mardi 29 décembre 2020

Rascunhos de um pensar secreto

Tenho 75 anos, saudáveis até agora, mas 75 anos nos levam a pensar no trânsito em direção à eternidade. Donde, começou a contagem regressiva. As ideias que atualmente ocupam parte dos meus textos têm dois vetores, o papel da utopia socialista na minha vida e os demônios que infernizaram a minha juventude. Na verdade, penso a vida como uma novela, por isso meus textos tem dois personagens: eu mesmo e a utopia socialista. 
 
Quando falo utopia não estou menosprezando o sonho do socialismo, mas colocando-o num patamar de realização permanente, histórica e transistórica. Ou seja, vejo o caminhar permanente da utopia, sinto o seu cheiro, mas não necessariamente vou vivê-la como desejaria. E os demônios, seguindo Nietzsche, são os pecados da juventude que se tornam virtude na velhice. São os pesadelos que andam sempre ao lado dos sonhos. Nesse sentido, como qualquer texto biográfico, tais textos têm função de exorcismo. Exorcizar fantasmas e demônios e ficar com a utopia geradora de novos sonhos. Assim, penso a novela da vida enquanto uma trilogia esperada. É a minha história e a história da minha utopia, onde tudo o mais é cenário. É biografia, mas também ficção, pois sonhos e demônios devem ser personificados, interferindo na vida do autor e de seu sonho maior.
 
Quando falo da vida enquanto novela, gosto de pensar os anos de 1969 a 1973. Ou seja, minha militância no Movimento Nacionalista Revolucionário, o MNR, criado pelo então ex-governador Leonel Brizola, o primeiro exílio, a militância no Chile de Salvador Allende, a prisão depois do golpe de Pinochet e a condenação ao fuzilamento. Se levarmos em conta que fui para o paredón para ser fuzilado e hoje posso contar isso para vocês, é fácil entender os demônios da minha história.
 
Amo o Brasil. Não o vejo como país, mas como pedaço do sul das Américas, ocupado por diferentes etnias e culturas, que chamo de multiculturas brasilianas. Mas não posso esquecer o papel da França nesta novela. E aqui me lembro de Daniel Cohn-Bendit, um não-francês que marcou duas histórias, a francesa e a minha. Anos atrás, ele pediu às novas gerações para esquecerem o Maio francês. Tenho trabalhado bastante sobre esta questão. E, ao contrário de Cohn-Bendit, não nego a contemporaneidade de 1968. Ao contrário, agradeço  à eternidade por aquele kairós, enquanto esforço de ruptura com uma sociedade arcaica e sem sintonia com o novo que se avizinhava, e de construção de um socialismo democrático e revolucionário. 
 
Chamar o movimento de 68 de rebeldia juvenil é não entender a riqueza criativa do kairós histórico, é negar as lutas que partiram de estudantes e trabalhadores da França em direção aos EUA, Itália e Alemanha, e jogar no lixo as lutas entre o capital e o trabalho, as guerras do Vietnã, Laos, Camboja e as insurreições populares no Chile, Portugal e Nicarágua. Não tenho nostalgia, porque não situo minha ação no passado, mas no presente, enquanto ativista político-social que sou. O Maio francês abriu um novo momento na história do planeta e não se limitou à Europa. Espraiou-se pelo mundo. E minha vida política, quer no Brasil, no Chile, na Argentina e na Europa, esteve correlacionada ao Maio francês. Aprendi desde pequeno que não se cospe no prato em que se come. Cresci em relação à minha militância juvenil, mas isso não significa negar os momentos nobres e poderosos desta mesma militância nos anos 60 e 70.
 
Meu encontro teórico e de vida com o reformador marginal palestino, que é um ato de fé, de forma nenhuma implicou em abandono de minha consciência política. Nós, reformadores radicais, consideramos inalienável a liberdade de consciência e acreditamos que cada pessoa é livre perante à eternidade em todas as questões de consciência. Nesse sentido, sou um utópico: acredito que devo me posicionar a partir de uma ética da responsabilidade social. Isso implica entender o paradoxo da multicultura relacional brasiliana: vivemos num continente onde impera a moral autoritária do senhor, da casa grande e da senzala, e a moral libertária da contracultura – a moral do “não existe pecado do lado de baixo do Equador, vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”, como disse Chico Buarque e Rui Guerra e cantou Ney Matogrosso, em 1979, chocando a classe média puritana da época. Por isso, qualquer atuação no campo social implica compreender esta realidade. Mas, consciente de que as sociedades devem se organizar através de relações democráticas, considero que as comunidades de fé têm como desafio embasar seu compromisso no imperativo proposto por Paulo, o apóstolo dos gentios, na justiça, paz e alegria. 
 
O reformador marginal palestino proclamou o reinar da eternidade, enquanto expansão do espaço-tempo de justiça, paz e alegria. É bem verdade que, muitas vezes, seus herdeiros deixaram de lado a proclamação deste imperativo e aceitaram de joelhos a tutela do príncipe deste mundo. Mas, para lembrar o envolvimento do protesto radical na transformação do mundo, vou me remeter à história da militância na Inglaterra dos séculos dezoito e dezenove. William Wilberforce e William Pitt foram nomes conhecidos na Inglaterra. Amigos desde a universidade, esses dois homens chegaram ao Parlamento no início dos seus vinte anos. Pitt elegeu-se primeiro-ministro e ganhou o apelido de "o jovem", para diferenciá-lo do pai, que também ocupara o cargo. E resolveu implantar um projeto político audacioso: acabar com o tráfico de escravos, liderado pela Inglaterra. Projeto difícil, pois a maioria dos parlamentares estava direta ou indiretamente ligada ao tráfico. Pitt convocou Wilberforce para ajudá-lo na tarefa. E foi assim que dois movimentos marcaram a Inglaterra: a campanha contra a escravidão, que começou em 1789, com um discurso de William Wilberforce na Câmara dos Comuns, e as campanhas pelas reformas trabalhistas, que desembocaram no movimento social cristão. 
 
Em 23 de fevereiro de 1807, o tráfico de escravos foi interrompido graças à intensa militância política de Wilberforce. A partir desse momento, as campanhas abolicionistas foram lideradas por outro ativista, Thomas Fowell Buxton. Ambos, Wilberforce e Buxton, pertenciam a um pequeno grupo protestante surgido na paróquia de Clapham, vilarejo distante oito quilômetros de Londres. Assim, a comunidade de Clapham, aliada a grupos não-conformistas, e através da publicação de folhetos, realização de palestras e mobilizações de rua, foi responsável por algumas das manifestações sociais mais importantes da Inglaterra. Em 25 de julho de 1833, o Ato de Emancipação libertou os escravos em todo o império britânico. 
 
O significado dessa ação repercutiu em todo o mundo, inclusive no Império brasileiro --  estrategicamente ligado à Inglaterra --, através de três intelectuais: Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Luiz Gama. Nabuco, que era diplomata, se inspirou no protesto militante de Wilberforce para organizar o movimento que levou a monarquia brasileira a aprovar a Lei do Ventre Livre. Somada à pressão britânica, a militância de Nabuco contribuiu para determinar a abolição da escravatura, em 1888. 
 
Junto com as campanhas abolicionistas, as reformas trabalhistas mobilizaram outros intelectuais protestantes vindos do anglicanismo, como John Malcolm Ludlow (1821-1891), Charles Kingsley (1819-1875) e Thomas Hughes (1822-1896), que lutaram pelo fim da escravidão, contra o trabalho infantil nas fábricas e pela jornada de dez horas. Essas mobilizações levaram a uma ampla reforma social e ao surgimento do movimento social inglês. Assim, os protestantes radicais deram início ao movimento social inglês. Homens como Ludlow, Kingsley, Maurice e Hughes criaram o socialismo cristão na Inglaterra. O movimento inglês repercutiu com força nos Estados Unidos. E, apesar da visão escravista de muitos protestantes estadunidenses, no norte surgiu um forte movimento contra a escravidão. Seu primeiro grande ativista foi Charles G. Finney, seguido por abolicionistas como Theodore Weld e Lymann Beecher. Um romance marcará a campanha abolicionista e entrará para a história da literatura mundial: A cabana do pai Tomás, de Harriet Stowe.
 
Numa leitura escatológica milenarista, Harriet Stowe considerava que a escravidão não era apenas um pecado do Sul, mas que a culpa era nacional e, por isso, o juízo seria nacional. No livro, atacava a consciência nacional escravista na esperança de que uma purificação da alma dos Estados Unidos livrasse o corpo político da vingança divina. É interessante que o argumento de Wilberforce na Inglaterra, exposto em suas campanhas, sobre a inviolabilidade do conceito de que todos os homens são iguais, foi usado por Abraham Lincoln no ato de 1863, que aboliu a escravidão nos Estados Unidos. Lincoln, cujo mandato se desenrolou em meio à Guerra de Secessão, compartilhava a visão de Wilberforce de que era uma imoralidade possuir outro ser humano e citava o inglês em seus discursos. Com a guerra, veio a vitória do norte e a abolição da escravatura. Finda a escravidão, a discussão sobre a industrialização, os danos humanos, misérias e exclusão que produziam entraram na ordem do dia. Surgiram assim os “protestantes públicos” que, ao contrário dos “privatistas”, falavam de cristianismo social, evangelho social, serviço social. Expoentes desse pensamento foram Washington Gladden, pastor congregacional de Ohio, o escritor Charles Sheldon, que produziu uma obra até hoje famosa, Em Seus Passos Que Faria Jesus? e o pastor batista Walter Rauschenbusch. 
 
Rauschenbusch (1861-1918) era de origem alemã. Levantou a questão do evangelho social, a partir de uma leitura que combinava a responsabilidade social como o socialismo utópico. Defendeu uma democracia econômica e política e propôs uma atuação através dos sindicatos. 
 
“Nossa economia política tem sido por muito tempo o oráculo de um deus falso. Ensinaram-nos a ver as questões econômicas do ponto da vista dos bens e não do homem. Disseram-nos como a riqueza é produzida e dividida e consumida pelo homem, e não como a vida e o desenvolvimento do homem podem melhorar e serem promovidos pela riqueza material. É significativo que a discussão do consumo da riqueza esteja negligenciada na economia política, contudo a questão humana é a mais importante de todas. A teologia deve ser cristocêntrica, mas a economia política deve tornar-se antropocêntrica. O homem é cristianizado quando põe Deus acima de si próprio, a economia política será cristianizada quando colocar o homem acima da riqueza. É isso que uma economia política socialista faz”, afirmou em Christianity and the social crisis. 
 
