como escolha de Deus a favor de um homem, gerador de um povo, para uma missão definida. Realidade esta que foi reafirmada, centenas de anos depois, pelo príncipe dos profetas israelitas: “Ouvi-me, vós, que estais à procura da justiça, vós que buscais a YHWH. Olhai para a rocha da qual fostes talhados, para a cova de que fostes extraídos. Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, aquela que vos deu a luz. Ele estava só quando o chamei, mas eu o abençoei e o multipliquei”. Isaías 51: 1 e 2.

A aliança com Abrão foi selada com sangue, conforme os versículos 9 e 10 do capítulo 15 de Gênesis. Segundo os costumes semitas, o berit (pacto ou aliança) era feito através da degola de animais, geralmente um bezerro, que era dividido em duas partes, colocadas uma em frente à outra, e os contratantes passavam entre os pedaços (Jr.34:18-20) e diziam: “Que a Divindade corte em pedaços, como a estes animais, os violadores deste pacto”[7]. Daí as expressões, “karot berit”, imolar uma vítima para concluir um pacto; “bo ba berit”, entrar na aliança (Jr. 34:10); “abor ba berit”, passar pela aliança (Dt. 39:2); “amod ba berit”, parar na aliança (II Rs.23: 3).

Assim, o Eterno deu a Abrão uma formalização do pacto. Ou seja, o próprio Deus selou o acordo com um costume humano, a fim de que a aliança pudesse ser visualizada por Abrão. E o Eterno, em seu amor pelo contratante mais fraco, passa no meio dos animais partidos (Gn. 15: 17). O versículo seguinte agrega:

“Naquele dia, o Eterno estabeleceu uma aliança com Abrão nestes termos: à tua posteridade darei esta terra (...)”.

Aqui voltamos ao início dessa análise: por que a referência simbólica da aliança fornece uma base para a compreensão do livro de Gênesis? Em primeiro lugar, porque o diálogo do Eterno com Adão e Eva em Gênesis 3: 15 aponta para um Salvador. E em Gênesis 15 temos a primeira realização dessa promessa através da aliança com Abrão, que produzirá descendência, com duas missões: ser testemunha entre as nações, e ser nação separada, da qual nasceria o Messias prometido.

“É de suma importância entender que a aliança iniciou uma nova relação entre Deus e Israel, uma relação imposta por YHWH, mas exclusiva e íntima em seu ideal”[8]. Embora, na tradição judaica, o livro de Êxodo seja o livro da aliança, o conceito está presente e é desenvolvido no primeiro livro do Pentateuco. Na aliança está embutida a idéia de salvação e de relacionamento pessoal com o Eterno. Esta realidade nova dentro do plano de redenção do homem, está implicita na declaração do Eterno a Abrão: “Estabelecerei uma aliança entre eu e você, e a sua raça depois de você, de geração em geração, uma aliança perpétua, para ser o seu Deus e o da tua raça depois de você”. Gn. 17:7. E como todo pacto, além do “berit milah” (pacto da circuncisão), Abrão e seus descendentes são chamados à responsabilidade moral (v. 1) e a uma adoração permanente (v. 7 e 19). Elementos estes, que a partir de Moisés serão desenvolvidos, dando origem à religião de Israel, que tem por base, num primeiro momento histórico a primazia do culto e suas ordenanças e, num segundo momento, com o surgimento da profecia literária, da justiça social. Assim, é impossível fazer uma completa separação entre Aliança e Reino. Este último será uma construção que tem como primeiro tijolo a nova relação estabelecida pelo Eterno com pessoas.

Uma construção histórico-genética

Aqui, somos obrigados a recorrer a alguns conceitos da moderna epistemologia, para entendermos o papel da transmissão do conhecimento de Deus e de sua vontade, realizado através da aliança, que Gênesis nos aporta. Segundo Piaget, quando estudamos o desenvolvimento e a construção das estruturas de conhecimento, vemos que esta construção se dá através de uma dissociação de conteúdos e da elaboração de novas formas, mediante uma abstração reflexiva de conhecimentos anteriores [9]. Ora, a relevância da epistemologia genética está em que ela nos mostra que, por mais importantes que sejam as origens de dado conhecimento, o que vai determinar sua essência é seu movimento genético. Assim, quando temos a formalização desse processo temos de fato um conhecimento inteiramente novo, que extrapola os dados iniciais, transbordando o real.

Ora, sabemos que a circuncisão [berit milah] na época de Abrão era um costume generalizado, associado aos poderes da reprodução humana, que servia de distintivo tribal[10]. Sabemos, também, como vimos anteriormente, que os pactos eram selados com sangue e o seu rompimento significava a morte do transgressor. Esses conteúdos faziam parte da cultura de Abrão e de seu clã. Da mesma forma, outros conteúdos, como adoração / “edificar um altar” (Gn.12: 8), obediência / “foi habitar nos carvalhais de Manre” (13: 17-18), entrega de bens e posses / “e de tudo lhe deu o dízimo” (14:20), fidelidade / “ele creu no Senhor” (15: 6), e consciência da onipotência divina / “não fará justiça o juiz de toda a terra?” (18: 25) são conteúdos espirituais da fé de Abrão e dos homens santos que o antecederam.

Dessa maneira, a questão não está centrada nas origens desses conteúdos que, sem dúvida, são históricos e refletem as culturas das civilizações mesopotâmica e da bacia do Nilo, assim como a tradição monoteísta na época de Abrão. O fundamental aqui é entender que esses conteúdos se organizam em nova estrutura: a aliança abrâmica, que se constrói geneticamente, com história peculiar. Esta aliança, cuja gênese e história mostram uma elaboração sucessiva, que é o próprio Pentateuco, como síntese linguística, não é pré-formada. Sua construção histórico-genética é autenticamente constitutiva e não se reduz a um mero conjunto de conteúdos acessíveis.

Mas há um bereshit, um fiat, um momento especial que dá origem à essa estrutura nascente: é a revelação. A partir da promessa de Gênesis 3:15 temos, agora, uma revelação nova. A aliança surge como revelação, que dá vida a antigos conteúdos, colocando em movimento um processo histórico-genético que vai-se construir enquanto estrutura (povo escolhido / terra prometida) e dar novo salto com a formalização maior realizada no Sinai.

Esta realidade leva a uma outra, que é o da linguagem do Pentateuco, na sequência da aliança. Considerando a moderna linguística, do ponto de vista estruturalista, vemos que a linguagem tem duas grandes características: por um lado é universal, enquanto estrutura geral, humana[11], e, por outro, é livre e não serve apenas à função comunicativa, “mas é antes um instrumento para a livre expressão do pensamento e para a resposta apropriada às novas situações”[12]. Isto é o que explica o fato de que as grandes revoluções do conhecimento são sempre acompanhadas pelo surgimento de uma linguagem nova e de novas estruturas de pensamento. Ora, a aliança descrita em Gênesis 15 e 17 vai abrir um processo de revolução em relação ao conhecimento de Deus e de sua vontade, e vai gerar uma nova linguagem. De forma crescente vemos nos capítulos seguintes de Gênesis e dos demais livros do Pentateuco essa nova linguagem ganhar forma e consolidar-se enquanto linguagem da teologia da aliança. Algumas palavras serão fundamentais nessa nova linguagem: acordo / aliança / pacto (berit, conforme Gn. 12:2; 15:17; 17:7-8; 22: 16-18); altar / holocausto / sacrifício (conforme Gn. 12:7; 22:9; 35: 1,7; Êx. 17:5; 24:4; 27:1-8; 30: 1-10; Lv. 16:16-19); circuncisão (berit milá, conforme Gn. 17:9-14; Ex. 4:24-26; Dt. 10:16); justiça / misericórdia (conforme Gn. 15:6) e santidade (conforme Gn.17:1; Êx. 19:6; Lv. 20:6).

