lundi 15 juin 2020

O cristianismo na França

Uma breve leitura do cristianismo na história da França 
Prof. Dr. Jorge Pinheiro 

Introdução 

A religião na França é autorizada pela Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789, desde que sua "demonstração não perturbe a ordem pública". Sua prática é definida pela lei de 9 de dezembro de 1905, que fez da França um estado secular. Ou seja, por lei existe a separação da religião e o estado, portanto a República Francesa não tem mais uma religião estatal ou uma religião oficial. A França não possui estatísticas oficiais sobre as religiões. Donde, as estimativas se baseam em pesquisas de institutos privados que sempre variam e são de abrangência restrita. 

Podemos, no entanto, dizer que numa população de 67 milhões de habitantes, haveria cerca de 4 a 7 milhões de católicos, a maior religião da França -- no início do século XX, os católicos representavam 95% da população francesa, hoje são de 6 a 10%, mesmo que metade dos franceses continuem se dizendo católicos --, de 2 a 5 milhões de muçulmanos, 600 mil cristãos protestantes, 150 mil budistas e 125 mil judeus. No entanto, no geral, a prática religiosa é relativamente baixa. Embora 70% da população tenha sido batizada, o país está entre os menos religiosos do mundo e os ateus são cerca de 40% dos franceses. Se levarmos em conta aqueles que não se identificam com nenhuma religião a percentagem de ateus mais os sem religião varia de 60 e 70%. 

 1. A expansão do cristianismo 

A história do cristianismo na França começa no século II. Desde a separação das Igrejas do Oriente e do Ocidente (1054), foi marcante o papel da Igreja Católica na vida espiritual e social do país, desde a Idade Média até os tempos modernos. Só no correr do século XX e no início do século XXI diminuiu o papel do clero na vida dos fiéis e de suas práticas religiosas. A evangelização da Gália, depois das províncias orientais do Império Romano, começou durante o segundo século. O cristianismo na Gália chegou através de comerciantes do Oriente. O cristianismo era tolerado, mas quando crescia muito em uma região ou comunidade sofria violenta perseguição. É o caso dos mártires de Lyon no ano 177. 

O cristianismo seguiu a corrente comercial do Mediterrâneo subindo o vale do Ródano, onde Eusébio de Cesareia foi o respnsável pelo primeiro grupo de comunidades cristãs conhecidas em 177 em Lyon. Os cristãos dessa época se reuniam na clandestinidade, perto das cidades, nos locais onde seus mortos eram enterrados e onde celebravam seus cultos, como nas catacumbas de Roma. Grégoire de Tours, em sua Histoire des Francs, apresenta histórias das diferentes origens, datas e valores cristãos, e fala de sete missionários que na época da perseguição em Roma, por volta de 250, foram enviados à Gália: Gatien de Tours, Trophime d'Arles, Paul de Narbonne, Saturnin de Toulouse, Denis de Paris, Austremoine de Clermont e Martial de Limoges. E assim surgiram os primeiros bispados na França, seguindo a tradição dos tempos apostólicos. 

Dos séculos II ao IV cada igreja, ou santuário que geralmente se tornava lugar de peregrinação, assim como as festas que celebravam a história de Jesus, remetiam aos evangelistas e mártires apostólicos que ali estiveram presentes. É o caso de Caprais e Foy d'Agen cujos corpos só foram descobertos no século V, de Maurice d'Agaune e seus companheiros cujos corpos nunca foram encontrados, de Quentin Vermand e Lucien de Beauvais. Irineu de Lyon ficou conhecido como um dos Pais da Igreja e foi o primeiro ocidental a desenvolver uma teologia sistemática. Do século II ao IV surgiram trinta bispados na Gália. Houve um crescimento material, graças às doações dos fiéis, um número crescente de bispos, construção de igrejas, bem como o mais antigo batistério retangular, em Poitiers, Lyon. 

A expansão do cristianismo na Gália se reflete em números: enquanto a população total de cristãos não excedia 2% em torno de 250, alcançou de 5 a 10% sob Constantino no quarto século. O Concílio de Arles, em 314, condenou o donatismo (1). Mas o arianismo (2) se desenvolveu na Gália. Hilaire de Poitiers foi o grande defensor da ortodoxia nicena (3), e condenou o arianismo em 355. Martin de Tours introduziu o monasticismo (4) na Gália no final do século IV. 

O monasticismo martiniano se localizou ao redor do Loire, enquanto os monasticismos de Lerinian e Cassianita se desenvolveram no sul da Gália no século V. No final do século V, a invasão dos francos afetou a presença cristã nas regiões onde haviam se estabelecido. Mas a conversão do rei Clóvis, em 499, favoreceu a fusão desse povo germânico, os francos, com o povo gaulês/romano sob o manto protetor do cristianismo niceno da Gália. Este evento, do ponto de vista histórico, simboliza a conversão do país ao cristianismo católico, quanto da tradição da origem divina da monarquia dos reis da França. Nesta perspectiva, a França foi considerada a "filha mais velha da Igreja". 

O século VII foi um período importante para a expansão cristã tanto para a Europa quanto para a França. A evangelização das cidades e círculos aristocráticos nos quais os bispos estavam diretamente envolvidos, e a do campo em pleno crescimento demográfico, favoreceu a multiplicação de locais de culto, em especial graças ao desenvolvimento agrário, o que possibilitou o surgimento dos mosteiros, que se tornaram centros de altos estudos de teologia. Este período viu o desenvolvimento da rede paroquial nas áreas rurais até o século VIII. 

