dimanche 17 mai 2020

O hoje, o kairós e o escatológico

Yom Iaveh
O dia do Senhor
O hoje, o kairós e o escatológico
Jorge Pinheiro, PhD


Há uma expressão no Antigo Testamento que têm sido motivo de análise e discussão por exegetas e especialistas: O Dia do Senhor. Esta expressão, que muitas vezes é tomada apenas em seu sentido escatológico, futuro, faz parte do linguajar teológico e pastoral. Por isso, queremos aqui refletir sobre ela e ver como nos apresenta uma abrangência que não se limita ao seu conteúdo escatológico.

Assim, teremos um objetivo em nossa análise: focalizar a expressão hebraica “yom Iaveh”, Dia do Senhor, enquanto conceito teológico presente em textos do Antigo Testamento. Vamos partir do texto de Joel 2.1-3, que nos serve de referência, e procurar compreender os sentidos teológicos implícitos na expressão, conforme se encontram nos textos de Isaías 2.5, Isaías 58.13-14 e Joel 1.15 e em seus correlatos gregos no Novo Testamento: João 4.21-23, Gálatas 4.4 e 2 Pedro 3.7.

Como instrumental teórico, ou seja, como hermenêutica, utilizaremos uma (1) leitura trinitária dos textos: como e onde se expressam as Pessoas de Deus no dia do Senhor; (2) uma exegese dos conceitos nos idiomas originais numa análise comparativa com os os textos de Qumran. E uma (3) leitura contextualizada, levando em conta a história da vida cotidiana do povo judeu no tempo de Jesus.

E vamos delimitação o nosso tema, a fim de alcançar maior profundidade na análise. A análise estará circunscrita ao objeto de pesquisa, Dia do Senhor, descrito anteriormente. Por isso, não analisaremos em profundidade, nem vamos expor questões teológicas presentes nas expressões Ruach, Massiah e Iaveh, embora tais expressões apareçam no desenvolvimento de nosso estudo.

“TOCAI a buzina em Sião, e clamai em alta voz no monte da minha santidade. Perturbem-se todos os moradores da terra, porque o dia do Senhor vem, ele está perto; Dia de trevas e de tristeza; dia de nuvens e de trevas espessas, como a alva espalhada sobre os montes, povo grande e poderoso, qual desde o tempo antigo nunca houve, nem depois dele haverá pelos anos adiante, de geração em geração. Diante dele um fogo consome, e atrás dele uma chama abrasa; a terra diante dele é como o jardim do Éden, mas atrás dele um desolado deserto; sim, nada lhe escapará”. Joel 2.1-3.

Introdução

Yom

yom é um conceito da teologia hebraica, relativo a tempo, presente no Antigo Testamento. Yom não deve ser entendido apenas como uma palavra, mas como conceito que dependendo do contexto em que é utilizado pode significar um instante, um momento especial ou um longo ou distante período de tempo. Mas, geralmente, é traduzido por dia, ano, tempo.

Assim, pode expressar o período de iluminação natural, em contraste com o período de escuridão. O dia é formado por oposto que se complementam, o período da tarde (ereb, tarde ou layla, noite) e da manhã formam uma unidade de 24 horas. Quando este dia luz ou dia tarde e manhã se refere ao dia hoje dizemos em hebraico hayom.

É importante dizer que o yom de luz no mundo hebraico não era medido em horas, mas de acordo com os fenômenos naturais e as atividades cotidianas. As duas refeições do dia, eram balizadoras das atividades do dia luz. E o dia ereb, tarde, ou dia layla, noite, eram divididos pelas três vigílias. Mas, além desse dia dual, havia o dia ano, e nesses casos o conceito vem no plural. Mas dia podia ser também um período indeterminado de tempo.

A palavra dia em português deriva do latim vulgar, dies, e de forma genérica significa o tempo em que a Terra está clara, ou seja, o intervalo entre uma noite e outra. Mas significa também a medida de tempo que nosso planeta ou qualquer corpo celeste leva para descrever uma volta em torno de seu eixo de rotação.

