mardi 29 octobre 2024

O Apocalipse

O Apocalipse e seus três septenários
Jorge Pinheiro, PhD


Introdução


O livro do Apocalipse não deve ser lido como fonte de argumentos em prol de iminente fim do mundo. Para fundamentar tal visão, partimos da análise de teólogos como Agostinho, de reconhecido peso na história da Igreja, e de teólogos contemporâneos como Schwarz. 

O núcleo do Apocalipse dispõe-se em três septenários, que recapitulam a história da humanidade e da Igreja sob forma simbólica, mostrando que as calamidades da história estão englobadas num plano sábio do Eterno. Este dirá a última palavra, mas o livro não permite calcular a data da consumação dos tempos ou da parusia do Cristo. O Apocalipse é um livro de conforto e esperança e não um livro de desgraças. Deve ser lido dentro dos parâmetros do gênero literário apocalíptico, que tem estilo e linguajar próprios. Quem não leva em conta tais peculiaridades corre o risco de deduzir do texto o que ele não quer dizer.

O Apocalipse, com seus símbolos, leva muita gente à tentativa de calcular a data do fim do século presente. Por isso, antes de qualquer coisa, vamos trabalhar com os critérios deduzidos do próprio gênero literário apocalíptico e apresentar os problemas suscitados pelo livro e as soluções mais plausíveis para o mesmo. 

Dividiremos a nossa exposição em quatro partes: (1) O que é um apocalipse? (2) O contexto histórico do Apocalipse de João. (3) A interpretação do Apocalipse. (4) Questões especiais. 

O que é um Apocalipse? 

A palavra grega apokálypsis quer dizer revelação. O gênero literário apocalíptico esteve voga entre os judeus nos dois séculos anteriores e posteriores a Cristo. A sua origem se deve ao fato de que os profetas foram escasseando em Israel após o exílio babilônico (587-538 antes da Era Comum) -- os últimos profetas bíblicos, Ageu, Malaquias e Zacarias, exerceram o seu ministério nos séculos seis e cinco antes de Cristo.

Após o século quinto o povo de Israel continuou sujeito ao jugo estrangeiro: retornando do exílio babilônico em 538 a.E.C., ficou sob o domínio persa até Alexandre Magno (336-323 a.E.C.) da Macedônia, que conquistou a terra de Israel, anexando-a ao Império Macedônico. 

Após a morte do Imperador, a Palestina ficou sob os egípcios (dinastia dos Ptolomeus) até o ano de 200 a.E.C. Nesta data, os sírios ocuparam e dominaram a terra de Israel, constituindo aí o período dos Antíocos ou Selêucidas. 

As novas ideias

As questões escatológicas que surgem durante o período Macabeu traduzem três tipos de preocupações: 1. Como Israel se libertará da dominação pagã e o reino de Deus se realizará? 2. Qual o destino último dos justos e dos pecadores? 3. Quando terminará o caos e a maldade na história?

Acontece que as guerras e as violentas transformações sociais vividas por Israel não levantaram apenas questões escatológicas, mas também éticas e políticas. Assim, durante esses anos de crise generalizada, a visão espiritual rompeu suas cadeias formais e permitiu uma produção multifacetada até então inédita na história judaica. Esquematicamente, podemos agrupar este processo de produção de novas ideias em três grandes grupos: nacionalista, de sabedoria e apocalíptico.

Para falar dos três é preciso entender que a visão profética clássica nasce de uma profunda compreensão do momento presente e do coração de Deus. Nesse sentido, o profeta clássico tem sempre um conhecimento da dialética do momento presente e, chamado pelo Eterno, apresenta sua vontade ao povo. Mas, o profeta não é apenas um analista crítico e sim um atalaia que prega uma postura correta diante do Eterno. Nesse sentido, a profecia clássica sempre foi também um exercício ético.

A história de Israel sob os Macabeus foi uma história de crise social. Tempo que permitiu o surgimento e necessitou a presença de profetas. Tempo onde a memória dos servos do Eterno emergiu com toda a sua radicalidade: Ele está ao lado do perseguido e contra o perseguidor. Esta memória se transformou numa visão global da história. E não nasceu da acomodação, nem da alienação diante da injustiça, mas da compreensão daquele momento presente e da vontade do Eterno para seu povo escolhido.

Sem dúvida, o Eterno falou a seu povo através de sábios e mestres, mesmo quando estes, para evitar a perseguição e o martírio, reeditavam antigos manuscritos, traduziam para a realidade presente histórias memoriais, e, sobretudo, omitiam seus verdadeiros nomes. Durante todo o período, antigas promessas foram apresentadas com maiores detalhes. Avivados pela palavra profética, o povo tomou conhecimento da revelação do Eterno. Se há na história da revelação um desenvolvimento gradual e se a base histórica da revelação é linear, mas o desenvolvimento da fé não o é, no período Macabeu chegou-se a um processo combinado, onde aspectos até então pouco definidos emergiram com claridade.

Dessa maneira, quer nos escritos éticos, quer nos escritos políticos, encontramos uma visão profética, resgatada da memória dos textos bíblicos antigos. Mas, sem dúvida, essa revolução do pensamento religioso judaico alcançará seu momento de maior expressão com a literatura apocalíptica.

Situamos na época dos Macabeus, período que vai da ascensão dos selêucidas até 67 a.E.C., a seguinte literatura: (1) Apócrifos Éticos (literatura de sabedoria): Tobias; Sentenças de Ieshua ben Sirah (Eclesiástico); Livro da Sabedoria de Salomão. (2) Apócrifos Políticos (literatura nacionalista): I Macabeus, II Macabeus. (3) Apócrifos Apocalípticos (literatura de revelação): Judite, II Esdras e Baruch. Entre os pseudepígrafos da era dos Macabeus, temos a Carta de Aristéia; o livro dos Jubileus; os Oráculos Sibilinos; Enoque (etiópico); e o Testamento dos Doze Patriarcas.

Como a profecia anterior, o apocalipse é uma revelação de aviso do julgamento do Eterno e promessa de salvação. Mas sob vários aspectos, é uma transformação na forma e conteúdo da experiência de revelação do judaísmo anterior.

Os profetas clássicos, por exemplo, falavam à sua própria sociedade, o que requeria imediatas escolhas políticas e éticas, que podiam afetar ou modificar o juízo divino iminente. Para eles, o futuro permanecia aberto, porque a decisão do Eterno poderia mudar, caso a comunidade se arrependesse.

Os apocalípticos, no entanto, encaram a história como um processo fechado e unificado, vendo a sua própria era como derradeiro elo de eventos que se desenrolam em sequência pré-ordenada. Ao contrário das promessas escatológicas da profecia clássica, que viam um “fim dos dias” no futuro distante, o autor apocalíptico crê que a meta está a seu alcance: está aqui o fim da dominação pagã, a completa salvação de Israel, a manifestação final do reino do Eterno na terra. O escritor apocalíptico oferece um panorama muito mais amplo da ascensão e queda de vastos impérios, mas seu interesse em relação ao mundo real e imediato é muito menor que o do profeta clássico. Seu olho focaliza outro mundo.

Outra diferença entre a profecia clássica e a literatura apocalíptica envolve sua proximidade com o reino do céu. Os profetas clássicos, com exceção de Ezequiel, eram reticentes nos relatos do que viam durante a revelação. Sua tarefa principal era comunicar a ordem oral e não apresentar uma descrição visual da corte divina. Já o apocalíptico descreve suas visitas ao céu com pormenores, mencionando os anjos pelos nomes e falando dos palácios, sala do trono e membros da corte celestial que cercam o divino rei.

O simbolismo misterioso e a ênfase na escatologia indicam uma ligação com a profecia tardia do pré-exílio, mas o pensamento apocalíptico deve muito à tradição da sabedoria helenística. 

O ponto mais importante de contato entre a literatura apocalíptica e a sabedoria grega é a idéia de uma ordem cósmica predeterminada. Anteriormente, foi a idéia de inacessibilidade que levou às meditações de Eclesiastes sobre a ilusão do esforço humano. Agora, a literatura apocalíptica traduz essa ordem em plano providencial do Eterno para a história.

A preocupação do escritor apocalíptico com o definitivo não cessa com a história. O poder do Eterno não pode ser limitado pela morte, de modo que a escatologia política é tanto pessoal como histórica. Assim, o capítulo doze de Daniel é o primeiro texto bíblico a referir-se claramente à ressurreição dos mortos: “alguns para a vida eterna, outros para a vergonha e desprezo eternos” (Dn 12.2). No final dos dias, os justos “que dormem no pó da terra” retornarão para “brilhar como as luminárias do firmamento... como estrelas, para todo o sempre” (Dn 12.3).