2. Roma e monarquia francesa unidas 

Em busca proteção militar contra os lombardos, o papa Estêvão II rompeu as últimas amarras de Roma com o Império Romano do Oriente em 754 e coroou Pepino, rei dos francos. Dessa maneira, a história do cristianismo ocidental se fundiu tanto com a da Igreja de Roma quanto com a da monarquia francesa. Do século XI ao XIII, os cavaleiros e soberanos franceses participaram das cruzadas na Espanha e na Terra Santa. A criação da Ordem do Templo em 1129 nasceu neste contexto de guerra santa. A Inquisição foi responsável pela luta contra as "heresias", oficializada pelo Papa Inocêncio III em 1199 com a criação de tribunais eclesiásticos. A Inquisição na França, entre 1459 e 1461, levou a julgamentos pessoas acusadas de bruxaria, não importando condições sociais, e obrigou os judeus à conversão forçada. 

No final da Idade Média, a Igreja Católica não tinha mais o papel cultural e social que tivera no meio da Idade Média. As mudanças econômicas levaram à criação de estados modernos e empresas privadas. A Igreja não tinha mais tanta terra e meios econômicos para se impor culturalmente. No nível político, isso se traduziu no confronto do rei da França, Philippe le Bel, com o papa Bonifácio VIII, quando cada um buscando afirmar a primazia absoluta de seu poder. Isto levou ao grande cisma do catolicismo, nos anos de 1378 a 1418, quando existiram então dois papados, um em Roma e outro em Avignon (1309-1418). A Concordata de Bolonha assinada em 1516 entre Francisco I e o Papa Leão X passou a definir as relações entre a Igreja Católica e o rei da França até 1790. Deu aos reis da França poder sobre a Igreja em seu reino. 

3. A Reforma e a guerra das religiões  

Uma questão se coloca, onde estava a igreja não católica, antes dos huguenotes? Os protestantes reformados tiveram diferentes antepassados. O primeiro foi o reformador checo Jan Hus, que se levantou contra as indulgências do catolicismo. Lutero conhecia os escritos de Hus, mas não gostava deles, porque Hus se orgulhava de suas ações. Até 1520, Lutero pensou que ele poderia ser um hussita, mas constatou que suas críticas à igreja de Roma eram mais profundas que as de Jan Hus. 

Depois vieram os valdenses, herdeiros do pensamento de Pierre Valdo. Era um rico comerciante. Por volta de 1170, ele ouviu uma passagem da vida de São Alexis narrada por um trovador. Esse relato o levou ao desejo de seguir o Cristo pobre. Entregou sua propriedade à esposa e seguiu o ideal de pobreza apostólica. Começou a pregar nas ruas de Lyon sem a permissão das autoridades eclesiásticas. Ele e seus seguidores foram expulsos da cidade. Mais tarde, durante o Sínodo de Chanforan (1532), muitos deles aderiram à Reforma. Segundo historiadores protestantes dos séculos XVI e XVII, os valdenses surgiram com as primeiras comunidades cristãs, antes mesmo de Pierre Valdo. Graças a eles, as igrejas reformadas francesas puderam afirmar sua origem apostólica. 

O terceiro grupo foram os albigenses ou cátaros. Os albigenses nos séculos XI e XII se fizeram presentes no sul da França, no Languedoc, na Provença, e se localizaram principalmente nas cidades de Albi, de onde levaram o nome, Béziers, Carcassonne, Toulouse, Montauban, Avignon. Os albigenses deram a si mesmos o nome de cátaros, puros. Viviam uma vida simples, sem ostentação, longe dos vícios, tendo como modelo as primeiras comunidades cristãs. Inicialmente, os protestantes reformados foram hostis a eles. Mas, na década de 1560, os católicos acusaram os protestantes de serem idênticos aos albigenses, e os protestantes adotaram esse ponto de vista por volta de 1562. Para eles, a perseguição aos albigenses tornou possível pensar melhor seu cristianismo protestante. Isso significou uma ligação direta entre albigenses e reformados. 

A França experimentou um fracionamento religioso violento no século XVI. A maioria do país era católica, mas os reformados/huguenotes cresciam em número e importância política e social. O princípio da coexistência das duas denominações no Reino fracassou. Vejamos um exemplo dessa violência, que até hoje marca a história francesa. 

Em 22 de agosto de 1572, um atentado foi realizado contra o almirante de Coligny, protestante (França Antártica/ Baía de Guanabara/ Villegagnon/ Forte Coligny), quando ele deixou o Louvre, onde participara do Conselho do rei. O ataque falhou e o almirante ficou ferido. Na noite de 23 a 24 de agosto de 1572, um Conselho Real se reuniu, durante o qual foi decidido assassinar o Almirante de Coligny e os líderes huguenotes. A igreja Saint-Germain-l'Auxerrois tocou o sino como sinal para início do massacre. O almirante foi selvagemente morto em sua casa, enquanto outros líderes huguenotes eram massacrados no Louvre e na cidade, surpreendidos à noite sem possibilidade de defesa, "mortos como ovelhas no matadouro", como escreveu Theodore Beze. Por três dias, o assassinato continuou em Paris. A violência foi extrema. Católicos que usavam uma cruz branca em seus chapéus atacavam todos os lares protestantes. As ruas ficaram vermelhas de sangue derramado. O número de vítimas é estimado em 4.000 mortos em Paris. Em 26 de agosto, o rei foi ao parlamento e assumiu a responsabilidade pelo massacre. E o papa elogiou à ação católica. 