Assim, tem razão Mullins, citado por Byron Harbin, quando diz que “no Antigo Testamento, a aliança entre Deus e Israel era a base de todo trato de Deus com seu povo. O significado da aliança foi que Israel pertenceu a Deus e Deus pertenceu a Israel. A relação foi às vezes descrita com semelhante àquela entre pai e filho, ou como aquela de marido e esposa. Eis a declaração frequente no Antigo Testamento que Deus é Deus ciumento (Ex. 20:5; 34:14; Dt. 4:24; Is. 54:5; 62: 5; Os. 2:19)”[13]. Dessa maneira, através de Abrão, a aliança é em primeiro lugar pessoal, abrangendo cada vez um espectro maior: tribal, nacional, universal. Mas, quer no primeiro caso, pessoal, quer historicamente, como redenção, ela é sempre estrutural.

Considerações

Mas, se aliança é eleição, escolha, implica em preferência por alguém, escolher por prazer ou por amor. E essa conceituação entre aliança e amor é muito claramente enunciada em I Reis 11:13, quando o Eterno afirma que escolheu Jerusalém por amor. Assim, aliança e amor não podem ser separados, embora não sejam a mesma coisa. A aliança é o selo, o pacto. O amor, o motivo que leva à aliança. No livro de Gênesis vemos o amor do Eterno na criação, na conversa com Adão e Eva e na promessa de um Salvador. Mas é na aliança que o amor pelo humano alienado torna-se material e compreensível. A saga dos patriarcas descendentes de Abraão, que se torna um pai de muitos povos, mostra o caminho da concretização dessa aliança. Eis o tema central de Gênesis e de todo o Pentateuco: o Eterno ama e casa-se com um povo, criado por ele, e comissionado por ele. O resto da história, nós conhecemos. E por amor estamos dentro da aliança abrâmica.


Bibliografia

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Bright, J., “”História de Israel”, Ed. Paulinas, São Paulo, 1978

Chomsky, Noam, “Linguística Cartesiana”, Ed. Vozes, Petrópolis, 1972

Davidson, F., “O Novo Comentário da Bíblia”, Ed. Vida Nova, São Paulo, 1994

Davis, John D., “Dicionário da Bíblia”, Casa Publicadora Batista, Rio de Janeiro, 1978

Eichrodt, Walter, “O Homem no Antigo Testamento”, Publicação da Associação Acadêmica João Wesley, São Paulo, 1965

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Hasel, Gerhard, F. “Teologia do Antigo Testamento / Questões Fundamentais no Debate Atual”, Juerp, São Paulo, 1992

Jakobson, Roman, “Linguística e Comunicação”, Cultrix, São Paulo, 1971

Kaufmann, Yehezkel, “A Religião de Israel”, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1989

Kidner, Derek, “Gênesis, Introdução e Comentário”, Editora Mundo Cristão, São Paulo, 1991

Lefébvre, Henri, “A Linguagem e a Sociedade”, Ed. Ulisséia, Lisboa, 1966

Melamed, Meir Matzliah, “A Lei de Moisés e as Haftarot”, Miami, 1962

Menorá, Dunatos, “Mensagem aos Judeus”, Ed. Minimax, São Paulo, 1960

Rowley, H. H., “A Fé em Israel / Aspectos do Pensamento do Antigo Testamento”, Ed. Paulinas, São Paulo, 1977

Schultz, Samuel J., “A História de Israel no Antigo Testamento”, Ed. Vida Nova, São Paulo, 1992

Scott, R. B. Y., “Os Profetas de Israel / Nossos Contemporâneos”, ASTE, São Paulo, 1968. 



Citações


[1]”Não é necessário verificarmos a evolução do problema nos últimos dois séculos, quando surgiram apreciações bastante divergentes da teologia bíblica. A publicação da teologia de Eichrodt projetou a questão para uma nova dimensão. No seu entender, o “conceito central” e “símbolo apropriado” que garante a unidade da fé bíblica é a “aliança”.” Hasel, Gerhard F., “Teologia do Antigo Testamento / Questões Fundamentais no Debate Atual”, Juerp, São Paulo, 1992, pág. 57. 

[2] “A centralidade da aliança para a religião do AT já possuía defensores muito antes de Eichrodt: August Kayser, Die Theologie des AT in ihrer geschichtlichen Entwicklung dargestellt (Strassburg, 1886), p. 74: “A concepção dominante dos profetas, a âncora e o alicerce da religião do At em geral, é a noção de teocracia ou, utilizando a expressão do próprio AT, a noção de aliança”. G. F. Oehler, Theologie des AT (Tubingen, 1873), I, p. 69: “O fundamento da religião do AT é a aliança por meio da qual Deus recebeu a tribo escolhida, a fim de realizar seu plano de salvação”, in Hasel, Gerhard F., obra citada, pág.57.

[3]Kaufmann, Yehezkel, “A Religião de Israel”, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1989, pág.220.

[4]Schultz, Samuel J., “A História de Israel no Antigo Testamento”, Ed. Vida Nova, São Paulo, 1992, pág. 31.

[5]Wellhausen, J. “Prolegomena to the History of Israel”, Edinburgo, pág. 331.

[6]Bright, J. , “História de Israel”, Ed. Paulinas, São Paulo, 1978, pág. 97.

[7]Melamed, Meir Matzliah, “A Lei de Moisés e as Haftarót”, Flórida, 1962, pág. 33.

[8]Harbin, Byron, “Teologia do Antigo Testamento”, apostila, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, São Paulo, 1996, pág. 4.

[9]”A formalização constitui, desde o ponto de vista genético, um prolongamento das abstrações reflexivas que já atuam no desenvolvimento do pensamento, mas este prolongamento acontece através de especializações e generalições que se tornam dominantes, adquirindo uma liberdade e uma fecundidade combinatória que sobrepassam amplamente e em todas as partes os limites do pensamento natural, mediante um processo análogo àquele, segundo o qual o possível transborda o real”. Piaget, Jean, “La Epistemologia Genética”, A. Redondo Editor, Barcelona, 1970, pág. 84.

[10]Davidson, F, “O Novo Comentário da Bíblia”, Ed. Vida Nova, São Paulo, 1994, pág. 160

[11] “A aquisição da linguagem é uma questão de crescimento e maturação de capacidades relativamente fixas, em condições externas adequadas. A forma da linguagem adquirida é determinada em grande parte por fatores internos”. Chomsky, Noam”, “Linguística Cartesiana”, Ed. Vozes, Petrópolis, 1972, pág. 80.

[12]Chomsky, Noam, obra citada pág. 23.

[13]Mullins, Edgard Young, “The Christian Religion in the Doctrinal Expression”, Philadelphia, Judson, 1954, pág. 237, 431, in Harbin, obra citada, pág. 5.



