jeudi 21 avril 2016

Sou negra e bela!

Sou negra e bela! 

Jorge Pinheiro, PhD 


“Oh mulheres de Jerusalém, eu sou negra e bela. Sou negra como as barracas do deserto, como as cortinas do palácio de Salomão". Cantares de Salomão 1.5. 

Afrobrasilidade: este é um assunto sobre o qual não temos nos debruçado muito. Quando falamos afrobrasileiras estamos nos referindo às nossas conterrâneas com ascendência da África subsaariana ou à influência cultural trazida pelos escravos africanos para o Brasil. Atualmente, no mundo, o Brasil é o país com a maior população de origem africana fora da África. Segundo o IBGE, os negros autodeclarados representam 6,3% e os pardos 43,2% da população brasileira, ou seja, oitenta milhões de brasileiros. E estudos genéticos dizem que 86% dos brasileiros apresentam mais de 10% de contribuição da África subsaariana em seu genoma, mesmo quando não apresentam fenótipos característicos de populações negras. [1] 

Mas, hoje, queremos pensar a afrodescendência a partir de uma história bíblica. E das diversas maneiras que foi lida no correr dos séculos.

Uma história de amor

Os leitores certamente se lembrarão das imagens de amor deste que é considerado um dos mais belos poemas da humanidade: o livro de Cantares de Salomão. Mas, a moça em torno da qual gira a narrativa é motivo de acirrada polêmica, principalmente para as teólogas e teólogos negros. Segundo a ensaísta norte-americana Peggy Ochoa, o livro de Cantares traz à tona os detalhes dolorosos da animosidade entre grupos étnicos no reinado de Salomão.

Para muitos estudiosos, aqui estamos diante de uma constatação: a Sulamita, mulher inspiradora dos poemas de amor do livro de Cantares era uma bela negra. E quando as filhas de Jerusalém, que faziam parte da elite ligada à corte protestaram ao descobrir a paixão do rei, a Sulamita respondeu ao clamor preconceituoso com a famosa afirmação: "Eu sou negra e formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão" (Cantares 1.5).

Na versão inglesa King James, a Sulamita diz nos versículos 5 e 6 (ênfase minha): "I am black, BUT comely". E na Bíblia hebraica lemos assim o mesmo texto, em representação fonética e ênfase minha: "shekhorah ani VE na'vah". Em hebraico não há distinção entre "porém" e "e". A conjunção hebraica "ve" pode ser traduzida por "porém" ou "e". O tradutor decidirá por um ou por outro com base no contexto. Mas, tanto no inglês, como no português, a escolha pode fazer uma enorme diferença. 

Mas, por que o tradutor da versão King James, assim como os nossos tradutores optaram pelo "porém"? Talvez porque essas traduções tenham sido feitas através do filtro cultural ocidental, já a partir da versão latina da Bíblia, a Vulgata, que introduziu o "porém": "Nigra sum sed formosa". Eu sou negra, "porém" formosa. Não negra e bela, mas bela apesar de negra.

A rainha negra

Segundo a teóloga Susan Durber, da St. Columba United Reformed Church, Oxford, no ensaio "A Rainha do Sul se fará presente no Julgamento quando esta geração estiver sendo julgada", uma mulher pode nos ajudar a entender este enigma. Em IReis 10 encontramos a história da rainha do Sul ou rainha de Sabá. Uma mulher inteligente, que fez perguntas duras a Salomão. Queria saber se ele era tão sábio quanto se comentava. Assim, a Bíblia está interessada nela por causa de sua inteligência.

Mas um fato significante sobre Sabá é que ela era negra. Não se sabe exatamente de que região. Poderia ser do Iêmen ou do Norte da África, possivelmente a Etiópia. Os falashas, judeus etíopes, e os rastafares reivindicam ser descendentes de Menelik, o filho de Salomão e Sabá. E também para os cristãos negros de todo o mundo, Sabá surge como ícone racial e é vista como a musa de Cantares de Salomão.

O poeta W. B. Yeats, por exemplo, releu o versículo "sou negra e bela" e poemou assim: "Salomão cantou a Sabá, e beijou a face negra dela".

Ainda segundo Durber, onde os cristãos africanos celebraram a cor negra de Sabá, o cristianismo europeu marginalizou sua história. Na rainha de Sabá viu a história de uma mulher pagã, uma mulher estrangeira que tinha se rendido à verdadeira fé. Em sua rendição, aparentemente, Sabá perdeu também a cor negra de sua pele.

Assim a história de uma mulher sábia aparentemente não combinaria com a história de uma negra, e tal leitura produziu uma terrível alienação na igreja cristã européia e norte-americana, que levou o terror e o medo ao outro de cor negra. Dessa maneira, o outro de cor negra foi seduzido, subjugado e domesticado. E a leitura do texto é que Sabá capitula a Salomão e torna-se culturalmente branca.

Na verdade, Sabá foi companheira de Salomão e o texto pode ser lido assim. Mas a tradição, a partir da Vulgata, fez dele um conquistador e dela uma conquista, gerando ideologias como a da vitória da Europa sobre Oriente, do homem sobre a mulher e do branco sobre o negro.

Mas a Bíblia hebraica fala de negros e de nações africanas como Cuxe, Mizraim e Pute, que hoje são Etiópia, Egito e Líbia. E até a construção do canal de Suez, em 1859, não se fazia distinção entre as terras bíblicas e esses países. O cenário da atuação divina cobria também a península do Sinai, o Egito, que está na África, e Israel era visto como parte do continente africano. Só com a construção do canal de Suez, a África passou a ser olhada como continente separado do Oriente Médio.

Assim, na Bíblia hebraica, Israel é uma nação africana e semita, e a mensagem que leva ao mundo teve início nesse continente negro. E, embora muitos afrobrasileiros vejam a igreja como de origem européia, a análise da história bíblica demonstra que teve origem multirracial e que a Bíblia começou a ser escrita na África.

Por isso, nossas irmãs afrodescendentes podem, conscientes de sua brasilidade, raça e cor, dizer com a Sulamita: "eu sou negra e bela, como as barracas do deserto, como as cortinas do palácio de Salomão".