Oito guerras se sucederam por um período de 36 anos (1562-1598), intercaladas com períodos de paz frágil. Estima-se que três milhões de pessoas morreram durante a guerra, por violência, fome ou doença. Foi a segunda guerra religiosa mais mortífera da história da Europa, superada apenas pela Guerra dos Trinta Anos, que matou oito milhões de pessoas. A guerra das religiões terminou com o edito de Nantes, 30 de abril de 1598, que estabeleceu uma dualidade confessional. Mas a esta altura, 200 mil huguenotes tinham sido mortos, outros tantos migraram e o restante se refugiou nas montanhas. Calcula-se que no início da guerra havia cerca de 600 mil de protestantes na França, numa população francesa de cerca de 10 milhões de pessoas. 

O secularismo francês foi construído no século dezenove na reunião presencial entre católicos e republicanos. Esse corpus jurídico garante a liberdade de crer ou não e a separação entre comunidades ou organizações religiosas e o Estado. O catolicismo recebeu vantagens, financiamento público de seus locais de culto e em parte de seus estabelecimentos de ensino, sob certas condições. Mas também passou a enfrentar limitações, em particular de seus esforços evangelísticos e missionários dentro do país. Isso trouxe uma crise progressiva entre 1949 e 1954, uma crise nos movimentos de jovens católicos entre 1956 e 1965, as consequências eclesiais da crise do maio de 68, os debates em torno da encíclica Humanae Vitae, a dissidência fundamentalista, a renovação carismática, e a crise vocacional. 

Considerações finais 

Uma pesquisa de 2009 estima os protestantes franceses em 3 a 4% da população, enquanto em 1995 uma pesquisa os estimou em 1,5%, um crescimento que o sociólogo Jean-Paul Willaime atribui à expansão dos movimentos evangélicos. O historiador batista Sébastien Fath trabalha com estatísticas diferentes. Numa, calcula cerca de 2,6 milhões de pessoas, sendo 750 mil evangélicos e 1.850 mil luteranos e reformados, incluindo a França ultramarina. Já numa estatística bem mais restrita, considera 600 mil pessoas sendo 460 mil evangélicos e 140 mil luteranos e reformados. Esse pequeno grupo seria cerca de 2% da população francesa e pode ser comparado aos 6 a 10% que representariam o catolicismo. Ainda a partir de Sébastien Fath há na França quatro mil locais de culto protestantes, sendo 2.600 evangélicos e 1.400 luteranos ou reformados. 

A era contemporânea assiste na França o desenvolvimento do diálogo inter-religioso. O diálogo entre judeus e cristãos, dificultado desde o final do século XIX pelo caso Dreyfus e a ascensão do anti-semitismo entre católicos, retomou e aprofundou-se após a Segunda Guerra Mundial. O judaísmo francês estava então no meio de uma reconstrução religiosa, ampliação da rede de sinagogas, fundação em 1948 da Amizade Judaico-Cristã da França, e intelectual em torno de instituições como a escola Gilbert Bloch em Orsay ou conferências de intelectuais dos dois grupos religiosos. As mutações do judaísmo, entre memória e comunidade, se fazem presentes a partir da segunda metade do século vinte pelo retorno a diferentes formas de judaísmo despertadas pela Memória da Shoá, pela Guerra dos Seis Dias e pela busca de solução do conflito árabe-israelense. 

As novas vagas de imigração favoreceram o desenvolvimento do Islã na França. Até a década de 1960 era uma religião minoritária de trabalhadores isolados. Mais tarde, porém, se tornou a segunda denominação religiosa do país, e cada vez mais visível no espaço público. E enquanto comunidade, muito mais praticante que as outras, o que alimenta um debate recorrente sobre a integração dos muçulmanos no país. Isso dá origem a debates políticos e teológicos entre os católicos franceses. O anti-semitismo recua e o anti-islamismo cresce. No entanto, a contribuição do trabalho etnológico na década de 1950 e a descolonização também favoreceram o diálogo islâmico-cristão, cujos principais precursores foram Louis Massignon, Jean-Mohammed Abd-el-Jalil, Louis Gardet e Georges Anawati. 

Atualmente, a liberdade de consciência protestante se reflete em contradições entre sua origem liberal e a ascensão -- mesmo dentro de instituições como a Federação Protestante da França -- de uma corrente evangélica mais orientada à identidade e mais conservadora. Mesmo que a polarização permaneça -- dominada pela separação entre cristãos e muçulmanos versus ateus e sem religião -- podemos dizer que a França é atualmente um país de diferentes religiões, onde, em geral, a prática religiosa não está diminuindo, mas, ao contrário, começa a crescer. 