Temos, assim, em português, os dias ou os tempos quotidianos, o dia-a-dia. Os dias litúrgicos cristãos, que ao contrário dos primeiros são separados, escolhidos para a realização de alguma coisa especial. Podemos dizer, por exemplo, que o dia de ano-bom é o primeiro dia do ano, o 1º de janeiro; que o dia de Reis é 6 de janeiro, comemoração católica da adoração do Menino Jesus pelos Reis Magos (Baltasar, Melchior e Gaspar). Mas temos, ainda, um dia sem data, um dia de juízo, de julgamento final, de clamor, confusão e desgraça.   

Dia luz, dia tarde e manhã
Dia de adoração e serviço

Então, em nossa análise, vamos começar por este dia luz, dia novo que começa a cada entardecer. Dia de tarde e manhã. Conforme nos diz Isaías, 2.5: “Venha, ó descendência de Jacó, andemos na luz do Senhor! O Dia do Senhor”.

Mas, se formmos ao Novo Testamento vemos uma idéia correlata em João 4.21-23: “Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem (οτι ερχεται ωρα), em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade (εν πνευματι και αληθεια); porque o Pai procura a tais que assim o adorem”

No texto de Lucas, Jesus fala com a samaritana que chegaria uma ωρα, e usa a palavra grega que deu a expressão hora em português (que podemos traduzir também por tempo ou mesmo dia) em que Deus exigiria de nós adorá-lo no Espírito e não mais segundo as tradições, fossem elas samaritanas ou judaicas.

E para falar dessa hora luz, desse dia luz, devemos entender como o Espírito de Deus se faz presente nele e atua em nossas vidas. Por isso, vamos ver rapidamente como hebreus e cristãos viam a ação do Espírito.

A expressão hebraica ruach e seu correlato grego pneuma significam literalmente vento ou sopro. Normalmente traduzimos esses termos, quer do hebraico ou do grego, por “espírito” ou por “Espírito” com letra maiúscula. Quando optamos pela tradução “espírito” queremos nos referir ao espírito humano ou a um espírito, que pode ser um demônio ou um anjo. Optamos pela tradução “Espírito”, quando o texto se refere ao Espírito Santo ou Espírito de Deus. Assim, em 2 Tesssalonicenses 2:8 significa sopro (“a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua boca”). E em Eclesiastes 8:8 indica o princípio essencial da vida, nosso fôlego de vida. Mas, ao nascermos de novo, através da aceitação pela fé do sacrifício de Jesus na cruz do calvário, o Espírito Santo passa a habitar em nós, como explica Paulo em 1Coríntios 3. Em Romanos 1:4, 2Coríntios 3:17 e 1Pedro 3:18 a expressão grega pneuma nos remete à uma das Pessoas da Trindade, ao Espírito Santo de Deus.

O Espírito Santo nos manuscritos encontrados em Qumran, que faziam parte da biblioteca dos essênios, piedosa comunidade judaica que vivia no deserto na época de Jesus, aparece de forma explícita como Pessoa trinitária. Por isso, podemos dizer que nos textos de Qumran encontramos elementos conceituais da doutrina do Espírito Santo. E é interessante ver que um manuscrito ao falar da promessa da autoridade profética, restauradora da justiça, apresentada na figura do Messias, diz que “O Espírito Santo desceu sobre o seu Messias”. 2Q 287 (3.13). “Céu e terra pertencerão ao meu Messias (...) e tudo o que neles há. Ele não se afastará dos mandamentos dos santos (linha 6) e o seu Espírito estará sobre os humildes e os crentes serão fortalecidos por seu poder”. 4Q 521 (fragmento 1, coluna 2). E a Regra da Comunidade afirma que: “Ele purificará a carne de todas as obras ímpias pelo Espírito Santo e aspergirá sobre ela o Espírito de verdade (ruach emet) como água de purificação”(IQS 4.21).