Nota

[1] PENA, Sérgio D.J.; BORTOLINI, Maria Cátira. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? São Paulo: Estudos Avançados, Vol. 18, No. 50, Jan./Abr. 2004.



mercredi 20 avril 2016

Campanha da legalidade

Nesse momento, minha sugestão oficial e pública para o Partido dos trabalhadores e aliados democráticos, é lançar através dos governadores e juristas que apoiam a legalidade, uma campanha mobilizadora de toda a nação por uma Nova Campanha da Legalidade.

O exemplo do velho companheiro Leonel Brizola, levadas em conta as especificidades deste momento histórico, pode e deve sensibilizar corações e mentes.


É necessário formar rapidamente o Comitê Nacional pela Legalidade. (JP).

A Campanha da legalidade a nível internacional já teve início, mas ė necessário ir em frente. Esta Nova Campanha da Legalidade, formada por mais de oito mil juristas de todos os estados brasileiros passa, a partir de hoje, a enviar ao mundo o manifesto que denuncia o golpe em curso no Brasil. O Manifesto está em português traduzido para o inglês, italiano, francês, alemão e espanhol. Marque, envie por e-mail e compartilhe este post, fazendo chegar aos amigos estrangeiros.

Não se impressionem com a quantidade de páginas, a maior parte é de assinaturas.

*Espanhol:
https://drive.google.com/open?id=0B25Hqzc_ozMGTE1XcmlDUmpHWkU

*Italiano:
https://drive.google.com/open?id=0B25Hqzc_ozMGc2ZvakIya0NndVk

*Francês:
https://drive.google.com/open?id=0B29oZHxtSdZZdEo3Ym5EaU1FMTA

*Português:
https://drive.google.com/open?id=0B25Hqzc_ozMGVXRfMEcwMkVhNXM

*Inglês:
https://drive.google.com/open?id=0B25Hqzc_ozMGRXQ3Y0IyVnRGM2M


Jacó e o chute

Mergulho na humanidade do texto
Jorge Pinheiro


A profundidade do texto é a sua humanidade. Ao mergulhar nessa humanidade temos a possibilidade de encontrar sua transcendentalidade. E isso pode ser alcançado de duas maneiras: a acadêmica, que nos interessa aqui, e aquela da própria vida, quando chegamos lá através da maceração de nossa pessoalidade, da crise, da dor e do risco.

Então, nesse exercício vamos analisar um verso de uma história da escrituras judaica. 

Na luta, o homem, ao ver que não podia vencer, bateu no vazio da coxa e enforcou a força de criar de Jacó”. (Gênesis 32.25).

O verso escolhido, que se situa no primeiro livro, o das origens, fala da luta do patriarca Jacó com um homem -- a palavra hebraica no texto é îxe, homem, macho, e não anjo. Na luta com esse que poderia ser seu próprio irmão ou um dos capangas dele, o homem não conseguiu vencer Jacó. Então, já cansado, o homem recorre ao golpe mais antigo, que acaba com qualquer luta, dá uma joelhada no vazio da coxa de Jacó e estrangula a sua força.

A região, de terminações nervosas, é protegida por uma grossa camada de derme, como ocorre com outras áreas de grande sensibilidade no corpo, como a ponta dos dedos. "É por isso que, apesar de ambos serem muito sensíveis, um impacto nos testículos dói muito mais do que, por exemplo, bater os dedos na mesa", diz o urologista Mário Paranhos, do Hospital das Clínicas, em São Paulo. 

Apesar de ser muito sensível à dor, o saco consegue se preserva de danos maiores por estar suspenso, o que amortece o trauma. Mas, às vezes, a pancada é tão forte que não há ovo que resista. Veja o que pode rolar : com o chute, pode rolar um sangramento interno causando inchaço e dor. O músculo que envolve os testículos pode se retrair tão depressa que nervos e artérias que seguram as bolas se enroscam, impedindo o fluxo de sangue. Se o coice for bravo mesmo, a cápsula que protege os ovos pode se romper e vazar o conteúdo interno.


Visto assim, na sua humanidade, o texto fala de dois homens que lutam madrugada adentro, e que um deles, o trapaceiro, é golpeado na força de sua virilidade, sendo derrubado por um golpe em baixo, por baixo, baixo. Caído, resfolegando no pó, entre gemidos, pede ao seu oponente um favor: liberdade para seguir adiante. E o homem – Esaú ou um capanga – diz para ele: segue seu caminho, hoje você não trapaceou, você venceu. Arrastando-se, aquele que se agarrava ao tornozelo do irmão, se levanta: é Israel, foi alforriado, está livre para seguir em frente.


mardi 19 avril 2016

Dicionário sefaradi de sobrenomes

Dicionário viaja ao passado dos sefaradis
Márvio dos Anjos
da Folha de S.Paulo

Os brasileiros ganharam recentemente uma luxuosa ferramenta para conhecer suas origens. O "Dicionário Sefaradi de Sobrenomes", compilado por Guilherme Faiguenboim, Paulo Valadares e Anna Rosa Campagnano, traça as rotas que 17 mil sobrenomes de sefarditas (judeus da península Ibérica) e judeus cristianizados percorreram no mundo.

O dicionário bilíngue é fruto de uma pesquisa que começou em 1995. "No início, calculamos que a obra reuniria no máximo mil nomes sefaradis. Em 2002, esse número já ultrapassara os 16 mil, isso após termos eliminado cerca de 25 mil nomes que apresentavam erros ortográficos ou por não serem realmente sefaradis", afirma Guilherme Faiguenboim, genealogista que cuidou da parte etimológica, na introdução do dicionário. "De cada três nomes coletados, só restou um ao final."

 

Faiguenboim contou à Folha, por telefone, que o trabalho iniciou-se com todos os três fazendo de tudo um pouco. "Depois, nós entendemos que o melhor seria dividir as tarefas. Anna Rosa [Campagnano] foi encarregada do levantamento de fontes, o Paulo [Valadares] comprovava a exatidão e a seriedade das fontes e inseria as informações no computador. Depois eu as sistematizava em forma de dicionário", diz.

O trabalho foi inspirado no "Dictionary of Jewish Surnames from the Russian Empire" (Dicionário de Sobrenomes Judeus do Império Russo), de Alexander Beider, que pela primeira vez deu um caráter científico ao estudo, em 1993. Era dedicado apenas aos sobrenomes dos chamados ashkenazim, os judeus residentes no Leste Europeu.

Além disso, outro grande incentivo foi o genuíno interesse de brasileiros sobre as origens de seus nomes de família, fato constatado pela Sociedade Genealógica Judaica do Brasil, da qual Faiguenboim é membro fundador.