Notas 

(1) O donatismo foi um movimento cismático cristão iniciado no século IV na Numídia, atual Argélia, que nasceu como uma reação à lassidão dos costumes dos fiéis. Iniciado por Donato, bispo de Cartago, afirmava que somente os sacerdotes cujas vidas eram eticamente exemplares podiam administrar os sacramentos, entre eles a eucaristia, e que pecadores não poderiam ser membros da Igreja. 
(2) O arianismo desenvolveu uma cristologia anti-trinitariana. Foi defendida por Ário, presbítero de Alexandria. Negava que Deus e Cristo com partilhavam a mesma substância. Dizia que Cristo era um ser pré-existente, criado, embora a primeira e mais sublime de todas as criaturas. 
(3) O Credo Niceno foi a profissão de fé definida no Concílio de Niceia, na Bitínia, atual Turquia, em 325. Chama-se também o Símbolo Niceno (em latim: Symbolum Nicaenum) e a Profissão de fé dos 318 Pais, referência aos 318 bispos que participaram do Concílio de Niceia. 
(4) O monasticismo, do grego monachos, uma pessoa solitária, consiste na abdicação da vida em sociedade em prol da prática religiosa. As pessoas que praticam o monasticismo são monges e monjas. Ambos podem ser chamados também de monásticos e, por norma, vivem na clausura monástica.






vendredi 12 juin 2020

Homenagem ao Prof. Dr. Jorge Pinheiro





Homenagem da Faculdade Teológica Batista de São Paulo ao professor Dr. Jorge Pinheiro dos Santos

A comunhão na criação de Deus e nossa responsabilidade cristã

Pr. Jorge Pinheiro
Primeira parte

Os relatos bíblicos descrevem a criação do céu e da terra, obra do Eterno, através da indicação “e o Espírito de Deus se movia por cima da água” (Gn 1.2). Isto quer dizer que o Espírito divino é Pessoa criadora e presença do Eterno, tendo sido a criação uma realidade formatada por Ele. E é o mesmo Espírito quem clama pela liberdade redentora da criação escravizada.

“Um dia o próprio Universo ficará livre do poder destruidor que o mantém escravo e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que até agora o Universo todo geme e sofre como uma mulher que está em trabalho de parto” (Rm 8.21-22).


O Espírito é o poder atuante do Criador e a força de vida das criaturas. O Espírito é a fonte da vida. Por isso, tudo o que existe e vive manifesta a presença dele. Ele transforma a comunhão com o Pai e o Filho na comunhão da criação, na qual todas as criaturas, cada qual a seu modo, se comunicam com Deus. A existência, a vida e os relacionamentos estão firmados no Espírito, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28).

Assim, a partir da comunhão trinitária, o ser humano faz parte da criação e é dependente dela. Vive dentro de um contexto de interdependência com a criação. Desde o início, nosso futuro está ligado ao solo, à água e ao ar. Deus nos coloca junto e com a natureza para trabalhar essa mesma natureza (Gn 2.15). Não haveria falta (2.8-9) se soubermos administrar. Dependemos do solo e dele recebemos o nosso sustento. Pertencemos a este mundo criado e é ele que fornece a base para nossa existência. A vida começa e se orienta sob o cuidado de Deus.

“Ó Senhor, tu tens feito tantas coisas e foi com sabedoria que as fizeste. A terra está cheia das tuas criaturas” (Sl 104.24).

“Todos esses animais dependem de ti, esperando que lhes dês alimento no tempo certo. Tu dás a comida, e eles comem e ficam satisfeitos. Quando escondes o rosto, ficam com medo; se cortas a respiração que lhes dás, eles morrem e voltam ao pó de onde saíram. Porém, quando lhes dás o sopro de vida, eles nascem; e assim dás vida nova à terra” (Sl 104.27-30).

Hoje, pensamos que o mundo é um objeto para nossa exploração, em vez de sujeito para a glorificação de Deus. Em grande parte, ignoramos as necessidades de outras formas de vida. Essa atitude utilitarista de ver e agir é pecado, é uma falta de respeito para com o Espírito de Deus.

O desafio do cuidado amoroso


É Deus quem dá e quem sustenta a vida de todo o universo. Sua preocupação por atender às necessidades básicas (comer, beber e vestir) não se restringe ao ser humano, mas se estende a toda a natureza, refletida nos pássaros e nas flores do campo.

“É Deus quem veste a erva do campo, que hoje dá flor e amanhã desaparece, queimada no forno. Então é claro que ele vestirá também vocês, que têm uma fé tão pequena!” (Mt 6.30).

O universo inteiro depende do cuidado amoroso de Deus, que não descuida de nenhuma criatura. Os lírios, por exemplo, caracterizados por sua fragilidade e vida curta, são vestidos de tal modo que nem Salomão usava roupas tão bonitas como essas flores. (Mt 6,29).


Criação significa que tudo é completamente obra de Deus. Deus é o autor de tudo, o Deus pessoal e salvífico, que se revelou como puro amor. Toda a realidade brota da pura iniciativa deste amor divino, puro dom gratuito.


Mas, o ser humano faz parte da criação, depende dela e é seu cuidador. O ser humano, como o restante da criação, foi criado “de acordo com a sua espécie” (Gn 1.24 e 25), só que à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26-27). A imagem de Deus é elaborada em termos do domínio administrativo que o ser humano teria sobre o resto da criação. O ser humano foi criado à imagem de Deus, não somente por sua liberdade e direito à escolha, mas também pela postura que assume diante da criação, uma postura de soberania em amor e comunhão, que deve refletir a soberania de Deus (Gn 1.26-28). O ser humano não foi criado apenas para realizar uma administração espiritual, mas foi criado para ordenar a criação.