Estamos, dessa maneira, diante de um dia onde se deve andar na luz do Espírito da verdade. É o dia tarde e manhã que, sucessivamente, Deus cria para nós: é dia de adoração. Este é um dia particular, me envolve como pessoa, mas é cotidiano, são todas as horas do dia, todos os dias. Mas deve ser comunitário, porque implica em reunião, porque é assim que se adora e se  serve no Espírito da verdade. É por excelência o dia da igreja.

Dia kairós
Dia de salvação e proclamação

Quando falamos de kairós falamos plenitude, falamos de máxima extensão, brilho e glória. Plenitude é tempo de beleza, é um momento de graça onde a possibilidade humana se torna cheia da força divina. Mas este kairós é diferente de todos os tempos anteriores e futuros, pois aponta para a possibilidade de liberdade e salvação. E a esperança que o kairós gera é maior que a simples ilusão humana, pois esta esperança tem o próprio Cristo por fundamento, já que aqui a graça gera a plenitude. Assim, o kairós é o dia da plenitude, de grande magnitude e beleza. É um dia especial de irrupção da liberdade e da salvação. É um dia diferente, é particular, marca as nossas vidas e não se repete. É o dia do Senhor Jesus.

“Se desviares o teu pé do sábado e de fazer a tua vontade no meu santo dia, e se chamares ao sábado deleitoso, e santo dia do Senhor (em hebraico; na Septuaginta, em grego: τρυφερα αγια τω θεω; na Vulgata, em latim: sanctum Domini gloriosum) digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, nem pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falar as tuas próprias palavras. Então te deleitarás no Senhor, e te farei cavalgar sobre as alturas da terra, e te sustentarei com a herança de teu pai Jacó; porque a boca do Senhor o disse”. Isaías 58.13-14.

No Antigo Testamento, o dia kairós era simbolizado pelo sábado, que traduzia a idéia de regeneração da vida e, por isso, de liberdade e salvação. Com o tempo, os hebreus perderam esse sentido maior do sábado e passaram a ver nele apenas um aspecto, o da separação e santificação, que sem dúvida está presente.

No Novo Testamento, o dia kairós ressurge com toda sua força simbólica na Pessoa de Jesus, que encarna na plenitude dos tempos, na época certa de liberdade e salvação. “Mas, vindo a plenitude dos tempos (πληρωμα του χρονου), Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”. Gálatas 4.4.

Por isso, ele traz a plenitude da salvação para nossas vidas através de um dia especial: o dia de nossa conversão. Esse dia acontece apenas uma vez em nossas vidas. Ele é definitivo e faz com que nossas vidas se dividam em antes de depois dele.

“João testificou dele, e clamou, dizendo: Este era aquele de quem eu dizia: O que vem depois de mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu. E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça”. João 1.15-16.

Por isso, o dia kairós é um dia particular, pessoal, de encontro com o Salvador. É o dia do Cristo: é único, é transformador. Produz regeneração que se projeta na eternidade. Esse é o meu dia, da particularidade da minha salvação. Eu sei o que ele significa. É cheio de beleza, graça e força. E por isso eu testemunho sobre ele.

Dia escatológico
Dia de juízo e justiça

Mas há um dia escatológico, de consumação do tempo e da história, quando os seres humanos que não aceitaram a alforria e a salvação pelo kairós do Cristo estarão sob a justiça e juízo do Deus eterno. Este é o grande e  terrível dia do Deus Pai, que abre um tempo novo, o yom eterno. 

O Deus eterno é Deus do tempo e da história. Isso significa que é Deus quem atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela. Essa meta pode ser compreendida de várias maneiras, como vitória sobre os poderes demoníacos, bem-aventurança, chegada do reino de Deus e, mais além da história, criação de novos céus e nova terra, ou seja, de uma realidade nova e superior.