No mesmo livro, dizia que “nada dará a classe trabalhadora uma compreensão real de seu status de classe e de seu objetivo final do que a luta permanente para conquistar suas reivindicações mínimas e para eliminar as pressões reacionárias contra seus sindicatos. Nós partimos do princípio de que uma organização fraternal da sociedade não terá força se for apoiada apenas por idealistas. Ela (a organização fraternal da sociedade) necessita da sustentação firme da classe trabalhadora, cujo futuro econômico depende do sucesso desse ideal. A classe trabalhadora industrial é, consciente ou inconscientemente, a força para a realização desse princípio. Assim, aqueles que desejam a vitória, desde um ponto de vista religioso, terão que fazer uma aliança com a classe trabalhadora. Mas o princípio protestante da liberdade religiosa e o princípio democrático da liberdade política levam à vitória através da aliança da classe média, que também deseja a conquista do poder, com a classe trabalhadora; dessa maneira, o novo princípio cristão, que busca uma organização fraternal da sociedade, deve aliar-se para a conquista que ambos querem”.
 
Acho que estou em boa companhia, principalmente quando me lembro de Martin Luther King Jr., pastor e um dos maiores ativistas da causa social em todos os tempos.


2.



querida Liz, querido Theo, a descendência é responsável pelo ontem, pelo hoje e pelo amanhã. é na construção da vida, escolhida ou imposta, mas aceita, e na sequência dela, que a descendência se faz comunidade humana. as realidades da terra e do céu são vaidade e correr atrás do vento quando é descartado o papel humano de cada dia. por isso, deve fazer a crítica do clerical e chamar as pessoas à liberdade do espírito, para que pense a vida, que é construída para além das aparências das coisas da terra e do céu. 

as palavras mudam de sentido, e podem dizer coisas diferentes, quando as usamos sobre uma perspectiva diferente. palavras. você já pensou na importância delas? é, sem dúvida, um dos limites da vida. os descendentes devem acreditar que o universo foi feito pela palavra eterna. acreditar que a palavra tem poder, por isso deve ter uma palavra só, cheia de sentido, ou seja, quando você disser sim, que seja sim mesmo, e quando disser não, que seja não. mas a sabedoria nos diz que a vida se faz também por outras palavras. dessa maneira, o ato de criação e o fazer humanos não são iguais porque as palavras são diferentes. 

ah! embora as palavras sejam diferentes, os temas da vida são sempre os mesmos temas: o amor e o desamor, a distância e a saudade, o tino e o desatino. a diferença, porém, é que se faz, sempre, por outras palavras. e tudo muda...

sou grato à eternidade, mas sem pieguices. diga você também muito obrigado porque as contingências da vida não fumegaram o pavio. lá na frente, eu serei o garoto que andava pela ruas sem saber que a vida vai além do meio fio, que há fronteiras. e lá ao longe, mas para mim perto, estará o mar. o veleiro. a liberdade, aprendida com Walter, será negociar com os ventos e a maré. diante das mareações, a marinharia me fará, junto do tio, um menino livre. 

por isso, querida descendência, apresento a leitura humana da convicção e do posicionamento, onde se aprende a degustar prazeres. não se faz às correrias, com sofreguidão. é um ato delicado, um caminhar por palavras, dançando com elas pelo universo em construção.
 
nesse sentido, eu e você, todos somos poemas da eternidade. somos projetos de uma artesã, daí que a poesia e a razão andam juntas. por isso, a paixão aproxima porque é sempre poesia e razão nos diferentes momentos. quero que você, descendência, curta com prazer em cada ser humano as palavras, as outras palavras, que nos trazem diferentes construções e universos.

é, agradeço à eternidade porque fazer leitura virou destino. o menino lá da frente atravessou o tempo, os jeans, as camisetas, os cabelos arrepiados e caiu aqui, do outro lado da vida. tempo de poesia e razão, o garoto de depois olha a plenitude, mas o homem de antes entende que o dó, o ré, e o mi solitários não são importantes, mas sim as notas do meu amigo murá, compositor, e os parabéns e sorrisos que a eternidade montou para você.

e volto às palavras, afirmativas, compostas, decoradas, sussurradas, que se bebem, que reboam, secas, vulgares... a identidade não pode ser definida facilmente, mas isso não significa que essa identidade não exista. aliás, a maioria das identidades não podem ser definidas facilmente. daí que tais identidades são também comunidades imaginadas, unidas por leituras historicamente sem exatidão precisa. os uns não são diferentes dos outros, qualquer etnia e sua identidade não é facilmente definível, pois tais conceitos dependem dos descendentes.

assim, querida descendência, lembre-se: a aparente simplicidade engana. eis uma lição de mestre, traduzir  o humano com simplicidade, sabendo que o simples dá trabalho e, ao contrário do que se pensa, nunca é primeiro, mas processo. e esse é o recado. fazer leitura é descobrir o prazer da palavra curta, na construção muitas vezes trabalhosa que produz aquilo que é poesia. ou seja, fazer leitura é descontrair e na imaginação construir novo, percorrendo se for possível o caminho de todos, de cada humano. e é assim que, sem estardalhaço, a leitura ocupa lugar nos corações, cheia de imagens e significados.

digo à eternidade: obrigado pelo agradável, bom e doce que expressará em letras a liberdade do marujo. e se o ontem é um dia importante, é bom lembrar que o remédio para a enfermidade da segregação de gênero e raça é a construção social da cidadania e da justiça. a via para a liberdade estará numa trilha aberta aos diferentes, comprometida com os direitos humanos, mesmo quando sua identidade pessoal relacione diferenças e contradições.

o sondar daquele menino lá na frente ajuda. o olhar deslumbrado porque a vida será a praça, os jardins e os repuxos brancos no entardecer, as pessoas que comporão o cenário como se tivessem sido colocadas lá pelo arquiteto. e o mar... uai! a humanidade coroa a glória. aceite o prescrito com convicção.






dimanche 13 décembre 2020

Minhas caminhadas filosóficas

De Kant à leitura social do Reino de Deus


Vinha fazendo o percurso de minhas caminhadas filosóficas na cultura ocidental cristã, quando trombo com um grande amigo, filósofo. E como disse para alguns amigos, ele escreve bem, com elegância, mas sabe picar o animal. Resolvi, então, continuar à caminhada, mas dar um passo atrás nas reflexões sobre minhas origens filosóficas para de forma transversal dialogar com este amigo. Por isso, vou voltar a Kant. E se o texto parecer pedagógico vocês me perdoem, afinal o jeitão de professor é difícil de jogar fora.

Nosso amigo Immanuel Kant, filho de pais pietistas, transformou os avanços da astronomia de Copérnico em teoria do conhecimento. A partir de Kant, o conhecimento não está preso aos objetos, mas os objetos acontecem dentro do processo de conhecimento. Na sua época, a filosofia estava dividida entre racionalistas, cuja única fonte de conhecimento é a razão (Descartes), e empiristas, cuja fonte de conhecimento é a experiência -- os ingleses que desencadearam a revolução industrial. A palavra chave na filosofia de Kant será transcendental. Ele disse:

“Chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que de nosso modo de os conhecer, enquanto este deve ser a priori”. 

Transcendente é todo o conhecimento que se ocupa pouco do objeto. O objeto não é a fonte do conhecimento humano, mas está dentro dele. O conhecimento é transcendente em relação ao objeto. Transcendente refere-se aquilo que foi descoberto. Kant vai trabalhar com lógica, matemática e analítica. Traduzindo Mané Kant para o papo do dia-a-dia, podemos dizer que pensar transcendentemente significa mostrar como os objetos percebidos pelos sentidos são transformados mediante a razão em objetos do conhecimento. Por exemplo, ao falarmos mesa, não estamos falando de uma mesa específica, mas de um conhecimento transcendente que inclui todas as mesas. Ou seja, mesa não é apenas uma representação ou reprodução mental de algo que está no exterior, mas uma produção da razão humana. Há uma produção racional na atividade criadora do humano que transforma mesa em conhecimento universal. Quando se fala mesa, nessa transcendência, são mesas de todos os tipos, formas e modelos.

Para Kant, o fundamento do conhecimento humano é a relação sujeito/objeto. Caminha-se através de juízos e imprimem-se categorias aos objetos. Sua abordagem é crítica porque questiona as perspectivas racionalistas e empiristas existentes até aquele momento. Sua teoria do conhecimento parte de quatro perguntas: O que posso conhecer? O que devo fazer? O que posso esperar? Quem é o ser humano?

O que podemos conhecer? Podemos conhecer tudo? Deus? O juízo pode ser analítico ou sintético. É analítico quando o predicado parte do sujeito. Por exemplo: o triângulo tem três ângulos. Diante de qualquer análise está implícito no sujeito, o predicado. O predicado é ângulo e é impossível falar triângulo sem este predicado. É sintético quando o predicado não está implícito. Por exemplo: o calor dilata os corpos. Temos aqui uma síntese. Podemos ter calor e corpos, mas quando dizemos, o calor dilata os corpos, unimos os dois através do conceito de dilatação.

Kant está descobrindo como a cabeça do ser humano funciona, fornecendo maneiras de chegar ao conhecimento comprovável. Ele descarta o racional porque trabalha somente com a razão, esquecendo a realidade da existência de objetos. Descarta o empírico porque só produzindo experiência não se transcende. Qual a importância desses conceitos e dessa epistemologia para a vida humana? 

Em primeiro lugar, Kant nos mostra, sempre partindo da razão, que os juízos analíticos não têm por base a experiência, são independentes e por isso só podem ser pensados. Faz uma crítica aos racionalistas, no sentido que Descartes despreza os objetos. O homem pensa e existe, mas mesmo que não existisse, o mundo existe. O mundo não existe porque o homem pensa. 