“No entanto, fizeste o ser humano inferior somente a ti mesmo e lhe deste a glória e a honra de um rei. Tu lhe deste poder sobre tudo o que criaste; tu puseste todas as coisas debaixo do domínio dele: as ovelhas e o gado e os animais selvagens também; os pássaros e os peixes e todos os seres que vivem no mar” (Sl 8.5-6).

Essa administração humana sobre a criação nós chamamos de mandato cultural. Ser criado à imagem de Deus é ser responsável pelo planeta e por todas as formas de vida!


A soberania humana implica responsabilidade para preservar a ordem que Deus criou e promover a existência de todos os seus elementos. Tal soberania não implica em liberdade para roubar, matar e destruir. Os seres humanos são mordomos de Deus, responsáveis diante dele e cuja primeira tarefa é assegurar a permanência e equilíbrio da criação.

Segunda parte


A preocupação divina com a salvação espiritual não é alheia da sua preocupação pelo bem-estar da sua criação material. A criação é o primeiro dos atos salvadores de Deus.

“Mas tu, ó Deus, tens sido o nosso Rei desde o princípio e nos salvaste muitas vezes. Com o teu grande poder, dividiste o Mar e esmagaste as cabeças dos monstros marinhos. Esmagaste as cabeças do monstro Leviatã e deste o seu corpo para os animais do deserto comerem. Fizeste com que corressem fontes e riachos e secaste grandes rios. Criaste o dia e a noite, puseste o sol, a lua e as estrelas nos seus lugares. Marcaste os limites da terra e fizeste o verão e o inverno” (Sl 74.12-17).

Por isso, não devemos conceber a participação do ser humano no mundo como opcional, nem como secundária sua missão na salvação de vidas. Desde o início, a criação fazia parte do plano salvador de Deus. A conversão de seres humanos não é o último dos atos salvadores de Deus, mas o estabelecimento de novos céus e nova terra, ou seja, uma nova criação (Ap 21.1), a libertação da própria criação em si (Rm 8.20-22).


Até o fim, a criação fará parte do plano salvador de Deus. A mesma graça de Deus que se manifestou em Cristo, também se manifestou na criação.

“Deus falou muitas vezes e de muitas maneiras aos nossos antepassados, mas nestes últimos tempos ele nos falou por meio do seu Filho. Foi ele quem Deus escolheu para possuir todas as coisas e foi por meio dele que Deus criou o Universo. O Filho brilha com o brilho da glória de Deus e é a perfeita semelhança do próprio Deus. Ele sustenta o Universo com a sua palavra poderosa. E, depois de ter purificado os seres humanos dos seus pecados, sentou-se no céu, do lado direito de Deus, o Todo-Poderoso” (Hb 1.1-3).

E a graça do Eterno manifesta alcançará o seu propósito de submeter a Cristo todas as coisas.

“Por isso Deus deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é o mais importante de todos os nomes, para que, em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos e declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus, o Pai”. (Fp 2.9-11).

“As Escrituras Sagradas dizem: Deus pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. É claro que dentro das palavras “todas as coisas” não está o próprio Deus, que põe tudo debaixo do domínio de Cristo. Mas, quando tudo for dominado por Cristo, então o próprio Cristo, que é o Filho, se colocará debaixo do domínio de Deus, que pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. Então Deus reinará completamente sobre tudo” (1Co 15.27-28).

Assim podemos dizer que existe uma eco-teologia bíblica, que envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação de Deus e a transformação das dimensões culturais, econômicas, morais, intelectuais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação de um sentido bíblico de mordomia, que implica em administração e cuidado responsável. Da mesma maneira, o conceito bíblico de descanso semanal recorda que se deve por limites às atividades de produção e ao consumo. Assim, devemos usar a riqueza e o poder no serviço dos demais. É um compromisso de trabalhar para libertar os ricos da escravidão ao dinheiro e ao poder, e possibilitar aos que têm menos obter acesso à dignidade e às oportunidades de desenvolvimento. A esperança de tesouros no céu nos livra da tirania de Mamon. E fazendo assim estaremos compreendendo o sentido maior do cuidado da natureza e da vida criada pelo Eterno.

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Sabedoria: componentes, funções e resultantes

I Reis 3.5-15
5. Naquela noite, o Senhor Deus apareceu num sonho a Salomão e perguntou: —O que você quer que eu lhe dê? 6. Ele respondeu: —Tu sempre mostraste grande amor por Davi, meu pai, teu servo, e ele era bom, fiel e honesto para contigo. Tu continuaste a mostrar a ele o teu grande e constante amor e lhe deste um filho que hoje governa no lugar dele. 7. Ó Senhor Deus, tu deixaste que eu ficasse como rei no lugar do meu pai, embora eu seja muito jovem e não saiba governar. 8. Aqui estou eu no meio do povo que escolheste para ser teu, um povo que é tão numeroso, que nem pode ser contado. 9. Portanto, dá-me sabedoria para que eu possa (1) governar o teu povo com justiça e (2) saber a diferença entre o bem e o mal. Se não for assim, como é que eu poderei governar este teu grande povo? 10. Deus gostou de Salomão ter pedido isso 11. e disse: —Já que você pediu sabedoria para governar com justiça, em vez de pedir vida longa, ou riquezas, ou a morte dos seus inimigos, 12. eu darei o que você pediu. Darei a você sabedoria e inteligência, como ninguém teve antes de você, nem terá depois. 13. Mas lhe darei também o que não pediu: durante toda a sua vida, você terá riquezas e honras, mais do que qualquer outro rei. 14. E, se você me obedecer e guardar as minhas leis e os meus mandamentos, como fez Davi, o seu pai, eu lhe darei uma vida longa. 15. Quando acordou, Salomão compreendeu que Deus havia falado com ele no sonho. Então foi para Jerusalém, ficou diante da arca da aliança e apresentou a Deus ofertas de paz e sacrifícios que foram completamente queimados. Depois deu uma festa para todas as autoridades.