“Ah! aquele dia! porque o dia do Senhor (yom Iaveh) está perto, e virá como uma assolação do Todo-poderoso”. Joel 1.15.

“A rainha do meio-dia (uma referência de Jesus à rainha de Sabá) se levantará no dia do juízo com esta geração, e a condenará; porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. E eis que está aqui quem é mais do que Salomão”. Mateus 12.42.

No profetismo antigo muitos eram os símbolos para expressar a esperança escatológica e o Dia do Senhor era talvez o de maior impacto. No profetismo vétero-testamentário a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais e as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, pois o sofrimento do Filho da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais arrependidas. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma. Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo.

“Mas os céus e a terra que agora existem, pela mesma palavra se reservam como tesouro. e se guardam para o fogo, até o dia do juízo, e da perdição dos homens ímpios”. 2 Pedro 3.7.

Nós evangélicos comprometidos com as missões mundiais vivemos a promessa desse dia quando fazemos missões, pois elas têm um caráter universal e visa criar uma consciência humana em Cristo. Esse tempo do Deus Pai alcança plenitude na história, porque a história aponta para o reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço.

No protestantismo temos outros símbolos de esperança escatológica de igual força e transcendência, como os apocalípticos da revelação joanina. De todas as maneiras, o Dia do Senhor, quer nos símbolos veterotestamentários, quer na revelação apocalíptica neo-testamentária, traduz a idéia de que o círculo trágico do espaço será superado e que a história teve um princípio e terá um fim. E isso tem um significado especial para nós, já que o apóstolo Paulo também fala de “nova criatura”.

Com o Dia do Senhor o monoteísmo profético se apresenta como monoteísmo da justiça, porque os falsos deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca-se inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade de poder das comunidades submetidas a esses deuses espaciais não pode fazer justiça diante da vontade de poder de outras comunidades submetidas a outros deuses espaciais. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro de uma nação e para as próprias nações. O politeísmo, que é a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula a universalidade implícita na idéia de justiça. Este é um clamor do Dia do Senhor presente no monoteísmo profético.

Mas a ameaça profética do Dia do Senhor também pende sobre joio que se esconde em meio ao povo eleito, de ser rechaçado por Deus, por causa da injustiça. A tragédia e a injustiça são próprias dos falsos deuses do espaço, mas a realização histórica e a justiça o são do Deus eterno que atua no tempo para criar um dia eterno. Por isso, o dia escatológico é um dia universal. Terrível para aqueles que rechaçaram a plenitude da graça e o viver no Espírito.

Considerações finais

A idéia do kairós nasce da relação com o eterno. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante, mas o dia kairós não pode existir num estado de eternidade no tempo. O dia kairós traduz a idéia de que o Deus eterno é, em sua essência, aquele que faz a revolução no tempo sem, contudo, fixar-se nele.

Assim, a realização plena do dia de hoje, como do kairós, se encontra além do tempo. Toda transformação exige uma compreensão do momento vivido, que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Toda transformação deve projetar-se na eternidade, deve entender que há na suave presença do Espírito, hoje, em nossas vidas, uma complementaridade entre este kairós de alforria e salvação e a eternidade que se abre com o fim dos tempos.

É a partir dessa compreensão do que significa o Espírito no tempo presente, que voltamos ao kairós, construído enquanto necessidade e responsabilidade que não podem ser adiadas ou recusadas. Kairós significa tempo concluído e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a irrupção da eternidade no tempo. O kairós não é um momento qualquer, não é uma parte do curso temporal: é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do nosso destino.

Considerar um momento de nossa vida como kairós, considerar o tempo do Cristo como uma decisão inadiável e inevitável é considerá-lo enquanto tempo que reúne o hoje da adoração no Espírito da verdade com o tempo do Deus eterno, lá onde tempo e história deixam de existir. Essas raízes do dia do Senhor mantêm entre si uma relação trinitária, que é mais do que simples justaposição. Por isso, o Dia do Senhor é tempo do Espírito, de adoração e serviço, é tempo do Cristo, de salvação e proclamação, é tempo do Deus eterno, de juízo e justiça.




