mardi 23 février 2021

O cozinheiro de pratos picantes

A sopa de repolho e o cozinheiro de pratos picantes
Jorge Pinheiro, PhD

“Porque as vossas mãos estão contaminadas de sangue, e os vossos dedos, de iniqüidade; os vossos lábios falam mentiras, e a vossa língua profere maldade. Ninguém há que clame pela justiça, ninguém que compareça em juízo pela verdade; confiam no que é nulo e andam falando mentiras; concebem o mal e dão à luz a iniqüidade”. (Isaías 59. 3-4).

Quando falamos de assassinatos por envenenamento nos lembramos imediatamente de uma jovem chamada Lucrecia, que nasceu em Roma em 1480. E que teve por pai o cardeal Rodrigo Borgia, que mais tarde se tornaria o Papa Alexandre VI, e por mãe Vanozza Cattanei. Embora filha ilegítima, Rodrigo a reconheceu, lhe deu seu sobrenome, e a usou nas mais diferentes intrigas palacianas. Mas, ao contrário do que conta a lenda, seus contemporâneos não viam em Lucrecia Borgia nada mais que uma princesa usada por seu pai e por seu irmão Cesare Borgia, Il Valentino, em lutas políticas, por ser bela, culta, amante das artes e mulher caridosa.

Por isso, talvez seja melhor falar de comida e política. 

Definir prato picante pode variar, conforme a culinária ou o gosto de cada um. Mas uma coisa permanece nesta idéia: é um prato que chama a atenção por condimentos que excitam o paladar e deixam um gosto marcado na boca. Assim, o escritor Airton Ortiz, [Airton Ortiz, O churrasco de um gaúcho viajante, Água na boca. Web: www.missd.com.br.] por exemplo, tem uma receita de churrasco, onde recomenda que coloquemos «no primeiro espeto um pedaço de lingüiça calabresa, a mais picante que encontrar». Segundo ele, «aprendi a comer pratos picantes na Índia, fiquei contaminado e agora não abro mão da pimenta. Asso-a rapidamente, na labareda mesmo. Ela fica torradinha. Para torrar mais rápido, furo a tripa com um palito, para escorrer a água. Servida no início do churrasco, na hora dos aperitivos, serve especialmente para despertar nos meus convidados o gosto pela cerveja. Mesmo os que não são adeptos do álcool partem imediatamente para um copo estupidamente gelado». 

Mas, talvez, um dos pratos picantes mais conhecidos e citados na historiografia da culinária seja a Shchi[ Shchi, Russian cabbage soup, ou sopa de repolho russa, conforme receita usada e divulgada por Josef Stálin (1929-1953), ex-ditador da União Soviética. A shchi pode ser feita com carne ou sem ela, mas é indispensável o chucrute ou o repolho, ou ambos. Uma recomendação fundamental é que deve sentar e curar no mínimo por um ou dois dias, antes de ser comida. Esta receita que fazia parte do cardápio de Stálin, e era, segundo alguns, seu prato preferido, por causa da presença do chucrute e do repolho, é cheia de sabores e texturas e deve ser comida quente, com pumpernickel ou pão de centeio e manteiga. 

É importante dizer que não foi Stálin quem inventou a shchi, pois há evidências de que já era conhecido na Rússia desde antes do ano 988, quando o cristianismo foi aceito. Shchi originariamente significava "comida líquida" e só depois ficou conhecida como "sopa de repolho", quando o legume passou a ser cultivado na região. Foi a sopa favorita de mongóis, de Ivã, o terrível, Nicolas II, de Lênin, de Stalin, e de Mao Zedong. 

E Alexandre Dumas gostou tanto da shchi que a colocou no seu livro de receitas. E Lewis Carroll a achou bebível, mas um pouco azeda, condizente com o paladar russo. Isso é tão verdadeiro que ainda hoje na Rússia se alguém for chamado de “professor de shchi azedo” significa que é uma fraude, ou seja, incapaz de preparar algo que todo mundo sabe fazer.

Simple Shchi soup (cabbage soup) Recipe - Irina's Home Cooking -- Youtube


Por isso, fugindo ao apodo de “professor de shchi azedo” segue aqui uma versão unânime da sopa de repolho russa. Ingredientes: quatro xícaras de repolho, duas ou três xícaras de chucrute não enlatado. Duas colheres de massa de tomate, doze xícaras de carne de boi, ou, se você não come carne, de legumes variados, em especial cogumelos. Três colheres de sopa de manteiga, uma cenoura descascada e cortada em Julienne, uma xícara e meia de cebola cortada, um talo de aipo bem cortadinho, um nabo grande descascado e também bem cortadinho. E ainda tomates cortados, sal e pimenta. E, por fim, cravo da Índia picado.

Aqui vai outra receita: 
comece saturando os cogumelos em água, depois de lavados e fatiados.

Em uma frigideira grande derreta a manteiga em calor médio, refogue a cenoura, cebolas, aipo, nabos, e cogumelos até tudo ficar ligeiramente marrom (aproximadamente quinze minutos). Numa caçarola, coloque o repolho e o chucrute e refogue durante 15 minutos, mexendo sempre. Depois coloque os ingredientes da frigideira na caçarola, e os temperos. Mexa tudo, cubra e deixe cozinhar em fogo brando por vinte minutos. Por fim, acrescente o alho e cozinhe por mais cinco minutos. 

Deixe então sentar e curar por um ou dois dias. Se for inverno aqueça antes de servir. Se for no verão, como recomenda Edouard Limonov, sirva frio. Com guarnição sirva endro fresco cortado e misturado com nata azeda. Por ser um prato azedo e picante combina com vinho branco, mas os russos, logicamente, preferem acompanhar com vodca. Assim, presente tanto na historiografia da culinária, como na literatura, não seria de estranhar que também se fizesse presente na política russa.

Vladimir Illich Lênin, pai da revolução bolchevique, apelidou Stálin de “o cozinheiro de pratos picantes”. [León Trotsky, O cozinheiro de pratos picantes, citado por Ludo Martens, O testamento de Lênin, Centro de Mídia Independente.] Esse apelido partia do viés culinário de Stálin, mas guardava outro sentido: a acusação velada de que Stálin envenenava seus desafetos. O apelido foi mais tarde utilizado por Trotsky contra Stálin e acabou se generalizando na Oposição de Esquerda.

Trotsky acreditava ou ao menos fez questão de publicitar que Stálin tinha envenenado Lênin.

Apesar de, durante todo o período stalinista, esta acusação ter ficado marginalizada da historiografia soviética, ela reapareceu com força com o fim da União Soviética. Está presente em “Touro”, filme do cineasta russo Alexander Sokourov que evoca os últimos dias de Lênin em 1922, depois que sofreu um primeiro derrame. Prematuramente velho, caminha com dificuldade e tem surtos de depressão e delírios. Só Krupskaya, sua mulher, o trata com carinho. Rodeado por guardas e criados, alguns dos quais informantes da polícia política, aqui o retrato de Lênin é o do Minotauro, monstro e vítima, possuidor de poder, mas cada vez mais solitário e isolado. [Alexei Jankowski, Lénine en fauteuil roulant Taurus, film russe d’Alexandre Soukourov. Les Archives (do jornal) l´Humanité, L´Humanité.] A cena em que Lênin descobre que o telefone da datcha foi cortado mostra isso. E a visita de Stálin, discutida várias vezes, mas em especial num jantar, onde o prato servido é a shchi, traz à tona o medo de Lênin de ser envenenado pelo novo secretário-geral do Partido. E quando Stálin chega e entra na casa, Sokourov traduz em sombras e meia-luz esta presença maligna do anjo da morte. 

Trotsky décadas antes de Sukourov já havia apresentado sua versão: “Eu imagino que as coisas se passaram quase dessa forma. Lênin pede veneno ao final de fevereiro de 1923. No inverno, o estado de Lênin começou a melhorar lentamente. O uso da voz retornara. Stálin queria o poder. O objetivo estava próximo, mas o perigo emanado de Lênin estava mais próximo ainda. Stálin devia tomar a resolução que lhe era imperativa, de agir sem demora. Se Stálin enviou o veneno a Lênin depois que os médicos tinham deixado entender por meias palavras que ele não tinha mais esperança ou se recorreu a outros meios mais diretos, eu ignoro”. Essa leitura de Trotsky também é a de historiadores contemporâneos, como Domènech,[ Antoni Doménech, El eclipse de la fraternidad, Una revisión republicana de la tradición socialista, Barcelona, Ed. Crítica, 2004. Vide: Entrevista político-filosófica de Antoni Domènech, Salvador López Arnal, que afirma ter sido Lênin assassinado por Stálin. 