É importante notar que é no período Macabeu que a idéia da ressurreição toma corpo, a ponto de transformar-se numa idéia-força do judaísmo popular daí para a frente. A fé na ressurreição dos mortos aparece de forma muito clara em II Macabeus 7.9 e 14.46 e é o fundo da história do martírio dos sete irmãos (II Mc.7.11, 14, 23, 29 e 36). Antes, só temos em todo o Antigo Testamento dois versículos que falam da ressurreição (Is 26.19 e Jó 19.26s).

Outras obras importantes que fazem parte da literatura apocalíptica da época -- embora considerados apócrifos e pseudepígrafos, por não estarem no cânon judaico -- são os livros de Enoque, II Esdras e Baruch.

Enoque é uma obra longa, uma edição de fragmentos vários. No correr do livro, o narrador Enoque (Gn. 5.21-24) descreve suas visitas aos extremos da terra e sua ascensão aos palácios celestiais. O livro inclui um tratado sobre astronomia, poemas sobre o destino derradeiro do justo e do pecador, e uma seção chamada Similitudes, referente ao eleito ou Filho do Homem, que será mandado pelo Eterno nos últimos dias para julgar a humanidade.

Em II Esdras, o narrador sente-se perplexo ante as calamidades que recaem sobre Israel, o aparente abandono em que o Eterno deixa seu povo e pergunta por que tão poucos merecerão a vida eterna. Um anjo dá a Esdras conta do significado da história e seu fim, instruindo que escreva e esconda “setenta livros” que consolarão os que viverem antes dos últimos dias.

Baruch, de quem se diz ter sido escriba de Jeremias, trata de questões similares. Contém uma oração de confissão e de esperança, um poema sapiencial, no qual a sabedoria é identificada com a Lei, um trecho profético, onde Jerusalém personificada se dirige aos judeus da diáspora e onde o profeta a encoraja com a evocação das esperanças messiânicas.

A importância dessa coleção de textos sob o nome de Baruch é nos levar às comunidades da diáspora e de nos mostrar como a vida religiosa também lá, distante, estava relacionada com Jerusalém, pela oração, pelo culto à Lei, pelas promessas proféticas e pelo espírito messiânico.

Assim, a partir dos diferentes textos apocalípticos podemos definir os elementos formais desse gênero de literatura: 

(a) A pseudonímia do autor. É um contemporâneo dos seus primeiros leitores, mas fala como se fosse um personagem antigo.

(b) O caráter reservado das revelações. Estas foram comunicadas ao personagem da Antiguidade; deviam, porém, ficar em segredo até os dias do autor do apocalipse. 

(c) Frequentes intervenções de anjos. Estes aparecem, nos apocalipses, ora como ministros do Eterno que colaboram com a Providência Divina na dispensação da salvação, ora como intérpretes das visões ou revelações que o autor do livro descreve. Cf. Ez 40.3; Zc 2.1s; 2.5-9; 5.1-4; 6.1-8; Ap 7.1-3; 8.1-13. 

(d) Simbolismo singular. Animais podem significar pessoas e povos; feras e aves representam geralmente as nações pagãs; os anjos bons são descritos como se fossem homens, e os maus como estrelas caídas. O recurso aos números é frequente, explorando-se então o simbolismo dos mesmos -- 3, 7, 10, 12, 1000 como símbolos de bonança; 3 ½, como símbolo de penúria e tribulação. É a exuberância do simbolismo dos apocalipses que torna difícil a compreensão dos mesmos. O leitor deve entender esse simbolismo a partir de passagens bíblicas e extra-bíblicas paralelas. Há símbolos que se repetem com a mesma significação: gafanhotos, águias, cedro, três anos e meio, mil anos ... Os autores de apocalipses se sentem livres para conceber seus símbolos, suas visões e personificações. Propõem cenas sem se preocupar com o verossímil da realidade. Nesse sentido constroem virtualidades, conforme vemos na descrição da Jerusalém futura em Ez 47.1-12 e Ap 21.1-7. 

(e) Forte escatologia. Os apocalipses se voltam todos para os tempos finais da história e os descrevem apresentando a intervenção do Eterno em meio a um cenário cósmico, o julgamento dos povos, o abalo da natureza, a punição dos maus e a exaltação dos bons, estando reservado para Israel nesse contexto um papel de relevo e recompensa.

Este traço diferencia a profecia do apocalipse. A profecia é sempre uma palavra dita em nome do Eterno (propheemi = dizer em lugar de). Nem sempre visa ao futuro, refere-se muitas vezes a situações do presente, procurando sacudir os homens de sua indiferença ou da hipocrisia de vida, levando-os a conduta moral digna e correta. A profecia tem um caráter moralizante, válido para os contemporâneos, mas nem sempre voltado para a escatologia. 

Nos apocalipses o foco moral perde força: o que preocupa João são os acontecimentos finais da história, que redundarão em derrota definitiva dos maus e prêmio para os bons. Os símbolos e visões, que os profetas já cultivavam, tornam-se os elementos dominantes na forma literária dos apocalipses. 

Assim, durante o período Macabeu muitas idéias novas afloraram em meio à vida judaica. Podemos citar desde o ressurgimento da figura da mulher, com a história de Judite e a personificação da sabedoria (Eclesiástico 24), o casamento monogâmico, o batismo, e elementos conceituais da doutrina do Espírito Santo. Mas, sem dúvida, duas idéias revolucionaram o judaísmo: (1) A recompensa apresentada pelas profecias apocalípticas, que se traduz concretamente na ressurreição; (2) e a promessa da autoridade profética, restauradora da justiça, apresentada na figura do Messias.

Essas duas idéias deram uma vida nova ao judaísmo, fazendo com que transcendesse às formalidades das leis e rituais. A partir desse momento, surgiu um judaísmo da pessoa comum, cheio de fé na aparição iminente do Messias e na recompensa divina através da ressurreição. Esse judaísmo ocupou as ruas, subiu os montes, fugiu para o deserto. 

Os romanos em 63 a.E.C. invadiram o território palestino e impuseram seu jugo aos judeus, jugo que perdurou até que o povo de Israel foi expulso da sua terra no ano 70 da Era Comum, com a queda e ruína de Jerusalém. Nessas circunstâncias de vida o povo de Israel, não tendo profeta, sentia necessidade de ser consolado e alentado para não desfalecer. Foi então que autores judeus se puseram a cultivar o gênero literário apocalíptico, que tem afinidade com a profecia, mas não se identifica com esta. 

João tinha razões para consolar seus companheiros perseguidos e predizer a vitória final do bem sobre o mal, porque esta é anunciada pelas profecias e promessas feitas a Israel. O autor de um apocalipse nada acrescenta a essas promessas, apenas as tornam atuais, repetindo-as de maneira enfática em momento penoso da história do seu povo e anunciando para breve o cumprimento das mesmas. De resto, a salvação, já oferecida pelo Eterno em fases anteriores de tribulações de Israel, era penhor de que o Senhor não abandonaria seu povo. 

As circunstância de origem

No fim do século primeiro d.E.C. tornava-se cada vez mais penosa a situação dos cristãos disseminados no Império Romano. Em verdade, o Senhor Jesus deixou este mundo, intimando aos discípulos para que aguardassem sua volta gloriosa; não lhes quis indicar, porém, nem o dia nem a hora de sua vinda, pois esta deveria ser tida como a de um ladrão que aparece imprevistamente à meia-noite (cf. Mt 24.43; 1 Ts 5.2s); vigiassem, pois, e orassem em santa expectativa. Todavia, apesar da sobriedade das palavras de Jesus, os discípulos esperavam que a sua vinda se desse em breve, enquanto ainda vivesse a geração dos Apóstolos mesmos. À medida, porém, que se passavam os decênios, essa esperança se dissipava; a não poucos parecia que Cristo havia esquecido a sua Igreja e que vão era crer no Evangelho. 

A situação se tornara ainda mais angustiosa desde que Nero, em 64, desencadeara a primeira perseguição violenta contra os cristãos. Ser discípulo equivalia a ser tido como inimigo de César. Havia naturalmente um confronto entre mentalidade cristã e mentalidade pagã, e por viverem numa sociedade pagã, os cristãos se abstinham de participar de festas de família, das celebrações cívicas, dos jogos públicos, e de profissões e ramos de negócio, que traduziam a mentalidade politeísta e supersticiosa da época. 