"Desde sua fundação, em 1994, a sociedade tem feito pesquisas publicadas em seu jornal 'Gerações/Brasil', e passou a receber cartas e e-mails de brasileiros não-judeus sobre suas origens sefaradis", escreve Faiguenboim.
  

O "Dicionário Sefaradi de Sobrenomes" se divide em três partes. A primeira é uma introdução histórica, escrita por Reuven Faingold, doutor em história pela Universidade Hebraica de Jerusalém, que explica a trajetória dos sefaradis da Antiguidade até a expulsão da Península Ibérica. Na Espanha, a expulsão (e a pena de morte, em caso de desobediência) se deu por ordem dos reis católicos Fernando e Isabel, em 1492, como punição aos costumes judaizantes dos cristãos-novos.

Em Portugal, essa expulsão, que começou em 1497, se estendeu por anos e anos e, enquanto não se concretizava, foi entremeada por tentativas de catequização e ataques sangrentos a cidadãos judeus, culminando com uma inquisição instaurada em 1536.

A segunda parte, escrita pelo historiador Paulo Valadares, trata da dispersão sefaradi, dos éditos de expulsão até o século 20. As introduções históricas mostram a importância dos judeus na cultura e na economia ibéricas. "Eles se consideravam ibéricos, estavam lá havia 15 séculos até serem expulsos", afirma Faiguenboim.

A terceira é o dicionário propriamente dito, precedido por uma explicação sobre a origem dos nomes. Em cada verbete, pode-se saber onde foram achadas as primeiras referências à família e o trajeto do nome pelo mundo e até personalidades dessa família.

DICIONÁRIO SEFARADI DE SOBRENOMES
Organização: Guilherme Faiguenboim, Ana Rosa Campagnano e Paulo Valadares
Lançamento: Fraiha
Patrocinador: Sistema Anglo de Ensino
Quanto: R$ 150 (528 págs.)

Fonte:
Folha de S. Paulo, 06/01/2004, Ilustrada
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u40224.shtml


O mal, uma questão hermenêutica

O mal não é problema 
É questão hermenêutica
Jorge Pinheiro, PhD



Na teologia cristã, teodicéia, termo cunhado por Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), designa a teoria que procura conciliar a bondade e onipotência divinas diante da presença do mal. E será a partir dessa teoria que vamos analisar a questão do mal. A palavra mal vem do latim malu e refere-se aquilo que é nocivo, prejudicial, que fere, que é mórbido, doença, angústia, sofrimento e desgraça. Temos, então, o mal moral, contrário ao caráter do Criador, produzido por agentes morais e temos o mal natural, conseqüência dos desequilíbrios da natureza: furacões, terremotos, epidemias e as sequências degenerativas, como as epidemias, deformidades congênitas etc.

As cosmovisões se posicionam diante da questão do mal de diferentes maneiras. Para alguns pensadores o mal não existe. Jean-Paul Sartre, por exemplo, embora descartasse o mal, falará sobre o absurdo da existência, e dirá que o inferno são os outros. Mas, a posição clássica dos ateísmos humanista, positivista, marxista e mesmo existencialista relativizam o mal, já que é uma visão antropocêntrica, sem, contudo, negá-lo. Assim para um militante comunista no século vinte, ateu, o mal era o imperialismo norte-americano.

Já para o panteísmo monista, como é o caso do hinduísmo e setores do budismo, tudo é deus, então nada é mal. Para essa cosmovisão, as coisas parecem más, mas isso é ilusão, pois não há mal. 

Para o teísmo, o mal é uma realidade. Mas o teísmo tem muitas leituras, assim, para as correntes dualistas, existem duas forças opostas em equilíbrio, o bem e o mal. Para as correntes teístas finitistas, que negam atributos da divindade, Deus pode ser bom, mas não onipotente. Essa é a cosmovisão do judaísmo contemporâneo e do mormonismo. Essa leitura apresenta um Criador que não controla plenamente o universo, ou seja, as coisas não foram feitas de acordo com um plano que pode ser desenvolvido. 

Outra afirmação do teísmo finitista é de que Deus pode ser onipotente, mas não é lá muito bom. Essa cosmovisão foi defendida por John Stuart Mill e R. Roth. Nesse sentido, tudo que recebemos de bom não vem do Criador e a perfeição não existe nem nele próprio. Mas há ainda outras leituras teístas, como a de Irineu e J. Hick que acreditavam que Deus criara o universo como lugar de provação e aperfeiçoamento. Ou seja, o conceito de que a criação é boa padece na origem e a própria redenção do ser humano deixa de ter significado, pois Deus é o único responsável pela condição do mundo.

Ora, o universo, enquanto criação dinâmica, é bom no sentido teleológico, tem as qualidades adequadas à sua natureza ou função. O Criador construiu seres livres que tinham e têm opção de escolha. A impossibilidade de escolha diante do bem e do mal implicaria na remoção da liberdade humana relativa e condicionada à existência. O que explica o clamor de Habacuque, quando pergunta ao Criador como ele pode suportar a traição e as gentes más?

O mal tem origem no exercício da liberdade de seres pessoais. Ou como disse o Criador ao jovem Caim, se ele tivesse feito o que era certo, ele estaria sorrindo, mas como agiu mal, o pecado estava à porta, à espreita. O pecado desejava dominá-lo, mas ele precisava vencê-lo. A liberdade de escolha era e é boa, enquanto liberdade dinâmica e progressiva, pois reflete a própria imagem do Criador. Mas, tecnicamente, necessidade e liberdade, lei e graça são realidades correlatas na existência. 

Donde o mal moral e o mal natural são frutos do processo de alienação da imagem de Deus: é o que teologicamente chamamos de mau encontro, conceito antropológico criado por La Boétie e mais tarde utilizado por Pierre Clastres, que usamos como categoria que traduz as disfunções da imago Dei na espécie humana, ou seja, as alienações espiritual, psicossomática, sociológica e antropo-ecológica. Assim, o ser humano está alienado do Criador, de si mesmo, dos outros homens, da natureza, e esta consigo mesma.

Uma grande parte da ciência no século vinte apresentou-se como materialista. É bom lembrar que cientistas como Galileu, Francis Bacon, Isaac Newton, B. Pascal, M. Faraday e muitos outros não eram materialistas. Albert Einstein, por exemplo, afirmou: “Deus não joga dados com o Universo”. Ao negar a ação de um Criador infinito e pessoal, o materialismo retira a base para qualquer significado no universo. O ser humano e todos os particulares passam a ser nada.