Em segundo lugar, os juízos sintéticos baseiam-se na percepção sensível, na experiência. Ou seja, o calor dilata os corpos, mas foi necessário uma experiência para chegar à essa conclusão. Daí, Kant conclui: é impossível fazer ciência a partir de juízos analíticos (a priori). A ciência não pode ser apriorística. Trabalhar apenas com os elementos que a razão pode fornecer produz uma estagnação. Os juízos sintéticos não levam ao conhecimento porque são particulares e contingentes. Não é possível fazer ciência usando só juízos analíticos ou só juízos sintéticos. A ciência, na verdade, é constituída por juízos sintéticos a priori. Kant está tentando resolver o grande problema medieval.

Os juízos sintéticos a priori são aqueles que têm por base a experiência, só que esta é a priori. Ou seja, são universais e necessários aos quais se chega pela intuição evidente. Um exemplo matemático: a linha reta é distância mais curta entre dois pontos. Kant está dizendo que o cientista chega a experiência porque já teve uma intuição antes. Assim, o conhecimento não é fruto nem do sujeito, nem do objeto, mas é a síntese da ação combinada entre os dois. O sujeito dá a forma e o objeto dá a matéria. O conhecimento é resultado de um elemento a priori, o sujeito, e outro a posteriori, o objeto. Ou seja, o conhecimento é uma relação entre sujeito e objeto. 

Para Kant, é impossível haver uma ciência de Deus ou uma ciência das realidades metafísicas. Ele traça como caminho alternativo a razão prática que leva à consciência moral. Ele tira Deus do objeto do conhecimento. Pela razão pura conhece-se o que é, e pela razão prática o que deve ser. Moralmente, é necessário aceitar a existência de Deus. Assim, o que não se pode provar pela razão pura torna-se um postulado da razão prática. Depois de eliminar Deus da ordem do pensamento e da realidade, postula a existência de um Deus justo que fundamenta a relação entre a virtude e a felicidade. A verdadeira religião é a moral. A religião revelada é imposta e servil. Deus é a razão da moral prática. O cristianismo para Kant identifica-se com a consciência, sem necessidade do conceito de Deus. Kant aprofunda o ceticismo aberto por Descartes, que marcará o pensamento moderno e, por extensão a teologia moderna.

Durante a modernidade, a ciência se desenvolveu e produziu frutos impressionantes, mas a teologia do século dezoito ficou estagnada. No século dezenove, os teólogos mergulharam no estudo dos filósofos modernos e foram pesquisar a história antiga de Israel, a arqueologia e a geografia das terras bíblicas, assim como os idiomas originais da bíblia a fim de produzir uma teologia a partir de objetos comprováveis. 

O caminho da História

Ora, não haveria Hegel sem Kant. Foram o cartesianismo e as teorias kantianas, entre as quais seu conceito de transcendência e sua moral, que possibilitaram mais tarde a revolução hegeliana. Hegel, como já vimos, apresentou a história enquanto fenomenologia do Espírito, o que gerou hermenêuticas e novas compreensões da razão de ser do cristianismo. 

Dentro desse processo, podemos citar dois pensadores, que por destacarem o papel da história na construção do cristianismo marcaram a modernidade da filosofia cristã. São eles Albrecht Ritschl (1822-1889) e Ernst Troeltsch (1865-1923). E a partir deles, já no século vinte, Jürgen Moltmann e Wolfhart Pannenberg. Em caminho distinto, mas fundamental para a pesquisa, estão Friedrich Schleiermacher (1768-1834) e Sören Kierkegaard (1813-1855), por destacarem a questão afetiva e existencial na construção da fé. No campo da moderna filosofia batista, dois nomes, por suas expressões práticas na compreensão das questões histórico/sociais e afetivo/existenciais, devem ser citados, Walter Rauschenbush (1861-1918) e Martin Luther King Jr. (1929-1968). 

Fath nos fala da influência do pensamento de Rauschenbush nas comunidades de fé batistas francesas. Segundo ele, estas comunidades, o segundo maior grupo do protestantismo depois da Igreja Reformada, tiveram uma ampla influência sobre o pensamento social cristão francês. E cita exemplos como o do semanário “Solidariedade Social”, dirigido nos anos 1920 e 1930 por Philemon Vincent e Robert Farelly, assim como as iniciativas de Paul Passy, da Universidade de Paris.

“Toda esta atividade permitiu aos batistas franceses imprimir uma marca discreta na vida nacional. Muitos batistas, especialmente na Federação Protestante francesa, estiveram envolvidos nas dificuldades sociais do país e prejudicados pela Primeira Guerra Mundial e pela crise econômica de 1930. Alguns deles, Robert Farelly, Henri Vincent, foram influenciados diretamente por Walter Rauschenbusch, pai do Evangelho social, durante seus estudos no seminário de Rochester, antes da Primeira Guerra Mundial. Como Rauschenbusch e alguns protestantes franceses, Charles Gide, Elie Gounelle, Tommy Fallot, lutaram pelo socialismo cristão. Sua aproximação ao socialismo foi definida por Ernst Troeltsch em seu Soziallehren como uma rejeição da atitude pietista de retirada do mundo”.

E Troeltsch, também citado por Fath, afirma que o movimento dos batistas sociais foi um esforço protestante de volta às características familiares da tendência cristã primitiva. Estas características foram marcadas pela opinião de que as comunidades de fé deveriam promover o Reino de Deus na terra.

Outro teólogo, alemão, Paul Tillich, também fez parte dessa leitura na contramão das dogmáticas oficiais, sem descartar as suas riquezas teológicas. Foi socialista na sua fase alemã. Mas aqui vamos destacar os dois primeiros citados, Ritschl e Troeltsch, por apresentarem as bases para a discussão da questão histórica em relação às teologias da revelação e do Reino de Deus.

Ritschl foi um estudioso do Novo Testamento, da história do cristianismo e da dogmática, em especial de Lutero. Seu argumento de fundo contra os teólogos ortodoxos era de que confundiram a teologia cristã com a metafísica. Rejeitou tanto a base platônica de Agostinho, como as pressuposições aristotélicas de Tomás de Aquino. Por considerar que a ortodoxia protestante tinha abandonado os fundamentos da Reforma e restaurado a metafísica, construiu uma filosofia cristã sem a metafísica. Levantou-se também contra misticismo cristão que, segundo ele, naquele momento se expressava como pietismo. 

Para Ritschl, a religião é fruto da necessidade social que o ser humano tem de Deus. E foi a partir de seu interesse científico pela história que construiu seu pensamento filosófico. Entre 1870 e 1874, publicou sua principal obra, em três volumes: A doutrina cristã da justificação e reconciliação.

“Em toda a religião o que se busca, com a ajuda do poder espiritual sobre-humano ao qual o homem rende culto, é uma solução da condição na qual o homem se encontra por ser por um lado parte da natureza e por outro uma personalidade espiritual que pretende dominar a natureza”.

Assim, a partir de Ritschl há uma concentração da filosofia cristã na pesquisa histórica, o que será importante para o próprio desenvolvimento do conhecimento dos textos escriturísticos. Ou como afirma Mackintosh:

“Devemos concluir, portanto, que Ritschl apenas começara a lutar com o problema sumamente difícil – e especificamente cristão – da revelação e da história em suas relações mútuas. É o problema que mais preocupa a teologia contemporânea”.

Tais pesquisas levaram a constatação de que havia uma religião construída sobre um Jesus ideológico e uma religião de Jesus, que teria como base seu ideal ético, que remetia à questão do Reino de Deus. Este seria o cerne da mensagem cristã, mensagem ética e de vivência do amor. Mas, a dificuldade de Ritschl em ver as reivindicações da justiça como universais, cobrou um preço à política e à teologia em termos da própria integridade da igreja. Talvez este tenha sido seu erro maior, ao contrapor poder sem amor e amor sem poder. Fazendo assim, contrastou o Deus de poder do Antigo Testamento ao Deus de amor do Novo Testamento e no processo descartou o conceito do julgamento de Deus e retribuição. De todas as maneiras, seu aporte à construção de uma filosofia do Reino de Deus foi relevante. 

Ernst Peter Wilhelm Troeltsch seguiu seu mestre, Ritschl, mas podemos dizer que foi mais longe. Trabalhou com um grupo de pesquisa que ficou conhecido como Escola da História das Religiões. Estudou os textos escriturísticos a partir do contexto histórico da época em que foram escritos e não apenas de uma perspectiva dogmática. O cristianismo passava assim, para Troeltsch, a ser uma religiosidade e para compreendê-la era necessário empregar o método histórico.

Em 1897, em Freiburg, fez amizade com Max Weber (1864-1920) e entrou para o seu círculo de amigos e pesquisadores. E as famílias de Troeltsch e Weber tornaram-se tão íntimas, que dividiram a mesma casa. Em 1906, Troeltsch escreveu seu primeiro ensaio histórico, que foi transformado em livro: O significado do protestantismo para a formação do mundo moderno. Nele trabalhou os conceitos de seita e igreja. Disse que as seitas eram grupos informais na organização, igualitários na estrutura e heterodoxos nas crenças. Disse ainda que as seitas tinham tendência a se converterem em igrejas, com suas próprias ortodoxias que, por sua vez, seriam substituídas por novas seitas. Já as igrejas eram organizações conservadoras, adaptadas à estrutura do poder secular. Essas classificações continuaram a ser trabalhadas por Max Weber e Reinhold Niebuhr (1892/1971). 

Assim, através de uma leitura evangélico-social, com fundamentação na análise histórica, Troeltsch pensou os problemas sociais de sua época. E como resultado escreveu As doutrinas sociais das igrejas e grupos cristãos (1912), uma pesquisa de mais de mil páginas em que construiu sua teoria das relações entre o pensamento religioso e o meio político-social. Neste trabalho dialogou criticamente com o marxismo, mas admitiu que Marx colocara uma questão fundamental: será que a formação e dinâmica histórica do cristianismo não fora sociologicamente determinada? Em 1992, escreveu O historismo e seus problemas, onde propôs uma concepção histórica das coisas humanas. 

Para a pesquisa e a construção de uma filosofia hermenêutica que possibilite a compreensão do Reino de Deus e suas correlações com as brasilidades, os filósofos que estamos vendo têm marcada importância. Em especial Troeltsch que trabalhou a relação entre cristianismo e cultura, revelação e história, liberdade e condicionamentos sociais. Para ele, toda produção humana estava submetida ao condicionamento histórico. Nada é atemporal. Tais leituras, aplicadas à filosofia cristã levam a questionamentos de valores. Um deles é que o cristianismo não poderia manter a reivindicação de única universalidade, pois as culturas são a origem das religiões. O cristianismo seria, então, nos dois últimos milênios de paixão, o rosto de Deus na cultura ocidental. 