Na Ásia Menor o ambiente estava carregado dessa presença do pensamento do pensamento pagão: o culto ao Imperador era ponto chave da fidelidade de um cidadão romano. Desde 195 a.C., Esmirna possuía um templo consagrado à deusa Roma. Em 26 d.C., as autoridades da cidade ergueram outro santuário em honra à Tibério, Lívio e ao Senado. Em Pérgamo, desde 29 a.C., se instituiu o culto ao Imperador. Na cidade de Éfeso, nos inícios do reinado de Augusto, foi construído um altar dedicado a ele, que ficava no templo de Diana. Os habitantes da Ásia Menor praticavam estes cultos e sentiam beneficiados pelos governantes de Roma, já que eles puseram fim às guerras civis na região, o que assegurou à população desenvolvimento da indústria, do comércio e da cultura. 

Outro perigo para o Cristianismo se fazia notar na Ásia Menor em fins do século I. As gentes dessa região era religiosa, de sorte que dava acolhida não somente às religiões tradicionais do Império e ao Cristianismo, mas também aos cultos de mistério de Mitra, Cibele e Apolo, trazidos do Oriente. Tais mistérios fascinavam pela sua índole secreta e por sua promessa de divinização. 

Esse estado de coisas permite tirar a seguinte conclusão: na Ásia Menor uma religião que, como o Cristianismo, professasse rigorosamente um Deus único e transcendente manifestado por um só Salvador, Jesus, devia necessariamente defrontar-se em breve com formidável aliança de todas as forças do paganismo: sistemas religiosos, interesses políticos, planos econômicos deviam armar-se num combate unânime e cerrado contra o monoteísmo cristão; ser discípulo de Cristo, em tais circunstâncias, significaria sofrer o ódio e o boicote geral de parentes, amigos e concidadãos não cristãos, de tal modo que até mesmo na vida cotidiana do lar o cristão se sentiria sufocado por causa de sua fé. 

Assim, o Império Romano realizou dez perseguições contra os cristãos, dirigidas por Nero (64), Domiciano (95), Trajano (112), Marco Aurélio (117), Sétimo Severo (fim do segundo século), Maximiano (235), Décio (250), Valeriano (257), Aureliano e Diocleciano (303).

A situação sugeria a não poucos discípulos de Jesus ou a apostasia em relação ao Divino Mestre ou uma espécie de pacto com as idéias do paganismo, de sorte a dar origem ao sincretismo religioso (caracterizado principalmente pelo dualismo ou o repúdio à matéria que a mística oriental muito propalava). Foi em tais circunstâncias sombrias que João quis escrever o Apocalipse. 

A finalidade do livro torna-se assim evidente. O autor visava, acima de tudo, alentar nos seus fiéis a coragem; o Apocalipse, em consequência, é essencialmente o livro da esperança cristã ou da confiança inabalável no Senhor Jesus e nas suas promessas de vitória. Pergunta-se então: como terá João procurado levantar o ânimo e corroborar a esperança dos leitores? Haverá, em nome de Deus, prometido dias melhores aqui na terra em recompensa da fidelidade a Cristo, de maneira que quem fosse hostilizado por causa do Senhor Jesus viria a ser estimado pelos concidadãos e acariciado por prósperas condições de vida temporal (economia feliz, saúde, sucesso nos empreendimentos...)? 

A interpretação do Apocalipse

Como se sabe, grande é o número de sistemas que tentam interpretar o Apocalipse. Todos concordam sobre o sentido geral do livro, que quer anunciar a vitória do Bem sobre o mal, do reino de Cristo sobre as maquinações dos pecadores. Divergem, porém, quando tentam indicar a época precisa em que o Apocalipse situa essa vitória. As diversas teorias se agrupam sob os títulos seguintes:

Sistema do fim dos tempos: João estaria descrevendo os embates finais da história. Esta interpretação esteve em voga na Antigüidade; foi posta de lado na Idade Média; do século XVI aos nossos dias é mais e mais prestigiada principalmente por parte de correntes que profetizam o fim do mundo para breve;

Sistema da história antiga (do século I aos séculos IV/V): o Apocalipse descreveria a luta do judaísmo e do paganismo contra os discípulos de Cristo, luta que terminou com a queda da Roma pagã (476) e o triunfo do Cristianismo;

Sistema da história universal: o Apocalipse apresentaria, sob a forma de símbolos, uma visão completa de toda a história do Cristianismo; descreveria sucessivamente os principais episódios de cada época e do fim do mundo. 

Todas estas interpretações são, de algum modo, falhas, pois não levam em conta suficiente o estilo próprio do livro e querem deduzir do Apocalipse notícias que satisfaçam aos anseios ou à curiosidade do leitor. Por isto, deixando-as de lado, propomos a leitura da recapitulação, proposta por Alio. Examinemos essa teoria:

A Recapitulação

Antes do mais, é necessário observar que nem todo o livro do Apocalipse está redigido em estilo apocalíptico. Compreende duas partes anunciadas em Ap 1.19: 

1.4-3.22: as coisas que são (revisão da vida das sete comunidades da Ásia Menor às quais João escreve); o estilo é sapiencial e pastoral;

4.1-22.15: as coisas que devem acontecer depois. Esta é a parte apocalíptica propriamente dita, para a qual se volta a nossa atenção. Observemos a estrutura dessa parte:

4.1-5.14: a corte celeste, com sua liturgia. O Cordeiro "de pé, como que imolado" (5.6), recebe em suas mãos o livro da história da humanidade. Tudo o que acontece no mundo está sob o domínio desse Senhor, que é o Rei dos séculos. Notemos assim que a parte apocalíptica do livro se abre com uma grandiosa cena de paz e segurança; qualquer quadro de desgraça posterior está subordinado a essa intuição inicial. 

O corpo do livro, que se segue, compreende três septenários: 6.1-8.1: os sete selos 8.2-11.18: as sete trombetas 15.5-16.21: as sete taças. Reflitamos sobre este núcleo central (de sentido decisivo) do Apocalipse. 

Pergunta-se: uma estrutura construída de forma tão sofisticada poderá ainda ser o reflexo imediato da história tal como ela é vivida pelos homens? Não seria, antes, o fruto de um arranjo lógico ou do trabalho de alguém que reflete sobre os acontecimentos e procura discernir alguns fios condutores por debaixo das diversas ocorrências da vida cotidiana?

Sabemos que o estilo de João é comparado ao voo de uma águia que gira em torno do objeto contemplado até finalmente dar o bote ou dizer claramente o que quer. Levando em conta esta peculiaridade de estilo, podemos dizer que o autor não expõe os sucessivos acontecimentos concretos da história do Cristianismo, mas apresenta a realidade invisível que se vai afirmando por trás dos episódios visíveis da história. 

Em outros termos: o Apocalipse apresenta (sob a forma de símbolos) a luta entre Cristo e Satanás, luta que é o fundo e a coluna dorsal de toda a história. Cada septenário (o dos selos, o das trombetas e o das taças) é uma peça literária completa em si mesma; o número sete, aliás, significa plenitude ou totalidade, segundo a mística dos antigos. 

A seguir, de 17.1 a 22.15, ou seja, após os três septenários, ocorre a queda dos agentes do mal:

17.1-19.10: a queda de Babilônia (símbolo da Roma pagã);

19.11-21: a queda das duas feras que regem Babilônia (o poder imperial pagão e a religião oficial do Império); 

20.1-15: a queda do Dragão, supremo instigador do mal. 

Em contra-parte, a seção final (21.1-22.15) mostra a Jerusalém celeste, esposa do Cordeiro e antítese da Babilônia pervertida. Os versos 22.16-21 constituem o epílogo do livro. Aprofundemos um pouco mais o sentido do tríplice septenário central do Apocalipse. 

O primeiro, o dos selos (6,1-8,1), nos dá a ver a paulatina abertura do livro que está nas mãos do Cordeiro. É o septenário mais sóbrio e nítido, que, pode-se dizer, resume o livro inteiro; examinemo-lo de perto:

O primeiro selo corresponde a "um cavalo branco, cujo cavaleiro tinha um arco. Deram-lhe uma coroa e ele partiu vencedor e para vencer ainda" (5,2). O cavalo branco reaparece em 19,11-16; seu montador é o Senhor dos Senhores e o Rei dos Reis (19,16). - Conseqüentemente dizemos que o primeiro septenário se abre com uma figura alvissareira: a do Verbo de Deus ou Evangelho que, vencedor (porque já propagado no mundo), se dispõe a mais ainda se difundir. Sobre este pano de fundo vêm os três flagelos clássicos da história:

O segundo selo corresponde ao cavalo vermelho, símbolo da guerra (6,3s);

O terceiro selo é o do cavalo negro, símbolo da fome negra e da carestia que a guerra acarreta (6,5s);

O quarto selo é o do cavalo esverdeado, símbolo da peste e da morte decorrentes da guerra e da fome (6,7s). 

