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samedi 20 août 2016

O corpo e o baile

Um texto que escrevi, fazem uns 10 anos, e que dedico ao professor Dr. Marcel Foucault.

O corpo e o baile

"Ce qu'il y a de plus profond chez l'homme, c'est la peau".
Paul Valéry

Há alguns anos, um outdoor estava presente na cidade de São Paulo nos dias de Carnevale. Nele uma jovem dizia: “Mostre que você já cresceu e sabe o que quer, use camisinha”. O slogan, me pareceu, poderia ter várias leituras. Uma delas seria: você que é mocinha, dona do seu próprio nariz, faça curta a vida.

E o slogan me remeteu a uma questão, que envolve os conceitos carne e corpo. E vou começar a conversa a partir de um texto clássico da literatura brasileira:

“Invadiu-a um desalento imenso, um nojo invencível de si própria. Robustecer o intelecto desde o desabrochar da razão, perscrutar com paciência, aturadamente, de dia, de noite, a todas as horas, quase todos departamentos do saber humano, habituar o cérebro a demorar-se sem fadiga na análise sutil dos mais abstrusos problemas da matemática transcendental, e cair de repente, com os arcanjos de Milton, do alto do céu no lodo da terra, sentir-se ferida pelo aguilhão da carne, espolinhar-se nas concupiscências do cio, como uma negra boçal, como uma cabra, como um animal qualquer... era a suprema humilhação.”

A Carne de Júlio Ribeiro é um romance naturalista publicado em 1888, que fala de divórcio, sexo sem culpa e aponta para a liberdade sócio-cultural feminina. Mas, apresenta também os preconceitos da sociedade escravocrata no Segundo Império. A Carne é a história de Lenita, uma jovem órfã de mãe, cujo pai lhe deu uma educação sofisticada e fora do comum para a época.

Aos 22 anos, após a morte do pai, Lenita teve a saúde abalada e foi viver no interior de São Paulo. Lá conheceu Manuel, um intelectual que vivia trancado com seus livros e que de vez em quando fazia longas caçadas. Lenita e Manuel tornam-se amantes e o romance de Júlio Ribeiro narra a trajetória desse amor, marcado por desejo e violência, por luta entre a razão e a carne.

“As pessoas que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a natureza humana, junto com todas as paixões e desejos dessa natureza”.

A carta do apóstolo Paulo aos Gálatas (5.24), escrita em grego, fala de paixões e desejos. Paixão, paté, aqui, indica deficiência que domina a natureza humana, e sarks, carne. O texto discorre sobre a possibilidade de controle de uma disfunção quando afirma que aqueles que pertencem a Cristo crucificaram todas as paixões e desejos da natureza humana. 

Durante a Idade Média, grupos de cristãos interpretaram a exortação à crucifixão da carne como apelo ao sofrimento e suplício, ao encarceramento e solidão, procurando causar dor e desprazer ao próprio corpo.

Mas o apóstolo faz diferença entre carne e corpo. Carne nos remete às disfunções que envolvem desejos e paixões como lascívia e prostituição. E corpo traduz a materialidade do ser, a base para a realização da existência. 

O domínio e o exercício do corpo advêm como expressividade quando há integração lingüístico-cultural. No corpo residem os sentidos e a razão e, por isso, não é resto, não está despojado de vida, configura-se como totalidade. Seu equivalente na linguagem teológica das escrituras judaicas é a nefesh, singularidade no mundo, face ao outro, interpelado, atravessado por afeições e sentimentos. Orgânico, natural, o corpo alia indeterminação entre a dimensão lingüístico-cultural que o atravessa e constitui e a dimensão emotiva que o movimenta. 

Por isso o corpo -- e com ele as emoções, sentimentos e a própria razão -- é dimensão profunda do ser. É o corpo que projeta as forças que vão moldar o ser aos desejos e paixões. Nesse sentido não há pecado da carne sem que antes tenha passado pelo próprio corpo.

No romance A Carne, Lenita encontra cartas de outras mulheres guardadas por Manuel, sente-se traída e o abandona. Mesmo grávida, casa-se com outro homem. Diante da perda da amante, Manuel suicida-se.

“A placidez da morte sem dor, da morte pela paralisia dos nervos motores, converteu-se em um suplício atroz, pavoroso, para cuja descrição não tem palavras a linguagem humana.

Morto e vivo!

Tudo morrera: só vivia o cérebro, só vivia a consciência e vivia para a tortura... Por que não ter despedaçado o crânio com uma bala? A paralisia invadiu os últimos redutos do organismo, o coração, os pulmões, sístole e diástole cessaram, a hematose deixou de se fazer. Um como véu abafou, escureceu a inteligência de Barbosa, e ele caiu de vez no sono profundo de que ninguém acorda”.

Assim, Júlio Ribeiro finaliza o resultado da batalha perdida entre a razão e a carne. Para ele, os triunfos tresloucados dos desejos e paixões da carne levam, ao final, à morte do corpo. É isso que o apóstolo Paulo nos fala. Por isso, no Carnevale, ou em qualquer outra atividade humana, a liberdade deve ser parceira da existência plena e não da alienação e morte, pois ser livre é realizar-se no tropismo do corpo à vida.

Ao lado da pelota o corpo também baila