Um demônio sexual ...

Um demônio muito polêmico

Os gatos selvagens encontram-se lá com as hienas e os bodes fazem de Edom o lugar de encontro. O fantasma Lilit vai instalar-se lá e encontrar o lugar do seu repouso”. Isaías 34:14

Lilith é um succubus, um demônio sexual feminino, que de acordo com interpretações rabinícas da criação, em Gênesis, seria a primeira mulher de Adão. Na época não era um demônio, mas companheira de Adão que acreditava ter sido formada com a mesma matéria-prima do homem. Por isso, Lilith rebelou-se contra a autoridade masculina e se recusou a ficar por baixo durante as relações sexuais com seu companheiro.

Ela confrontava Adão: ‘‘Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Por que ser dominada por ti? Eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual.’’

Quando reclamou de sua condição a Deus, ele disse que essa era uma decisão dele, o que levou Lilith a abandonar o Éden por livre e espontânea vontade. Três anjos foram enviados para convencê-la a voltar, mas ela recusou. Juntou-se aos anjos caídos e passou a ser companheira de Samael, o anjo que mais tarde tentaria Eva.

Depois que Adão foi expulso do paraíso, Lilith escolheu como objetivo destruir os humanos, filhos de Adão e Eva. E passou a perseguir os adúlteros, os recém-casados e as crianças recém-nascidas.

Durante a Idade Média, na tradição judaica, Lilith foi transformada no modelo do demônio temido, dando origem a mitos de que seria vampira, que podia ter cem filhos por dia, súcubos, demônios femininos, e íncubos, demônios masculinos, que se alimentam da energia desprendida no ato sexual e também do sangue menstrual. Ela, suas filhas e filhos poderiam manipular os sonhos, seriam responsáveis pelo erotismo noturno e pelas poluções noturnas. Os súcubos, afirmavam, tinham tal força que podiam cortar um pênis com uma contração vaginal. E caso um homem fosse possuído por um desses demônios-fêmea não sobreviveria. Por isso, as mulheres costumavam acordar seus maridos, caso sorrissem durante o sono, pois poderiam estar sendo seduzidos por Lilith. E relatos católicos medievais dizem que muitos homens morreram assim.

Demônio polêmico, sem dúvida, que ainda povoa os sonhos de muita gente, que à maneira medieval clama os nomes dos três anjos, Sanvi, Sansavi e Samangelaf, que foram atrás de Lillith quando ela deixou o paraíso, por acreditar que Lilith ainda tem medo deles.

Para nós que fomos lavados pelo sangue de Jesus, permanece a promessa de que “aquele que habita sob a proteção do Altíssimo e mora à sombra do Onipotente, pode exclamar: ´Ó Senhor, tu és o meu refúgio, o meu castelo, o meu Deus, em quem confio!´ Na verdade, ele há-de livrar-te de armadilhas ocultas e proteger-te contra venenos mortais. Ele te cobrirá com as suas asas e ficarás seguro sob os seus cuidados; com o seu poder te protegerá e defenderá! Não tenhas medo dos perigos da noite”. Salmo 91.1-5.




jeudi 14 mai 2020

Leituras do humano

Leituras do humano
Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Primeira parte

“Nós nos importamos com a boa qualidade dos homens, em primeiro lugar porque ela nos é útil, em seguida porque queremos dar-lhes alegria (os filhos aos pais, os alunos aos professores e em geral as pessoas benévolas a todas as outras pessoas). É somente quanto a boa opinião dos homens é importante para alguém, abstraindo a vantagem ou seu desejo de agradar, que falamos de vaidade”. Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.