Aí estão os três flagelos que afligem os homens em todos os tempos e que a Bíblia freqüentemente menciona; cf. Lv 26,23-29; Dt 32,24s; Ez 5,17; 6,11-12; 7,15; 12,16. 

Depois disto, o quinto selo apresenta os mártires no céu pedindo a Deus justiça para a terra ou o fim da desordem que campeia no mundo. Reproduzem o clamor dos justos de todos os tempos ansiosos de que termine a inversão dos valores na história da humanidade. Em resposta, é-lhes dito que tenham paciência e aguardem que se complete o número dos habitantes da Jerusalém celeste; cf. 6,9-11. 

O sexto selo já nos põe em presença do desfecho da história: chegou o Grande Dia do juízo final (6,17). Aparecem então os justos na bem-aventurança celeste: os judeus representados por 144.000 assinalados, e os provenientes do paganismo, a constituir "uma multidão inumerável de todas as nações, tribos, povos e línguas" (7,9); celebram a liturgia celeste. 

Aqui se encerra propriamente o primeiro septenário; compreende em suas grandes linhas os aspectos aflitivos da história da humanidade e o anseio dos justos para que a ordem se restabeleça; a consumação da história é, para os fiéis, vitória e felicidade. A consolação que João quer transmitir aos seus leitores, consiste precisamente em mostrar que as calamidades sob as quais os homens gemem, estão envolvidas num plano sábio de Deus, onde todos os males estão dimensionados para que sirvam à salvação das criaturas e à glória do Criador. Eis aí a síntese do Apocalipse apresentada com clareza no primeiro septenário. 

E o sétimo selo (8.1) corresponde a um silêncio de meia-hora. Sim, o livro se abriu por completo. João espera a execução dos desígnios de Deus contidos no livro aberto. Este silêncio de meia-hora é o "gancho" que remete ao segundo septenário. 

O segundo e o terceiro septenários (8.2-11,18 e 15.5-16,21) retomam o conteúdo do primeiro com algumas variantes. Observemos, para começar, que terminam cada qual com a consumação da história (sétima trombeta em 11,1418 e sétima taça em 16.17-21). O segundo septenário tem em vista principalmente os flagelos que afligem o mundo profano: a terra, a vegetação, as águas, os astros... Ao contrário, o terceiro septenário tem em mira as sortes da Igreja perseguida pelo Dragão (Satanás) e seus dois agentes (o poder imperial pagão, que manipula a religião oficial do Estado pagão). Observemos dentro do segundo septenário o "gancho" do qual pende o terceiro septenário: em Ap 10,8-11 é entregue a João um livrinho, doce na boca e amargo no estômago. Como entender isto? -- O segundo septenário apresenta a execução do plano de Deus contido no livro cujos selos se abriram. Portanto, se deve haver outra série de revelações, deve haver também outro livro que as traga; é precisamente este que João recebe em 10,811 (amargo no estômago, porque portador de notícias pesadas para os cristãos fiéis). 

Merece atenção especial o intervalo ocorrente entre o segundo e o terceiro septenários, ou seja, a secção de 11,19 a 15,4. Ele prepara a série das taças, apresentando os grandes protagonistas da história da Igreja: a Mulher e o Dragão no capítulo 12; as duas Bestas, manipuladas pelo Dragão, sendo que a primeira sobe do mar (quem olha da ilha de Patmos para o grande mar, se volta para Roma) e representa o poder imperial perseguidor, ao passo que a segunda Besta sobe da terra (quem de Patmos olha para o continente próximo, volta-se para a Ásia Menor, onde campeia o culto religioso do Imperador); ver respectivamente Ap 13,1 e 11. 

A sede capital destes dois agentes é Babilônia (= a Roma pagã). O cap. 12, ao apresentar a Mulher e o Dragão, é também uma síntese da mensagem da Apocalipse e da história da Igreja, que será comentada na quarta parte deste estudo. - Como dito, os agentes do mal estão fadados a perecer, como se lê em 17,1-20,15, dando lugar à Jerusalém celeste e à bem-aventurança dos justos. 

Por conseguinte as calamidades que o Apocalipse apresenta a se desencadear sobre o mundo, não hão de ser interpretadas ao pé da letra; antes, depreender-se-á o seu sentido à luz das cenas de paz e triunfo que João intercala entre as narrativas de flagelos (enquanto os justos padecem na terra, há plena segurança no céu, conforme o Apocalipse). Justapondo aflições (na terra) e alegria (no céu), João queria precisamente dizer aos seus leitores que as tribulações desta vida estão em relação estrita com a Sabedoria de Deus; foram cuidadosamente previstas pelo Senhor, que as quis incluir dentro de um plano muito harmonioso, plano ao qual nada escapa. 

Em consequência, ao padecer as aflições da vida cotidiana, os cristãos deviam se lembrar de que tais adversidades não esgotam toda a realidade, mas são apenas as facetas externas e visíveis de uma realidade que tem seu aspecto celeste e grandioso. As calamidades sob as quais os cristãos do primeiro século se sentiam prestes a desfalecer, não os deveriam impressionar, constituíam como que o lado de baixo de um tapete que, visto no seu aspecto autêntico e superior, é um verdadeiro tapete oriental, cheio de ricas cores e belos desenhos. 

Eis a forma de consolo que João queria incutir aos seus leitores (não só do séc. I, mas de todos os tempos da história): os acontecimentos que nos acometem aqui na terra são algo de ambíguo ou algo que tem duas faces: uma exterior, visível, a qual é muitas vezes aflitiva e tende a nos abater; outra, porém, interior, invisível aos olhos da carne (mas perceptível aos olhos da fé), a qual é grandiosa e bela, pois faz parte da luta vitoriosa do Bem sobre o mal; é mesmo a prolongação da obra do Cordeiro que foi imolado, mas atualmente reina sobre o mundo com as suas chagas glorificadas (cf. c. 5). Por isto, enquanto os cristãos na terra gemem (Ai, ai, ai!), os bem-aventurados na glória cantam (Aleluia, aleluia, aleluia!). 

No céu os justos não se acabrunham com o que acontece de calamitoso na terra: continuam a cantar a Deus porque percebem o sentido verdadeiro das nossas tribulações. No dizer de João, essa mesma paz e tranqüilidade devem tornar-se a partilha dos cristãos na terra, pois, embora vivam no tempo e no mundo presentes, já possuem a eternidade e o céu sob forma de semente (semente da graça santificante, que é semente da glória celeste). 

Assim o Apocalipse oferece uma imagem do que é a vida do cristão e a vida da Igreja: é uma realidade simultaneamente da terra e do céu, do tempo e da eternidade. Na medida em que é da terra e do tempo, apresenta-se aflitiva. Este aspecto, porém, está longe de ser essencial: no seu âmago, a vida do cristão é celeste e, como tal, é tranqüila, à semelhança da vida dos justos que no céu possuem em plenitude aquilo que os cristãos possuem na terra em germe. 

DOIS TEXTOS EM PARTICULAR

Examinaremos Ap 12.1-17 e 20.1-10. 

Ap 12.1-17

Este capítulo sintetiza toda a história da Igreja sob a forma da luta entre a Mulher e o Dragão, figuras paralelas às da Mulher e da serpente em Gn 3.15. Este trecho apresenta uma Mulher gloriosa e sofredora ao mesmo tempo. Está para dar à luz um filho que um monstruoso Dragão espreita para abocanhá-lo. A Mulher gera seu Filho, que tem os traços do Messias. Ele escapa ao Dragão e é arrebatado aos céus. Dá-se então uma batalha entre Miguel com seus anjos e o Dragão, que acaba sendo projetado do céu sobre a terra, onde procura abater a Mulher-Mãe, perseguindo-a de diversos modos. Mas o próprio Deus se encarrega de defender a Mulher no deserto durante os três anos e meio ou os 42 meses ou os 1260 dias de sua existência. 

Vendo que nada pode contra essa figura grandiosa, a Serpente antiga atira-se contra os demais filhos da Mulher, tentando perdê-los. Que significa este capítulo? Está claro que o Dragão representa Satanás, aquele que é "mentiroso e homicida desde o início" (cf. Jo 8.44). 