Certamente é difícil dar uma palavra final sobre a morte de Lênin. Em 1991, documentos foram divulgados, entre eles a autópsia de Lênin, assim como as memórias daqueles que acompanharam sua morte. Um trabalho publicado no "European Journal of Neurology" de junho de 2004 sugere que Lênin, aos 54 anos, morreu de neurossífilis. [Julio Abramczyk, Estudo especula sobre morte de Lênin, Folha de S. Paulo, 01/08/2004.] Os autores, V. Lerner, Y. Finkelstein e E. Witztum, de Israel, com base em cinco anos de pesquisas em arquivos liberados da antiga União Soviética, relatórios de necropsia e livros de memória de antigos médicos, concluíram que Lênin sofreu de sífilis terciária, que no correr dos anos afeta o cérebro. A causa oficial da morte de Lênin foi uma arteriosclerose cerebral, mas apenas oito dos 27 médicos que trataram dele assinaram esse diagnóstico. Os dois médicos pessoais do revolucionário recusaram-se a assinar o atestado de óbito oficial. Segundo os médicos israelenses, a sífilis produziu lesões cerebrais e demência nos dois últimos anos de vida do líder. 

É verdade que a sífilis na época era incurável, mas é interessante que sua mulher Krupskaya viveu até 1939 e nunca apresentou nenhum sintoma da doença. Assim, a sífilis de Lênin pode ser mais uma especulação, principalmente quando nos lembramos que ele sofreu uma tentativa de assassinato em 1918 e que a bala nunca foi removida. Daí, outra hipótese, o do envenenamento lento causado pela bala não extraída.

Diante dessa comida que mata, dessa bebida que fulmina, talvez o jeito seja cantar o rock punk do k2o3: «És capaz» da banda de punk rock k2o3, formada em 1994. Seu álbum de estréia foi lançado em 1996, pela El Tatu.

Veneno que me rouba a vida
veneno, uoohhoo! 
é o veneno que me está a matar
mesmo que queria não consigo escapar
cruel e fria perseguição
que só acaba com destruição
Veneno que me rouba a vida veneno, uoohhoo!

Notas

Airton Ortiz, O churrasco de um gaúcho viajante, Água na boca. Web: www.missd.com.br.
Shchi, Russian cabbage soup. Web: www.soupsong.com/bfaves.
León Trotsky, O cozinheiro de pratos picantes, citado por Ludo Martens, O testamento de Lênin, Centro de Mídia Independente.
Alexei Jankowski, Lénine en fauteuil roulant Taurus, film russe d’Alexandre Soukourov. Les Archives (do jornal) l´Humanité, L´Humanité.
Antoni Doménech, El eclipse de la fraternidad, Una revisión republicana de la tradición socialista, Barcelona, Ed. Crítica, 2004. Vide: Entrevista político-filosófica de Antoni Domènech, Salvador López Arnal. 
Web: http://www.nodo50.org/red.../descargas/Entrevista_TD_def.pdf.
Julio Abramczyk, Estudo especula sobre morte de Lênin, Folha de S. Paulo, 01/08/2004.
«És capaz» da banda de punk rock k2o3, formada em 1994. Seu álbum de estréia foi lançado em 1996, pela El Tatu. O segundo álbum recebeu o título de “Grita!”. O grupo não existe mais.




Na contramão com Aristófanes

Um, dois, três...
Na contramão com Aristófanes
Jorge Pinheiro, PhD


O texto hebraico das Origens conta que o eterno disse não é bom que o cara viva sozinho, vou construir para ele alguém que o ajude a ir em frente. Isso a gente sabe, todos num estado de tranqüilidade, e ciente dos desejos do coração, deseja amar e ser amado. 

Ou seja, num momento de sinceridade, amamos ter alguém em quem confiar, e se possível a ponto de podermos revelar nosso lado íntimo. É, acho que gostaríamos muito poder confiar àqueles que gozam de nossa intimidade alguns dos sentimentos que guardamos lá dentro. Talvez, por isso, nos sentimos atraídos por grupos de relacionamentos como facebook, twitter e outros. É isso mesmo, no raso e no fundo, queremos amar e ser amados.

Às vezes no silêncio da noite/ Eu fico imaginando nós dois/ Eu fico ali sonhando acordado/ Juntando o antes, o agora e o depois (“Sozinho”, de Caetano Veloso e Peninha). 

Por isso, a pergunta procede: o que nos impede de abrir o coração e amar? Tememos riscos? Que riscos? 

Vamos pensar isso com o poeta Aristófanes, lá no Banquete de Platão. Ele disse que antigamente a natureza não era como é hoje. Nossos ancestrais eram duplos, mas tinham unidade. Cada pessoa constituía um todo, de forma esférica, com costas e flancos arredondados. Tinham quatro mãos, o mesmo número de pernas, dois rostos idênticos num pescoço redondo, mas uma cabeça única para o conjunto desses dois rostos opostos um ao outro. Tinham quatro orelhas e dois órgãos sexuais.

Por que você me deixa tão solto?/ Por que você não cola em mim?/ Tô me sentindo muito sozinho

Essa dualidade genital explica por que não havia dois e sim três gêneros na espécie humana: os machos, que tinham dois sexos de homem, as fêmeas, que tinham dois sexos de mulher, e os andróginos, que tinham ambos os sexos. 

O macho, conta o poeta, era filho do Sol, a fêmea filha da Terra, a espécie mista da Lua, que participa do Sol e da Terra. Todos tinham uma força impressionante e, por isso, tentaram subir ao céu e derrubar os deuses. Para puni-los, Zeus decidiu cortá-los em dois, de cima a baixo, como se corta uma laranja. Então terminou a completitude e a unidade. A partir de então cada um é obrigado a buscar o outro pedaço.

Não sou nem quero ser o seu dono/ É que um carinho às vezes cai bem/ Eu tenho meus desejos e planos secretos/ Só abro pra você mais ninguém

Agora, estamos separados de nós mesmos. Esse desejo de busca é o que Aristófanes chamava amor, e, quando satisfeito, seria a condição da felicidade. Somente o amor reconstruiria a natureza, ao fundir dois seres num só. Por isso, para o poeta e dramaturgo, uma pessoa seria homoafetiva, heteroafetiva ou andrógina, conforme a unidade perdida.

Assim, a partir do mito, Aristófanes considerou que quando uma pessoa -- tenha ela inclinação por homens ou mulheres -- encontra a sua metade, transforma-se num prodígio de amor e ternura.

Por que você me esquece e some?/ E se eu me interessar por alguém?/ E se ela, de repente, me ganha?

Essa é a definição do amor fusional de Aristófanes, que faria voltar à unidade da natureza primeira, que libertaria da solidão, e que seria, tanto nesta vida como na outra, a maior felicidade a ser alcançada. 

Mas, por necessitar duas pessoas tal fusão é sempre um momento e, por isso, longe de abolir a solidão, a confirma. Se as almas pudessem se fundir seria outra coisa, mas são os corpos que se fundem, por um momento.

Daí o fracasso. Todos querem ser um só, mas eis todos mais do que nunca sendo dois, sempre. Por isso, os romanos diziam que post coitum omne animal triste. Mas se o amor não nasce dessa fusão de corpos, nasce o prazer. Ou, podemos dizer, os corpos entendem mais de Eros do que os especialistas. Os corpos entendem as solidões, as loucuras dos desejos, os abismos do prazer. Se após a união dos corpos, a solidão é parceira, o corpo é este pedaço de mim nunca completado.

Detalhe: Platão não gostava de Aristófanes. E o relato hebreu, que mergulha nas profundezas na existência, não deixa por menos, somos dois mesmos, sempre. E é do diferente, do divergente, que deve nascer a união. Ou como disse o homem de Nazaré, e ambos serão uma só carne. E se isso é bênção ou maldição, acho que depende de cada dois. 

Ou você me engana/ Ou não está madura/ Onde está você agora? (“Sozinho”, de Caetano Veloso e Peninha).

mardi 16 février 2021

76 anos intensos ...