As implicações da alienação

Por isso, vamos retomar aqui a questão do termo dia, yom. A raiz de yom aparece 2.355 vezes no texto massorético e pode exprimir um instante de tempo; um período de luz; um período de vinte e quatro horas; uma época; um período geral e indefinido, sete dias; ao cabo de dias; um mês inteiro; ano; o dia de Iavé. Não temos um conceito único para yom. Não há uma posição unânime na igreja. Agostinho considerou que o tempo surge com o universo. E Tomás de Aquino disse que o tempo é uma medida humana.

Mas tempo nos remete a outro conceito o de caos. E aí vem a pergunta: o que é o caos? Na leitura tradicional, tohu significa apenas sem forma, caos; e bohu vazia, desolada. Mas temos outros termos que nos levam a idéia de caos: trevas; abismo; águas. Na leitura tradicional o caos reflete apenas uma situação sem ordem e faz parte da criação original.

Porém temos outras teorias, como as da catástrofe: (a) teoria da criação a partir do caos ou teoria da recriação. Nela, Gêneses 1:1 é um título ou resumo da perícope 1.2-2.3. Aqui a conjunção vê, em hebraico, traduz seu sentido mais comum “e”. E céu e terra significam o universo organizado. Essa seria a primeira criação; (b) e teoria da brecha, onde Gêneses 1.1 é criação original e a conjunção vê que inicia 1:2 deve ser traduzida como porém, simbolizando um lapso de tempo desconhecido, em que houve uma catástrofe entre os dois períodos. Donde, Gêneses 1.3-21 é uma recriação da terra.

A questão da criação é fundamental para o estudo do mal, pois posiciona o mal em condições e momentos diferentes. De todas as maneiras, a relação criação versus mal sublinha o risco calculado do Criador ao fazer o ser humano à sua imagem e semelhança, que consistiu, entre outras coisas, em conceder liberdade ao ser humano como pessoa. O ser humano poderia usar essa liberdade para retribuir o seu amor ao Criador, oferecendo-se a ele em adoração e serviço. Mas no dom da liberdade estava contida outra possibilidade, a de fazer seu próprio caminho. 

A alienação consiste nisso, na decisão do ser humano de caminhar por conta própria. Esse deslocamento leva ao abuso da dignidade própria e à distorção da aliança de seu ser à imagem do Criador, colocando-se a si próprio como centro de seu querer. Ou como disse Etienne La Boétie (Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 19), “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”. 

E Pierre Clastres (Liberdade, Mau Encontro, Inominável, in Etienne La Boétie, Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 110-111), analisando o texto desse libertário do século dezesseis, que influenciou o pensamento huguenote francês, afirma: 

“Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que trabalho pensar o impensável mau encontro!”.

Antropologicamente, mau encontro é descrito como corrupção da liberdade do ser humano por ele próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária. Teologicamente, definimos como a opção do ser humano de não mais depender do Criador, mas construir sua liberdade e história a partir de interesses próprios. O entendimento do mau encontro enquanto alienação forma o pilar da antropologia teológica, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade do ser humano e porque essa liberdade é uma expressão da imago Dei. A partir dessa leitura, o mau encontro e a alienação primordial da liberdade humana, assim como a ativação do humano num sentido de distanciamento do Criador introduziram a desordem nos processos de relacionamentos e transmissão da informação no universo.

A alienação humana tem como conseqüência o entorpecimento da responsabilidade e da materialidade do mundo e cria o primado da morte. Essa alienação gera distorção no equilíbrio da imago Dei, na relação espiritualidade, psiquismo e materialidade. A alienação entorpece a liberdade, mas teologicamente leva à compreensão do Cristo como figura que representa o penhor de redenção do ser humano.

Assim, dois elementos fazem parte da compreensão da encarnação: o primeiro deles é a absoluta irrepetibilidade do acontecimento e o segundo é o fato material de que o Criador, ao entrar no tempo, ao fazer-se humano, membro de uma família, de uma comunidade, entra na corporabilidade, na materialidade da história da humanidade. E planta na humanidade a semente de uma radical transformação de todo o modo de ser do humano, o que abrange todas as esferas da natureza humana, material, psíquica e espiritual.

A questão do destino

Na tradição judaico-cristã essa relação entre liberdade versus mal sempre foi um tema teológico/ hermenêutico da maior importância. No Antigo Testamento temos a espiral conceitual aliança/ fidelidade/ constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. No Novo Testamento o vértice é o conceito de destino.

Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentará uma leitura diferente do conceito de destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentará um conceito de destino que resgata e transcende o conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e o culto de mistérios traduziam uma luta contra o destino, numa tentativa de colocar-se acima dele. A origem dos cultos de mistério não pode ser entendida quando os vemos apenas como mitos. 

Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável porque o destino tinha qualidades demoníacas. Era um poder sagrado e destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino excluíam do ser humano qualquer possibilidade de liberdade. 

Assim, também a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. O mundo helênico era um mundo de culpa objetiva e castigo trágico e um profundo pessimismo atravessava todo o conhecimento, desde Anaximandro, passando por Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles.

Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é essa dicotomia que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo permaneceu inalterada em todo o helenismo: superar o destino. E isso foi tentado através do domínio do pensamento, como forma de elevar-se acima da existência, já que no campo da ação e da transformação da existência é impossível superar o destino. No entanto, nunca essa meta foi alcançada. Necessidade e liberdade foram conceitos chaves nas discussões do helenismo pós-platônico. O medo de demônios obscureceu o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade absoluta, ou azar, abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.

Dessa maneira, a filosofia grega caminhou para o ceticismo, já que a busca de uma certeza transcendente para a existência humana se mostrou nula. Ao mesmo tempo, enquanto força sobre-humana do destino, as nações eram submetidas ao poderio romano. Diante desse destino trágico, o mundo helênico tinha necessidade da revelação. Ameaçado por um destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava não somente de liberdade, mas também de graça.

O cristianismo é a vitória sobre a idéia da força resistível da matéria eterna, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina. É a vitória da crença na perfeição do ser em todos seus aspectos sobre o medo trágico e a matéria que resiste hostil ao divino. É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá a existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do kairós substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino outorga graça, que traz salvação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida estão superados e com eles, a filosofia, a religião e os cultos de mistério.