Quanto à Mulher, não pode ser identificada com algum personagem individual, mas é a Mulher que perpassa toda a história da salvação. Com efeito; já à primeira Eva (mãe dos vivos) Deus prometeu um nobre papel na obra da Redenção. A primeira Eva se prolongou na Filha de Sião, o povo de Israel, do qual nasceu o Messias. A filha de Sião culminou na segunda Eva, a Igreja de Cristo. Por isso, em Ap 12.1 e seguintes, a Mulher é gloriosa, mas sofredora como o povo de Israel, pois os filhos que ela gera estão sujeitos a ser atingidos pela sanha do Dragão, que age neste mundo como um Adversário já vencido, mas desejoso de arrebanhar os incautos que lhe dêem ouvidos. Agostinho diz que o demônio é um cão acorrentado: pode ladrar, fazendo muito barulho, mas só morde a quem se lhe chegue perto. Por último, esta Mulher-Mãe, Igreja que exerce sua maternidade por toda a história da salvação, se consumará na Jerusalém celeste, a Esposa do Cordeiro (Ap 21 s). 

A batalha entre Miguel e o Dragão não corresponde à queda original dos anjos, mas significa plasticamente a derrota de Satanás, vencido quando Cristo venceu a morte por sua Ressurreição e Ascensão. Deus permite Satanás tentar os homens nestes séculos da história da Igreja, com um fim providencial, provar e consolidar a fidelidade dos crentes. Satanás só age por permissão de Deus. 

A duração de 1260 dias ou 3 anos e meio que a Mulher passa no deserto, não significa cronologia, mas tem valor simbólico. Com efeito, três anos e meio, 42 meses e 1260 dias são termos equivalentes entre si: correspondem à metade de sete anos. Sete é o símbolo da totalidade, da perfeição, da bonança e, por conseguinte, a metade de sete é o símbolo do que está inacabado, da dor. Portanto, três anos e meio (e as expressões equivalentes em meses e dias) no Apocalipse traduzem toda a história da Igreja na medida em que não é algo concluído, que é a penosa luta da Igreja entre a primeira e a segunda vinda de Cristo, no deserto deste mundo. 

Ap 20.1-10 

É este o trecho que fala de um aparente reino milenar de Cristo sobre a terra, estando Satanás acorrentado. O milênio seria inaugurado pela primeira ressurreição, reservada aos justos apenas, aos quais seria dado viver em paz e bonança com Cristo. Terminado o milênio, Satanás seria solto para realizar a seu ataque final, que terminaria com a sua derrota definitiva. Dar-se-iam então a segunda ressurreição, para os demais seres humanos, e o juízo final. 

A teoria milenarista, entendida ao pé da letra, foi professada por antigos escritores da Igreja: Justino (+165), Irineu (+202), Tertuliano (+ após 220), Lactâncio (+ após 317). Agostinho (+430) propôs novo modo de entender o texto, a partir a leitura de João 5.25-29, onde se lê: 

“Em verdade, em verdade vos digo, aquele que ouve a minha palavra... passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo, que vem a hora, e já veio, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem viverão”. 

“Não vos admireis disto, pois vem a hora em que ouvirão sua voz todos os que estão nos sepulcros. Os que praticaram o bem sairão para a ressurreição da vida, os que, porém, praticaram o mal, sairão para a ressurreição do juízo". 

Nesse trecho, o Senhor distingue duas ressurreições: uma, que se dá "agora" ("e já veio"), no tempo presente, quando ressoa a pregação da Boa Nova: é espiritual e publicitada através do batismo; equivale à passagem da vida no pecado para a vida na graça que santifica. A outra é futura e se dará no fim dos tempos, quando os corpos forem transformados pela vida na graça por enquanto latente nos salvos. 

Assim, no Apocalipse a ressurreição primeira é a passagem da morte para a vida que se dá na conversão de cada cristão, quando este começa a viver a vida sobrenatural ou a vida do céu em meio às lutas da terra. A segunda ressurreição é, sim, a ressurreição dos corpos, que se dará quando Cristo vier em sua glória para julgar todos os homens e por termo definitivo à história. 

Mil anos, em Ap 20.1-10, designam a história da Igreja na medida em que é luta vitoriosa ("mil" é um símbolo de plenitude, de perfeição; "mil felicidades", na linguagem popular, são "todas as felicidades"). Pela redenção na cruz, Cristo venceu o príncipe deste mundo (cf. Jo 12.31), tornando-o semelhante a um cão acorrentado, que muito pode ladrar, mas que só pode morder a quem voluntariamente se lhe chegue perto (Agostinho). 

É justamente esta a situação do Maligno na época que vai da Encarnação à parusia do Cristo ou no decurso da história do Cristianismo. Por isto os três anos e meio que simbolizam o aspecto doloroso desses séculos (já estamos no vigésimo-primeiro século), são equivalentes a mil anos, caso queiramos deter nossa atenção sobre o aspecto feliz, transcendente ou celeste da vida do cristão que peregrina sobre a terra: a graça santificante é a semente da glória do céu. 

Assim se vê quanto seria contrário à mentalidade de João tomar ao pé da letra os mil anos do capítulo 20 e admitir um reino milenário de Cristo visível na terra após o término da história atual. 

Considerações finais

O sistema da recapitulação proposto merece a preferência aos demais, pois é o que mais leva em conta a mentalidade e o estilo de João. Este, também no seu Evangelho, recorreu ao estilo da recapitulação em espiral. Contudo não se pode negar as alusões do Apocalipse aos personagens e situações da história antiga -- Nero, a invasão dos bárbaros, Roma, Babilônia ... 

Mediante essas referências, João não tinha em vista deter a atenção do seu leitor sobre episódios da Antiguidade, mas mencionar tipos característicos de mentalidades humanas ou de situações de vida que acompanham toda a história da Igreja: assim Nero vem a ser o protótipo dos soberanos políticos que perseguem a Igreja em qualquer época -- há muitas reproduções de Nero através da história. Por isto também o número 666 da Besta do Apocalipse, adversária dos cristãos, equivale, segundo a interpretação mais provável, à expressão Kaisar Neron, Imperador Nero. 

Roma e Babilônia, por sua vez, designam de maneira típica o poderio deste mundo que, com seus mil atrativos de esplendor e prazer, procura seduzir os discípulos de Cristo para o pecado. A luta a que João assistiu, entre Roma pagã e a Igreja, é evocada no Apocalipse não por causa da luta propriamente dita, mas dentro de uma perspectiva mais ampla, isto é, a fim de simbolizar e predizer o combate perene que se vai travando entre o poder diabólico e Cristo através dos séculos, até terminar com a plena vitória do Senhor Jesus. 

Estas considerações concorrem para evidenciar quanto é vã a tentativa de descobrir a predição de fenômenos estranhos da hora presente (bombas atômicas, explosões, enchentes e secas, discos voadores) nos quadros do Apocalipse. Estes são quadros típicos e perenes, quadros que se reproduzem por todo o decorrer da história, variando apenas de aspectos. 

A sua mensagem abrange todas as situações análogas: querem, sim, dizer que as desgraças da vida presente, por mais aterradoras que pareçam, estão sujeitas ao sábio plano da Providência Divina, a qual tudo faz concorrer para o bem daqueles que 0 amam (cf. Rm 8.28). 









samedi 26 octobre 2024

Ucrânia, religião, guerra e socialismo

Ucrânia, a religião, a guerra e o socialismo
Jorge Pinheiro
Jornalista e cientista da religião 


A religião desempenha e pode continuar a desempenhar papéis relevantes na Ucrânia em guerra, influenciando as atitudes e ações de comunidades, líderes e até das nações que se encontram nas polaridades do conflito. Ela é, por exemplo, uma fonte de unidade, uma justificativa ideológica ou até um meio de promover a paz e a reconciliação. E na Ucrânia, a religião tem exercido um papel multifacetado.

Para muitos ucranianos, especialmente para os que pertencem à Igreja Ortodoxa da Ucrânia, a religião serve como um símbolo de independência e identidade nacional. Desde a independência da Igreja Ortodoxa da Ucrânia em 2019, sua fé representa uma ruptura com o controle histórico russo, unindo a população em torno de valores culturais e espirituais específicos, que estão ligados à resistência contra a agressão.

Da mesma forma, a Igreja Greco-Católica, presente principalmente no oeste da Ucrânia, reforça a identidade pró-europeia e anti-Rússia de suas comunidades.

Do lado russo, o Patriarcado de Moscou apoiou a invasão, alegando que a Rússia tem o dever espiritual de proteger os russos ortodoxos e a cultura ortodoxa no território ucraniano. Essa retórica ajuda a moldar a narrativa de que a Rússia estaria protegendo o mundo russo e defendendo valores cristãos tradicionais contra o que o governo russo e alguns líderes religiosos veem como uma influência ocidental decadente. Essa instrumentalização da religião inflama o conflito ao justificar, para parte da população russa, a guerra como uma espécie de "cruzada" cultural e espiritual.