Fonte: Jorge Pinheiro, História e religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007, pp. 59-65.

mercredi 3 avril 2013

Leituras libertárias da natureza humana

De Pelágio a Marx
na contramão do cristianismo autoritário
Jorge Pinheiro
Resumo

Ao final de seu livro O povo brasileiro, Darcy Ribeiro (2005, p.545) diz que "somos povos novos na luta por fazermos a nós mesmos como um gênero humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas também muito mais bela e desafiante". Em relação à teologia, muitas vezes recorremos à antropologia na busca da compreensão de quem é este homo sapiens. E nesse texto partiremos dessa afirmação antropológica, somos povo em construção, entendendo que sem a compreensão do que somos pouco podemos compreender sobre nossas possibilidades e destino.

Palavras-chave: natureza humana; destino; liberdade; bem; mal.

Esta análise do gênero humano parte da Carta à Demétria1 escrita por Pelágio a uma adolescente. As reflexões de Pelágio sobre a pessoa consideravam existir uma bondade inata na natureza humana, fruto da imago Dei. Dirá que podemos avaliar a bondade humana pela referência ao Criador (2.2), já que Deus transmitira ao humano o atributo da vontade livre, que possibilita a escolha livre e o domínio próprio. E Paul Tillich, em sua Teologia Sistemática, afirmou que a alienação é um estado da existência. Nesse sentido, quando o ser humano exerce sua liberdade, sob o estado de alienação presente na existência, sempre tem diante de si a possibilidade do mal. A partir daí, num sobrevôo passamos por Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Para esses pensadores, cada um a sua maneira e em contextos diferentes, o humano se constrói historicamente, enquanto pessoa e comunidade, enquanto percepção de que a natureza humana tem potencialidades que podem se cumprir através da ação transformadora. Essas leituras realçam a responsabilidade moral das pessoas e das comunidades e, como conseqüência, exortam à construção de políticas educacionais formadoras de sociedades solidárias.

O debate teológico a respeito da natureza humana faz parte da própria história da teologia. Mas em nossa análise vamos partir de Justino Mártir quando afirmou que o humano, por ser racional e livre, é responsável por seus próprios atos.

Tal afirmação levou a discussão para a relação existente entre Adão e a alienação existencial. Dentro da tradição teológica da Igreja oriental, no primeiro humano estavam tipificadas as separações e o distanciamento do Criador. Já para a Igreja ocidental, que a partir do debate com os donatistas, precisava formular a questão dos sacramentos e o papel sacerdotal, Adão passou a ser visto como fonte do mal humano e não protótipo. A discussão foi, então, polarizada no debate de dois pensadores: o monge Pelágio e Agostinho de Hipona. Séculos mais tarde, a crítica da Reforma ao racionalismo tomista trará o debate de volta. Só que a discussão será feita sob novas abordagens, tais como: qual é o destino que Deus reservou aos seres humanos? Assim, a discussão da natureza humana levará ao tema do destino humano.

Pelágio e a liberdade 

Aqui vamos voltar no tempo e procurar reconstruir o pensamento do monge Pelágio (FERGUSON, 1989, p. 386) (354-418). Sabemos que saiu da Grã-Bretanha (FERGUSON, 1980, p. 115), onde tinha jogado um papel importante na formação do cristianismo celta. Era monge e muito respeitado na Grã-Bretanha tanto entre o clero como entre os líderes celtas não religiosos. Nunca foi visto como herege ou alguém que não merecesse a confiança de seus companheiros. Foi um precursor do humanismo, pois acreditava nas possibilidades da pessoa e via o mal como um produto social. O que para a época era simplesmente um pensamento revolucionário. Estas idéias de Pelágio não combinavam com o momento teológico vivido pela Igreja ocidental. Naquela época, a Igreja enfrentava o pensamento donatista na África do Norte. Para os donatistas a eficácia dos sacramentos dependia do estado espiritual dos sacerdotes que os ministravam. Essa idéia trouxe um problema para a Igreja cristã ocidental. Se ela concordasse com tal visão, quem garantiria o estado de santidade do clero que ministrava os sacramentos? E se não concordasse, por que então os sacramentos não poderiam ser ministrados também pelos leigos? Mas, se a declaração dos donatistas fosse falsa, então os sacramentos poderiam ser ministrados pelo clero, sem que se cogitasse seu estado espiritual diante de Deus. A acusação de heresia conservaria, desta forma, a estrutura da Igreja. Naquela época, muitos homens da Igreja, inclusive Agostinho, defendiam que ela era uma instituição cuja santidade vinha dos sacramentos e não da fé das pessoas. Assim os sacramentos produziam santificação e não eram frutos da vida piedosa de homens santos. A igreja celta, porém, não viu a discussão dessa maneira. Para Pelágio e seu discípulo Caelestius, a questão girava ao redor do livre arbítrio. Não concordavam com a idéia defendida por Agostinho, que até aquele momento não era majoritária, de um pecado original que contaminou a humanidade.

[Em vez de considerar os mandamentos de Deus como privilégio]... lamuriamos a Deus e dizemos: Isso é muito duro! Isso é difícil demais! Não podemos fazê-lo! Somos apenas humanos e, portanto, somos impedidos pela fraqueza da carne! Que loucura! Que ostensiva presunção! Ao agir assim, acusamos o Deus da sabedoria de dupla ignorância – ignorância de sua própria criação e de seus próprios mandamentos. Seria como se Deus, esquecendo-se da fragilidade da humanidade – a qual, afinal de contas, foi criada por ele mesmo! -- nos tivesse ordenado algo que não pudéssemos fazer. E, ao mesmo tempo (que Deus nos perdoe!), imputamos ao justo injustiça e crueldade Aquele que é santo, primeiro, ao reclamar que Deus nos ordenou o impossível e, segundo, por imaginar que alguns serão condenados por Deus pelo que não poderiam evitar; de outra forma, que – e essa é a blasfêmia suprema! -- concebe-se que Deus esteja buscando nossa punição, em vez de nossa salvação (McGRATH, 2005, p.508).

Como os trabalhos de Pelágio foram proibidos de circulação e posteriormente queimados, chegou até nós pouquíssimo de sua produção. Mas, ainda temos condições de examinar a Carta à Demétria (REES, 1991, p.35-70), escrita a uma adolescente e que nos possibilita estudar sua visão sobre a natureza humana.

“Sempre que eu tenho que falar no assunto da instrução moral e na conduta de uma vida santa [disse o monge], costumo demonstrar o poder e a qualidade da natureza humana e primeiramente o que ela é capaz de realização" (2.1).

Uma vida de pureza moral, para Pelágio, só podia ser conseguida a partir de dois componentes, aquilo que é bom na natureza humana e o dom da graça (9.1). Esse é o tema central dessa sua epístola.

As reflexões de Pelágio sobre o ser humano não estão distantes daquelas apresentadas pelos pais da Igreja oriental, que também consideravam existir bondade na natureza humana, fruto da imago Dei. Por isso, dirá que podemos inferir a bondade do ser humano a partir do amor do Criador (2.2). Assim, a divindade transmitiu à humanidade os atributos da liberdade, que possibilitam a livre escolha e o domínio próprio. Isto porque Deus desejava para o ser humano a liberdade de ação e não a ação sob coerção. Por esta razão, deixou-o livre para fazer suas próprias decisões e para escolher entre vida e morte, entre bem e mal, e viver conforme lhe parecesse melhor (2.2). Pelágio, no entanto, sabia que boa parte dos cristãos acreditava que se o ser humano tinha sido criado com a possibilidade de realizar o mal, então não tinha sido criado perfeito. Ao contrário, o monge celta acreditava que o ser humano tinha sido criado para realizar o bem, mas não compulsoriamente. E a partir dessa compreensão afirmava que se não fosse assim não haveria humanidade real e nem virtude verdadeira (3.1). Aqui está o centro da espiritualidade pelagiana: a crença de que se negarmos a liberdade finita do ser humano negamos a possibilidade da vida moral.