Antes, a filosofia buscava desesperadamente a revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e por extensão a metafísica helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística não teve importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da criação divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que se constrói historicamente e acontece no kairós. E isso já não é helenismo, mas antropologia teológica cristã. 

O conceito paulino de destino

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, destino, no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a lei transcendente na qual está imbricado o conceito de liberdade. Assim, destino também implica numa trindade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à lei; (3) destino significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.

Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo em sua carta aos romanos (8.31-39; e 9), podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da correlação lei/ graça, o julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.

Assim, a certeza de que o destino é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino, que coloca o logos acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional. Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar logos e kairós. O logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre logos e existência chegou ao fim. O logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao logos, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

A vontade humana não é neutra e a liberdade humana sempre se dá dentro da existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. Assim, a liberdade entende-se como correlação entre lei e graça. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em termos teológicos, consciência da lei diante da existência do mal é arrependimento, e ação transformadora do logos que produz justificação e mudança de vida, graça.

O mal enquanto feitura humana

Dentro da visão cristã e exatamente pelo que acabamos de ver, o mal, ao contrário do que pensavam os gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é um estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha liberdade é desafiada, quando ele, o mal, é chamado a surgir como feitura humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois o mal é um antítipo da salvação.

Por isso só podemos responder ao mal reconhecendo que o mal é feitura minha e de minha espécie, colocando a ruptura desse domínio nas mãos daquele único que pode fazê-lo, o logos. A partir daí, ao nível do pensamento, já que é um desafio teológico, o caminho é a reflexão, como aquela que Agostinho fez frente aos gnósticos, quando esses levantarem a pergunta: Por que o mal existe? Transformando assim o mal em coisa e mundo, dando existência e imagem ao mal. Agostinho responde dizendo que a única pergunta que posso fazer é: O que me leva a fazer o mal? E ao nível da vontade e do sentimento, crendo em Deus apesar do mal, pois a cristologia nos ensina que o logos também sofreu. E por fim, ao nível da ação, pois o mal é o que não devia estar, devemos ter uma ética de responsabilidade social, de combate a este estado e domínio na vida de meu próximo e da sociedade.

Mil anos depois de Agostinho, a questão do mal continuava em discussão e a teodicéia, ainda em construção, oscilou entre dois imperativos aparentemente excludentes, o da soberania de Deus e o da liberdade humana. Mas, no início do século vinte, a partir da teologia dialética, passou-se a ver tais imperativos como correlação. Assim eleição e oferta aberta foram lidos como termos complementares, e a cruz como base da salvação e da condenação.

Três leituras da modernidade nascente

Vamos analisar a dialética de tais imperativos sob um novo ângulo. Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de liberdade desses três pensadores, sabendo que a autonomia e o ato livre são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicos, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. E essas se referem ao fato de que liberdade significa a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre.

Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não é gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraíza no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/ campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia do sujeito se dá como dor. 

Mas ambos consideram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, a religião é a realização imaginária da essência do ser humano, mas essa essência não tem realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva, quando vê, assim como Cusa e Lutero, a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, e como responsabilidade suprema do ser humano. Para entender esse ponto de partida de Marx é bom ler seus manuscritos econômicos e filosóficos, mas também sua Introdução à Crítica da Economia Política (Marx, São Paulo, Abril Cultural, 1982), texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.

“O cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo” (Lutero, Les grands écrits reformateurs, Paris, Aubier, 1955, p. 225). Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século dezesseis, mas traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da graça. Sua liberdade é fruto da fé que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. 

A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto espiritualidade, uma dimensão de combate. 

O ser humano, que em Cristo vive essa metamorfose, tem a liberdade que vai além, a liberdade que é fonte de realidade e ação. Assim, o cristão transforma-se em receptáculo da fé, em intencionalidade aberta ao Absoluto.


lundi 18 avril 2016

A culpa e os conflitos religiosos

A libertação da culpa

Jorge Pinheiro


Algumas reflexões sobre a relação entre culpa e conflitos religiosos a partir da leitura de Culpa e Graça, de Paul Tounier, Ed. ABU, 1985, onde o autor coloca, no capítulo sete, a questão: “Quem pode se sentir culpado sem o ser? Ou sê-lo sem sentir, sem mesmo saber?

Podemos dizer que existem dois tipos de culpa. A falsa culpa, fruto de algum distúrbio psicológico, de um processo autopunitivo, e a culpa verdadeira. Mas, até mesmo a falsa culpa parece esconder uma culpa verdadeira. Ou seja, quer a autopunição ou qualquer outro processo psicótico, parece esconder uma outra culpa, diferente da obsessão apresentada. É para esconder essa culpa verdadeira, real, que o psicótico constrói uma outra: imaginária e obsessiva.

A questão tem solução no fato de que a culpa existe e é aceita pelo conjunto dos estudiosos que analisaram o tema, cada qual apresentando a perspectiva de sua escola ou visão de mundo. Assim, os freudianos mostrarão a frequência culpa-inferioridade; os jungianos, a recusa de aceitação integral de si mesmo; e Martin Buber, a recusa de aceitação do outro. Mas, para nós cristãos, fica claro que a culpa surge nos homens, quando O Eterno reprova no secreto de seus corações, ações e intenções.

A culpa pode ser observada como um fenômeno ou como a quebra de categorias de valor. Mas a maioria dos estudiosos analisa a culpa como fenômeno ou culpa funcional. A partir deste ponto de vista, a culpa seria sempre resultado da sugestão social, medo de tabus, de perda do amor de outrem, quando em choque com padrões originais. O resultado é um autojulgamento, um diferencial entre duas ordens de fenômenos.

Para os protestantes, sem esquecermos a realidade dos fenômenos analisados, a culpa está ligada a categorias éticas de valor, que remetem ao relacionamento entre o Eterno e o serhumano e hierarquizam-se no relacionamento da pessoa consigo mesma e com o próximo.

Assim, a visão funcional reflete diferentes interpretações de culpa, embora todas admitam a existência psicológica da culpa. As categorias éticas de valor vão além da discussão meramente funcional, pois coloca a questão em outro patamar: o importante não é saber se uma conduta é ou não culpada desde o ponto de vista social, mas se ela é ordenada ou não pelo divino de nossa fé.