Os dois componentes da Sabedoria

1. Consciência da miserabilidade humana. Reconhecimento da dimensão transcendente.

Provérbios 1.7
Para ser sábio, é preciso primeiro temer a Deus, o SENHOR. Os tolos desprezam a sabedoria e não querem aprender.

2. Consciência das necessidades da temporalidade. Reconhecimento da dimensão espaço-temporal da realidade.

Salmos 90.12
Faze com que saibamos como são poucos os dias da nossa vida (ensina-nos a contar os nossos dias) para que tenhamos um coração sábio.

Funções de uma práxis de sabedoria

Funções ético-sociais
A busca da justiça
Discernimento para escolher entre o que é bem e o que é mal

Funções técnico-científicas
Uso das técnicas, dos conhecimentos científicos e da inteligência para transformação da realidade espaço-temporal.

Resultantes da práxis de sabedoria

Justiça
Provérbios 12.17 Quando a verdade é dita, a justiça é feita; mas a mentira produz a injustiça.

Solidariedade
Provérbios 27.9
Assim como os perfumes alegram a vida, a amizade sincera dá ânimo para viver.

Alegria
Provérbios 15.23
Saber dar uma resposta é uma alegria. Como é boa a palavra certa na hora certa!

Conversa com um homem sábio, José Comblin.


mardi 9 juin 2020

A lei do Espírito da Vida



A LEI DO ESPÍRITO DA VIDA


POR

JORGE PINHEIRO

SÃO PAULO, NOVEMBRO DE 1995



Portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus. A Lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte. De fato - coisa impossível à Lei, porque enfraquecida pela carne - Deus, enviando o seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, condenou o pecado na carne, a fim de que o preceito da Lei se cumprisse em nós que não vivemos segundo a carne, mas segundo o espírito. Com efeito, os que vivem segundo a carne desejam as coisas da carne, e os que vivem segundo o espírito, as coisas que são do espírito.

Romanos 8:1-5

Ουδεν αρα νυν κατακριμα τοις εν Χριστω Ιησου. ο γαρ νομος του πνευματος της ζωης εν Χριστω Ιησου ηλευθερωσεν σε απο του νομου της αμαρτιας  και του θανατου. το γαρ  αδυνατον του νομου εν ω ησθενει δια της σαρκος, ο θεος τον εαυτου υιον πεμψας εν ομοιωματι σαρκος αμαρτιας και  περι αμαρτιας κατεκρινεν την αμαρτιαν εν τη σαρκι, ινα το δικαιωμα του νομον πληρωθη εν ημιν τοις μη κατα σαρκα περιπατουσιν αλλα κατα πνευμα. οι γαρ κατα σαρκα οντες τα της σαρκος φρονουσιν, οι δε κατα πνευμα τα του πνευματος.

ΠΡΟΣ ΠΟΜΑΙΟΥΣ 8:1−5

ÍNDICE ANALÍTICO


Capítulo 1     A Liberdade Cristã

Capítulo 2     Não Há Nenhuma Condenação

Capítulo 3     Paulo, Servo de Jesus

Capítulo 4     O Coração das Escrituras

Capítulo 5     Pela Graça, Dom de Deus




CAPÍTULO 1 

A LIBERDADE CRISTÃ

(O princípio do contexto)


Tecnicamente, temos aqui dois blocos de textos: um maior, que é o capítulo 8 inteiro, cuja temática é a da vida cristã sob a lei do Espírito; e um bloco menor, que vai do versículo 1 ao 11, e que trata especificamente da vida emancipada por esta lei do Espírito.


O texto em análise está dentro desses dois blocos, que nos dão a linha de pensamento do autor: uma sequência de análises sobre a vida emancipada (vs.1-11); a vida exaltada (12-17); a vida esperançosa (18-30); e a vida exultante (31-39). Dessa maneira, "neste capítulo, o apóstolo traça o curso da vida cristã, na qual a graça triunfa sobre a lei, e os crentes experimentam livramento do pecado".


A epístola de Paulo, como um todo, enfoca três blocos temáticos: do capítulo 1 ao 8, fala da justificação pela fé; do capítulo 9 ao 11, discute a exclusão temporal dos judeus e a inclusão dos gentios ao povo de Deus; e do capítulo 12 ao 16, exortações práticas.


Ao analisar a justificação, mostra que a salvação do homem repousa fundamentalmente sobre a fé, proveniente da graça de Cristo e não na lei de Moisés. Essa misericórdia de Deus não depende da lei, porque o homem, em sua natureza pecaminosa, não tem como responder efetivamente às exigências da lei, que expressa a santidade de Deus. Assim, a graça provem de Cristo, que no seu amor e sacrifício, perdoa os pecados dos homens. A liberdade da vida cristã, liberdade diante da lei, não depende do próprio homem, nem do que ele possa fazer, mas daquilo que Cristo já fez por ele.