Esta bondade da pessoa, para Pelágio, não foi destruída com a alienação existencial. O ser humano continua a carregar dentro de sua natureza a bondade da criação, uma graça, uma santidade natural (4.2). E isso pode ser visto na vida de pessoas que não são cristãs. Muitas delas são tolerantes, generosas e rejeitam os prazeres do mundo. São amantes da justiça e buscam o conhecimento (3.3). O que o levou a considerar que é impossível trilhar o caminho da virtude se não houver nos corações a esperança de alcançá-la. Não haveria virtude se em seu esforço as pessoas achassem que nunca haveriam de encontrá-la (2.1). Por isso, Pelágio abominava a covardia diante dos desafios da vida. Ao contrário, exatamente porque a carne é frágil, todos são exortados a vencê-la e isso é possível (16.2). A bondade e a capacidade de viver uma vida santa estava e está nos planos de Deus porque ele não criou o ser humano para a punição ou para a danação, mas para a liberdade. Negar a possibilidade da bondade humana e a capacidade de viver uma vida santa não é somente pessimismo moral, é uma blasfêmia: significa que Deus não sabe o que fez, ou que não levou em conta a fragilidade humana, ou que ordenou algo impossível e deseja não a salvação humana, mas a punição (16.2).

O monge celta não responsabilizava a natureza por aquilo que é a escolha de pessoas livres. Considerava que não se pode culpar a natureza, pois em ambos testamentos tanto o bem como o mal são apresentados como ações voluntárias (7). Isto é demonstrado na vida de Caim e Abel, e Esaú e Jacó, irmãos de sangue que fazem escolhas diferentes. O monge dizia que quando os méritos diferem na mesma natureza, a escolha é a causa da ação (8.1). Logo, a alienação existencial não poderia ter corrompido a natureza humana ao ponto de incapacitá-la de escolher entre fazer o bem ou fazer o mal. O efeito da alienação existencial deve ser entendido mais em seus efeitos ambientais do que éticos.

Pelágio não acreditava que a natureza humana estivesse degenerada pela alienação existencial dos primeiros seres humanos. Defendia que eram os atos e não a natureza que levavam o ser humano a realizar o mal. Por isso, discordou de Agostinho quando este afirmou que o ser humano só poderia ganhar a salvação através da Igreja. Considerou a idéia de pecado original sem base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem pecado e, diante de seus delitos, são salvos pela graça de Deus, que não merecemos, que nos é entregue através de Cristo. Até aquele momento, a visão de Pelágio e seus seguidores traduziam a idéia da liberdade de escolha, e da natureza humana que tinha sido alienada, mas não degradada (FERGUSON, 1980, p. 115).

A compreensão da proposta pelagiana nos remete à importância da educação na construção da ética cristã. A partir daí, a ênfase não estará no conhecimento de Deus, mas na imitação de Cristo. Nesse sentido, a teologia de Pelágio é uma teologia do caminho, onde está presente a afirmação da vida, e como consequência, do amor, da justiça e da verdade. E se o ser humano é colocado entre as alternativas da vida e da morte, do bem e do mal, é porque pode escolher a vida e o bem. E o princípio da vida aponta para o amor, porque se o ser humano deve ser imitador de Cristo, a ênfase recairá sobre a justiça e a misericórdia. Ora, a justiça é inseparável da liberdade e, por isso, o caminho se faz ao andar: deve ser trilhado, porque aí estão os desafios da existência humana. E é esse sentido de realidade e sua prática no cotidiano que leva a teologia cristã à política. Aqui, o discurso contra-autoritário de Pelágio cobra força, pois o cristianismo deixa de ser religiosidade privada e de padrões de pensamentos para se articular com as demandas das comunidades.

Tillich e a liberdade

Para o teólogo teuto-americano Paul Tillich (2005, p.339), o estado da existência é o estado da alienação. Ou seja, o ser humano se encontra alienado do fundamento do seu ser, dos outros seres humanos e de si mesmo. E essa alienação é fruto de sua ruptura com o mundo ideal da criação, da natureza perfeita, o que dá origem à consciência. Mas, para Tillich, é importante entender a relação entre alienação e sociedade. Para ele, uma comunidade é uma estrutura de poder, onde existe conflito potencial ou real, mesmo que exista ação solidária da comunidade como um todo. Na comunidade não existe culpa coletiva, embora exista destino universal e, por isso, as pessoas participam deste destino. Para Tillich (2005, p.352), o destino se acha inseparavelmente unido à liberdade, que é experimentada como deliberação, decisão e responsabilidade (TILLICH, 2005, p.193).

Numa abordagem teológica, a questão da origem é fundamental para o estudo da natureza humana, pois posiciona a liberdade em condições e momentos diferentes, conforme a leitura que se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a relação origem versus liberdade sublinha o surgimento do ser humano como imago Dei, o que permite a leitura de que aquele ser era pessoa e que, por isso, poderia escolher como melhor lhe aprouvesse. Mas no uso da liberdade estava contida a possibilidade de se opor ao que estava definido e nomeado. A alienação consiste nisso, na decisão autônoma do ser humano de distanciar-se da ordem e do estabelecido. Esse deslocamento, de ruptura com a natureza, permitiu ao ser humano colocar-se como centro de sua vontade e de seu fazer, produzindo distanciamento da natureza, mas consciência de sua existência. Nesse sentido, essa ruptura, esse distanciamento é um encontro. Ou, como diz La Boétie (1982, p.19), “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”. E Clastres (apud LA BOÉTIE, 1982, p.110,111) analisando o texto desse libertário do século 16, que influenciou o pensamento huguenote francês, nos apresenta uma definição da alienação existencial:

Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que trabalho pensar o impensável mau encontro!.

Numa abordagem teológica, a questão da origem é fundamental para o estudo da natureza humana, pois posiciona a liberdade em condições e momentos diferentes, conforme a leitura que se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a relação origem versus liberdade sublinha o surgimento do ser humano como imago Dei, o que permite a leitura de que aquele ser era pessoa e que, por isso, poderia escolher como melhor lhe aprouvesse. Mas no uso da liberdade estava contida a possibilidade de se opor ao que estava definido e nomeado. A alienação consiste nisso, na decisão autônoma do ser humano de distanciar-se da ordem e do estabelecido. Esse deslocamento, de ruptura com a natureza, permitiu ao ser humano colocar-se como centro de sua vontade e de seu fazer, produzindo distanciamento da natureza, mas consciência de sua existência. Nesse sentido, essa ruptura, esse distanciamento é um encontro. Ou, como diz La Boétie (1982, p.19), “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”. E Clastres (apud LA BOÉTIE, 1982, p.110,111) analisando o texto desse libertário do século 16, que influenciou o pensamento huguenote francês, nos apresenta uma definição da alienação existencial:
Para Clastres, antropologicamente, a alienação leva à possibilidade do mal, pois é corrupção da liberdade do ser humano por ele próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária. Teologicamente, podemos dizer que o mal é um fazer que se opõe ao amor, à justiça e à verdade. Assim, o entendimento do mau encontro enquanto alienação e abertura à perda de liberdade forma o pilar de uma teologia libertária, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade do ser humano.