É importante que a pessoa se liberte das pressões sociais. Mas, qualquer hierarquização de valores só terá sentido se partir da única oposição real entre a verdadeira e as falsas culpas, aquela que parte dos preceitos do Eterno e não das decisões estritamente humanas, do julgamento do Eterno e não do julgamento dos homens.

Mas a autenticidade de uma pessoa não significa que o seu posicionamento é correto em si. Isto porque não existe culpa sem conflito. Não existem conflitos apenas entre grupos ou interesses opostos. O conflito está presente até mesmo nas sociedades mais homogêneas e, logicamente, no humano. Para eliminar o conflito, é necessário retirar-se da vida.

Um pessoa autêntica é aquela que mantêm uma coerência entre o que pensa e o que faz. Essa autenticidade sem conflitos não existe. Sempre haverá momentos em que as duas coisas não se encaixarão. E aí estaremos diante de conflitos e culpa. Mas, ainda que existisse esse humano sem fissuras éticas, caberia perguntar: Até que ponto essa autenticidade tem uma base libertadora? De que vale ser autêntico, se a base de minha autenticidade é a alienação em relação ao eterno, ao próximo e a mim mesmo?

Donde, qual a correlação entre a subjetividade e a culpa? A culpa é sempre subjetiva, mesmo quando verdadeira. Porque, embora seja uma ruptura da ordem de dependência do humano em relação a Deus, é através do psicológico que Deus fala à alma humana. Assim, quer seja consciente ou não, não encontraremos culpa fora da subjetividade. E a cura da culpa, entendida como perdão e salvação do humano através da ação redentora do Eterno, acontecerá, embora não mecanicamente, também na área da subjetividade.

E como imbricamos conflito e culpa? O conflito faz parte da vida humana. É o choque permanente entre as estruturas mentais do ser e a realidade social. Nem sempre o pensar e o agir são harmônicos. Na maioria das vezes resolvem-se através de tensões e conflitos. E, sempre que a solução violenta as estruturas mentais do ser, temos a culpa. Os conflitos podem levar à culpa, mas culpa e conflito não são sinônimos.

Embora a culpa seja construída ao nível da subjetividade, ela parte de uma relação entre estruturas mentais e realidade social. Ou seja, implica sempre em uma ação, mesmo quando essa ação é mental. Nesse sentido, há uma mediação entre a estrutura mental e realidade social. Essa mediação é interação, produz sempre uma objetividade.

E podemos alcançar liberdade de culpa verdadeira, sem limpar primeiro as culpas psicológicas? Bem, a culpa verdadeira, que poderíamos chamar de culpa primordial, aquela que nasce da alienação do ser em relação a Deus, só pode ser curada por um ato do Eterno. Um ato da imanência do Eterno, que vem até ao humano para resgatá-lo de sua culpa. A libertação existencial da culpa real não necessariamente elimina culpas psicológicas. 

A consciência universal da culpa leva todos os homens, quer acreditem ou não em Deus, a tentarem exercer o papel que cabe exclusivamente ao Eterno: julgar o erro. O julgamento humano leva a falsas culpas, o julgamento do Eterno à culpa verdadeira. Quando o humano julga essas duas justiças se confundem perigosamente.

A relação Pater noster / imago Dei produz juízo de valores. Se é assim produz também sentimento de culpa. Na verdade, a relação entre pais e filhos produz juízos de valor. Isto porque a criança vê o mundo através dos pais. E os pais não transmitem às crianças apenas informações isentas de valor e normatização, mas julgamentos e culpas. Ao mesmo tempo, as crianças vivem num mundo imaginário onde, impossibilitadas de modificar a realidade através da práxis, o fazem através do sonho. Logicamente, haverá choques e conflitos entre a realidade da percepção de mundo adulta e esse imaginário infantil.

Os pais plasmam em seus filhos, através de julgamentos, uma série de culpas que chamamos infantis. Essas culpas impedem as crianças de ver e entender a culpa verdadeira. Diante do Eterno essas culpas infantis não pesam, e sim a culpa verdadeira.

Os pais julgam a conduta de seus filhos segundo a ótica dos adultos, com a experiência de vida que têm e seus filhos não. Quando acusam seus filhos de mentirosos, porque contam como verdadeiras as histórias que inventam, os pais não estão entendendo o mundo imaginário da criança. Para a criança o sonho é real. Mas a suspeita pode levá-la àquilo que desconfia. Poderá ser uma adulta mentirosa. Pois os pais construíram culpas na criança. Na verdade, o julgamento dos pais abafa o julgamento do Eterno, impede a criança de ouvir o que Deus está dizendo.

O pais devem educar a criança levando-a a ter um relacionamento pessoal, dela própria, com o Eterno. Devem educar, ou seja, mostrar a culpa verdadeira que todos temos e que só o Eterno cura, e assim afastá-la das culpas infantis, do medo da perda de estima e amor dos outros.  

Como entender o que o apóstolo Paulo escreveu em sua primeira carta aos coríntios (4.1-6), comparando seus argumentos com o conceito de julgamento, de sentimento de culpa, e a culpa real?

O texto é claro. Pouco importa ser julgado por terceiros ou por um tribunal humano. Ele próprio, Paulo, não julga a si mesmo. Sua consciência em nada o acusa, mas nem por isso está justificado. O Senhor é o juiz. Donde, ninguém deve julgar prematuramente, antes que o Senhor venha.

A palavra consciência exprime nas cartas do apóstolo valores propriamente cristãos. Quaisquer que sejam as normas exteriores, o comportamento do humano realiza-se ao nível de duas instâncias: o julgamento dele próprio (Atos dos apóstolos 23.1; 24.16; carta aos romanos 2.14-15; 9.1: 13.5; segunda carta aos coríntios 1.12; e o julgamento do Eterno, ao qual o primeiro julgamento está sujeito, conforme I Co 8.7-12; 10.25-29; e II Co 4.2.

Como enfrentar sentimento de culpa e o sentimento de culpa do próximo? O desafio é resolver a culpa real. Metanóia, perdão e liberdade em Jesus, o Cristo. A partir da liberdade todas as culpas funcionais estão cobertas pelo sacrifício vicário do Messias e somos “verdadeiramente livres”. Nenhuma culpa pesa sobre nós. Mas se nossa consciência continua nos acusando, se os cacoetes do passado permanecem, é bom procurar um profissional da área de Psicologia.

E para terminarmos estas reflexões sobre a libertação da culpa, cabe perguntar o que é saúde psicológica e o que é saúde espiritual?