No dia 5 de março deste ano (2021) cheguei aos 76 anos
São 60 anos de um debruçar sobre a filosofia -- aos 16 anos já tinha lido a República de Platão, As dores do mundo de Schopenhauer, A filosofia positiva de Augusto Comte e O mundo interior de Farias Brito, entre outros -- e depois começar a estudar formalmente, além das discussões que fazíamos em casa. E 50 anos de estudo da teologia -- a partir de Agostinho, as Confissões, e Kierkegaard, Temor e tremor -- e depois com as faculdades, mestrado e doutorado cursados. E três idiomas da juventude: grego, hebraico e russo. Tudo isso forrado do judaísmo liberal de meus pais.

Mas, nesse aniversário de 76 anos, realço o texto de "kadish - vida, morte e reino", que eu gosto tanto. Se você quer conhecer um pouco do meu pensamento -- filosófico, teológico e religioso --, vale a pena ler "kadish - vida, morte e reino". Encomende com Eduardo de Proença da Fonte Editorial (+55 11 32140679).

E aqui vai um capítulo do livro. Boa leitura.


O kadish, santificação... 


... é uma das ideias-força da liturgia judaica. Deve ser praticado como ato de glorificação e santificação do haShem, do Nome divino, a partir de uma das visões escatológicas de profeta Ezequiel. Na liturgia apresenta várias versões, e a mais conhecida é a do lamentado, embora o kadish não inclua nenhuma referência aos mortos ou a sua ressurreição. O kadish influenciou várias orações cristãs, e o rabino de Nazaré ensinou aos seus discípulos um kadish que ficou conhecido como o Pai Nosso.

Não há nenhum ensino explícito nos textos das escrituras hebraicas que nos dê uma receita para orar o kadish. Porém, rabinos entendem Levítico 22.32 como um ensino que deve ser respeitado ... “para que Eu possa ser santificado entre os filhos de Israel".

No Talmude, o kadish é mencionado várias vezes. Foi ensinado pelo rabino Yossi: Um dia eu estava caminhando na estrada, e entrei nas ruínas de Jerusalém uma ruína para orar. Vint Eliyahu, o profeta, que estava na porta, esperou por mim até eu terminar minha oração. Depois ele me disse: A paz seja com você, rabino, e eu disse: "A paz seja com você também meu rabino e meu senhor. Ele disse então: Meu filho, por que você entrou nesta ruína? Disse-lhe: para orar. Ele então acrescentou: Meu filho, que voz você ouviu nesta ruína? e eu lhe disse: Ouvi um eco, como o pio de uma pomba, dizendo: Ai dos filhos pelos pecados que destruíram a minha casa, e queimou o meu altar, e os lancei no meio das nações. Ele então completou: Na sua vida não é nesta hora que deve elevar sua voz, mas todos os dias, três vezes ao dia. Não só isso, mas na hora em que Israel entra nas sinagogas e casas de estudo. 

Mas também o rabino Shimon ben Gamaliel exortou homens e congregação a orarem o kadish. 

Na segunda agadá, após a destruição do Templo, o kadish era orado em aramaico e considerado de importância para a sobrevivência espiritual do mundo. O kadish não era orado como lamento, mas pelos rabinos após suas exposições da Torá, nas tardes do sábado. E, mais tarde, quando terminavam o estudo de uma seção de midrash ou agadá. Esta prática se desenvolveu na Babilônia, onde a maioria das pessoas falava o aramaico.

Pessoalmente, vejo o kadish não apenas como peça litúrgica, mas como teologia que na adoração a haShem engloba vida, morte e reino. Por isso, sem dúvida, podemos aprender muito com as tradições judaicas desta teologia do kadish. 

Nessas reflexões sobre adoração, história, teologia e também política seguimos os passos de Shaul de Tarso, rabino filho de rabino, e utilizamos como referenciais teóricos três pensadores: um dos pais da Sociologia, Karl Marx; um teólogo, Paul Tillich; e um filósofo, Slavoj Zizek, a partir dos quais tenho realizado muito da minha produção acadêmica. Assim, Shaul, Marx, Tillich e Zizek, convido-os simplesmente a fazer o mesmo que Ieshua, rabino de Nazaré: romper preconceitos.



mardi 26 janvier 2021

Ha que ler o desejo

Há que ler o desejo
Jorge Pinheiro 

“Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”. [Menandro, O Misantropo. Site: Oficina de teatro. WEB: www.oficinadeteatro.com].

Betty Fuks no seu livro Freud e a Judeidade, a vocação do exílio (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000 (pp. 127-133) conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”. 

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta aos coríntios de Paulus, o pequeno, apóstolo temporão de Iesous. 

“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”. 

A frase acima e a continuação do texto é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário. 

Platão, em Fédon (Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1987), num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria. 

E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?” 

Paulus conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.

“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”. 

Outras fontes de Paulus foram o profeta Daniel e outras literaturas intertestamentárias, que trabalham com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Th.-G Chifflot e R. De Vaux, na versão francesa de La Sainte Bible (Les Editions Du Cerf, Paris, 1973. Tradução: A Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985, p. 1347) situam o livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Th.-G. Chifflot e R. De Vaux, jã citados. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de “vaticinia ex eventu”, dado que o autor viveu depois e não antes dos fatos históricos que descreve. Esses capítulos são uma reação contra a declarada helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de pensamento afetado pela civilização helenística.

A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da “abominação desoladora”. Assim, durante o período dos macabeu muitas idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatolõgica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase.

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulus, porém, acrescentará uma leitura existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”. 

É interessante que Paulus em seu texto sobre a anástase cita o filósofo, dramaturgo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. Paulus gostava de teatro e de comédias. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”.

Que Paulus recorreu à tradição hebraico-judaica fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulus. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de transformação e de criação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulus trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulus está preocupado com o corpo, com a vida.

“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psique, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psique, também há corpo espiritual”. 

Para Paulus, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”. 

Mas o pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulus admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psique, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal. 

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”.

Assim, se voltarmos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulus traduziu para as novas gerações o desejo grego/judaico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”. 










vendredi 22 janvier 2021

Pasteur, qu'est-ce que c'est ?

Pasteur, qu'est-ce que c'est ?

Dans le Nouveau Testament, un pasteur est une personne qui prend soin des autres membres de l'église, exerçant un leadership. Le pasteur aide les autres membres à grandir, en les exhortant, en les corrigeant, en les conseillant et en leur apprenant à vivre selon la Parole de Dieu.

Dieu distribue différents dons aux gens, pour construire l'église. L'un de ces dons est la capacité d'être pasteur. Le don du ministère pastoral, a été expliqué par l'apôtre Paul dans 1 Timothée 4: 13-14 : « Consacrez-vous à lire l'Écriture aux fidèles, à les encourager et à les enseigner. N'oubliez pas le don que vous avez reçu lorsque vous avez été nommé par les prophètes de l'Église et que les responsables ont placé leurs mains sur votre tête ».

Le verset 4.13 fait référence à deux blocs de compréhension de notre relation avec les Saintes Écritures: (1) lire, écouter, méditer et (2) étudier, enseigner, appliquer. Et cela nous amène au modèle pastoral suggéré par Paul à Timothée: qu'il soit un modèle en parole, en procédure, en foi, en pureté.

Selon le Nouveau Testament, les pasteurs font partie de la direction de l'église, avec ceux qui ont les dons d'enseignement et d'évangélisation (1 Corinthiens 12:28). Ce leadership rend toute l'Église plus forte et plus capable de remplir sa mission.

Jésus est notre grand berger. Tout comme un berger prend soin de brebis, Jésus prend soin de chacun de nous, nous guide et nous protège. Jésus est le bon berger. Il nous aime tellement qu'il a donné sa vie pour nous ! Tout leadership doit être basé sur l'amour (Jean 10: 14-15).

Être pasteur est une grande responsabilité ! Le Nouveau Testament dit que les pasteurs (et les autres dirigeants) seront tenus responsables devant Dieu de leur service (1 Pierre 5: 3-4). Le travail n'est pas facile et comporte de grands défis. C'est pourquoi chaque pasteur a tellement besoin de la grâce de Dieu.

Que fait un pasteur? Le pasteur peut avoir plusieurs fonctions. Comme le berger, le pasteur garde les brebis de Jésus. Dans le Nouveau Testament, les rôles de pasteur, d'évêque et d'ancien sont plus ou moins les mêmes.

Le pasteur enseigne. Un pasteur est quelqu'un qui enseigne aux autres à suivre le Nouveau Testament, en expliquant ce que cela signifie. Cela peut être fait par la prédication, des études bibliques ou des conversations personnelles. Ainsi, le travail du pasteur et de l'enseignant se recoupent souvent.