Segundo Tillich (2005, p.353), a alienação humana tem como conseqüência descrença, hybris e concupiscência, expressões de um estado que se opõe ao ser essencial do humano, sua potencialidade para o bem. Essa compreensão está presente na tradição judaico-cristã. Assim, no Antigo Testamento temos uma tríade conceitual nas idéias de aliança, fidelidade e constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. E no Novo Testamento o vértice dessa discussão é o conceito de destino.

Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma leitura especial e trágica do conceito de destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentou um conceito de destino que resgata, mas vai além do conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e os cultos de mistérios traduziam uma luta contra o destino, era uma tentativa de colocar-se acima dele. Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável, porque se apresentava como poder sagrado, mas destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistérios, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino, excluíam dos seres humanos qualquer possibilidade de liberdade.

Da mesma maneira, a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. Mas, nunca conseguiu tal objetivo, e o mundo helênico permaneceu um mundo de culpa objetiva, castigo trágico e profundo pessimismo, que atravessou a produção teórica de gênios como Anaximandro, Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles. Nas discussões do helenismo pós-platônico, possibilidade e necessidade foram conceitos chaves. Mas o medo de demônios continuou a obscurecer o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade absoluta [ou azar], abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.

Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é esse paradoxo que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo -- superar o destino -- permaneceu inalterada em todo o helenismo.

A filosofia grega caminhou para ceticismo, já que a presença do mal na existência humana se mostrava avassaladora. Ao mesmo tempo, as nações foram submetidas ao domínio romano, metáfora da personificação do mal. Diante desse destino trágico, o mundo helênico ansiava por um destino libertador.

E foi assim que o cristianismo se apresentou como vitória do humano sobre o medo trágico e sobre a matéria que resiste. Colocou-se como negação radical do caráter demoníaco da existência em si, dando a esta um valor essencialmente positivo e valorizando os acontecimentos da ordem temporal. Assim, para o cristianismo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não levava apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

Para esse jovem cristianismo, o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom, do kairós, substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino traz libertação no tempo e na história. Antes, a filosofia buscava desesperadamente a libertação, agora a libertação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística perdeu importância na construção do pensamento cristão oriental, que se desenvolveu a partir da idéia da liberdade, que se constrói historicamente, e acontece num tempo bom.

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão do apóstolo Paulo, que fez a correlação entre o pensamento cristão palestino e o helenismo, destino traduz a idéia de que os limites estão dados de antemão, ou seja, da lei transcendente na qual está imbricada o conceito de liberdade. Assim, destino implica numa tríade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à lei, e aqui vamos entender lei como natureza; (3) destino significa que liberdade e lei ou natureza são interdependentes e complementares.

Analisando o conceito cristão exposto por São Paulo (Carta aos Romanos 8.31-39; e 9), podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e natureza se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, e que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da dialética lei/natureza versus graça/liberdade, o julgamento, a decisão, é inerente ao ato humano. Ou, nas palavras de Tillich (2005, p.193,194): “destino é aquilo do qual surgem nossas decisões. É a base indefinidamente ampla de nosso eu centrado; é a concretude de nosso ser que torna todas nossas decisões nossas decisões”.

A certeza de que o destino é a liberdade e não o mal e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino, que coloca o Cristo, aquele que possibilita a escolha certa, acima do destino. Mas, devido à alienação, em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco diante da realização da liberdade. Ainda assim, devemos correr este risco, sabedores de que este é o único meio através do qual a construção daquilo que é bom pode ser viabilizado. Por isso, o Novo Ser, aquele que pode ser buscado fora da história e pode ser entendido como alvo da história, que apresenta a universalidade da expectativa humana por uma nova realidade (TILLICH, 2005, p.380), deve se refletir no pensamento humano, embora não exista um ato do pensamento sem a premissa de sua verdade incondicional (Carta aos Romanos 12.2 e I Coríntios 2.16.).

Quando mantemos relação com o Novo Ser, que leva o finito à plenitude, deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio estivemos submetidos ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Novo Ser, a busca de um novo estado de realidade, e kairós, a plenitude do tempo. O Novo Ser deve alcançar o kairós, o tempo oportuno, tempo de agir (TILLICH, 2005, p.800). O Novo Ser deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. Para o cristianismo paulino, a separação entre Novo Ser e existência chegou ao fim. O Novo Ser alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino. Dessa maneira, para o jovem cristianismo, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. E quanto maior a potencialidade do ser, que cresce à medida que é envolvido pelo Novo Ser, mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Destino passa a ser compreendido como serviço aquilo que liberta, ao Novo Ser, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido grego de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossa comunidade, tanto mais livres seremos. Então, a ação humana será plena de força e verdade.

A vontade humana não é neutra e a liberdade humana sempre se dá dentro de uma realidade condicionada. Assim, a liberdade entende-se como relação dialética entre lei/natureza e graça/liberdade. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que para Marx liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em termos teológicos, consciência da lei/natureza diante da alienação existencial se traduz no conceito grego metanóia, ação transformadora.

Para a jovem Igreja cristã, o mal, ao contrário do que pensavam os gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é uma possibilidade e no que se refere às sociedades é a construção de um domínio. Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha liberdade é desafiada, quando meu julgamento tem a possibilidade de escolha entre aquilo que é bem e aquilo que é mal. Ou seja, o mal surge como feitura humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral e nem pode acontecer fora da cultura. Toda vez que o ser humano realiza sua escolha, a lei/natureza está presente: assim o mal é um antítipo da liberdade.

Só podemos responder ao mal reconhecendo que o mal é feitura minha e de minha espécie. A partir daí, não podemos perguntar porque o mal existe, como se fosse um ser. Mas devemos nos perguntar, como fez Agostinho, o que me leva a fazer mal? O que nos exorta à ação libertária, já que o mal é o que não devia estar. É a partir daí que nasce um ética libertária, de combate a este fazer e domínio na vida de meu próximo e da comunidade.

Algumas considerações

Gostaríamos de acrescentar que as leituras libertárias da natureza humana atravessaram os séculos e desembocaram na modernidade. Em 1970, Ballestero (1970) ao analisar o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade, Nicolas de Cusa, Lutero e Marx, disse que “neles, em um e outro plano, liberdade significa abolição da lei, colapso da determinação exterior, e não – à maneira conservadora – comportamento que se adequou aos limites da ordem. Liberdade para os pensadores que aqui analisamos significa a destruição de toda ordenação que seja exterior e anterior ao próprio ato livre.”

Podemos dizer que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não era gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século 16, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia do sujeito se dá como dor. Mas ambos consideram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

Ou como dirá Lutero (1955, p.225), “o cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo”. Livre e não submisso, mas servo e escravo do ideal da liberdade. Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século 16, mas traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da graça/liberdade. A apropriação da liberdade é fruto da certeza que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (LUTERO, 1955, p.259).

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, embora a religião fosse a realização imaginária da essência do ser humano, essência essa que não tem realidade, assim como Cusa e Lutero, a liberdade é abolição da legalidade, coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, responsabilidade suprema do ser humano. Esse ponto de vista marxiano está expresso na Introdução à Crítica da Economia Política (MARX, 1982), texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.