“Esta experiência é sem dúvida alguma a medida de sua validez, porém, não se esqueça, apenas de sua validez para nós. É o rosto de Deus tal como se revela a nós; é o modo como, sendo como somos, recebemos e reagimos à revelação de Deus. É válida para nós e nos redime. É final e incondicional para nós, visto que não temos outra coisa... Todavia, isso não exclui a possibilidade de que outros grupos raciais, que vivam sob condições culturais totalmente diferentes, possam experimentar seu contato com a vida divina de um modo distinto”.

Por isso, é necessário, para Troeltsch, refazer a pergunta sobre o significado do cristianismo. A filosofia cristã deveria examinar as instâncias levantadas sobre a pretensão do cristianismo à verdade no campo das ciências e da história natural. E buscar uma compreensão do problema referente à essência do cristianismo, à sua posição na história das religiões e o seu lugar na própria existência humana. 

Comentando Troeltsch, meu amigo Mendonça, já falecido, afirmava que o protestantismo de hoje não é mais o de Lutero e Calvino, pois a cultura eclesiástica medieval deu lugar à moderna cultura européia/ americana, conforme conceito utilizado por Troeltsch. O novo protestantismo perdera de vista a idéia de uma total cultura eclesiástica e

“reconheceu como se fossem princípios genuinamente protestantes o fenômeno da crítica histórico-filosófica, a formação de comunidades eclesiásticas livres do estado e a doutrina da revelação baseada na iluminação e convicção pessoal íntima. O velho protestantismo condenava tudo isto como naturalismo, fanatismo ou entusiasmo sectarista”.

As rupturas com a metafísica da ortodoxia protestante, aliadas ao processo de secularização do mundo ocidental, consolidaram a leitura social do cristianismo, que confrontava a fé com o seu ambiente social, econômico e político. Esse cristianismo procurou compreender os desafios da contemporaneidade, e propôs o combate pela realização do Reino de Deus, a reflexão filosófica cristã voltada às questões sociais e a luta contra as injustiças. Assim, quando se fala de Reino de Deus fala-se de leituras filosóficas que procuram analisar a influência do meio social sobre o universo religioso e a formação espiritual do ser humano. E que consideram a espiritualidade afetivo/ existencial e a espiritualidade histórico/ social faces de um mesmo Reino de Deus. As filosofias do Reino de Deus inscrevem-se, dessa maneira, numa perspectiva de correlação e possibilitam uma reflexão que fornece instrumentos teóricos para alimentar as lutas contra a injustiça, para criar novas formas de relações existenciais e sociais e para dar dignidade às pessoas ali onde são excluídos e segregados.





mardi 1 décembre 2020

יופה בן שמטוב

 

יופה בן שמטוב

הרב יופה בן שמטוב

הרב משה חיים לוצאטו, הידוע יותר בשם רמאלל, הזמין אותנו פעם לקיים דיאלוג בין רוחנו לנפשנו. ובדיאלוג זה שואלת הרוח: רצוני להבין את הטקסט של דברים 4.39, האומר: עליכם לדעת בלבכם כי האדון הוא אלוהים. עכשיו, זה עיקרון של אמונה, של אמונה כעמדה. וכשעומדת בפני השאלה, ענתה הנפש: לאן אתה רוצה ללכת? ומכאן ואילך התקיים הדיאלוג, שם הרוח מצאה שעקרונות האמונה תקפים עבורו גם לגבי הכיוון שיש לקחת.

מכאן השכל שאל מהם העקרונות האמיתיים של אמונה. הרוח הגיבה, קיומו של השם, אחדותו, נצחיותו, העובדה שהוא גלום ונפרד מכל גשמיות. ואני מקבל גם את בריאת היקום, את הנבואה, את נבואתו של משה, את אי-שינוי התורה ומקורו האלוהי. כל העקרונות הללו הם חלק מהאמונה ואני מבין אותם ואינני זקוק להסבר. מצד שני, השגחה, עקרון השכר והעונש, בוא המשיח ותחיית המתים ...



dimanche 29 novembre 2020

A carta aos efésios

A carta aos efésios


AUTOR. Paulo, o apóstolo. Veja 1:1.
DATA. Provavelmente escrita em Roma, ano 60-64 d.C.

Éfeso hoje

A região do Mar Egeu é uma das regiões mais belas da Turquia. Longas praias de areia, oliveiras verdes, rochas e pinheirais juntamente com águas cristalinas. O clima é ameno e a brisa marítima refresca os dias mais quentes do verão. Uma das regiões mais bonitas é Marmaris, que foi um local destacado na rota comercial que ligava a Anatolia ao Egito. Os arredores de Marmaris estão cheios de locais históricos.

Marmaris situa-se numa baía rodeada de montanhas, no ponto de encontro entre o Mar Egeu e o Mediterrâneo. A dois dias de viagem está a antiga Éfeso e Pamukkale, onde possivelmente morou Maria, a mãe de Jesus. De Éfeso restam ruínas, a casa de Maria e a basílica de São João As sete igrejas citadas no Apocalipse estavam localizadas em cidades hoje da Turquia.

A carta

A Carta aos efésios "é um hino de adoração proveniente do coração do apóstolo Paulo. Não é um argumento teológico monótono e sim o transbordar de sentimentos ardentes do coração agradecido do apóstolo. No grego esta passagem (1.3-14) constitui uma grande sentença. O espírito de Deus inspirou o apóstolo Paulo a proferir esta profusa adoração ao Deus que o havia salvado”.

A epístola é “um dos mais notáveis escritos do Novo Testamento, tanto pela consistência teológica, quanto pela praticidade”. Sua ênfase concentra-se no:

1. projeto divino da salvação,
2. na natureza da igreja,
3. e no senhorio de Cristo sobre todas as coisas.

A epístola descreve a igreja como sendo o corpo de Cristo. Ele é a cabeça que dá vida e comanda o corpo. Os aspectos da universalidade e unidade da igreja, bem como sua submissão a Cristo -- revelada através de um novo estilo de vida -- , são preponderantes:

1. bênção da eleição Efésios 1,3-4.
2. bênção da adoção Efésios 1,5-6
3. conhecimento de Deus Efésios 1,7-14
4. graça Efésios 1,15-23
5. nova sociedade Efésios 2,1-10
6. universalidade da graça Efésios 2,11-22
7. unidade da igreja Efésios 3,1-13.
8. edificação da igreja Efésios 3,14-21.
9. nova vida Efésios 4,1-6; 4,7-16
10. plenitude do espírito Efésios 4,17-5,14
11. relacionamentos cristãos Efésios 5,15-21 Efésios 5,22-6,9
12. luta espiritual - Efésios 6,10-20.

A carta aos efésios “é portadora de uma boa notícia: o universo inteiro forma um só corpo em Cristo, cabeça de tudo. Essa novidade é celebrada na 'grande bênção' que abre o texto (1,3-14) e que espalha suas raízes, ramos, flores e frutos por todo o texto. Neste texto o aluno vai encontrar uma introdução básica para começar a entender Efésios e um comentário breve a cada trecho, mostrando continuamente a ligação que existe entre o grande hino e as partes menores do texto:"

O ministério de Paulo

Sua primeira visita, At 18:18-21; em sua segunda visita, o Espírito Santo foi dado aos crentes, At 19:2-7; continua seu trabalho com êxito extraordinário, At 19:9-20; seu conflito com os artífices, At 19:23-41; sua palavra aos anciãos efésios, At 20:17-35. Os judeus convertidos nas igrejas primitivas se inclinavam a ser exclusivos e a separar-se de seus irmãos gentios. Esta situação na igreja de Éfeso pode ter motivado o apóstolo a escrever esta carta, cuja idéia fundamental é a unidade cristã.

TEXTO CHAVE, 4:13.
CADEIA CHAVE, mostrar a corrente do pensamento, 1:10; 2:6, 14-22; 4:3-16.
TEMA PRINCIPAL. A unidade da igreja, especialmente entre os crentes judeus e gentios.

Percebe-se esta intenção na ocorrência de certas palavras e frases, como:

(1) As palavras com e juntamente; 1:10; 2:6; 2:22.
(2) A palavra um - um só novo homem; 2:14-15; um só corpo, 2:16; um Espírito, 2:18; uma esperança,4:4; um Senhor, uma fé, um batismo, um Deus e Pai de todos, 4:5-6.

OUTRAS PALAVRAS E FRASES REPETIDAS.

(1) Em Cristo, 1:1,3,6,12,15,20; 2:10,13;3:11;4:21.
(2) Nos lugares celestiais, 1:3,20; 2:6; 3:10.
(3) Riquezas de graça, 1:7;2:7. Riquezas de glória, 1:18; 3:16. Riquezas de Cristo, 3:8.

SINOPSE

PARTE I. A igreja e o plano de salvação. Ao discutir o plano de salvação nas diferentes epístolas. Paulo varia a ênfase. Em Romanos, ele o faz sobre a fé sem as obras; em Gálatas, sobre a fé sem as observâncias cerimoniais; em Efésios, sobre a unidade dos crentes.

Cap. Um.

(1) A saudação, vv. 1-2.
(2) A origem divina da Igreja, vv. 3-6.
(3) O plano de salvação.

(a) Por meio da obra redentora de Cristo, vv. 7-8.
(b) Seu alcance é universal, vv. 9-10.
(c) Garante uma rica herança espiritual, vv. 11-14.
(d) Oração para que os crentes possam ser iluminados quanto às riquezas de suas provisões, vv. 15-23.

Cap. Dois.

(e) O plano prevê uma ressurreição espiritual longe do pecado, e a exaltação do crente aos lugares celestiais vv. 1-6.
(f) Esta exaltação depende inteiramente da graça, e não das obras, vv. 7-10.
(g) Inclui os gentios, que estavam apartados de Deus, mas que foram aproximados por causa do sangue de Cristo, vv. 11-13.
(h) Remove todas as barreiras entre judeus e gentios, e os une em um corpo para habitação do Espírito Santo, vv. 14-22.

Cap. Três.