Le pasteur mène. Lorsque l'église a besoin de leadership et de conseils, le pasteur a cette responsabilité, avec tous les autres dirigeants de l'église. Diriger signifie guider et résoudre des questions plus problématiques, promouvoir la paix et l'unité. Le pasteur a une autorité spirituelle sur l'église.

Le pasteur prend soin. C'est le grand travail du pasteur - prendre soin de la vie spirituelle des autres membres de l'église. Le pasteur donne des conseils et aide à résoudre les problèmes de la vie spirituelle, à travers la vérité de la Bible. Le pasteur est comme un « médecin » qui prend soin de la santé spirituelle des gens.

Qui peut être pasteur ? La première exigence pour être pasteur est d'avoir l'appel à être pasteur ! Tout le monde n'a pas ce don, mais ceux qui le font devraient développer le don et l'utiliser pour le bien de l'église.

Le Nouveau Testament a quelques recommandations sur qui devrait être un pasteur ou un dirigeant dans l'église:

(1) il ne doit pas être nouveau dans la foi - car il a encore beaucoup à apprendre et peut devenir fier - 1 Timothée 3: 6;

(2) vous devez être un bon chrétien - votre vie doit être un exemple de modération, de bon sens et de maîtrise de soi - 1 Timothée 3: 2-3;

(3) doit avoir une bonne réputation - ne pas avoir la réputation de faire de mauvaises choses - 1 Timothée 3: 7;

(4) vous devez aimer la Bible - comprendre ce qu'elle dit et s'accrocher à la vérité - Tite 1: 8-9;

(5) et si vous êtes un père de famille, la façon dont vous éduquez vos enfants montrera si vous êtes capable de diriger l'église. Si quelqu'un ne parvient pas à bien diriger ses enfants, il ne pourra probablement pas bien diriger une église (1 Timothée 3: 4-5). Ces directives vous aident à comprendre si quelqu'un est prêt à assumer la responsabilité d'être un pasteur.

Le pasteur devrait-il recevoir un salaire? Oui, un pasteur qui travaille à plein temps pour l'église mérite un salaire. Le Nouveau Testament dit que quiconque prêche l'Évangile a le droit d'être soutenu par l'Église.

Que fait un pasteur? Le pasteur est un leader dans sa congrégation. Le chef n'est pas une personne plus importante, à qui tout le monde obéit sans poser de questions. Le leader sert l'église en enseignant, prêchant, conseillant, aidant, réprimandant, exhortant et guidant ses frères en Christ (2 Timothée 4: 2). Le pasteur a une responsabilité très sérieuse, car il devra rendre compte à Dieu de son œuvre dans la vie de ses frères (Hébreux 13:17).

Le pasteur qui ne reçoit pas de salaire ne peut pas faire beaucoup plus que prêcher dans le culte. Il doit consacrer le reste de son temps à soutenir sa famille. Mais le pasteur à plein temps fait bien plus :

• Prêcher - un bon sermon nécessite beaucoup de temps pour la prière, la réflexion et l'étude de la Bible ;

• Faire des études bibliques - une étude biblique prend des heures à créer et à préparer, tout comme la classe d'un enseignant à l'école ;

• Conseiller et visiter - le pasteur est disponible pour ses frères et la communauté en général, aidant à restaurer et à réparer des vies par la Parole de Dieu ;

• Gérer l'église et ses activités - c'est souvent le pasteur qui s'occupe des finances, des œuvres sociales, des activités d'évangélisation, etc ;

• Former d'autres leaders - lorsqu'il en a la possibilité, le pasteur forme personnellement de nouveaux leaders pour la construction de l'église ;

• Prier et intercéder pour la congrégation - le pasteur passe ses genoux à prier pour vous ;

• Étudier la Bible à fond - pour avoir la sagesse nécessaire pour aider vos frères.

Que dit la Bible ? Le Nouveau Testament dit que « ceux qui prêchent l'Évangile vivent de l'Évangile » (1 Corinthiens 9:14). Quiconque travaille pour l'église mérite d'être soutenu par l'église. Cela signifie avoir suffisamment à manger, à boire, à s'habiller, à payer les dépenses du ménage et à subvenir aux besoins de votre famille (1 Corinthiens 9: 3-5).

Dans l'Ancien et le Nouveau Testament, des prêtres et des Lévites à Jésus lui-même, les chefs spirituels étaient soutenus par les croyants. Même Paul, qui se vantait de ne pas utiliser ce droit, a été soutenu par l'Église philippienne pendant un certain temps (Philippiens 4:18). Car ?

Parce que les gens ont reconnu que leur travail était très important. Être pasteur est un travail sérieux, qui a un impact sur de nombreuses vies. À l'époque biblique, les gens ouvraient leurs maisons et partageaient tout ce qu'ils avaient avec leurs dirigeants (Luc 10: 5-7; Galates 6: 6). Puisque personne ne fait cela aujourd'hui, le pasteur reçoit un salaire pour vivre.

Mauvaises idées sur le salaire du pasteur

• Le pasteur gagne beaucoup - à l'exception de certaines dénominations, la plupart des pasteurs gagnent un très petit salaire, ce qui est difficile pour subvenir aux besoins de leur famille. De plus, il n'y a aucun moyen de gravir les échelons de carrière ou de recevoir une augmentation de salaire ;

• Le travail du pasteur est facile - être pasteur est un travail très stressant, avec des horaires irréguliers, beaucoup de responsabilités et beaucoup de lutte spirituelle ;

• Le pasteur ne mérite pas de salaire - personne n'est parfait, pas même le pasteur, mais la Bible dit qu'il mérite son salaire (1 Corinthiens 9:11; 1 Timothée 5: 17-18); la plupart des pasteurs reçoivent beaucoup moins qu'ils ne le méritent pour leur travail ;

Gagner un salaire, ce n'est pas vivre par la foi - le pasteur doit croire que son église aura assez pour le soutenir; dans de nombreux cas, cela demande beaucoup de foi en Dieu.

Comment devons-nous traiter les pasteurs? La Bible enseigne que nous devons traiter les pasteurs avec tout le respect (Hébreux 13:17). Le travail pastoral est très important pour l'église, mais ce n'est pas facile. Nous devons tout faire pour aider et encourager les pasteurs, rendant leur travail plus rentable.

Aucun pasteur n'est parfait. Mais personne n'est parfait ! Par conséquent, les pasteurs ont besoin de grâce et de pardon. Avant de critiquer, il faut essayer de comprendre la situation. Nous pouvons donc essayer de résoudre le problème avec amour et respect.

La source
Respostas bíblicas
https://www.respostas.com.br/funcao-do-pastor/

Jorge Pinheiro dos Santos
Pasteur-missionnaire de la Cruz Huguenote / Brésil
Montpellier, 22.01.2021, vendredi, 15h56.








mercredi 13 janvier 2021

A missão no contexto europeu

A missão no contexto europeu
Jorge Pinheiro, PhD


"Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Devemos, portanto, compartilhar sua preocupação pela justiça e reconciliação em toda a sociedade humana e pela libertação dos homens de todo tipo de opressão ... expressamos penitência tanto por nossa negligência quanto por ter às vezes considerado o evangelismo e a preocupação social como mutuamente excludentes". John Sttot 

"Duas ou três coisas"…

Quando me perguntam por que fazer missão na França, eu parto do que, realmente, está acontecendo hoje na Europa, e que os jornais e revistas nos relatam sobre isso.

Ao som de bateria e teclado, quatro back vocais dão o tom do culto na igreja, enquanto são acompanhados por fiéis que, com os braços erguidos, louvam e repetem as letras projetadas no telão. Logo acima, pode-se ler Dieu est amour. A cena, comum nas igrejas brasileiras, é novidade na França, que viu a fé protestante renascer nos últimos anos.

Em 1967, Jean-Luc Goddard fez um filme inspirado em uma reportagem sobre donas de casa em um conjunto habitacional nos subúrbios de Paris, que se prostituíam para alimentar o consumo desnecessário. O título do filme - "Duas ou três coisas que eu sei dela” - refere-se a Paris dos anos 1960, um retrato da sociedade de consumo em meio à pobreza em massa e à tragédia da guerra do Vietnã. Nesta reflexão sobre a missiologia na alta modernidade, parto de uma leitura do diálogo entre Slavoj Zizek e John Milbank, e desejo falar sobre duas ou três coisas que emergem dessa discussão.

Tal abordagem, como o amor de Goddard por esta Paris, também parte do coração: é pessoal e emocional. E é justamente este itinerário de vida e teologia que me leva a simpatizar com este pensar da contra-corrente de Slavoj Zizek.