Conscientes da tensão alienação/natureza humana, temos a liberdade enquanto destino, uma dimensão de combate. Mas, se não existe vida pessoal sem o encontro com outras pessoas dentro de uma comunidade, e não existe comunidade sem a dimensão histórica de passado e futuro (TILLICH, 2005, p.423), é aí, na comunidade, que o ser humano constrói a liberdade que vai além, a liberdade que é fonte de realidade e ação.

Podemos aqui levantar algumas considerações dessas leituras libertárias da natureza humana:
1. Se o mal é feitura humana e construção na cultura enquanto domínio – ele não é um ser com existência própria –, as pessoas e comunidades não precisam de sacramentos, nem de heteronomias para sua libertação;

2. A liberdade apresenta-se como graça que produz metanóia, ação transformadora da realidade, que surge enquanto irrupção, acontece dentro do humano e se expande;

3. As leituras libertárias da natureza humana foram combatidas pela Igreja, pois subvertia a idéia agostiniana de que "fora da Igreja não há salvação". A Reforma protestante deu um salto em direção à ruptura com a heteronomia católica, mas perdeu força na sua arrancada e reconstruiu os padrões que combateu. Ao dar existência ao mal, ao fazer dele ser, recolocou a necessidade de exterioridades para combatê-lo. Voltamos, dessa maneira, ao destino demoníaco do pensamento helenístico. E por ser assim, diante desse destino trágico, o mundo carece do Cristo, destino de liberdade.

Referências

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Ballestero, Manuel. La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad). Madri, Siglo XXI, 1970.

Ferguson, John. "In Defense of Pelagius," in Theology. Vol. 83, March 1980.
Ferguson, John. Pelagius: A Historical and Theological Study. W. Heffer and Sons: Cambridge, 1956.

La Boétie, Etienne, Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982.

Luther, Martin, Les grands écrits reformateurs, Paris, Aubier, 1955.
McGrath, Alister E., Teologia sistemática, histórica e filosófica, Uma introdução à Teologia Cristã, São Paulo, Editora Shedd, 2005.

Mackay, James P., ed., An Introduction to Celtic Christianity, , T & T Clark, Edinburgh, 1989, p. 386.

Marx, Karl, Introdução à Crítica da Economia Política, São Paulo, Abril Cultural, 1982.
Pelagius, "Letter to Demetrias" in B.R. Rees. The Letters of Pelagius and His Followers. pp. 35-70.

Rees, B.R. Pelagius: A Reluctant Heretic. The Boydell Press: Woodbridge, Suffolk, 1988.

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Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Tillich, Paul. A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992. Texto original: The Protestant Era, Chicago, Illinois, University of Chicago, 1948. Trad. pt. de Jaci Maraschin. “Die protestantische Ara”, Der Protestantismus als Kritik und Gestaltung, Gesammelte Werke VII, Evangelische Verlag Stuttgart, 1962, pp. 105-123. Trad. al. W. De Gruyter.

Tillich, Paul. “Kairos II. Idées à propos de la situation spirituelle du temps présent”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 253-267. Artigo aparecido na obra coletiva Kairos. Zur Geisteslage und Geisteswendung, em 1926. “ Kairos II, Ideen zur Geisteslage der Gegenwart ”, Die widerstreit von raum und zeit, Gesammelte Werke, VI, pp. 29-41. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992.

Tillich, Paul. La dimension religieuse de la culture, 1919-1926, Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1990. Trad. fr., Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992.

Tillich, Paul. Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954.

Tillich, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

1 Pelagius, “Letter to Demetrias” in B.R. Rees, The Letters of Pelagius and His Followers, p.35-70.

lundi 1 avril 2013

O que ė o capitalismo?


Uma conversa necessária [i]
Por Jorge Pinheiro [ii]

Caros colegas, bom dia. Vamos começar essas reflexões sobre o capitalismo lembrando que ele tem defensores. Claro está que em relação ao feudalismo, modo de produção que caracterizou a Idade Média, ele significou um passo a frente. Mas, hoje, muita gente que defende o capitalismo, na verdade, não entende o que ele significa, já que é um sistema opaco e sua natureza exploradora não fica evidente.

Outros defendem o capitalismo porque são seus beneficiários e ganham dinheiro graças a ele. Há ainda os especialistas que, muitas vezes, são porta-vozes do sistema, como economistas, jornalistas, acadêmicos e representantes do pensamento único, que conhecem o sistema, mas por serem bem remunerados omitem determinadas questões em suas análises.

Por isso, antes de analisar o capitalismo propriamente dito, vamos ver alguns dados de documentos das Nações Unidas. São informações sobre a crise atual e quando analisadas por instituições como G20, FMI, OMC e BIRD, estas chegam à estranha conclusão de que a crise do capitalismo se resolve com mais capitalismo.

Mas, vamos aos números, sistematizados pelo Programa Internacional de Estudos Comparativos sobre a Pobreza, localizado na Universidade de Bergen, Noruega.

Segundo a instituição, a população mundial era de 6,8 bilhões de habitantes em 2009. Desses,

·               1,02 bilhão de pessoas sofrem subnutrição crônica (FAO,2009);
·               2 bilhões de pessoas não têm acesso a medicamentos (www.fic.nih.gov);
·               884 milhões de pessoas não têm acesso à água potável (OMS/UNICEF 2008);
·               925 milhões de pessoas não têm moradia ou residem em moradias precárias (ONU Habitat 2003);
·               1,6 bilhões de pessoas não têm acesso à energia elétrica (ONU Habitat, Urban Energy);
·               2,5 bilhões de pessoas não são beneficiadas por sistemas de saneamento, drenagens ou não têm privadas domiciliares (OMS/UNICEF 2008);
·               774 milhões de adultos são analfabetos (www.uis.unesco.org);
·               18 milhões de pessoa morrem por ano devido à pobreza, a maioria crianças menores de cinco anos de idade (OMS);
·               218 milhões de crianças e jovens, entre 5 e 17 anos de idade, trabalham em condições de escravidão, em tarefas perigosas ou humilhantes, como soldados da ativa atuando em guerras e/ou conflitos civis, na prostituição infantil, como serventes, em trabalhos insalubres na agricultura, na construção civil ou industria têxtil (OIT: “La eliminación Del trabajo infantil, un objetivo a nuestro alcance” 2006).

Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial reduziram sua participação no produto interno bruto mundial (PIB mundial) de 1,16% para 0,92%; enquanto os 10% mais ricos acrescentaram fortunas em seus bens pessoais passando a dispor de 6,4% para 7,1% da riqueza mundial.

Mas, o que é o capitalismo?

O capitalismo é um sistema econômico caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção, pela existência de mercados livres e trabalho assalariado. Na historiografia ocidental, a ascensão do capitalismo está associada ao fim do feudalismo, ocorrido na Europa no final da Idade Média. Mas, Não podemos esquecer de outras condições também associadas ao capitalismo, como a existência de pessoas e empresas que investem em troca de um lucro futuro; o respeito a leis e contratos; a existência de financiamento, moeda e juro; e a ocupação para os trabalhadores a partir de um mercado de trabalho.