(i) Os mistérios do propósito divino são revelados a Paulo, e sua designação como apóstolo aos gentios, vv. 1-12.
(j) A segunda oração de Paulo pela plenitude espiritual da igreja e sua iluminação acerca do amor incomparável de Cristo, vv. 14-21.

PARTE II. Aplicação prática. Propósito do plano divino no que se refere à igreja.

Cap. Quatro.

(1) A unidade dos crentes.

(a) No Espírito, 1-3.
(b) As sete unidades mencionadas, vv. 4-6.
(c) A diversidade de dons e a unidade do corpo de Cristo, vv. 7-16.

(2) A vida cristã conseqüente, o andar dos crentes:

(a) Não como os pecadores, vv. 17-21.
(b) Em uma nova vida, abandonado os pecados passados, vv. 22-32.

Cap. Cinco.

(c) Andar em amor e pureza, vv. 1-7.
(d) Andar na luz, vv. 8-14.
(e) Andar com cuidado, cheios do Espírito, vv. 15-21.

(3) A vida no lar.

(a) Deveres dos esposos e das esposas, vv. 22-23.

Cap. Seis.

(b) Deveres dos filhos, dos pais, dos servos, e dos senhores, vv. 1-9.

(4) A luta espiritual.

(a) A fonte de fortaleza, v. 10.
(b) A armadura e os inimigos, vv. 11-18.

(5) Palavras finais e bênção, vv. 19-24.

SELEÇÕES ESCOLHIDAS

Orações de Paulo pela igreja, 1:16-23; 3:14-21.
A unidade cristã, 4:3-16.
A armadura espiritual, 6:10-17.






A carta de Judas

מכתבו של יהודה אחיו של ישו


Esta carta foi escrita por Judas, servo de Jesus Cristo, e irmão de Tiago, chamado de “irmão do Senhor”. Judas é citado entre os irmãos de Jesus em Marcos 6.3 e Mateus 13.55. A carta, possivelmente, foi escrita durante o reinado de Domiciano, entre os anos 80 e 90 depois de Cristo.

O objetivo principal da carta foi alertar os cristãos e chamá-los a combater os falsos ensinos dos mestres gnósticos (Judas 3-16;17-19,22-23), que se infiltravam nas comunidades cristãs. Eram arrogantes e afirmavam serem mais espirituais do que os outros irmãos e irmãs, porém, na realidade, eram mundanos. Segundo Judas, se desviaram da graça de Deus e negavam a Jesus Cristo como Senhor.

Judas explica que o pecado dessas pessoas era a permissividade e os atos imorais. Diziam que por terem sido salvas pela graça de Deus podiam continuar pecando.

Outro aspecto desses falsos mestres era a questão da perseverança na fé (Judas 20 e 21). Confrontando a infiltração de tais doutrinas heréticas na comunidade, Judas ressaltava a importância da fé e da oração, como base para a perfeita edificação, mantendo-se, assim, firmes no amor e na misericórdia de Deus. Quanto a natureza de Deus e Jesus, Judas, coloca em pé de igualdade as duas pessoas da trindade, dando maior ênfase ao título “Deus”, sendo que a glória lhe é atribuída por intermédio de Jesus Cristo. Judas também nos fala que os crentes possuem o Espírito (Jd 19), ao contrário dos pecadores, que não o possuem. Ele faz uma divisão radical entre os santos e os pecadores, que depois são chamados de ímpios (Jd 4.15) e já se encontram condenados segundo suas transgressões, como aconteceu a Sodoma e Gomorra.

Judas considera a salvação como posse dos santos, também descritos como chamados, que têm como qualidade maior, a sua fé. Para ele, o objetivo principal dos crentes é apresentar-se aprovado e sem mancha diante de Deus. Segundo Judas, a igreja está vivendo os últimos dias, e a profecia está sendo cumprida (Jd 18).

Assim, a carta de Judas, é dirigida aos amados por Deus Pai e guardados em Jesus Cristo, por meio da fé e da perseverança.





dimanche 22 novembre 2020

Ser grato

A gratidão em nossa vida

Pr. Jorge Pinheiro


Regozijai-vos sempre. Orai sem cessar. Em tudo dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco”. 1 Tessalonicenses 5:16-18.


Introdução


Em nosso comportamento adulto, a gratidão não é comum, ao contrário das crianças pequenas que se maravilham com tudo. Como podemos nos deixar encher de gratidão?


Segundo o teólogo Pascal Ide, “a gratidão é poderosa porque, de todas as ações, é a que mais transforma o fundo do nosso coração. Se a psicologia prova que a gratidão está na raiz do nosso bem-estar, a teologia e a filosofia a explicam mostrando que ela nos toca e nos transforma no mais íntimo do nosso ser” (Puissance de la gratitude : Vers la vraie joie, Paris, L'Emmanuel, 2017}.


Mas precisamos viver a gratidão. Devemos nos deixar transformar por ela. Precisamos construir este caminho que nos leva a viver a cada dia a gratidão e assim caminhar passo a passo com Jesus.


Gratidão é reconhecimento


Não estejais inquietos por coisa alguma; antes, as vossas petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus, pela oração e súplicas, com ação de graças. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus”. Filipenses 4:6-7.


Gratidão é reconhecimento, é sentir, é agradecimento, atos e posturas que nascem por saber que o Deus criador age a favor daqueles que Ele ama. Em português a palavra gratidão vem do latim gratus, agradecido, teologicamente dizemos que deriva de gratia, que significa graça. Assim, diante de Deus reconheço, sinto, agradeço por suas bênçãos.


Este é o primeiro passo, reconhecer o quanto somos abençoados. Sentimos uma emoção profunda e, como consequência expressamos verbalmente nossa gratidão. Deixamos de reclamar da vida, expressamos nossa gratidão através de nossas ações.


No grego, gratidão é ευχαριστια (eucharistia) e significa ações de graça; é ευχαριστεω (eucharisteo) ser grato, agradecer; e é ευχαριστος (eucharistos), agradecido. A palavra grega ευχαριστια deriva da raiz χαρ / char, que expressa o sentimento de alegria. É um derivado de charis, graça. 


A apóstolo Paulo, em suas cartas, menciona a graça e o louvor pelos dons da graça, pelo aumento da graça (2 Co 4.15), pela participação “na herança dos santos na luz” (Cl 1:12), pelo recebimento da palavra pregada (1 Ts 2.13), pelo dom de línguas (1 Co 14.18). E pelas coletas recebidas, que levariam crentes a apresentar ações de graças (2 Co 9.11-12).


A palavra gratidão em hebraico é todah. Ela significa ação de graças. É um termo que se repete cerca de 30 vezes no Antigo Testamento. Todah é utilizada para expressar a atitude de reconhecimento.


Segundo Strong, todah pode expressar reverência e reconhecimento. Pode ser traduzida como dar graças, ação de graças, dar louvor a Deus, ou até hino de louvor e confissão. Também pode se referir a algo a ser dado como oferta de gratidão ou sacrifício de ação de graças.


Gratidão é sentir uma alegria imensa


Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo”. 1 Coríntios 15:57


O caminho da gratidão consiste em reconhecer, sentir, agradecer. Se quisermos crescer no caminho da gratidão devemos reconhecer a cada dia, sentir a cada dia, agradecer a cada dia.


Reconheça a graça: se maravilhe com a beleza de uma paisagem, de um acontecimento que deu certo, de uma graça que Deus lhe deu. Visualize os detalhes da graça: o que foi? onde foi? em quais circunstâncias? quem estava presente? Reconhecer é um ato da inteligência, usamos a cabeça para isso.


Mas sinta também a emoção que essa bênção despertou em você. Pode ser maravilha, gratidão, alegria. Neste segundo momento do caminho o seu coração foi tocado.


Agradecer por essa graça nos leva a agir, nos leva a agradecer pessoas, culmina com o louvor ao Senhor. O ato de agradecer está ligado à vontade. E se nós agradecêssemos ao Deus criador por todas as alegrias que Ele nos dá, muito dificilmente haveria tempo para reclamar.


Sim, gratidão é agradecer com ações


Porque dele, e por ele, e para ele são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém!” Romanos 11.36


Sempre devemos, irmãos, dar graças a Deus por vós, como é de razão, porque a vossa fé cresce muitíssimo, e o amor de cada um de vós aumenta de uns para com os outros”. 2 Tessalonicenses 1.3.


E a paz de Deus, para a qual também fostes chamados em um corpo, domine em vossos corações; e sede agradecidos”. Colossenses 3.15.


Amém

Montpellier, 12 de novembro de 2020

Jorge Pinheiro, pastor e missionário da Cruz Huguenote na França





samedi 21 novembre 2020

Brasil, povos negros e história

A Terra é sempre a tua negra algema

 

Tu és o louco da imortal loucura,/ o louco da loucura mais suprema./ A Terra é sempre a tua negra algema,/ prende-te nela a extrema Desventura./ Mas essa mesma algema de amargura,/ Mas essa mesma Desventura extrema/ Faz que tu'alma suplicando gema/ E rebente em estrelas de ternura. (“O assinalado”, Cruz e Souza, primeira e segunda estrofes).

 

Ao percorrer os caminhos das brasilidades ao longo dos últimos três séculos encontramos as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam urgentes hoje tanto quanto em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do protestantismo evangélico no Brasil, que, no correr das últimas décadas, parece ter crescido muito, mas pouco tem feito em relação aos excluídos. Embora o princípio da liberdade religiosa tenha sido parte integrante da fé dos primeiros batistas ingleses e a luta pela liberdade vista como um direito humano, é importante lembrar que o protestantismo histórico brasileiro, herdeiro das tradições sulistas norte-americanas, se não foi abertamente escravista, foi condescendente e omitiu-se diante da exclusão forçada dos negros africanos seqüestrados para o Brasil e seus descendentes, os afrobrasileiros. E a história batista no Brasil confirma isso.

 

A denominação Batista foi atingida pelo divisionismo ocasionado pelas atitudes frente à escravidão. Em 1845, os batistas norte-americanos separavam-se conforme o posicionamento contra a escravidão. Organizou-se a Convenção Batista do Sul para abrigar as igrejas que admitiam o trabalho escravo, representando delegações de oito estados do sul escravista. Foi a Convenção Batista do Sul dos EUA que estabeleceu a Denominação Batista em solo brasileiro. A guerra de Secessão, na década de 1860, demonstrou a divisão vigente na sociedade e no protestantismo estadunidense. 