Há uma outra epístola de Paulo, que também trata dessa relacão lei versus graça, que é a carta escrita aos Gálatas, onde o capítulo correlato a Romanos 8 é Gálatas 5. Ali, o apóstolo escreve sobre a justificação pela fé, falando da liberdade cristã.


Sem dúvida, a análise de Paulo parte de elementos vetero-testamentários, que descreve no capítulo 4 de Romanos, ao explicar que a promessa feita a Abraão teve por base a fé, já que ainda era incircunciso e não tinha a lei, enquanto formalização apresentada a Moisés.


A passagem analisada encaixa-se perfeitamente não somente na linha geral de pensamento do autor, mas dentro do ensinamento bíblico como um todo.


CAPÍTULO 2 

NÃO HÁ NENHUMA CONDENAÇÃO

(O princípio gramático-literário)


O texto que estamos analisando está inserido numa epístola, forma literária específica, amplamente utilizada pelos apóstolos e pela igreja primitiva. No capítulo que segue, analisaremos com mais detalhes esta forma literária, inserindo-a no contexto histórico de gregos e romanos durante o primeiro século da era cristã.


A epístola aos Romanos é uma carta de difícil compreensão. Isto porque Paulo tinha o costume de escrever intercalando um pensamento central com várias digressões, tornando complexa a conexão das idéias expostas. Outra dificuldade é o próprio tema, já que o apóstolo estava tratando de um assunto eletrizante para a época, mas hoje aceito pela totalidade cristã: os gentios podem ou não tornarem-se cristãos sem serem prosélitos dos judeus? 


Em Romanos 8:1-5, encontramos cinco verbos fundamentais para a compreensão do que o autor está expondo. São eles: (1) ηλευθερωσεν (ελευθεροω, ωσω, ηλευθωρωσα): o oposto ao estado de escravidão, receber alforria, não estar sujeito a uma obrigação, livrar, libertar. "Te libertou", variantes: "me libertou", "nos libertou". É um aoristo passado, isto significa que a ação foi plenamente realizada, mas segue vigente no presente. (2) κατεκρινεν (κατακρινω, −κρινω, −εκρινα, κεκριμαι, −εκριθην): penalidade imposta por condenação judicial, servidão penal, condenar. Também é um aoristo passado. (3) πληρωθη (πληροω, −ωσω, −σα, κα, μαι, θην): encho, aterro, encho a ponto de transbordar, dou plenitude, cumpro. (4) περιπατουσιν (περιπατεω, −ησω, περιπατησα, −πεπαρτηκα): ando, vivo, dirijo minha vida. (5) φρονουσιν (φρονεω, −ησω): penso, ter a mente controlada por, ter como hábito de pensamento, inclinar-se.


Desses verbos, dois são antônimos (receber alforria versus condenado judicialmente) e levam à oposição que o autor quer mostrar entre a lei do Espírito da vida e a lei do pecado e da morte. Assim, ao regime do pecado, Paulo opõe o novo regime do Espírito (cf. 3:27+), e diz que em nós transborda o espírito da lei. Esse preceito da lei (δικαιωμα του νομου, que pode ser traduzido como "o que é justo / o que é bom na lei"), cujo cumprimento só é possível pela união com Cristo através da fé, tem sua tradução no mandamento do amor (cf. 13:10, Gl 5:14 e Mt 22:40). Isto porque, não vivemos segundo a carne (μη κατα σαρκα περιπατουσιν), mas andamos no Espírito, ou seja, temos a mente controlada pelo Espírito (αλλα κατα πνευμα).


É interessante notar que a palavra lei (νομος, ου) aparece 70 vezes no texto de Romanos e sempre tem uma das três conotações: (a) revelação de Deus e de sua santidade, (b) foi dada para esclarecer o que é pecado, e (c) existe para orientar a vida daquele que crê.


Da mesma maneira, a palavra carne (σαρξ, σαρκος) é sempre utilizada em Romanos com um dos quatro sentidos: (a) natureza humana fraca (6:19), (b) natureza velha do cristão (7:18), (c) natureza humana de Cristo (8:3), (d) e natureza humana não regenerada (8:8).


O capítulo 8 de Romanos nos apresenta a operação do Espírito Santo, entendida nos versículos 4, 5, 6 e 10, como aquele que comunica a vida. No versículo 2, como aquele que dá liberdade. E no versículo 26, como aquele que intercede pelos crentes junto ao Pai.


É interessante notar que o texto original de Romanos 8, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa (Ουδεν αρα νυν), que poderíamos traduzir assim: "Atualmente, por isso, nada em absoluto..." pode condenar aqueles que estão em Cristo Jesus. 


Essa partícula ilativa (αρα), que é um conectivo, nos leva ao capítulo 7, onde o Paulo mostra que lei e pecado não são sinônimos. E que há uma grande diferença entre a natureza da lei e a natureza humana. Entre o que é Espírito e o que é carnal. O corpo, com os membros que o compõem (7:24) interessa a Paulo enquanto instrumento da vida moral. Submetido à tirania da carne (7:5), ao pecado e à morte (6:12+; 7:23), Paulo clama: quem me livrará? E dá "graças a Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor" (7:25). É a partir desse clímax, que o apóstolo dá sequência ao texto, informando que "por isso", "hoje", "nada em absoluto" pode condenar os que estão em Jesus Cristo.