As igrejas ucranianas, independentemente de afiliações, têm, no entanto, desempenhado um papel significativo na ajuda humanitária. Oferecem alimentos, abrigo e apoio psicológico para milhões de refugiados e deslocados internos. Essa assistência reforça o papel das instituições religiosas como protetoras e guias morais, promovendo o apoio entre as comunidades. Esse papel humanitário é crucial não só para a sobrevivência física das pessoas, mas também para manter a resiliência e a esperança em tempos de incerteza.

Em alguns casos, líderes religiosos têm promovido diálogos e mediação. Embora seja raro nas guerras atuais, certos líderes religiosos internacionais, como o Papa Francisco, tentaram promover diálogos de paz e reconciliação. Essas figuras têm a credibilidade para atuar como “pontes” e intermediários, uma vez que muitas religiões enfatizam a paz e o perdão. Líderes religiosos, dentro da Ucrânia, de diferentes denominações também têm procurado unir comunidades com o intuito de promover a paz.

Mas a religião tem sido uma fonte de resistência moral, ajudando as pessoas a encontrar significado e força para resistir às dificuldades. Os ucranianos, através de sua fé, encontram coragem e propósito para enfrentar os horrores da guerra, interpretando a defesa de sua pátria como uma luta não apenas física, mas espiritual. Esse elemento inspira soldados e civis que interpretam a resistência como uma missão sagrada pela preservação de sua cultura e liberdade.

Devemos levar em conta, porém, que a religião na Ucrânia é diversa, com o cristianismo ocupando um lugar central, principalmente através do cristianismo ortodoxo. A maioria dos ucranianos se identifica com o cristianismo ortodoxo, mas como vimos estão divididos entre várias igrejas ortodoxas, com destaque para a Igreja Ortodoxa da Ucrânia (independente, reconhecida em 2019 pelo Patriarcado Ecumênico de Constantinopla) e a Igreja Ortodoxa Ucraniana, subordinada ao Patriarcado de Moscou. A relação entre essas igrejas ortodoxas é complexa e às vezes tensa, especialmente desde o início do conflito com a Rússia em 2014, com implicações políticas e identitárias para o país.

Além das igrejas ortodoxas, a Ucrânia também conta com uma população significativa de católicos de rito oriental, pertencentes principalmente à Igreja Greco-Católica Ucraniana, que segue tradições litúrgicas orientais, mas está em comunhão com o Papa. Esse grupo é mais comum na região oeste da Ucrânia.

Há também comunidades protestantes, muçulmanas e judaicas. Embora em menor número, os protestantes têm crescido nos últimos anos, especialmente em áreas urbanas, enquanto os muçulmanos, em grande parte de origem tártara, concentram-se principalmente na Crimeia e em outras regiões do sul do país. A população judaica, embora menor hoje em comparação ao passado, tem uma presença histórica na Ucrânia e ainda mantém comunidades em cidades como Kiev e Odessa.

Dessa forma, a religião na Ucrânia é marcada por sua diversidade, com a ortodoxia como elemento predominante, mas com presença significativa de outras tradições que refletem a rica história e as influências culturais do país.

Como vimos, a guerra na Ucrânia tem intensificado as divisões religiosas e também as tensões políticas entre comunidades religiosas. A religião se entrelaça com questões de identidade nacional, influências estrangeiras e lealdades políticas, especialmente entre as igrejas ortodoxas, o que afeta diretamente o conflito.

Desde que a Igreja Ortodoxa da Ucrânia recebeu sua independência do Patriarcado de Constantinopla em 2019, ela se tornou um símbolo de independência nacional. Para muitos ucranianos, apoiar essa igreja representa uma rejeição da influência russa.

Em contraste, a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou é vista com desconfiança por parte da população, que a considera uma extensão da influência política russa. Durante o conflito, houve pressões e ataques contra essa igreja em algumas áreas, sob alegações de que ela favorecia ou colaborava com interesses russos. A guerra fez com que algumas paróquias da Igreja ligada a Moscou optassem por se alinhar à Igreja Ortodoxa da Ucrânia, declarando-se independentes de Moscou.

A Igreja Greco-Católica Ucraniana tem uma presença forte no oeste do país e está em comunhão com o Papa. Para muitos na Ucrânia ocidental, esta igreja representa uma ponte com o Ocidente e a Europa, o que alimenta sentimentos pró-europeus e de integração com a União Europeia. Durante a guerra, a Igreja Greco-Católica tem desempenhado um papel de apoio humanitário e moral à resistência ucraniana, ajudando refugiados, e suprindo com alimentos e recursos muitas das suas comunidades.

Mas também as comunidades protestantes, judaicas e muçulmanas estão envolvidas na assistência humanitária e oferecem apoio às pessoas afetadas pela guerra, mantendo, em grande parte, uma posição de neutralidade política. No entanto, muitos líderes dessas comunidades condenaram abertamente a presença militar russa e a guerra.

Os tártaros da Crimeia, que são muçulmanos e predominantemente anti-Rússia devido ao histórico de repressões e deportações, são particularmente afetados, especialmente após a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Eles têm enfrentado perseguições e restrições religiosas sob a ocupação russa.

A guerra fez com que muitos ucranianos vissem suas igrejas como símbolos de resiliência nacional, e a espiritualidade ganhou um novo significado, ligada à luta pela sobrevivência e soberania. O apoio das igrejas ortodoxas e católicas aos refugiados e soldados reforça o sentimento de união nacional.

Além disso, a guerra criou uma divisão entre ucranianos e russos também no plano religioso, com algumas igrejas na Ucrânia se distanciando fortemente de Moscou e condenando a postura de neutralidade ou até apoio velado do Patriarcado de Moscou à invasão.

Portanto, o papel das igrejas e comunidades religiosas na guerra da Ucrânia é complexo, envolvendo ajuda humanitária, disputas por independência e fortes divisões identitárias. Essas tensões mostram como, além de uma luta militar, o conflito também é uma batalha por identidade e lealdade espiritual na região.

Os dois pesos da balança

Podemos dizer que uma positividade nessa dialética dos pesos, que são, na maioria dos casos, efeitos colaterais positivos, mas não representam ganhos diretos ou desejáveis de um conflito devastador. O conflito uniu a população ucraniana em torno de uma identidade mais forte e coesa, fortalecendo o desejo de soberania. Esse sentimento nacional também fortaleceu as instituições e a sociedade civil , que se mobilizou em torno da resistência.

A Ucrânia recebeu um enorme apoio de países ocidentais, como ajuda financeira, humanitária e militar. Aparentemente, esse apoio pode, no futuro, contribuir para o desenvolvimento de infraestrutura, defesa e economia do país. A guerra aproximou a Ucrânia da União Europeia, resultando em avanços diplomáticos e benefícios para a integração europeia do país.

Mas a negatividade nessa dialética dos pesos são numerosos, pois a guerra trouxe consequências devastadoras em diversos níveis. A guerra resultou em dezenas de milhares de mortes e milhões de refugiados, além de deslocamentos internos. A população civil ucraniana sofre com bombardeios, falta de recursos e destruição de infraestrutura básica, como hospitais e escolas.

A economia ucraniana sofreu, com grande parte da infraestrutura destruída. Indústrias, cidades e infraestrutura foram danificadas, e a reconstrução levará anos, exigindo bilhões de dólares. A agricultura, um dos setores mais importantes do país, também foi afetada, com impactos na segurança alimentar de muitos países.

O conflito aumentou os preços globais de alimentos e energia, especialmente gás natural, e causou inflação em várias partes do mundo. Países em desenvolvimento, que dependem de importações de alimentos, especialmente grãos, enfrentaram dificuldades financeiras.

A guerra causou incidentes em torno da Usina Nuclear de Zaporizhzhia, gerando preocupações sobre a possibilidade de acidentes nucleares. Além disso, a ameaça nuclear russa elevou os temores globais sobre a segurança e o risco de um conflito nuclear.

Como resultado, a guerra aumentou as tensões entre o Ocidente e a Rússia, trazendo uma nova era de rivalidade entre as grandes potências e incentivando outros países a fortalecerem suas capacidades militares. Isso contribui para uma situação geopolítica mais volátil e perigosa.

O conflito também tem um impacto ambiental, com poluição por armas e destruição de ecossistemas locais. A recuperação desses danos ambientais será demorada e exigirá grandes esforços.

A guerra incentivou regimes autoritários a agir com mais liberdade, como no caso de Belarus, que tem apoiado a Rússia e reprimido vozes contrárias. Esse clima reduz o espaço para a democracia em países aliados da Rússia.

Vamos pensar juntos

A religião, como vimos, está sendo explorada para justificar o conflito, e tem criado divisões sectárias. A rivalidade entre a Igreja Ortodoxa Ucraniana e a Igreja ligada ao Patriarcado de Moscou, por exemplo, reflete a divisão política e ideológica do país, que também se manifesta de maneira religiosa. Esse sectarismo amplia as tensões, dificultando a reconciliação a longo prazo.