 

"Nos Estados Livres, a ascensão dos evangélicos de mentalidade reformista tinha dado um novo sentido de direção e de propósito moral a uma classe média ascendente tentando se adaptar a uma nova economia de mercado. O Sul com seus degredados trabalhadores cativos e seus brancos pobres e preguiçosos - parecia estar, para a maioria dos nortistas, num processo de violação flagrante da ética trabalhista protestante e do ideal da concorrência aberta". 

 

Após a derrota do sul dos Estados Unidos, muitos confederados, inclusive ex-combatentes, vieram tentar a sorte no Brasil, especialmente em São Paulo. A relação entre o protestantismo e a vida política, para os agentes da imigração norte-americana para o Brasil, era olhada de maneira estreita. Parte deles, pastores protestantes, a exemplo do reverendo B. Dunn, via o país como uma nova Canaã onde os confederados derrotados poderiam reconstruir suas vidas, seus lares e suas propriedades, incluindo a mão-de-obra escrava. Em seu livro Brazil, The Home for Southieners, Dunn apresentou o país dessa maneira, o que ajudou os sulistas olharem o Brasil como uma alternativa segura. O médico M. F. Gaston, por exemplo, veterano do Exército Confederado e originário da Carolina do Sul, que escreveu Hunting a Home in Brazil, fez no livro um relato minucioso das vantagens que os sulistas encontrariam aqui. O sudeste brasileiro, com terras quase virgens, era apresentado como possibilidade para bons empreendimentos. Ele disse, após ter visitado as terras da região de Campinas, que “as vantagens para o cultivo do algodão nessa região dão-lhe primazia sobre a parte meridional dos Estados Unidos. O elemento adicional do trabalho escravo está aqui apto a trazer resultados que não podem ser assegurados pelo trabalho assalariado nos Estados Sulistas; e tão logo os negros se tenham familiarizado com o modo adequado de trabalhar o algodão, poderemos antecipar uma produção excedendo a qualquer uma que já tenha sido realizada nos Estados Unidos”. 

 

A propaganda desses agentes da imigração surtiu efeito: cerca de dois mil e quinhentos sulistas se deslocaram para São Paulo. A esperança de encontrar terras em abundância com mão-de-obra escrava mobilizou famílias inteiras. E assim chegaram as primeiras famílias batistas à colônia de Santa Bárbara D’Oeste. Porém, nem todos os batistas aqui chegados eram favoráveis à escravidão. Na verdade, os batistas tiveram duas atitudes frente à ela: os primeiros colonos eram favoráveis e foram proprietários de escravos. Já os missionários e os batistas brasileiros em geral, após a abolição, em 1888, condenaram o escravismo como incompatível com a fé cristã. Essas diferentes atitudes demonstram as dificuldades que tinham para tratar do assunto. Em Santa Bárbara D’Oeste, primeiro núcleo batista, o trabalho escravo existiu como mão-de-obra usada na agricultura e em tarefas domésticas. Os colonos batistas eram senhores de escravos, a exemplo da senhora Ellis, dona de um sítio e que providenciara hospedagem nos primeiros meses ao casal de missionários W. Bagby, fundador da Primeira Igreja Batista do Brasil. Conforme o diário da senhora Bagby, “depois de dormir uma noite na capital paulista, os missionários tomaram o trem para Santa Bárbara, onde chegaram sob forte aguaceiro. Na estação os aguardavam os enviados da senhora Ellis, com dois cavalos e um escravo, para carregar a bagagem. A estrada até o sítio estava bem lamacenta mas ao chegar, foram carinhosamente recebidos”.

 

Conforme conta Crabtree, a Junta de Richmond, nos EUA, ao avaliar, em 1859, as possibilidades de envio de missionários para o Brasil, admitiu que havia similaridades entre os dois países e uma vantagem que deixaria os missionários norte-americanos bem aclimatados em terras brasileiras, o fato de, em ambos os países, haver escravidão: “o Brasil era como os Estados Unidos, tinha escravos e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país”. 

 

E o missiólogo batista Donaldo Price confirma as razões de tal escolha: Os primeiros batistas que aqui chegaram, chegaram como imigrantes, não como missionários. Chegaram depois da derrota sulista na guerra entre os estados, ou a guerra civil norte americana. E queriam vir para uma nação que ainda tivesse escravatura, assim escolheram o Brasil.

 

Passados quase cento e vinte anos do decreto que reconheceu o direito do povo negro à liberdade, a ideologia do ocultamento ainda se faz presente no pensamento protestante. Assim, Oliveira constata que “os negros nas denominações evangélicas são colocados no devido lugar da animação da comunidade de fé, onde seus dons e talentos são usados para a motivação dos cultos e das celebrações, mas poucos negros ocupam os cargos de liderança e as comissões de ponta das matrizes. Essa constatação pode provocar uma discussão interessante e, ao mesmo tempo, levantar a seguinte questão: a divisão já não está presente no universo evangélico nacional? Os negros têm, de fato, os mesmo direitos que os brancos na Igreja brasileira? 

 

4.3. Leituras das culturalidades

 

Para se compreender a cultura afrobrasileira é importante entender a religiosidade africana dos orixás. Apesar, de sua diversidade regional, a matriz africana da religião dos orixás traduz, em seu conjunto, a cultura da família clânica, originária de um mesmo antepassado, que engloba vivos e mortos. 

 

O orixá é o ancestral divinizado, que em vida estabeleceu vínculos que lhe garantiram controle sobre determinadas forças da natureza. O poder desse ancestral, após sua morte, pode encarnar, por um curto período, em um de seus descendentes através de possessão provocada. É interessante notar que a morte desses antepassados não acontecia de forma natural, mas em meio a acontecimentos que envolviam paixão ou ira.

 

Nesse momento de crise emocional provocado por cólera e outros sentimentos violentos, sofriam metamorfoses, seus corpos eram consumidos pela paixão, restando deles apenas o poder. Mas, para que esse poder pudesse ser apropriado por seus descendentes, era necessário que membros da família enterrassem um vaso no chão, com cerca de três quartos de sua altura. Nesse vaso recolheriam o poder do orixá, que passaria a receber oferendas e o sangue de holocaustos. Esse culto unia homens e mulheres ao orixá, e suas emanações eram representadas por uma pedra, um seixo de rio ou por símbolos como ferramentas ou arco e flechas. Assim, o poder do orixá só se tornava perceptível através da incorporação, o que possibilitava ao orixá voltar à terra para receber provas de respeito dos que o evocavam. 

 

Nos cultos ao ancestral, ao incorporar-se o orixá recebia sua personalidade de volta com qualidades e defeitos, gostos, tendências, caráter agradável ou agressivo. Durante as cerimônias, os orixás dançavam com seus descendentes, ouviam suas queixas, resolviam desavenças e consolavam seus infortúnios. Dessa maneira, o mundo dos orixás não estava distante do fiel, nem era superior. 

 

Em religiosidades na África, os orixás estavam ligados às comunidades e às nações e os cultos eram regionais e mesmo nacionais. Os cultos eram assegurados pelos sacerdotes, e os demais membros da família ou comunidade não tinham outros deveres senão o de contribuir com a manutenção e custeio do culto, podendo participar nos cantos, danças e festas que acompanhavam as celebrações. Deviam, porém, respeitar as proibições alimentares e outras ligadas ao culto do seu orixá. 

 

Com o tráfico de escravos, os orixás foram trazidos para o Brasil com seus descendentes e permaneceram ligados às famílias que vieram para cá ou aqui se formaram. E os sacerdotes dos orixás passaram a manter o culto para essas famílias e comunidades.

 

Hoje, embora os não afrodescendentes não possam reivindicar laços de sangue com os orixás, podem existir afinidades que favorecem o culto. Afrodescendentes e não afrodescendentes, para os sacerdotes dos cultos aos orixás, têm arquétipos comuns, como a virilidade, feminilidade, sensualidade, independência ou desejo de expiação, que correspondem àquele de um orixá. E, assim, essa religiosidade ancestral passou a ocupar seu espaço nos terreiros e comunidades de descendência negra, marcando presença definitiva na multiculturalidade brasileira.

 

Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora da formação histórica e do papel da africanidade no Brasil. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária.

 

Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão do passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim; porém, como representantes de comunidades de fé, os protestantes, raramente reconheceram essa dívida intelectual, cultural e social. O autoritarismo tão típico da elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses trezentos e setenta anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. Assim, a escravidão gerou miséria e exclusão.

 

Devemos entender que nossas culturas são relacionais, o que significa que as relações entre as classes aparecem de forma difusa, sobre a base de relações sociais aparentemente pouco intervencionistas diante de uma sociedade civil incipiente, onde a interação entre o público e o privado se figura flexível e amorfa. Por isso, nessas culturas, as relações dentro das classes e, muitas vezes, entre elas se mostram mais gratificantes do que os motivos e fins que deram origem a essas relações. Em nossas culturas relacionais, os códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se podem esquecer as pressões globalizadoras. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripaliumtripalium dá origem à palavra trabalho. É um instrumento de três piquetes usado para fixar animais quando se pretendia fazer intervenções veterinárias ou marcá-los a ferro. Foi utilizado pelos romanos, depois na Idade Média e posteriormente importado pelos colonizadores portugueses. Era utilizado nas fazendas brasileiras para conter os escravos quando castigados ou marcados a fogo. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, no século dezoito, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica. Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque estes acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. E era um paraíso para os mulatos porque estes, já livres da escravidão, podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado.

 

Assim, o paraíso aqui é definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, serão estes homens e mulheres mestiços que aqui romperão a dualidade cultural, tão típica das comunidades protestantes e calvinistas da outra América, que opunham bem e mal, deus e diabo. 

 

A expressão mulato, racista e colonialista, levou à expressão pardo, que foi adotada oficialmente no censo do ano de 1872 com o intuito de contabilizar de forma separada os negros cativos, não importando se africanos ou descendentes, dos negros nascidos livres ou alforriados, não importando se negros ou descendentes. E assim o termo entrou para a linguagem oficial, associada à identidade mestiça, mas não necessariamente associada à afrodescendência. 