A palavra capital vem do latim capitalis, que vem do indo-europeu kaput, que quer dizer "cabeça", uma referência às cabeças de gado, medida de riqueza nos tempos antigos. A conexão léxica entre o comércio de gado e a economia pode ser vista em nomes de várias moedas e palavras que dizem respeito ao dinheiro. O primeiro uso da palavra capitalista foi em 1848 no Manifesto Comunista de Marx e Engels; porém, a palavra capitalismo não foi usada. O primeiro uso da palavra capitalismo foi feito pelo escritor Thackeray, em 1854, com a qual quis dizer "posse de grandes quantidades de capital", e não se referir a um sistema de produção.

Em 1867, Proudhon usou o termo capitalista para referir-se aos possuidores de capital, e Marx e Engels referiam-se à "forma de produção baseada em capital" e, n’O Capital, o capitalista é um possuidor privado de capital.

Mas nem Proudhon, Marx ou Engels usou os termos em alusão ao significado atual da palavra capitalismo. A primeira pessoa que fez isso foi Werner Sombart em seu Capitalismo Moderno, de 1902. Max Weber, um colega de Sombart, usou o termo no seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de 1904.

O capitalismo moderno começou com a Revolução Industrial e as revoluções burguesas: na Inglaterra, com a independência dos EUA e com a revolução francesa. É importante entender que capitalismo não é sinônimo de propriedade privada, embora ela seja fundamental para a sua existência. A propriedade privada já existia, por exemplo, nas tribos de Israel. Os regimes teocráticos, baseadas em leis ditas entregues por Deus, seguiam um modelo próximo ao feudalismo, com as terras pertencendo ao rei e os súditos trabalhando nelas. Ou seja, a existência de propriedade privada é antiga como a própria história.

Um pouco de história

Foi com o crescimento da população, o desenvolvimento da agricultura, a criação das cidades e a multiplicação de trabalho, quando as pessoas passaram a viver em sociedades maiores, que se tornou necessária a organização da produção a partir de relações interpessoais. Assim, foram elaboradas leis para reger as relações interpessoais entre gente que não se conhecia.

Depois, com o desenvolvimento dos transportes terrestres e marítimos, e a existência de cidades com grandes populações, surgiu o comércio internacional. As nações comerciantes eram as cidades-estado, com destaque para Atenas na Grécia, que nos séculos V e IV antes de Cristo inventou o sistema bancário.

Contudo, a existência de escravos não permitiu o desenvolvimento da instituição da propriedade privada como no capitalismo moderno, pois a escravidão impossibilita o mercado livre e viola o direito de propriedade privada.

Assim, o Império Romano se caracterizou pela liberdade relativa do comércio e da produção até o final do século terceiro depois de Cristo. A partir dessa data a implantação de controles de preços pelos imperadores suprimiu a liberdade econômica do Império. A economia do Império Romano, segundo alguns historiadores, tinha instituições capitalistas quase tão avançadas quanto as da Inglaterra no início da revolução industrial. Mas com o declínio do Império Romano e as invasões dos povos que os romanos chamavam de bárbaros, a organização social voltou a tomar feições tribais.

Em seu período final, o feudalismo passou por uma crise devido à catástrofe demográfica causada pela epidemia da peste negra (peste bubônica) que dizimou 35% da população européia. Depois da crise econômica e demográfica, o comércio desenvolvido pelas cidades-estado italianas permitiu à Europa viver certo crescimento comercial e urbano, o que aumentou e aprofundou as relações de produção capitalistas. Mas, nem tudo foi tão fácil, pois no final do feudalismo e início da idade moderna, a realeza expandiu seu poderio econômico e político através do mercantilismo e do absolutismo. Ou seja, através de doutrinas e práticas anticapitalistas. Niccòlo Machiavelli foi um dos defensores dessa postura anticapitalista, ao afirmar que "a unidade política é fundamental para a grandeza de uma nação". Com o absolutismo e o mercantilismo, o Estado controlou a economia e buscou nas colônias a riqueza necessária para garantir o enriquecimento da metrópole.

E porque a propriedade privada necessita da liberdade de contrato para juntos formarem o sistema capitalista, no século XVI surgiu na Escola de Salamanca, alguns teólogos que apresentaram as primeiras ideias de uma economia capitalista liberal. Para eles, entre os quais estava Tomás de Aquino, a propriedade privada como moralmente neutra. Em última instância, antes dos protestantes, Tomás de Aquino já deixava aberta a idéia de que não era pecado ser capitalista.

Mas como dissemos acima, foi com as revoluções burguesas no início da Idade Moderna que o capitalismo se estabeleceu como sistema econômico nos países da Europa Ocidental. Algumas dessas revoluções foram a Revolução Inglesa (1640-60), a independência dos EUA (4 de julho de 1776) e a Revolução Francesa (1789-1799), que construíram o arcabouço institucional de suporte ao desenvolvimento capitalista.

A partir da segunda metade do século XVIII iniciou-se um processo de produção em massa, geração de lucro e acúmulo de capital. As sociedades superam os critérios da aristocracia, o privilégio de nascimento, por exemplo. Surgiram as primeiras teorias econômicas modernas: a Economia Política e a ideologia que lhe corresponde, o liberalismo. Na Inglaterra, o escocês Adam Smith publica Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações.

As fases do capitalismo

A primeira fase do capitalismo foi comercial. Predominou o produtor independente, artesão, mas generalizou-se o trabalho assalariado. A maior parte do lucro concentrava-se na mão dos comerciantes, não nas mãos dos produtores. Lucrava mais quem comprava e vendia a mercadoria, não quem produzia.

Depois veio o capitalismo industrial, quando o trabalho assalariado já instalado, em prejuízo dos artesãos, separou os possuidores de meios de produção e o exército de trabalhadores.

Na sequência tivemos o capitalismo financeiro, quando o sistema bancário e corporações financeiras passaram a controlar as demais atividades.

E, atualmente, vivemos sob o capitalismo em sua fase informacional, que sem deixar de ser financeiro e industrial, toma como característica a importância do conhecimento.

Um pouco de teoria

Em termos teóricos, dizemos que modo de produção é a forma de organização socioeconômica associada a uma determinada etapa de desenvolvimento das forças de produção e das relações de produção. Reúne as características do trabalho, seja ele artesanal, manufaturado ou industrial. São constituídos pelo objeto sobre o qual se trabalha e por todos os meios de trabalho necessários à produção – ferramentas, instrumentos, máquinas, oficinas, fábricas.

No correr da história existiram modos de produção, o antigo ou comunismo primitivo, o asiático, o escravista, o feudal, o capitalista, e o comunista, ainda um projeto a ser construído. Assim, um sistema econômico é definido pelo modo de produção no qual se baseia. O modo de produção atual, capitalista, é aquele sobre o qual se baseia a economia da maioria dos países do mundo.

Algumas pessoas enfatizam a propriedade privada do capital como sendo a essência do capitalismo, outros enfatizam a importância de um mercado livre como mecanismo para o movimento e acumulação de capital.

Karl Marx, em O capital, é crítico do capitalismo, e o olha através da dinâmica da lutas de classes, incluindo aí a estrutura de estratificação de diferentes segmentos sociais, dando ênfase às relações entre proletariado (classe trabalhadora) e burguesia (classe dominante). Para ele, a diferença de poder econômico entre as classes é um pressuposto do sistema, ou seja, a classe dominante acumulará riquezas por meio da exploração do trabalho das classes operárias.