A presença dos muçulmanos traduziu a primeira abertura para a naturalização da expressão religiosa em lugares públicos na França. Mas isso criou um problema: tanto a condição de migrantes quanto a identidade associada a uma religião com grande visibilidade fez da população muçulmana um alvo de discriminações e intolerâncias.

Nesta reflexão distinguirei três perspectivas, partindo da monstruosidade de Cristo. Em primeiro lugar, na missão colonial e eurocêntrica, confundimos missão com o verbo ir. Agora, na alta modernidade de caos e crise, torna-se necessário pensar a missão com o verbo receber. Em segundo lugar, na modernidade, a lógica da expansão colonial e eurocêntrica era dialética. Mas nessa alta modernidade somos chamados a pensar na perspectiva do encontro. E como terceira perspectiva, na modernidade, Cristo era entendido exclusivamente como o Logos do apóstolo João, mas nesta alta modernidade Cristo deve ser entendido como um análogo.

Ora, essas três percepções permitem leituras críticas da missão moderna e seu ir mais além na alta-modernidade. Temos aqui um confronto entre o paradoxo e a dialética, que apresentam preocupações que devem ser levadas em conta quando se pensa em missão na alta modernidade.

E esse confronto, que parte da monstruosidade da encarnação, Deus que se faz humano está presente na Europa e diz respeito também aos migrantes e refugiados, assim como aos muçulmanos que vivem e convivem conosco. E que no dia-a-dia clamam por cidadania, direitos e justiça.

Mas voltemos aos jornais e revistas francesas. Longe do anonimato das ruas, nas manhãs de domingo na entrada da Église Réformée de Belleville a recepção é calorosa e personalizada. 

“É a proximidade entre nós, os pastores, e nossos fiéis que faz a força do movimento protestante”, afirma Amos Ngoua Mouri, pastor da Communauté Évangélique la Bonne Nouvelle, no norte de Paris.

Segundo Frédéric Rognon, professor de Filosofia das religiões na Faculdade de Teologia Protestante de Estrasburgo, na França, "os protestantes expressam a fé de forma contemporânea, enquanto os cristãos tradicionais utilizam ainda modelos antigos que não respondem à realidade da vida atual”. 

“O lado da expressão pública da fé protestante, quase publicitário, choca numa cultura francesa que relega a religião ao domínio privado”, afirma Fath, garantindo porém que as coisas estão mudando no país da laicidade. O pastor Mouri, por exemplo, confirma que o movimento protestante é cada vez mais reconhecido.

A presença do Islã na França decorreu da colonização do mundo muçulmano e a questão da presença árabe-muçulmana, ou seja, da migração, tornou-se uma questão fundamental da política da União Europeia. Nas próximas décadas se estima que cerca de 70 milhões de pessoas serão migrantes na Europa. Donde, é inútil negar as razões da crise europeia, já que a gestão da migração, principalmente, a presença muçulmana, deve respeitar os direitos à vida. Mas tanto a União Europeia como os Estados-membros não sabem, nem tem como resolver o desafio.

Para vencer o ódio e construir cidadania, a missão deve defender uma cidadania, por exemplo, que inclua as crianças migrantes, nascidas fora da Europa. O que pode ser enquadrado nas regras do reagrupamento familiar. Ou seja, a cidadania deve ser europeia em primeiro lugar, e ser válida para migrantes e refugiados. Para os povos em diáspora que escolhem esta terra europeia como cidade de refúgio.

Ao se falar de crianças, devemos lembrar que, segundo a UNICEF, o número de crianças refugiadas dobrou entre 2005 e 2015, e essas crianças desenraizadas devem ser levadas em consideração.

Qualquer que seja seu status, uma criança é uma criança. Assim, os milhões de crianças refugiadas que tiveram que deixar seus países devem ser protegidas e ter pleno acesso a todos os seus direitos, garantidos pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. O grande número de crianças afetadas nos obriga a agir. Cada uma delas tem esperanças e sonhos. Conflitos violentos, perturbações causadas pelas mudanças climáticas não devem impedir que essas crianças tenham um futuro.

Para entender a escala do fenômeno, aqui estão alguns dados: 11 milhões de crianças são refugiadas ou requerentes de asilo fora do seu próprio país. Isto é o equivalente à população da Bélgica. 17 milhões de crianças foram deslocadas à força de suas casas. Cerca de 50% das crianças refugiadas vêm da Síria ou do Afeganistão.

Entre 2005 e 2015, o número de crianças migrantes aumentou 21%. Quanto ao número de crianças refugiadas, ele dobrou durante este período. Ou seja, 28 milhões de crianças foram deslocadas à força. Entre os 164 mil refugiados e migrantes que entraram na Europa em 2017, 29 mil são crianças. Mais de 90% das crianças que chegam à Itália estão sozinhas ou foram separadas de suas famílias. Cada uma delas enfrenta perigos consideráveis em sua jornada em busca de segurança. A rota do Mediterrâneo central, que está entre as mais perigosas, também é a mais utilizada. No final do percurso, essas crianças são frequentemente confrontadas com condições de acolhimento deploráveis: detidas, vítimas de discriminação, acumulam traumas que prejudicam o seu desenvolvimento. Muitas delas não têm acesso à educação ou aos serviços básicos de saúde. E outras optam pelo suicídio.

Vamos pensar a partir da teologia. Quando pensamos em missiologia na Europa e logicamente na França, devemos ouvir e ver o grito dos migrantes, muçulmanos e refugiados a partir do conceito de outro. E se não fizermos assim, vamos ver o próximo como se fosse uma projeção, e deixamos de entender a alteridade.

A ontologia do Iluminismo, ou melhor, de Hegel não se baseava na relação pessoa a pessoa, mas na relação sujeito-objeto. Essa ontologia da pessoa conduziu ao discurso solitário, onde não havia lugar para o outro, pois se tratava do não-ser. O olhar europeu foi colocado como superior em relação ao outro, externo e subordinado, o que levou à colonização e à expropriação de vidas. Essa situação tinha uma justificativa: o outro estava revestido da impessoalidade do inimigo, do estrangeiro, do inferior. Portanto, não haveria problema se ele fosse exterminado, porque esse outro estava fora da totalidade.

Mas todas as práticas justas devem ir além do pré-estabelecimento, da ontologia da totalidade, além do ordenamento jurídico vigente. A origem de uma moralidade equitativa não está no mesmo. E se não for assim, tal prática se torna alienante, dominadora, opressora.

Alguns anos antes do surgimento de uma missiologia integral, no final da década de 1960, a partir da constatação de que a dialética limitava a formulação de uma teologia da práxis, Enrique Dussel e Juan Carlos Scannone buscaram uma compreensão teológica que chamaram de analética. A expressão traduz uma alternativa à dialética hegeliana e marxista. O que foi possível pela afirmação da existência de um âmbito antropológico alternativo, para além da identidade da totalidade. Dussel dirá que seu método partiu de Levinas, e foi formulado como uma leitura ética libertadora.

Em 1976, teólogos reunidos em Dar-er-Salam declararam que o método interdisciplinar na teologia e, por extensão, na missiologia, deve levar em conta a inter-relação entre teologia e análise psicológica e social. Quando afirmamos que a criação de Deus é fundamentalmente boa e que a presença do Espírito no mundo e na história é contínua, é importante ter em mente que o mal se manifesta na alienação do ser humano. As desigualdades são diversas e apresentam muitas formas de degradação e, portanto, requerem a compreensão do Evangelho. São essas leituras que nos levaram a formular naquela época um compreensão da missiologia, que chamamos de libertadora.

Em Dependência e Libertação da América Latina, Dussel afirmou que na passagem diacrônica, ao ouvir a palavra do outro com uma interpretação correta, pode-se perceber que o momento ético é essencial ao método. É somente com o engajamento existencial, que se pode entender o que o mundo aparentemente distante nos revela. Desse modo, antes, o pensamento europeu colocou a teoria antes da práxis. A exploração e a opressão criaram as condições históricas das quais surgiu uma falsa consciência da realidade. A práxis da dominação formou a subjetividade do conquistador: o eu moderno é imperial e violento. O pensamento eurocêntrico ocultou aos colonizados a liberdade, igualdade e fraternidade. Tal pensamento traduziu uma práxis de violência por parte das culturas que se entenderam desenvolvidas. Essa superioridade impôs um processo civilizacional unilateral.