Ora, saúde psicológica é a relação de equilíbrio entre as ações interiorizadas do humano e as exigências da realidade social. É a sua capacidade de resolver problemas com o menor grau de stress e culpa funcional, respeitando seus julgamentos pessoais.

Já saúde espiritual é aquela relação que nasce do relacionamento do humano que reconhece sua culpa real, liberto pela graça, com o Eterno. É o humano novo, que cresce no Espírito do Eterno, e produz frutos que se projetam na eternidade.


dimanche 17 avril 2016

O caminho da espiritualidade e da liberdade


A halakha[1] da espiritualidade e da liberdade
Jorge Pinheiro, PhD


A este povo dirás: Assim diz Iaveh: Eis que ponho diante de vós o caminho da vida e o caminho da morte. (Jeremias 21:8)

Pois os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os meus caminhos, diz Iaveh. (Isaías 55:8)

Primeiros passos ...

Théodore Monod[2] disse que não somos meio termo, mas complemento. Não somos cinza, mas cores do espectro. Na verdade, os escritos judaicos da Era Comum nos dizem que o Eterno construiu o ser humano e, em seguida, retirou-se para que este humano pudesse construir sua liberdade e o seu lugar. Dessa forma, o ser humano é potencialmente autônomo dentro dos limites da existência, constrói livre-arbítrio e, portanto, responsabilidade. 

Os escritos judaicos, entregues no caminhar da diáspora, entendem que o Eterno aposta na construção permanente do ser humano. A criação, vista dessa forma, não está completa, o ser humano, enquanto pessoa e comunidade, continua a criação. Por isso, a construção da espiritualidade é a chave para o futuro humano. É o que leva à criação permanente. Textos do misticismo judaico, como os da Cabala, quando falam do acesso ao mundo do Espírito, perguntam: "Você se tornou o que você é?" 

O ser humano, enquanto pessoa e comunidade, é criador de si mesmo. Sua vida é uma viagem com a finalidade do tornar-se. Ele deve saltar do "conhece a ti mesmo" para "tornar-se quem ele é" e "descobrir para que serve". É a viagem da existência humana, e a liberdade é uma viagem dentro de si mesmo, numa comunhão que engloba o cosmo, e deve ser realizada através do corte da pedra, símbolo do ser humano, do material em direção ao espiritual. 

O macho e o suspiro

"Adão teve relações com Eva, a sua mulher, e ela ficou grávida. Eva deu à luz um filho e disse: — Com a ajuda de Deus, o Senhor, tive um filho homem. E ela pôs nele o nome de Caim. Depois teve outro filho, chamado Abel, irmão de Caim. Abel era pastor de ovelhas, e Caim era agricultor. O tempo passou. Um dia Caim pegou alguns produtos da terra e os ofereceu a Deus, o Senhor. Abel, por sua vez, pegou o primeiro carneirinho nascido no seu rebanho, matou-o e ofereceu as melhores partes ao Senhor. O Senhor ficou contente com Abel e com a sua oferta, mas rejeitou Caim e a sua oferta. Caim ficou furioso e fechou a cara. Então o Senhor disse: — Por que você está com raiva? Por que anda carrancudo? Se tivesse feito o que é certo, você estaria sorrindo; mas você agiu mal, e por isso o pecado está na porta, à sua espera. Ele quer dominá-lo, mas você precisa vencê-lo. Aí Caim disse a Abel, o seu irmão: — Vamos até o campo. Quando os dois estavam no campo, Caim atacou Abel, o seu irmão, e o matou". (Gênesis 4:1-8)

O relato da história de Caim e Abel mostra o embate entre dois irmãos e dois modos de vida: de um lado temos o agricultor e de outro o pastor. A história dos dois irmãos personificam a fratura da "imago Dei" e a consequente alienação humana, em sua diversidade, distanciamento do Criador, alienação psicológica, sociológica e ecológica.

Quando nasce Caim, Eva -- do hebraico חַוָּה, hawa, vivente --, a Mãe, feliz diz: alcancei do Senhor um macho. Que é um trocadilho com o verbo qanah, adquirir, que vai dar a palavra Qayn. Em relação a Abel, seu nome hevel significa sopro, suspiro, uma brisa leve, no sentido de que teve vida curta e não deixou filhos.

A história do choque entre os dois irmãos, entre duas espiritualidades, conta que o Eterno recebeu de bom grado a oferenda de Hevel porque ele "ofereceu as melhores partes ao Senhor". Enquanto Qayn "um dia pegou alguns produtos da terra", ou seja, ofereceu com descuido, o que não lhe deu trabalho, o que tinha de sobra. 

O Eterno valoriza a sinceridade dos sentimentos que gera a oferta e não o contrário, por isso ele disse "odeio, eu detesto as suas festas religiosas; não tolero as suas reuniões solenes. Não aceito animais que são queimados em sacrifício, nem as ofertas de cereais, nem os animais gordos que vocês oferecem como sacrifícios de paz. Parem com o barulho das suas canções religiosas; não quero mais ouvir a música de harpas. Em vez disso, quero que haja tanta justiça como as águas de uma enchente e que a honestidade seja como um rio que não para de correr". (Amós 5:21-24).

Assim a história dos dois irmãos apresenta a metáfora da fratura psicológica, social, ecológica e espiritual da humanidade.

O caminhar sob missão

O caminhar com o Eterno não pode estar separado do colocar-se sob missão do Espírito, pois a construção da liberdade humana nasce da revolução do espírito e confronta as solidões dos caminhos próprios. 

Duas noções fundamentais, a do ser e a do devir, estão intimamente ligadas às ideias da halakha e da revolução permanente do espírito. Só o Eterno é único. Na tradição judaica, quando falamos "Ser" estamos a falar do Eterno. Mas os humanos caminham no sentido de se tornarem ser. Precisam caminhar sua viagem, simbólica, do material em direção ao espiritual, a fim de integrar, interiorizar a simplicidade sublime do Ser Eterno. É nesse sentido que o caminhar deve gerar harmonia, paz que leva à coexistência de progresso e tradição. 

Assim a história dos dois irmãos apresentam a metáfora da fratura psicológica, social, ecológica e espiritual da humanidade.