 

Tal classificação, que por sua origem racista e colonial, gerou descontentamento entre os brasileiros descendentes de negros africanos, foi abandonada em nosso trabalho, assim como a expressão mulato/a. Optamos pelas expressões afrobrasileiro/a e afrodescendente por serem estes conceitos não depreciativos, sugeridos pelos estudiosos negros e por apresentarem estes concidadãos como brasileiros-de-origem-africana.

 

Assim, com a construção da multicultura afrobrasileira e com os afrodescendentes dá-se momentos de sínteses que traduzem culturas relacionais. Ótimo exemplo é Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante burguesa, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude.

 

Manzatto analisa a antropologia dos personagens amadianos. Para ele, Jorge Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese magistral das identidades do brasileiro, extrapolando os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases das culturas relacionais brasilíndias e afrobrasileiras, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro. As culturas relacionais escondem a injustiça social e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por matrizes culturais: brancos, índios e negros, o que filtrado pelas culturas relacionais leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram indígenas e escravizaram negros. Mas dessa maceração de povos, etnias, cores e culturas surgiram as brasilidades presentes em cada canto deste país, com riquezas particulares, diversidades que formam a multiculturalidade brasileira.  

 

Lévi-Strauss em O cru e o cozido nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Lévi-Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Assim, através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelos indígenas sul-americanos. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a multicultura relacional brasileira. No Brasil há códigos relacionais que traduzem equivalência entre comida e sexualidade, que têm como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para cru e cozido, que relaciona alimento, comida e sexo. Para a multicultura brasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como conseqüência, quem come tem o controle. O alimento cru por excelência é a salada, algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida que é bem cozida, como papa ou pirão. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, uma das sínteses das brasilidades. Herdeiros que somos das culturas das várias comunidades indígenas e de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na multicultura brasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. Por isso, para Amado, mulher é dona Flor, moquequeira, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela.

 

Na multicultura relacional brasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço. E a festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras, mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira, onde todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. Ou como canta Ney Matogrosso: 

 

Não existe pecado do lado de baixo do Equador/ vamos fazer um pecado rasgado/ suado/ a todo vapor/ me deixa ser teu escracho/ capacho/ teu cacho/ diacho/ riacho de amor/ Vê se me usa/ abusa/ lambuza/ que a tua cafusa não pode esperar/ quando a lição é de escracho/ olha aí/ sai de baixo/ que eu sou professor/ deixa a tristeza pra lá/ vem comer/ vem jantar/ sarapatel/ caruru/ tucupi/ tacacá/ vê se me esgota/ me bota na mesa/ que a tua holandesa não pode esperar/ deixa a tristeza pra lá/ vem comer/ vem jantar/ sarapatel/ caruru/ tucupi/ tacacá”. 

Esses códigos das brasilidades caminham ao lado da questão racial. A solução relacional para a injustiça social foi a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre as culturas latinas, as culturas indígenas e as culturas negras não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma diversidade de sínteses, à multicultura popular brasileira. Essa multicultura mestiça é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da multicultura relacional brasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não são formas multiculturais fixas, mas vão-se modificando conforme se vai vivendo. Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do brasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída e os elementos externos e as pressões mais novas, isto é, globalizadoras vão sendo deglutidas e vividas no hoje que se vive.

 

O concreto e imediato da vida do brasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do brasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza. É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o brasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade. E as religiosidades brasilíndias e afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, são mais do que

 

“um simples mecanismo de adaptação de migrantes pobres ao meio urbano, uma religião como a Umbanda, que tem crescido não somente entre as classes baixas, mas também entre as médias, deve ser vista como uma síncrese das tradições afrobrasileiras e espíritas. É por isso que a verdadeira chave da compreensão da Umbanda reside na própria sociedade brasileira, já que essa religião é fruto de transformações sociais e econômicas que ocorreram no país”, 

 

e são traduções antropológicas da multiculturalidade brasileira, inclusive de seus códigos relacionais. Dessa maneira,

 

“a adesão das massas urbanas à umbanda e ao pentecostalismo são freqüentemente explicados em termos de exposição às relações de produção nas cidades. Assim, as pessoas que não podem recorrer aos relacionamentos familiares existentes no campo entre camponês ou trabalhador rural e seu patrão (os quais embora extremamente exploradores pelo menos propiciam um tipo mais pessoal de contato e algum tipo de ‘proteção’) buscariam substitutos em cidades onde as relações capitalistas de trabalho deixam menos margem para contatos pessoais e nos quais os empregadores não têm obrigações morais em relação aos seus empregados. Pentecostalismo e umbanda são religiões de massa importantes no Brasil. Para certos setores da população elas têm funções sociais e psicológicas significantes”.

 

Dessa maneira, tanto o ideal de liberdade como outras características do brasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o brasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o brasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a multicultura popular reflete, é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua religiosidade é sempre coletiva. E sua espiritualidade tem um forte matiz comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o brasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na multicultura brasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o brasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos.

 

Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no brasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O brasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem. Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Brasilíndio ou afrobrasileiro, não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e mundializada. Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o brasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do brasileiro. A dificuldade em globalizar o brasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e risco. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. Nesse sentido, quer viver a cada dia um novo sonho. E como para ele ficção e realidade se entrelaçam, sua maior construção é o carnaval, já que gira ao redor da festa e do prazer. Comida e sexo, futebol e carnaval surgem, então, como expressões maiores da possibilidade da utopia.

 

4.4. As brasilidades e o princípio protestante

 

A ideologia do ocultamento presente na sociedade brasileira, a que nos referimos anteriormente, deve ser entendida como aquele conjunto de idéias, modos de vida e relacionamentos construídos pela cultura relacional brasileira, que disfarça e dissimula o choque das etnias formadoras da multiculturalidade brasileira, quer através da permissividade sexual, quer através da permanência do autoritarismo patriarcal herdado do colonialismo português. Índios, brancos e negros foram culturalmente levados a ignorar a origem dos interesses inerentes às relações econômicas do modo capitalista colonial, escravagista, terminando por construir maneiras de viver que ocultaram a violência da escravidão e, em conseqüência, as dominações de gênero, de classe e étnica.

 

Em razão da ideologia do ocultamento, é necessário entender que as bandeiras emancipatórias são indissociáveis da pregação das boas novas, e precisam ser vividas como tradução do cristianismo. Assim, ética cristã e democracia não podem ser olhadas como excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vivenciadas nas comunidades de fé e além-muros, se desejamos fazer com que o significado histórico do projeto protestante marque presença no futuro.

 

A partir dos clamores éticos da profecia bíblica, lida através da cosmovisão luterana da Reforma protestante, Tillich apresentou uma compreensão da práxis cristã que ele chamou de princípio protestante. Assim, o princípio central do protestantismo seria a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em conseqüência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Conseqüentemente, a autonomia profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada protestante tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os profetas existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes a decisão será sempre pessoal.

 

Tal protestantismo entendido como expressão crítica e autônoma existe onde quer que se proclame o poder da essencialização do ser e onde se denuncie situações-limite que ameacem o sentido da vida. É aí que se encontra o protestantismo e em nenhum outro lugar. É possível que o protestantismo sobreviva nas religiões organizadas, mas não depende delas, talvez por isso a maioria das pessoas experimente o sentido da situação-limite fora das comunidades de fé, já que o princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio secular, sem qualquer filiação eclesiástica, assim como por pessoas e grupos que por meio de símbolos protestantes expressam a situação humana em face do incondicional. Se nessas situações proclama-se com mais autoridade o princípio protestante do que nas comunidades de fé, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna vivo e atual. Tomando-se por base tal compreensão, entendemos a luta histórica dos povos indígenas e negros e de seus descendentes no Brasil como um clamor permanente contra as situações-limites a que estiveram e estão expostos. 

 

A chamada a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da herança de exclusão deveria levar a Igreja protestante a elaborar uma mensagem para as brasilidades. Mensagem de esperança. Mas a igreja que não aprendeu a protestar é sempre tentada a emancipar os povos indígenas e negros e seus descendentes através da submissão à hierarquia e à tradição, esquecendo-se que eles já experimentaram a autonomia e que esta é uma experiência transformadora.

 

O conceito de situação-limite traduz aquela ameaça a tudo que dá sentido final à existência, e este é o diferencial do protestantismo. Esta expressão, como vimos, nasceu em torno da justificação pela graça, através fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de se realizar a justiça e construir a solidariedade. Assim, o reconhecimento da existência da situação-limite traduz-se em juízo e transformação, realça a diferença entre a religiosidade que faz a defesa da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite. Por isso, sem uma relação universal com o mundo ético a noção de autonomia da pessoa não basta para construir uma ética. Ou seja, não se funda uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta da essência, fonte da ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como conseqüência toda ética real são concretas. Essa essência se situa naquele momento especial, pleno de liberdade e que revoluciona conceitos, ações e destinos. A universalidade desse tempo de kairós comporta riscos concretos, já que não se move num universal abstrato, separado da situação atual, o que é válido tanto para a pessoa, quanto para a consciência ética de um grupo social, no caso da brasilidade em sua relação com afrobrasileiros e brasilíndios. Exatamente por isso, toda realidade essencial comporta dois aspectos, aquele que a traz de volta à origem, ao fundamento de todo ser, e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude.

 

Assim, a realização da essência da brasilidade, em sua relação com brasilíndios e afrobrasileiros, deve se orientar em direção a essas multiculturalidades, na medida em que essas manifestações de suas origens criativas remetem ao que é perene nelas. Exprime o que lhes é próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, uma ética da brasilidade deve transportar ao transcendente e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo da existência concreta. Ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência da brasilidade nos posicionamos por uma ética da vida. E tal compreensão leva-nos a estudar o desenvolvimento criativo desta essência brasileira enquanto vida que irrompe na história, criadora de um novo ser.