E Zizek na discussão com Milbank, disse que devemos pensar sobre as consequências de rejeitar a realidade, porque afinal a realidade se dissolve em fragmentos subjetivos. Ou seja, esses fragmentos aparentemente anônimos mantém sua consistência subjetiva. O que nos traz de volta à questão do paradoxo.

Na França, a cada dez dias uma nova igreja evangélica abre as portas, de acordo com dados do CNEF -- Conselho Nacional dos Evangélicos da França. 

“A primeira razão é simplesmente a necessidade de esperança”, explica o sociólogo batista Sébastien Fath, especializado na história do protestantismo francês e autor dos livros Do gueto à rede, o protestantismo evangélico na França; e A nova França protestante, desenvolvimento e crescimento no século XXI.

"O contexto de crise, que atinge a sociedade francesa, tem por consequência um certo número de patologias sociais, como a solidão. O Estado não pode fazer tudo, as prestações sociais e capacidades de intervenção são em geral fragilizadas, pois há menos dinheiro público. A igreja evangélica responde às necessidade que o Estado não se encarrega mais”, avalia Fath, que enfatiza o caráter otimista do discurso evangélico, em um país onde o pessimismo é a regra.

Fath explica que embora a fé cristã esteja chegando a todos as classes sociais, inclusive às mais favorecidas, ela vem atraindo jovens e imigrantes, principalmente aqueles originários das antigas colônias francesas.

"Muitos franceses estão desencorajados diante da crise e da globalização. Há uma certa depressão e uma necessidade de perspectiva”, diz Fath. Já para Étienne L’Hermenault, pastor batista e ex-presidente do CNEF, o crescimento das igrejas evangélicas é fruto da sede espiritual. "A crise não é simplesmente financeira, mas também moral. Há um cansaço de uma sociedade que perdeu muitas referências e que busca valores”, argumenta.

Fath crê que o retorno ao protestantismo está ligado também à crise do discurso político. “Os franceses estão decepcionados com a política. O país que, durante muito tempo exportou pensamento político, se desencantou com as soluções políticas, há 15 ou 20 anos atrás”, avalia.

Evitar a realidade que nos circunda e fugir de uma leitura humana e presencial do Cristo nos remete à frase proposta por Tertuliano de Cartago, escritor cristão do século III, "credo quia absurdum!". Creio porque é um absurdo.

Esse absurdo paradoxal atinge o concreto e nos chama a mergulhar na imensidão do divino humano. Fechemos os olhos e digamos como aquele judeu que se chamou Paulo, o Pequeno: "Os judeus pedem um sinal, e os gregos sabedoria, mas nós pregamos o Cristo crucificado, que é um escândalo para os judeus e uma loucura para os gregos”.

Absurdo, escândalo, paradoxo... assim como o fundamento da fé, a mesma fé que justifica Abraão no meio da loucura de um pai que deve sacrificar o "filho da promessa". Portanto, a fé deixa de ser a emuná hebraica, que define uma posição militar, e se torna um paradoxo. Nenhuma ilusão ou devaneio, mas a loucura da confiança no divino, que não podemos compreender.

Como disse Paul Tillich, herdeiro de Hegel e do jovem Marx, a práxis é a mediação entre a ontologia e a realização da realidade. Essa correlação, que para Tillich se tornará um método, é a busca de superação da dialética anterior, que tratava do conhecimento do ser e de suas manifestações fora da práxis histórica. Devemos, nesta reflexão sobre missão na alta modernidade europeia fazer essa passagem construindo uma lógica que não será hegeliana nem marxista no sentido clássico, mas buscará correlacionar ontologia, lógica e metodologia na dinâmica da práxis missiológica.

Essa correlação com a exterioridade caracteriza a mobilidade da missiologia integral que é uma missiologia da práxis. Desenvolve, assim, o caminho da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da práxis, tratando de formulações de métodos que acompanham a superposição de horizontes ontológicos. Desse modo, tal missiologia coloca a afirmação da exterioridade como fonte anterior às demandas da ontologia, o que leva a uma intersecção comum: a ética.

Por isso, A missão na alta modernidade deve ser construída a partir de duas leituras: o outro como revelação de um mistério que nasce da liberdade, e da Igreja como aquela infraestrutura que denuncia os poderes que negam a milhões de pessoas a possibilidade a bens e direitos. A fé nasce do ato da inteligência -- essa é uma forma de ver. Mas quem, realmente, vai além do que vemos? Em primeiro lugar, a esperança de que o outro se revele. Ou seja, a possibilidade de produção e reprodução da vida que está além da visão do rosto. Assim, missiologia para a Europa na alta-modernidade significa pensar o outro, mas um outro que se revela na história, que é o mistério da nossa liberdade. Acreditar na revelação deste próximo é entender o significado da história.

Para que a missão seja integral devemos descobrir o significado do presente histórico, quer venha da África ou de regiões desfavorecidas do planeta. E o significado do presente histórico é profecia, é a palavra. Mas falar para quem? Na modernidade, falar ao outro nos levou à leitura formal do ir. Atravessar os mares e ir até os confins da terra. Devemos ir, sim. É claro que a profecia deve falar do significado dos acontecimentos presentes para nossa vida cristã. E isso é igreja. Mas, nesta alta modernidade de caos e crise, o desafio não é apenas ir, mas receber. Vivemos na localidade global, não somos chamados somente a ir, mas a receber, porque muçulmanos, migrantes e refugiados estão entre nós, conosco. Assim, missão na alta modernidade é receber e viver no chão da vida a realidade da fé.

A missão reconhece a vida do ponto de vista integral: onde o outro se apresenta como próximo, irmão, e não como como estranho, diferente, excluído. E esse é o conceito cristão de outro, sempre próximo, mesmo fisicamente distante, que no encontro nos pede novas atitudes e comportamentos.

A atividade missiológica é uma atividade de confronto que diz respeito a pessoas que sabem que muitas vezes devem discordar, pois não somos espectadores passivos.

A integralidade é uma contribuição para a questão metodológica, pois parte daquilo que está fora da igreja e mesmo do nosso círculo de amizades, que reconhece a existência da liberdade humana como graça de Deus. A lógica da missiologia moderna era dialética, não chegava ao horizonte do mundo, não incluia o outro porque anulava em sua alteridade. Mas, a missão integral nos apresenta um momento antropológico, uma maneira diferente de viver a missiologia, já que é uma missão holística, que abrange tanto o evangelismo e a presença junto às igrejas, quanto a responsabilidade social. 

Desde 1974, a missão integral influencia o mundo latino-americano, mas hoje se faz necessário que seja presença em todo o mundo, em especial na Europa. Ela nos mostra que o ser humano e a comunidade estão localizados além do horizonte da totalidade. Ser integrado, porque o outro é um ser inteiro, é o fulcro para novos desenvolvimentos. No entanto, o ponto de partida do discurso metódico é a externalidade do outro. Como alternativa à dialética que trabalha com a contradição, a identidade e a diferença, o princípio não é o da identidade, mas o da distinção. O estar e ser integral segue uma sequência, a totalidade é posta em causa pelo questionamento provocador do outro. Ouvir a palavra é ter consciência ética, é aceitar a palavra questionadora de quem fala. É ouvir e ver a necessidade real daqueles que estão na Europa, mas que tiveram sua ancestralidade longe dela.

Não podemos esquecer que 2,4 milhões de pessoas de países não pertencentes à Comunidade Europeia imigraram para a Europa em 2018. E que das 446 milhões de pessoas que viviam na Europa em 2019, 21 milhões eram de países que não pertenciam à Comunidade Europeia. Nas próximas décadas, segundo projeções da própria União Europeia, 70 milhões de africanos, principalmente jovens, migrarão para a Europa. O que isso diz a nós missionários?

Utilizar o método da integralidade da missão significa aceitar eticamente o grito daqueles que chegam fugidos da miséria, da guerra e do extermínio. Essa ação é constitutiva, condição da possibilidade de compreensão: resulta na adoção da exterioridade, lugar do exercício da consciência crítica. 

A integralidade da missão é a afirmação da exterioridade: não é apenas a negação de um estado de coisas. É a superação da totalidade moderna a partir da transcendentalidade daquele que nunca esteve dentro. O momento é crítico por isso: é a superação do pensamento dialético negativo, mas não o nega, porque a dialética não nega a ciência, ela simplesmente a assume e a completa. Afirmar a exterioridade é alcançar o impossível para o sistema, o imprevisível para o todo, que decorre da liberdade. É somente por meio de um envolvimento integral que alguém pode se comprometer com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela conquista de cidadania e direitos deste outro. Como resultado, a missão integral é prática: é uma uma pedagogia que visa a realização da alteridade humana.