Assim, a  religião na guerra da Ucrânia tem servido tanto como uma ferramenta de unidade e resistência moral quanto de divisão e justificação do conflito. Mas, tem o potencial de ajudar na reconstrução e reconciliação futuras, embora, para isso, será necessário um esforço para despolitizar o papel religioso e buscar valores universais de paz e reconciliação, presentes nas tradições religiosas.

Apesar da ofensiva da extrema direita, que procura se apoiar nas religiões históricas da Ucrânia, a construção de uma política socialista é possível, mas enfrenta desafios substanciais e deve ser cuidadosamente adaptada ao contexto político, social e econômico da região. Historicamente, o socialismo na Ucrânia esteve associado à época soviética, uma experiência marcada por repressão política, falta de liberdades civis e uma economia centralizada rígida, que moldou percepções complexas e, em muitos casos, desfavoráveis sobre o socialismo no país. Assim, uma moderna política socialista precisa se diferenciar das experiências passadas e apresentar-se como uma proposta nova, inclusiva e democrática.

Um dos principais problemas do socialismo soviético foi o centralismo extremo e a falta de democracia interna. Um socialismo moderno e aplicável na Ucrânia poderia enfatizar a democracia participativa, onde os cidadãos têm um papel ativo na tomada de decisões. A descentralização, com mais autonomia para regiões e comunidades, pode ajudar a evitar a concentração de poder, permitindo que as políticas sejam adaptadas às realidades locais.

A desigualdade econômica aumentou consideravelmente na Ucrânia desde a independência, com o surgimento de oligarquias e uma concentração significativa de riqueza. Uma política socialista poderia propor uma reforma tributária progressiva, com impostos sobre grandes fortunas e a implementação de programas sociais robustos para reduzir as disparidades sociais. Esse tipo de programa precisaria de forte apoio público e transparência para evitar acusações de corrupção.

Em vez de buscar uma economia totalmente centralizada, uma política socialista moderna na Ucrânia poderia buscar um modelo de economia mista, onde setores estratégicos (como energia, saúde e educação) são estatais ou de gestão pública, enquanto outros setores permanecem no setor privado. Esse modelo pode dar segurança e estabilidade econômica, além de proporcionar serviços essenciais para a população sem depender totalmente do mercado.

Dada a situação geopolítica da Ucrânia, uma política socialista precisaria lidar cuidadosamente com as tensões entre o Ocidente e a Rússia. A busca pela neutralidade, se possível, poderia ser uma estratégia para reduzir as pressões externas. Isso exigiria um esforço diplomático significativo e uma política externa independente que se concentrasse no bem-estar do povo ucraniano em vez de se alinhar a blocos de poder.

A corrupção é um problema grave na Ucrânia, que impacta diretamente a economia e o bem-estar dos cidadãos. Um modelo socialista teria que incluir mecanismos rigorosos de transparência e prestação de contas para combater práticas corruptas. O fortalecimento das instituições democráticas seria essencial para que qualquer política de inspiração socialista pudesse ser implementada de maneira eficaz e sustentável.

Em um modelo socialista, os direitos dos trabalhadores estariam no centro das preocupações, garantindo salários dignos, condições de trabalho seguras e oportunidades de participação nos lucros. Além disso, uma política ambiental responsável, com foco na sustentabilidade e na transição para uma economia verde, seria essencial para lidar com os desafios climáticos e econômicos de longo prazo.

Implementar uma política socialista na Ucrânia é possível, mas exige um modelo renovado, descentralizado e adaptado às necessidades contemporâneas da população. A chave é evitar os erros do passado, construir uma base de apoio público e focar no bem-estar social, na justiça econômica e no fortalecimento democrático do país. E nisso, muito possivelmente, a política terá como aliado a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, entre outras.






vendredi 25 octobre 2024

A comunhão na Criação

Um sermão para você / 20.10.2011
Jorge Pinheiro, pastor e missionário da Cruz huguenote


Uma catástrofe natural
a ante-visão do dia do senhor

“Mensagem que o Eterno confiou a Joel, filho de Petuel. Devastação do país. Ouçam o que digo, ó responsáveis do povo, prestem atenção, habitantes deste país! Porventura aconteceu algo semelhante durante a vida de vocês ou durante a vida dos seus antepassados? Contem-no aos seus filhos, para que eles contem também aos filhos deles e à geração seguinte. O que as lagartas deixaram foi comido pelos gafanhotos; o que os gafanhotos deixaram foi comido pelos saltões, e o que os saltões deixaram foi comido pelos outros insetos Despertem, chorem e lamentem-se, ó gente bêbeda e viciada do vinho, porque vão ficar sem uvas para fazer mais vinho”. Joel 1:1-5

Uma catástrofe religiosa
falta conhecimento ao povo

Ouçam a mensagem do Eterno, habitantes de Israel. O Eterno chama a tribunal os habitantes do país: "Não há lealdade, nem bondade, nem conhecimento do Eterno nesta terra. Amaldiçoa-se, atraiçoa-se, assassina-se e rouba-se; os adultérios multiplicam-se e os homicídios sucedem-se uns aos outros. Por isso a seca vai causar estragos no país: os seus habitantes vão morrer, juntamente com os animais do campo e as aves do céu; e até os peixes vão desaparecer." "Que ninguém acuse, nem repreenda, eu é que te vou acusar, ó sacerdote! Tu hás-de tropeçar, durante o dia, e o teu aliado, o profeta, há-de tropeçar de noite; a tua própria pátria ficará destruída. O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta conhecimento. E o culpado és tu, que os impediste de me conhecerem. Também eu afastarei você de mim, e não serás mais meu sacerdote. Oseias 4:1-6

A COMUNHÃO NA NATUREZA
Roteiro para um sermão

Para início de conversa

As Escrituras judaico-cristãs descrevem a construção do céu e da terra, obra do Eterno, através da indicação “e o Espírito do Eterno se movia por cima da água” (Gn 1.2). Isto quer dizer que o Espírito é Pessoa e presença do Eterno, sendo a natureza uma realidade formatada por Ele. E é o Espírito que clama pela liberdade redentora da natureza escravizada.

“Um dia o próprio Universo ficará livre do poder destruidor que o mantém escravo e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos do Eterno. Pois sabemos que até agora o Universo todo geme e sofre como uma mulher que está em trabalho de parto” (Rm 8.21-22).

Primeira parte
A natureza é ação do Eterno

O Espírito é poder atuante do Eterno e força de vida das criaturas. O Espírito é a fonte da vida. O que existe e vive manifesta a presença dele.Ele transforma a comunhão com Pai e Filho na comunhão da natureza, na qual todas as criaturas, cada qual a seu modo, se comunicam com o Eterno. A existência, a vida e os relacionamentos estão firmados no Espírito, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28).

A partir do relacionamento trinitário, o ser humano faz parte da natureza e é dependente dela. Vive dentro de um contexto de interdependência. Desde o início presente e futuro estão ligados à terra, à água e ao ar. “Ó Senhor, tu tens feito tantas coisas e foi com sabedoria que as fizeste. A terra está cheia das tuas criaturas” (Sl 104.24). O Eterno nos coloca junto e com a natureza para trabalhar e gozar essa natureza (Gn 2.15). Não haverá falta (2.8-9) se soubermos administrar. Dependemos do solo e dele recebemos o sustento. Pertencemos a este mundo construído e é ele que fornece a base para a existência. A vida começa e se orienta sob o cuidado do Eterno.

“Todos esses animais dependem de ti, esperando que lhes dês alimento no tempo certo. Tu dás a comida, e eles comem e ficam satisfeitos. Quando escondes o rosto, ficam com medo; se cortas a respiração que lhes dás, eles morrem e voltam ao pó de onde saíram. Porém, quando lhes dás o sopro de vida, eles nascem; e assim dás vida nova à terra” (Sl 104.27-30).

Só para lembrar -- Entre 2000 e 2005, o Brasil foi o país que mais perdeu áreas de florestas, conforme estudo da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos/ PNAS. Nesses anos foram desmatados 165 mil km² de florestas, o equivalente a 3,6% das perdas de florestas no mundo todo. O segundo país que mais perdeu florestas foi o Canadá, com o desmatamento de 160 mil km². A ação humana e desastres naturais são as principais causas da perda de florestas. No mundo todo, a cobertura vegetal diminuiu 3,1% entre 2000 e 2005. Foram 1,01 milhão de km² desmatados, o que sugere crescimento de 0,6% ao ano. O estudo se baseou em observações por satélite de pesquisadores das Universidades de Dakota do Sul e do Estado de Nova York. 