 

E a partir daí podemos afirmar que a experiência do cristianismo protestante em sua essência pode ser uma experiência transcendente ao nível da materialidade brasilíndia e afrobrasileira, uma experiência que deve acontecer em todas as situações. Nesse sentido, tal protestantismo não poderia ser identificado com um tipo determinado de organização social, mas ser portador de poder e oferecer aos brasilíndios e afrobrasileiros uma mensagem de vida, tanto para a pessoa como particularidade, como para as comunidades como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo, protestantismo, evangelicalismo que se fecha na pura interioridade. Mas também não se pode dizer que o cristianismo do princípio protestante é um movimento que parte mecanicamente da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais brasilíndias e afrobrasileiras ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele toma forma a partir delas, mas também dá forma às expressões culturais brasilíndias e afrobrasileiras. Dessa maneira, tal cristianismo do princípio protestante está interpenetrado pela consciência, experiência estética, ética e pelos modelos sociais da multiculturalidade brasileira. 

 

O princípio protestante, ao fundamentar-se numa ética do amor-companheiro, daquele que parte e reparte o pão, tem uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. Nesse sentido, clama pela necessidade de uma ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. Esta ética do amor propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo e das conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Tais pecados sociais são limitações do bem, porque impedem a universalização do amor: é alienação da vontade, porque degrada a possibilidade de escolha dos agentes morais; é dependência do mal, porque aprofunda raízes e escraviza a comunidade. Diante disso o princípio protestante propõe que se enfrentem tais pecados com a autonomia crítica; a solidariedade e a transformação social, por acreditar que esses posicionamentos políticos geram justiça, participação solidária e paz.

 

Ora, se rupturas espirituais estão sempre associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica, o fracionamento espiritual característico da contemporaneidade traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. Tal situação nos exorta a buscar a construção de um novo processo multicultural de unidade de onde brote solidariedade social e econômica, mas também espiritual. Ora, se é viável sonhar e lutar por processos de desenvolvimento que combinem mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais, podemos afirmar que o protestantismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha, ou participa do processo, atuando a favor desse desenvolvimento ou entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades brasilíndias e afrobrasileiras nas quais está inserido.

 

Seja qual for a opinião ética sobre a relação protestantismo e multiculturalidade, um fato deve ser ressaltado: é necessário para o protestantismo manter um relacionamento com as pessoalidades, comunidades e as culturas brasilíndias e afrobrasileiras, já que a rejeição das culturas em nome de um protestantismo sem raízes contradiz a universalidade do cristianismo. E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com as culturas, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeira: podem brasilíndios e afrobrasileiros ter um relacionamento construtivo com o protestantismo? Para muitos, a tradição histórica de ausência e negação de índios e negros nega a possibilidade dessa aproximação, mas devemos ver que tal concepção mais que nada traduz uma relação de causalidade ideológica. Por isso, as pessoalidades, comunidades e as multiculturas brasileiras estão desafiadas a construir atitudes diferentes em relação ao princípio protestante e em relação às estruturas ideológicas do protestantismo. A história do protestantismo no passado e no presente é passível de muitas críticas. Suas opções fizeram como que dificultasse seu relacionamento com parte da população brasileira excluída de bens e possibilidades. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que a ideologia branca do protestantismo de missões seja um fenômeno constitutivo do protestantismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa.

 

Embora, haja razões históricas para criticar o protestantismo, erramos quando negamos a existência da base solidária do ideal cristão. Quer dizer, há setores do movimento de resistência dos povos indígenas e negros que olham com desconfiança o protestantismo. Mas, se as idéias de emancipação desses povos não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, ao cristianismo que vive o princípio protestante, aos cristãos cabe ter uma atitude solidária e fraterna com as reivindicações e lutas de brasilíndios e afrobrasileiros. Atitude solidária e fraterna deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos da exclusão racial e social e de ações para a construção de uma outra ordem que inclua excluídos e desapropriados de direitos e bens. Isto porque o princípio protestante só existe como ideal ético quando traduz anseios e esperanças dos mais variados setores das comunidades.

 

Um pensamento protestante que parta da realidade da multicultura relacional brasileira não pode desrespeitar a brasilíndios e afrobrasileiros. Não pode negar os mundos indígenas e negros, parte integrante da humanidade criada à imagem e semelhança de Deus. Ao contrário, deve partir da realidade antropológica da criatividade brasileira, que em amplo espectro se traduz numa antropologia da aventura e do risco enquanto fonte da liberdade que busca. Por isso, o pensamento protestante não pode estar preocupado em adaptar o brasileiro à globalidade excludente, mas em entender os elementos da imagem de Deus que permeiam essa riqueza civilizatória.

 

A multibrasilidade é um modo de ser, uma maneira de existir. O multibrasileiro não se diferencia simplesmente por suas cores de pele. As peles das culturas brasileiras têm histórias, histórias de negações e de resistências. É preciso, pois, compreender que o brasileiro se autocompreende, num primeiro momento, em suas histórias de negação, e por isso se afirma índio e negro. A brasilidade é afirmação deste que é índio/ índia, negro/ negra: é negação da negação. Este brasileiro, destituído de sua história, vive imerso em si mesmo e numa sociedade que promove a ruptura de seus valores étnicos, sociais e culturais, mas quer iniciar uma outra história, onde não é João ninguémMaria nenhuma. Mas a história dos povos indígenas e negros não começa com o extermínio e a escravidão. Afirmar a brasilidade é afirmar uma proposta em que a brasilidade é mais do que uma evidência, é afirmar uma história que foi excluída. Implica compromisso com a causa de povos. Se a multicultura relacional brasileira tem um caráter mágico, empapado no maravilhoso, isso se dá porque o dia-a-dia desses seres humanos está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do brasileiro é o transcendente. Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do brasileiro simples ao que alcançou o sucesso e a glória. É importante, no entanto, entender que o maravilhoso relacional da multicultura brasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e as matrizes das religiosidades indígenas e negras.

 

A recuperação da história dos povos como tradição e cultura liga-se à necessidade de conscientização da identidade multicultural brasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é provocar e transformar. Dessa maneira, reconhecendo os elementos negativos da multicultura relacional brasileira, que se traduziu na tentativa de esconder as injustiças sociais sofridas, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar as culturas às quais pertencemos é o primeiro passo para construir um pensamento protestante multicultural brasileiro, que compreenda as identidades dos povos em sua busca de felicidade e transcendência.

 

A antropologia mostra-nos um brasileiro em busca da felicidade imediata e da transcendência, possibilitando ao pensamento protestante uma compreensão dos elementos da revelação aí embutidos. Isto porque o ser humano tem um destino. O termo destino conota vocação, aponta para aquele conteúdo intrínseco que constitui uma dimensão da natureza humana. Destino tem matizes de dom, propósito e alvo. A concepção cristã do ser humano trabalha com a idéia de que todos os seres humanos são chamados à construção de um destino pleno de sentido. Não devemos temer a multiculturalidade brasileira, mas conscientemente reconstruir raízes e memória. Esse caminho dará fundamentos a velhos sonhos, traduzirá a boa notícia como resposta imediata e concreta para a utopia que se desfaz na quarta-feira de cinzas.

 

Ser índio e ser negro traduz metanóia e por isso a brasilidade constitui-se num desafio não só para índios e negros. A brasilidade deve ser uma práxis, uma atitude de resgate diante da história de negação do índio e do negro. Desse ponto de vista, colocar para a comunidade de fé a brasilidade como princípio protestante implica em resgate das histórias de sofrimento e dor e redenção diante das possibilidades que estes sofrimento e dor construíram. A expressão comunidade de fé traduz a consciência de que o cristianismo deve apresentar um evangelho integral ao Brasil. Esse evangelho não se limita ao afetivo/existencial da salvação individual e nem se fecha entre quatro paredes, mas está preocupado com pessoa e comunidade enquanto totalidade social, política e multicultural. Essa consciência pode se estender ao conjunto das comunidades, sejam elas protestantes históricas ou pentecostais. Tal realidade, porém, não deve esquecer que o lugar fundamental da gestação da brasilidade do ponto de vista do princípio protestante dá-se no locus das comunidades indígenas e negras, espaço de formação da identidade, como vida resgatada. Mas, considerando que o princípio protestante possui dimensões que transcendem o locus, é importante estabelecer paradigmas que o viabilizem. Paradigmas esses que possibilitem a cada comunidade traçar seu caminho de liberdade, de acordo com sua realidade e necessidade, sem perder o vínculo com o conjunto da mensagem de redenção. Nesse sentido, não basta construir um pensamento da negação, mas um pensamento da afirmação da multicultura brasileira. Não somente uma práxis do protesto, mas uma práxis da proposta, uma práxis da libertação que permita levar a riqueza dos sonhos ancestrais à sociedade brasileira de conjunto.

 

Num primeiro momento, abertura à transcendência é sofrimento. Motor da liberdade cristã, quando esta se revela no aspecto da supressão do ser humano imediato. É a exigência de romper com o existente aceito. Essa ruptura, no entanto, exige persistência na determinação em nível imediato, sem a qual não há liberdade dentro da ordem existente. Contudo, abertura à transcendência não se resume a esse primeiro momento. Na verdade, é diametralmente oposto a ele, traduz outra realidade, outra natureza. A unidade transcendência/ humilhação é superficial como realidade imediata. Por isso, a emergência da transcendência passa pela morte da multiculturalidade, porque a realidade entrou em caducidade. Sofrimento reflete essa impossibilidade de vida e de eternidade. A transcendência é regeneradora porque acontece no mais fundo da própria raiz brasileira. É no momento da morte de seu consciente, que o mais profundo da intencionalidade brasileira se revela.

 

A interioridade cristã não é consciência cartesiana. É um tempo de negação de todo objeto possível, tempo de vazio interno que possibilita a abertura ao sagrado. É nesse momento que a transcendência aparece como disponibilidade transparente da consciência. Dessa maneira, a transcendência do brasilíndio e do afrobrasileiro não pode realizar-se a não ser como articulação viva da subjetividade e como sua obra. A morte do brasilíndio e do afrobrasileiro imediatos é o ato que faz possível ressurgir o verdadeiro brasileiro, a partir daquilo que lhe é inalienável e próprio. Fazendo uma releitura de Lutero podemos dizer que o cristão “é servo em tudo e está submetido a todo mundo”, então o cristão “é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém”. Se entendermos a dialética desse processo, teremos elementos para construir uma práxis brasileira do princípio protestante. Uma práxis que parte da negação, mas vai além, transcende, e que fará de todos senhores da vida que nos foi entregue.


Capítulo do livro Deus é Brasileiro, de Jorge Pinheiro, São Paulo, Fonte Editorial, 2008.