A expressão missão integral foi criada na década de 1970 por membros da Fraternidade Teológica Latino-americana. A palavra integral, em espanhol e em português é usada para descrever a integridade do pão, pão integral, pão de trigo integral. Assim, a expressão é usada para descrever uma compreensão da missão que afirma a importância de expressar o amor de Deus e o amor ao próximo por todos os meios possíveis. Seus teóricos, dos quais eu citaria três, René Padilla, Samuel Escobar e John Stott, enfatizaram a amplitude do Evangelho e da missão cristã. E usaram o conceito de missão holística para mostrar que a missão não deve se basear na dicotomia entre evangelismo e envolvimento social.

Mas o conceito não é novo: está presente no Novo Testamento e no ministério de Jesus. Missão integral é uma expressão que nos leva à compreensão de que a missão é holística, não é dualista, nem dialética. 

A missão integral já fez uma jornada de cerca de cinco décadas. Em 1966, o Congresso da Missão Mundial da Igreja, realizado em Wheaton, Illinois, reuniu evangélicos de 71 países. A Declaração de Wheaton declarou que "nós somos culpados de um isolamento antibíblico do mundo que muitas vezes nos impede de enfrentar e lidar honestamente com suas preocupações" e a "falha [da igreja] em aplicar os princípios bíblicos a problemas como racismo, guerra, explosão populacional, pobreza, desintegração familiar, revolução social e comunismo”. 

E naquele mesmo ano, o Congresso Mundial sobre Evangelização em Berlim reafirmou a concepção tradicional da missão, que chamamos de moderna. Billy Graham, neste Congresso, disse que se a igreja voltasse à sua tarefa principal de proclamar o evangelho, ela teria um impacto muito maior nas necessidades sociais, morais e psicológicas das pessoas do que poderia alcançar por meio de qualquer outra ação. 

Mas logo depois tivemos o Congresso Internacional sobre Evangelização Mundial em Lausanne, 1974, o mais importante encontro cristão do século XX, que propôs a missão integral como método para chegar aos desterrados neste novo momento da pregação do Evangelho.

Depois do Congresso de Lausanne, a missão integral cresceu. E na Inglaterra, em 1980, se elaborou um documento -- "Um Compromisso Evangélico com Estilo de Vida Simples" --, que reafirmou nosso compromisso com a justiça dentro da concepção de missão.

E em 1982, a Consulta Internacional sobre a Relação entre Evangelismo e Responsabilidade Social entendeu que a responsabilidade social é uma ponte e parceira do evangelismo. Ou seja, os dois são, na verdade, inseparáveis. 

Um ano depois, a Consulta sobre a Igreja, realizada em Wheaton, Illinois, publicou "Transformação: A resposta da igreja às necessidades humanas", que foi a mais profunda afirmação cristã da missão integral. Fez a denúncia da injustiça, e uma crítica àquelas igrejas que através do silêncio dão seu apoio tácito ao status quo sócio-econômico.

Depois de "A Questão Judaica", Marx fez a crítica econômica do cristianismo. Essa crítica foi dirigida às igrejas, porque para Marx elas eram a expressão da miséria. Mas também criticou a religião quando analisou o fetichismo comercial, porque para ele a leitura religiosa do mundo real não desapareceria enquanto as atuais condições de vida não fossem superadas. Mas, em que consiste essa leitura do mundo real? Ora, o olhar religioso vê a existência separada das relações construídas pelo ser humano. E essa existência independente das relações sociais, essa existência irreal, é um reflexo de outro real. Essa divisão entre aparência que oculta a existência e oculta a realidade é o fenômeno do fetichismo da mercadoria. Estranho fetichismo, que consiste nisto: ele oculta o caráter social do trabalho e se manifesta como se este fosse um caráter material dos próprios produtos do trabalho. Ou seja, em relação à mercadoria, e infelizmente para o mundo da religião alienada, a realidade está separada das relações de trabalho, do essencial concreto e de seu produto. Vê-se, então, uma realidade aparente, como se o valor da mercadoria pertencesse de direito à sua própria estrutura independente. É esta visão de mundo alienada, separada da realidade, que a missão integral se propõe denunciar.

Uma missiologia para esta Europa na alta-modernidade é uma ética da vida. Não é apenas uma razão estratégica que visa levar a revelação aos alienados de seu destino, mas deve ser capaz de integrar os princípios de vida que posicionem o outro, o próximo e o diferente como análogos.

O sistema-mundo nesta alta modernidade de caos e crise, ao tornar impossível a produção e reprodução da vida, aprofunda seu caos e crise semeando a exclusão de bens e direitos. As vítimas são milhões de pessoas que estão aqui do nosso lado. Fome e miséria são cavalos do Apocalipse. Cabe, portanto, à missão elevar a ética como recurso diante de uma humanidade em perigo. Esta missiologia é responsável pela solidariedade que parte do critério da vida em relação à morte, da caminhada digna no caminho da fronteira, entre os abismos da irresponsabilidade ética e a paranoia fundamentalista.

Estamos aqui diante do sujeito histórico que aponta para a esperança escatológica, que se abrirá para ir além da alta modernidade, onde o ser humano terá pleno direito de produção e reprodução da vida. E a missiologia deve compreender que esta ação e esta postura não negam o análogo de Cristo, mas deve deixar de ser uma hermenêutica teórica e se desenvolver como uma presença que leva a uma transformação real.

É por isso que a missiologia deve apresentar um princípio universal: a defesa do direito à produção e reprodução da vida de cada ser humano. Esse princípio é objetivo e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela globalização.

Quanto às considerações finais

Missão integral é revelação. E revelação é palavra, é linguagem e pessoalidade, é ver a pessoa, ouvir a pessoa, caminhar com ela. Por isso, a missão corre no fio da navalha: por um lado está a negação da presença e recepção do outro e, por outro, o fundamentalismo pró-integração. Por isso, abrir-se para receber, e tudo o que isso implica, rompe a discussão moderna entre o paradoxo e a dialética do Cristo. Não há paradoxo porque Cristo é análogo e o método é holístico. 

E não nos esqueçamos das palavras do profeta Miquéias (6:8): "O que o Senhor requer de você senão que faça justiça, ame a bondade e ande humildemente com seu Deus". A nossa missiologia mostra que Deus criador e mantenedor existe nesta esperança e nesta possibilidade de produção e reprodução da vida. E Cristo não é uma monstruosidade ou um paradoxo, mas análogo. Assim, os que vem de longe, verão que Deus existe e Cristo é pessoa, Deus que se fez carne por amor a nós.

E volto ao Goddard de "Duas ou três coisas que sei dela", quando ele cita o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein: "Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem." Mas então, vemos Juliette cruzar Paris e dizer: "Mas o mundo sou eu".


Bibliografia

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O jardim perfumado

O jardim perfumado
Jorge Pinheiro (*)

“Quem faz amor por si mesmo e para satisfazer seus desejos experimenta um prazer mais intenso e duradouro", é que, se o homem, quando se sente pronto para o prazer, entrega ao exercício do coito com mais ou menos ardor, de acordo com o desejo que sente por ele e no momento que mais lhe convém, e se o seu prazer é provocado e regulado pela única necessidade de se aproximar da esposa , ele não precisa ter medo de ficar desamparado.

Mas quem faz amor pelos outros, ou seja, que apenas tem em vista a satisfação dos desejos de sua amante e tende todos os seus esforços para esse objetivo impossível, negligencia a conservação de sua própria saúde e se compromete com os prazeres que ele deseja trazer aos outros”.

Graças sejam dadas a Deus que situou nas partes naturais da mulher os maiores prazeres do homem, assim como localizou nas partes naturais do homem o maior deleite da mulher. Deus não dotou as partes da mulher de nenhum sentimento de prazer ou satisfação, senão quando penetradas pelo instrumento do macho; e, da mesma forma, os órgãos sexuais do homem não conhecem repouso nem tranquilidade até haverem entrado nos da fêmea". Xeque Nefzaui, O Jardim Perfumado.

Os textos antigos árabes, palestinos e mediterrâneos quando descreviam o corpo da mulher quase sempre recorriam a imagens e símbolos, utilizando na maioria dos casos a forma de poesia. É o caso do Cântico dos cânticos, que a tradição judaica apresentou o sábio Salomão como seu autor. E nele podemos ler:

"Os teus dois peitos são como duas crias gêmeas de uma gazela, que se apascentam entre as açucenas. Antes que refresque o dia e fujam as sombras, irei à fonte da mirra e ao monte do incenso". 