Pensamos que o Brasil é apenas objeto para exploração, em vez de construção para a glorificação do Eterno. Ignoramos as necessidades das outras formas de vida. Essa atitude utilitarista de ver e agir é alienação, é uma falta de respeito para com o Espírito do Eterno.

Segunda parte
O desafio do cuidado amoroso

O Eterno é quem dá e quem sustenta a vida de todo o universo. Sua preocupação por atender às nossas necessidades (beber, comer e vestir) não se restringe ao ser humano, mas se estende a toda a natureza, refletida nos pássaros e nas flores do campo.

“É o Eterno quem veste a erva do campo, que hoje dá flor e amanhã desaparece, queimada no forno. Então é claro que ele vestirá também vocês, que têm uma fé tão pequena!” (Mt 6.30).

O universo inteiro depende do cuidado amoroso do Eterno, que não descuida de nenhuma criatura. Os lírios, por exemplo, caracterizados por sua fragilidade e vida curta, são vestidos de tal modo que nem Salomão usava roupas tão bonitas como essas flores. (Mt 6,29).

Criação significa que tudo é completamente obra do Eterno. Ele é o autor de tudo, pessoal e salvífico, que se revelou como puro amor. Toda a realidade brota da pura iniciativa deste amor divino, puro dom gratuito.

Mas, o ser humano faz parte da natureza, depende dela e é seu cuidador. O ser humano, como o restante da natureza, foi criado “de acordo com a sua espécie” (Gn 1.24 e 25), só que à imagem e semelhança do Eterno (Gn 1.26-27). A imagem do Eterno é elaborada em termos do domínio administrativo que o ser humano teria sobre o resto da natureza. O ser humano foi criado à imagem do Eterno, não somente por sua liberdade e direito à escolha, mas também pela postura que assume diante da natureza, uma postura de soberania em amor e comunhão, que deve refletir a soberania do Eterno (Gn 1.26-28). O ser humano não foi criado apenas para realizar uma administração espiritual, mas foi criado para orientar a natureza.

“No entanto, fizeste o ser humano inferior somente a ti mesmo e lhe deste a glória e a honra de um rei. Tu lhe deste poder sobre tudo o que criaste; tu puseste todas as coisas debaixo do domínio dele: as ovelhas e o gado e os animais selvagens também; os pássaros e os peixes e todos os seres que vivem no mar” (Sl 8.5-6).

Só para lembrar -- O Brasil é um país privilegiado em matéria de água. Detém 12% da água doce de superfície do mundo, o rio de maior volume e um dos principais aquíferos subterrâneos, além de ótimos índices de chuva. Mesmo assim, falta água no semi-árido e nas grandes capitais, porque a distribuição desse recurso é desigual. Cerca de 70% da reserva brasileira de água está no Norte, onde vivem menos de 10% da população. Em São Paulo, a maior metrópole do país, a ocupação irregular das margens de rios e represas, como a de Guarapiranga, que abastece 3,7 milhões de paulistanos, deveria ser preocupação permanente. Ao seu redor vivem 700 mil habitantes. Com o desmatamento das margens, sedimentos são arrastados para a represa, que perde capacidade de armazenamento e recebe esgoto de residências. O problema é semelhante na represa Billings, também responsável pelo abastecimento de São Paulo. Esse manancial tem sido o destino das águas poluídas que são bombeadas dos rios Tietê e Pinheiros.

A administração humana sobre a natureza nós chamamos de mandato cultural. Ser criado à imagem do Eterno é ser responsável pelo planeta e por todas as formas de vida!

A liberdade humana implica responsabilidade para preservar a ordem que o Eterno criou e promovera existência de todos os seus elementos. Tal soberania não implica em liberdade para roubar, matar e destruir. Os seres humanos são mordomos do Eterno, responsáveis diante dele e cuja primeira tarefa é assegurar a permanência e equilíbrio da natureza.

Terceira parte
Somos todos responsáveis

A preocupação divina com a salvação espiritual não é alheia da sua preocupação pelo bem-estar da sua criação material. A natureza é o primeiro dos atos salvadores do Eterno.

Só para lembrar -- O modelo agrícola brasileiro revela uma contradição -- bate recordes de produtividade, com cerca de 30% das exportações brasileiras, mas 40% da população brasileira sofre com a insegurança alimentar, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/ IBGE. É um país desigual, com uma das maiores concentrações de terras do mundo, e ocupa o posto de maior consumidor de agrotóxicos do planeta, superando os Estados Unidos, segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária/ Anvisa. O avanço da tecnologia não reduziu o consumo de agrotóxicos, pelo contrário, a tecnologia dos transgênicos estimulou o consumo desses produtos, especialmente na soja, que teve uma variação negativa em sua área plantada (-2,55%) e uma variação positiva de 31,27% no consumo de agrotóxicos, entre os anos de 2004 a 2008.

“Mas tu, ó Eterno, tens sido o nosso Rei desde o princípio e nos salvaste muitas vezes. Com o teu grande poder, dividiste o Mar e esmagaste as cabeças dos monstros marinhos. Esmagaste as cabeças do monstro Leviatã e deste o seu corpo para os animais do deserto comerem. Fizeste com que corressem fontes e riachos e secaste grandes rios. Criaste o dia e a noite, puseste o sol, a lua e as estrelas nos seus lugares. Marcaste os limites da terra e fizeste o verão e o inverno” (Sl 74.12-17).

Por isso, não devemos conceber a participação do ser humano no Brasil como opcional, nem como secundária sua missão na salvação de vidas. Desde o início, a natureza fazia parte do plano salvador do Eterno. A conversão de seres humanos não é o último dos atos salvadores do Eterno, mas o estabelecimento de novos céus e nova terra, ou seja, uma nova natureza (Ap 21.1), a libertação da própria natureza em si (Rm 8.20-22).

Até o fim, a natureza fará parte do plano salvador do Eterno. A graça do Eterno que se manifestou em Cristo, também se manifestou na natureza.

“O Eterno falou muitas vezes e de muitas maneiras aos nossos antepassados, mas nestes últimos tempos ele nos falou por meio do seu Filho. Foi ele quem o Eterno escolheu para possuir todas as coisas e foi por meio dele que o Eterno criou o Universo. O Filho brilha com o brilho da glória do Eterno e é a perfeita semelhança do próprio Eterno. Ele sustenta o Universo com a sua palavra poderosa. E, depois de ter purificado os seres humanos dos seus pecados, sentou-se no céu, do lado direito do Eterno, o Todo-Poderoso” (Hb 1.1-3).

A graça do Eterno manifesta alcançará o seu propósito de submeter a Cristo todas as coisas.

“Por isso o Eterno deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é o mais importante de todos os nomes, para que, em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos e declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória do Eterno, o Pai”. (Fp 2.9-11).

Você deve levar em conta

“As Escrituras Sagradas dizem: O Eterno pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. É claro que dentro das palavras “todas as coisas” não está o próprio Eterno, que põe tudo debaixo do domínio de Cristo. Mas, quando tudo for dominado por Cristo, então o próprio Cristo, que é o Filho, se colocará debaixo do domínio do Eterno, que pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. Então o Eterno reinará completamente sobre tudo” (1Co 15.27-28).

Só para lembrar -- O lixo atômico das usinas de Angra I e II, no Rio de Janeiro, é guardado em depósitos provisórios. Há décadas, toneladas de lixo radioativo nem saem dos prédios. Fica mergulhado em piscinas.

Existe uma teologia bíblica da vida, que envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação do Eterno e a transformação das dimensões culturais, econômicas, morais, intelectuais e políticas da existência. Isto inclui a recuperação de um sentido bíblico de mordomia, que implica em administração e cuidado responsável. Da mesma maneira, o conceito bíblico de descanso semanal recorda que se deve por limites às atividades de produção e ao consumo. Assim, devemos usar a riqueza e o poder no serviço dos demais. É um compromisso de trabalhar para libertar os ricos da escravidão ao dinheiro e ao poder, e possibilitar aos que têm menos obter acesso à dignidade e às oportunidades de desenvolvimento. A esperança de tesouros no céu nos livra da tirania de Mamon. E fazendo assim estaremos compreendendo o sentido maior do cuidado da natureza e da vida criada pelo Eterno.

parna_juruena_Adriano Gambarini© 1100x777.jpg
05.09. Dia da Amazônia. 
https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/noticias/no-dia-da-amazonia-conheca-curiosidades-da-maior-floresta-tropical-do-mundo-e-acoes-que-unem-preservacao-e-desenvolvimento