Os defensores do capitalismo afirmam, no entanto, que num mercado livre existe competição e concorrência constante entre todos os integrantes do sistema, e se uma pessoa recebe em troca do seu trabalho menos do que ele produz, ele poderá mudar para o concorrente, pois este lucrará com o seu trabalho.

Devido à amplitude da expressão, surgiram controvérsias quanto ao capitalismo. Uma delas é se de fato o capitalismo é um sistema real, isto é, se ele já foi implementado em economias nacionais ou se ainda não se completou. Nesse caso, a pergunta é: que grau de capitalismo existe numa dada economia nacional. Outra questão é se o capitalismo é específico a uma época ou região geográfica particular ou se é um sistema universal, que pode existir através do tempo e do espaço.

Alguns interpretam o capitalismo como um sistema puramente econômico. Marx, no entanto, considerava que é um complexo de instituições político-econômicas que determinam as relações culturais, éticas e sociais.

No final do século XIX e início do século XX, época da Revolução Industrial, a economia capitalista vivia a fase do capitalismo competitivo, onde cada ramo de atividade era ocupado por um grande número de empresas, normalmente pequenas, que concorriam intensamente entre si. O Estado quase não interferia na economia, limitando-se apenas à manutenção e funcionamento do sistema.

A partir da Primeira Guerra Mundial, o capitalismo passou por mudanças, primeiro nos Estados Unidos, com o enriquecimento alcançado com a venda de armas aos países combatentes, ocupando, então, lugar de destaque no mercado mundial. Em alguns ramos de atividade, o capitalismo deixou de ser competitivo para se tornar monopolista. Essa transformação deu-se através de dois processos:

1.             Empresas foram a falência, as maiores compraram as menores e outras se unificaram -- surgiu a sociedade anônima. As grandes empresas passaram a controlar um ramo de atividade.

2.             Com as crises econômicas de 1929/1933, a Grande Depressão, o Estado passou a interferir na economia, exercendo influência em algumas atividades econômicas. Em vários países, o Estado passou a controlar os créditos, os preços, as exportações e importações, mas levando em conta os interesses das corporações e dos países que ocupavam o centro do sistema.

O capitalismo do século XX passou a enfrentar crises que se repetem a intervalos cada vez mais curtos. O desemprego, as crises nos balanços de pagamentos, a inflação, a instabilidade do sistema monetário internacional e o aumento da concorrência entre os grandes competidores levaram a essas crises cíclicas do sistema capitalista.

No final do século XX, os Estados Unidos e a Inglaterra passaram a difundir a teoria neoliberal. Segundo esta teoria, para evitar futuras crises a receita seria privatizar empresas estatais que pudessem ser substituídas com vantagens pela iniciativa privada, aperto fiscal no sentido de zerar o déficit fiscal, controle da inflação, câmbio flutuante e superávits em comércio exterior. Essa política passou por dois grandes testes: a crise dos países asiáticos e a crise da Rússia, que foram controladas com o auxílio do FMI, não sem antes destruir quase a metade de seus PIB's.

Apesar dos avanços macroeconômicos, a pobreza e a desigualdade continuam altas na América Latina, onde cerca de uma em cada três pessoas (165 milhões no total) vivem com menos de dois dólares por dia. Aproximadamente um terço da população não tem acesso à eletricidade e ao saneamento básico, e estima-se que 10 milhões de crianças sofram de desnutrição. Esses problemas não são novos. A América Latina já era a região com maior desigualdade econômica do mundo na década de 1950.

No consenso de Washington, os Estados participantes, em uma assembléia presidida pelos Estados Unidos, escolheram o capitalismo como sistema econômico legítimo, por representar os interesses liberais das empresas. Este fato está conectado ao avanço da globalização, que é a expressão dos interesses da classe empresarial dominante representada pelas multinacionais.

Assim, no final do século XX e início do século XXI, com o advento da globalização, algumas empresas que exerciam monopólio ao nível regional, começaram a enfrentar concorrência global e pressões maiores para se tornar atores do mercado globalizado. Em razão dessa concorrência surgiram fusões, onde empresas de atuação regional se fundiram para enfrentar a concorrência global. E em reação às fusões regionais, empresas globais adquiriram empresas regionais, como forma de entrar rapidamente em mercados locais.

Frutos aparentemente positivos desse processo de globalização é que empresas passaram a oferecer benefícios a seus empregados, antecipando a ação de sindicatos e governos. Benefícios como redução da jornada de trabalho, participação nos lucros, ganhos por produtividade, salários acima da média do mercado, promoção à inovação, jornada de trabalho flexível, flexibilização de jornada para mulheres com filhos, participação societária para produtos inovadores desenvolvidos com sucesso, entre outros.

Ao contrário do princípio do capitalismo, quando se acreditava que a redução de custos com recursos humanos e sua consequente exploração, traria o maior lucro possível, passou a vigorar a tese de que é desejável atrair os melhores profissionais do mercado e mantê-los motivados já que isso tornaria a empresa mais lucrativa. No entanto, o número de funcionários que se enquadram nesse modelo é insignificante diante da massa dos trabalhadores do mundo, que operam em condições precárias e recebem baixos salários.

O tratado de Veneza (1987) que abordou o investimento do Estado enquanto empresa, foi bem recebido por países do hemisfério sul e favoreceu o surgimento de alianças econômicas entre países. Além de identificar a necessidade de desenvolvimento econômico da América Latina, defendeu o término do monopólio de algumas cadeias, como a indústria automobilística, alimentícia, de tecnologia da informação e, inclusive, da produção cafeeira. A conclusão foi expandir a relação entre Estados que pouco se conectavam, como o Brasil e seus vizinhos, e criar vínculos de comércio direto e livre. Os projetos de comércio e integração do cone sul latino-americano tem no tratado de Veneza uma de suas bases.

Mas, muitos consideram que há ainda um capitalismo verde, cuja proposta é de preservar o ambiente, ser socialmente responsável e interagir na comunidade em que a empresa está inserida, o que diferenciaria a empresa em relação a concorrência e ampliaria os lucros. Há uma tendência para adoção deste modelo em empresas ocidentais, desde que tais medidas não prejudiquem a economia global, independentemente do mal que a degradação ambiental possa causar ao planeta.

É importante ver que hoje, o país capitalista em maior expansão, mantendo aí todas as críticas que se faz ao capitalismo, é a República Popular da China. Mas, ao contrário das outras economias capitalistas, principalmente as ocidentais, que utilizam o livre mercado com pouca intervenção do Estado na economia, a China desenvolve uma política de intervenção na economia, restrições ao capital estrangeiro, e tem uma economia parcialmente planificada. O que nos leva a falar da China como um capitalismo de Estado.

Depois de 500 anos, é o caso de perguntar: é isso o que o capitalismo tem a nos oferecer. Por isso, voltamos ao princípio dessas reflexões. Diante dos resultados práticos do capitalismo, pense: se houvesse a possibilidade de redistribuir o enriquecimento adicional produzido entre 1988 e 2002 dos 10% mais ricos do planeta, mesmo sem tocar nas suas fortunas, teríamos duplicada a renda de 70% da população mundial.





[i] Na elaboração desse texto utilizei análise de Atílio Borón, do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO); Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo; André Comte-sponville, O capitalismo é moral?; Jeffry A. Frieden, Capitalismo global, história econômica e política do século XX; e material próprio utilizado em sala de aula.
[ii] Jorge Pinheiro é cientista da religião para as áreas de Política e Religião.