1. Ao nível psicológico, Qayn e Hevel apontem para o conflito entre o certo e o errado, entre o realizar os desejos na natureza humana e o viver a construção da liberdade humana no caminhar com o Deus Eterno. E neste conflito, quando a natureza humana é vitoriosa o embate resulta em morte, em fracionamento, em cisão do humano que somos.

Ao matar Hevel, Qayn se torna um pária de si mesmo, um nômade marcado pela falta daquilo que constitui a vida plena, a personalidade livre da culpa. Passa a ser uma pessoa que sem norte, que andarilha distante de sua integralidade como ser humano. É ser dividido, fraturado.

2. Ao nível social, Qayn e Hevel simbolizam duas humanidades, divididas, que se confrontam no correr da história.

É conflito permanente entre uma humanidade, simbolizada por Qayn, que se rebela, mata o irmão e através da violência assenhoreia-se da natureza, levando-a ao desequilíbrio e destruição; e outra humanidade, simbolizada por Hevel, que procura a comunhão com seu Criador, com seus irmãos, e com a própria natureza.

3. Ao nível espiritual, e este é o principal centro do relato, Qayn e Hevel apontam para uma fratura na alma humana em sua forma de se relacionar com o Deus Eterno.

Uma dualidade que definiu dois tipos de busca -- uma formal, estereotipada em valores próprios, e outra de colocar-se sob missão à vontade do Deus Eterno.

Espiritualmente, há uma divisão no âmago da alma humana, no relato do conflito entre Qayn e Hevel. É uma parábola do ser humano que sacrifica uma parte de seu ser. Qayn de agricultor passa a andarilho para depois se tornar um construtor de cidades. E Abel de pastor torna-se símbolo da fé sob missão e, num contexto espiritual, de mártir da entrega ao Deus Eterno.

Qayn é a metáfora de uma humanidade que mata dentro de si o Hevel da entrega e da vida plena em sintonia com a vontade de Deus. E para não viver como andarilho, na solidão de si mesmo, Qayn funda uma cidade. É sua forma de dizer não à vontade de Deus Eterno, que considera injusta.

A liberdade do partir do pão

A comunidade de fé, enquanto comunhão, não deve ser obstáculo para o caminhar espiritual. Ao contrário, compreendido o conceito de comunidade, de estar junto para repartir o pão, tal comunhão não deve desenvolver ambição, orgulho ou reflexo xenófobo, mas abertura para o humano. Seu significado não é excluir a fraternidade, mas estendê-la da comunidade em direção a todos os humanos. O objetivo é difícil, mas não há esperança se não perseveramos em direção ao sucesso.

Aprender a liberdade é o primeiro momento dessa construção, comemorada na Páscoa, enquanto caminhar em esperança. Caminhamos em direção ao outro e para cima. Esta tradição foi transmitida aos judeus pela Torá, e está presente nos 613 mandamentos, em que se baseiam a coesão da comunidade judaica. 

O caminhar associado a revolução permanente do espírito deve levar a uma espiritualidade que voa acima de dogmas e formalizações. É um caminhar baseado na fraternidade universal. Donde, tradição e progresso podem fazer sentido na existência do humano, enquanto elo da cadeia da vida. 

Nesse caminhar descobrimos, conforme nos foi revelado, que o Eterno é impensável, incognoscível e impenetrável, mas presente no universo em todos os seus planos. O Eterno não pode ser nomeado. A única designação autêntica é precisamente a rejeição de qualquer definição é "ein Sof"[3], aquele que não tem fim, Eterno. O Espírito absoluto é essência por si só. O Eterno é o único, única manifestação visível do invisível. Mas a harmonia universal resulta da complementaridade dos opostos. A vida é um ponto na eternidade. 

Devemos ser, todos nós humanos, aqueles que esperam pelo mundo do Espírito. E o caminhar na liberdade do Espirito nos leva ao amor, que é chave para a comunhão. Pois, amar o outro é reconhecer que ele também foi criado para a liberdade do Espírito. É com ele caminhar em direção ao sentido pleno da vida. 

O amor dá dignidade ao caminhar. Semeia as sementes da revolta contra a injustiça e a opressão, inclusive religiosa. Reconhece o fato de que o sofrimento é um desequilíbrio do mundo. Mas, a liberdade do Espírito nos dá consciência, de que o amor não pode ser rebaixado a concepções que degradam a dignidade do ser humano. Ou seja, amar o outro não é fé, não é destino, é ato de construção do espírito e da liberdade com todos e todas.

E a halakha se constrói caminhando ...

É por isso que dizemos: Abel, um humano sob missão, foi o primeiro mártir espiritual da humanidade -- aponta para Jesus, o Cristo.

"Jesus foi com os discípulos para um lugar chamado Getsêmani e lhes disse: — Sentem-se aqui, enquanto eu vou ali orar. Então Jesus foi, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu. Aí ele começou a sentir uma grande tristeza e aflição e disse a eles: — A tristeza que estou sentindo é tão grande, que é capaz de me matar. Fiquem aqui vigiando comigo. Ele foi um pouco mais adiante, ajoelhou-se, encostou o rosto no chão e orou: — Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice de sofrimento! Porém que não seja feito o que eu quero, mas o que tu queres". (Mateus 26.36-39)

"Ele tinha a natureza de Deus, mas não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte — morte de cruz". (Filipenses 2:6-8)

Eis o desafio da halakha, seguir o caminho aberto por Abel -- da humanidade sob missão à vontade do Deus Eterno. 

Eis o desafio da halakha, seguir o caminho de Jesus, o Cristo -- que ao abrir mão do aparente que se deteriora, nos ensinou a construir a espiritualidade e a liberdade que fazem de cada um de nós humanos de fato. E é este caminhar que nos leva a dizer: não se faça o que quero, mas o que Tu queres. 

Notas

[1] A halakha ou lei judaica, é um ramo da literatura rabínica. Ela trata das obrigações religiosas às quais devem se submeter os judeus em suas relações com o próximo e com o Eterno. Ela engloba todos os aspectos da existência. Aqui vamos utilizar halakha em seu sentido mais amplo de caminho. 
[2] Le Chercheur d’absolu, Le Cherche midi, 1997.
[3] Ein Sof ou ayn Sof, (hebraico אין סוף), na Cabala, é entendido como Deus antes de Sua automanifestação na produção de qualquer reino espiritual, provavelmente derivado do termo de Ibn Gabirol, "o único Infinito". Ein Sof pode ser traduzido por "sem fim", "interminável", "não há fim", ou infinito.