Só um detalhe, tudo que acabamos de ler é simbólico, inclusive a fonte de mirra e o monte do incenso. Celebrar a sensualidade feminina fazia parte da cultura: as danças, o som dos pandeiros, as palmas e movimentos traduziam a alegria dos povos palestinos e seu encantamento diante da mulher. Assim, Jesus ben Sirac, no Eclesiástico, uma meditação sobre a fidelidade religiosa dos hebreus, nos diz que "a beleza de uma mulher alegra o olhar e excede a todos os desejos do homem. Se a bondade e a doçura estão nos seus lábios, o seu marido é o mais feliz dos homens". 

Mas, voltemos à cultura árabe. As mulheres árabes, com as danças, os véus e os coloridos de suas vestes sempre inspiraram à sensualidade. Mas nas mãos da religiosidade cristã ocidental, que viu a sensualidade como inimiga, os textos que falavam do prazer foram mantidos, mas relidos e interpretados a partir de uma espiritualidade que negou e vetou a materialidade humana, levando a leituras que confrontavam a sabedoria oriental. 

Na África islâmica medieval, um sábio se interessou em descobrir como dar prazer a uma mulher. Conhecedor do poder feminino, disse que a mulher é como um fruto, que só entrega sua doçura depois que o amante faz por merecer. Este sábio foi o xeque Omar Ibn Muhammad Nefzaui, que escreveu O Jardim Perfumado.

"Se não a animares com carícias preliminares, beijos, pequenas mordidas e toques, não obterás dela o que desejas; não sentirás prazer quando estiveres em teu leito, e não despertarás nela inclinação, afeto ou amor por ti; todas as tuas qualidades permanecerão ocultas". 

O xeque Nefzaui, que governou a região da atual Tunísia, no século XVI, nos leva a um mergulho na cultura e na compreensão do Eros no mundo árabe da época. Alguns considerarão os textos pouco sutis ou machistas, mas se entendermos que foram escritos há quinhentos anos e mantêm a força da tradição oriental, poderemos nos aproximar com maior profundidade da beleza da literatura erótica árabe.

Ele nos apresentou um retrato dos costumes reinantes entre as quatro paredes daquela civilização. Dividido em capítulos, traz ensinamentos direcionados ao homem, principalmente de como agradar uma mulher na cama. Há também trechos curiosos, como listas de nomes atribuídos aos órgãos sexuais, e receitas para superar “problemas” relacionados direta ou indiretamente ao sexo – da impotência e esterilidade a técnicas para aumentar o tamanho do pênis. Tudo descrito sem meandros, mas também sem deixar de lado a literatura e a poesia.

Traduzido em 1886, do francês, por Sir Richard Burton, o mesmo explorador que nos trouxe as histórias de Sherazade, o Jardim Perfumado é datado do início do século XVI e, provavelmente, foi escrito em Túnis, capital da Tunísia, onde o xeque Nefzaui viveu e desenvolveu conhecimentos de direito e medicina. 

Ao morrer, em 1890, Burton trabalhava em uma nova tradução do livro, a partir do original árabe, que continha inclusive um capítulo inédito sobre homossexuadade, cortado da edição francesa. Mas, sua esposa, por pudor, queimou os manuscritos após sua morte e o trabalho foi para sempre perdido. 

Vejamos alguns trechos d’O jardim perfumado.

"Foi Deus quem embelezou o colo da mulher com seios, quem a proveu com um queixo duplo e deu brilhantes cores às suas faces. Também a presenteou com pestanas que parecem lâminas polidas. Deus dotou-a de um ventre arredondado e um belo umbigo, e de ancas majestosas; e todas essas maravilhas são sustentadas pelas coxas. Foi entre estas últimas que Deus localizou a arena de combate; quando dispõe de carne abundante assemelha-se à cabeça de um leão. Chama-se vulva. Oh, quantas mortes de homens jazem às suas portas? E entre eles, quantos heróis? Deus proveu esse objeto com uma boca, uma língua, dois lábios; é como a marca da pata de uma gazela deixada nas areias do deserto.
O Senhor do Universo conferiu-lhes o poder da sedução; todos os homens, fracos ou fortes, estão sujeitos à fraqueza pelo amor da mulher. Por intermédio da mulher, temos sociedade ou dispersão, permanência num lugar ou dispersão". 

"Sabei que o mais aprazível coito nem sempre ocorre com o emprego das posições descritas. Às vezes, o coito mais delicioso tem lugar entre amantes que, não muito perfeitos nas suas proporções, encontram os seus próprios meios para uma mútua satisfação.»


"Por conseguinte, experimentai formas diversas, pois cada mulher gosta mais de uma que das outras para seu gozo. A maioria delas, entretanto, tem uma predileção pela Dok el arz..."


1- "Sabei que o homem, operando numa mulher mais jovem, adquire novo vigor; se da sua idade, tirará vantagem disso; e, finalmente, se mais velha que ele, absorverá toda a sua força para si".

2- "A manutenção do membro dentro da vulva de uma mulher, seja por longo ou curto espaço de tempo, após a ejaculação, enfraquece o órgão e torna-o menos apto ao coito".


3- "Sabei que há coisas que dão força e favorecem a ejaculação: saúde física, ausência de cuidados e preocupações, mente desembaraçada, jovialidade de espírito, boa nutrição, riqueza, a variedade dos rostos femininos e suas cores".


4- "Um homem que se sente fraco para o coito deve beber, antes de ir para a cama, um copo cheio de mel grosso e comer vinte amêndoas e cem pinhões. Pode, igualmente, derreter a gordura da corcova de um camelo e untar o seu membro com ela exatamente antes do ato; com isso realizará maravilhas e a mulher o louvará. Finalmente, o membro viril, untado com leite de jumenta, torna-se incomumente forte e vigoroso".


5- "Sabei que as más exalações da vulva e das axilas são, como também a vagina grande, os maiores males. Se a mulher deseja fazer desaparecer esse mau odor, deve pisar mirra vermelha, peneirá-la e misturá-la com água de mirta e lavar as partes sexuais com tal poção. Qualquer emanação desagradável desaparecerá. Outro remédio é obtido macerando alfazema e misturando-a depois com água de rosas e almíscares. Embebe-se um pedaço de material lanoso com a composição e esfrega-se com ele a vulva, até a aquecer. O mau cheiro será removido".


6- Se a mulher deseja contrair a vagina, tem apenas de dissolver alume em água e lavar as partes sexuais com a solução, que poderá tornar-se mais eficaz com o acréscimo de um pouco de casca de nogueira, sendo esta solução muito adstringente».

Espero que leitores e leitoras entendam que a preocupação deste sábio árabe era apresentar a magia da sensualidade feminina. Mas para a época ele vai além disso, acaba por apresentar um curso de educação sexual. 


Fonte

Xeque Omar Ibn Muhammad Nefzaui, O Jardim perfumado, Tunis, século XVI, Ed. Record, 1996.

EAN : 9782877306010 
360 pages 
Éditeur : EDITIONS PHILIPPE PICQUIER (28/05/2002) 

Note moyenne : 4/5 (sur 10 notes)
Résumé :
Le jardin parfumé, c'est le corps féminin, sorte de paradis terrestre où des voluptés inouïes sont possibles. Encore faut-il être initié à ses mystères et c'est semble-t-il la vocation didactique de ce livre du cheikh Nefzaoui dont les origines sont obscures mais le succès universel. Il s'agit d'un manuel d'érotologie arabe où tout ce qui concerne l'acte sexuel est répertorié : diversité des postures et des plaisirs, traité de physionomie, préceptes d'hygiène, préparations aromatiques, recettes aphrodisiaques, remèdes contre toutes les déficiences... Le tout enrichi d'anecdotes singulières et réjouissantes. Un certain nombre de gravures et de lithographies particulièrement licencieuses accompagnent les textes ; celles-ci ont vivement intéressé Guy de Maupassant qui les a commentées lors de la première traduction française à la fin du XIXe siècle. À la lecture de cet ouvrage, on pénètre donc dans un univers orientaliste où le désir est évoqué sans pudeur, de façon à la fois technique et poétique et n'offrant aucune limite à la sensualité. --Claire Mazurel 

(*) Jorge Pinheiro é Doutor em Ciências da Religião, com especialização em política e religião.