CAPÍTULO 3 
PAULO, SERVO DE JESUS

(O princípio histórico)


No mundo de gregos e romanos, as cartas particulares tinham em média, cerca de noventa palavras. Já os textos literários, como os de Sêneca, por exemplo, tinham em média duzentas palavras. As epístolas de Paulo, no entanto, eram bem maiores. A menor delas, dirigida a Filemon, tem 335 palavras, e a maior, enviada a igreja de Roma, 7.101 palavras. Assim, podemos dizer que o apóstolo Paulo criou um novo gênero literário, a epístola, maior que as cartas e os textos literários comuns à época, de conteúdo teológico explícito, e dirigida a comunidade específica.


Quase sempre, as cartas eram ditadas a um escriba profissional, chamado amanuense, que usava uma espécie de taquigrafia durante o ditado rápido. Depois, o amanuense burilava o texto, e o autor, finalmente, editava a carta. Na carta de Paulo aos Romanos seu amanuense foi Tércio (Rm. 16:22).


Quando escreveu sua epístola aos Romanos, Paulo era um cristão maduro. Tinha mais de cinquenta anos e 25 anos de conversão. Estava ansioso para ministrar nessa igreja, que já era conhecida no mundo cristão (1:8), e por isso escreveu a carta que deveria preparar sua futura visita (15:14-17). Foi escrita em Corinto, possivelmente no ano 58 d.C., quando Paulo estava levantando um coleta para os irmãos da Palestina. Partiu, então, para Jerusalém para entregar o dinheiro. Lá é preso, e acabará sendo levado à Roma, mas como prisioneiro.

CAPÍTULO 4 

O CORAÇÃO DAS ESCRITURAS

(O princípio teológico)


Para muitos teólogos, que vão de Orígenes a Barth, a carta do apóstolo Paulo aos Romanos é o ponto alto das Escrituras. Ela sedimentou a fé de Agostinho e a Reforma de Lutero. Calvino, por exemplo, considerava que quem entendesse Romanos estaria com a porta aberta para a compreensão de toda a Bíblia. E Tyndale também diz algo parecido, ao afirmar que Romanos é "a parte principal e mais excelente do Novo Testamento, e o mais puro Evangelion, isto é, as boas novas a que chamamos Evangelho, e também uma luz e um caminho para penetrar em toda a Escritura".


Em termos de doutrina, Paulo em Romanos mostra que a Lei de Moisés, em si boa e santa (7:12), fez o homem conhecer a vontade de Deus, mas não lhe transmitiu a força para cumpri-la. Deu-lhe consciência de seu pecado e da necessidade que tem de socorro (3:20, 7:7-13). Esse socorro, inteiramente gratuito, chegou através de Jesus. E a humanidade, morta no pecado, é recriada em Cristo (5:12-21), podendo agora viver em liberdade e justiça, segundo a vontade de Deus (8:1-4).


Romanos tem como tema central a revelação da justiça de Deus e a universalidade da obra de Cristo. E, se Romanos é o centro nevrálgico das Escrituras, o capítulo 8 é o coração de Romanos.


CAPÍTULO 5 

PELA GRAÇA, DOM DE DEUS

(Aplicando os princípios)



O capítulo 8 de Romanos mostra que a lei foi, através do sacrifício de Cristo, dominada pela graça. Como vimos neste estudo, a epístola de Romanos é fundamental no processo vivenciado pela Reforma. A igreja que rompe com o catolicismo romano, quer a reformada de Lutero, Calvino e Zwinglio, quer a revolucionária de anabatistas e inspiracionistas, entende que o apóstolo Paulo traça na epístola aos Romanos o curso da vida cristã, mostrando que através da graça há vitória plena sobre o pecado.


Paulo queria deixar claro que as propostas judaizantes não tinham razão de ser, pois a obediência à lei nunca logrou êxito. Através de Cristo, unido a Cristo pelo Espírito, aquele que crê está absolvido de seus pecados e pode iniciar uma vida de liberdade, dentro de uma nova lei, a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo.


O que os cristãos do século XVI entendiam, contextualizando os ensinamentos de Paulo, é de não havia mais necessidades de obras e penitências para se alcançar a salvação. O que a Igreja Católica Romana proclamava, tanto no que concerne às indulgências, como às obrigações de caridade, estava fora da doutrina cristã pregada por Paulo nas epístolas aos Romanos e Gálatas, assim como no restante das Escrituras.


Ainda hoje Romanos apresenta ensinamentos fundamentais para a igreja de Cristo: a pecaminosidade do homem (1:18-3:30); sua desesperada luta interior (7:14-25), a gratuidade da salvação (3:21-24), a eficácia da morte e ressureição de Cristo (4:23-25, 5:6-11, 6:3-11), a justificação pela fé (5:1-2) e nossa adoção como filhos (8:14-17).


É a partir desta hermenêutica, delineada nos vários passos apresentados neste trabalho, que o trecho de Romanos 8:1-5 deve ser interpretado. Teremos, então, uma melhor compreensão daquilo que o apóstolo Paulo chama de "a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo" e de sua importância no caminhar do cristão.

Jorge Pinheiro

São Paulo, 30 de novembro de 1995.


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