O que é o humano? Se partirmos da teologia, teremos abordagens fundantes, que podem nos direcionar a uma compreensão mais abrangente do que é o humano. A primeira delas tem por base a antiga cosmovisão hebraica e apresenta uma antropologia da unicidade humana.

Dois textos do livro das Origens são paradigmáticos nessa leitura. O primeiro está em Gênesis 1.26 e conta que o Eterno disse: “vamos fazer os humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco” E assim o Eterno construiu os humanos; parecidos com Ele. O segundo texto descreve o modo de construção do humano, está em Gênesis 2.7 e diz que “do pó da terra, o Eterno formou o humano. Ele soprou em seu nariz uma respiração de vida e assim esse ser se tornou vivo”.

A partir do segundo texto, podemos entender que a matéria-prima utilizada pelo Eterno na construção do humano é ordinária, ele é uma unidade de carbono, enquanto material pertencente à ordem comum de ló nefesh, que também dá forma aos seres inanimados e animais. Assim, é o sopro do Eterno que faz especial essa matéria ordinária. Teologicamente, podemos nos fazer uma pergunta: será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criadora do Eterno transmitiu ao humano não somente vida, mas intensidade e profundidade? De certa maneira não é absurdo dizer que seres celestiais são criaturas espirituais. Sua existência procede do exterior da força criadora do Eterno. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criadora se dá através da palavra, de uma ordem criadora do Eterno.

A expressão nefesh, presente no segundo texto, leva a uma concepção de exterior versus interior, e tem por base o texto de Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte do Eterno faz seu povo”, já que mobiliza diferentes níveis da força criadora.

Nesse sentido, nefesh, fruto do sopro primordial, procede da interioridade do Eterno e por isso é conhecida como ein soph, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação “façamos o humano” (Gn 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, na tradição antiga dos hebreus, apesar de não tão fortes, os humanos são superiores aos anjos, porque procedem da interioridade do Eterno: traduzem ação mediadora e conjuntiva da força criadora.

Donde, o humano procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integralidade, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do espírito do Eterno, que indica em transbordamento e transparência no humano, que relaciona imanência com transcendência.

Mas, o texto de Gênesis 2.7 fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: não tem uma nefesh, é uma nefesh. O pensamento literário dos hebreus era sintético. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele, exige identificar com que parte do corpo o humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh. E para isso utilizaremos textos que apresentam diferentes sentidos da nefesh.

“A mansão dos mortos abre a sua nefesh, escancara as suas fauces desmedidamente”. Isaías 5.14.
“Ele escancara a sua nefesh sem medida, como a mansão dos mortos, e é como a morte, não se saciando nunca”. Habacuque 2.5.

Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta, em grego, por psyché, na maioria das citações em hebraico, o significado literal de garganta e estômago transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma, tradução do grego psyché, nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que o Eterno construiu o humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o humano se tornou um vivente que necessita Dele para ser saciado.

Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas uma existência colada à realidade das necessidades fundamentais do humano, que ao não serem preenchidas produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria.

Mas como o sopro do Eterno pode ter gerado um humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos nefesh como figura das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Eterno só podem ser saciadas por Ele.

“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência do Eterno. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39-40.
“Ó Eterno, tiraste a minha nefesh da mansão dos mortos”. Salmos 30.4.

No relato de Gênesis 2.7 o humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Por isso, como vimos, quando integrado ao Eterno, nefesh é transbordamento e transparência do espírito do Eterno, o que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em baixo com o que está em cima.

Mas essa natureza também se constituirá enquanto expansão dos significados da imagem do Eterno, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial garganta e boca, que possibilitam o sopro. Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade do Eterno. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem o destino humano.

Esse é o destino humano: ter sua nefesh saciada pelo Eterno e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do espírito do Eterno.

“O homem quer dar prazer a si próprio, mas à custa dos outros homens, seja levando-os a ter uma opinião falsa a respeito dele, seja aspirando a um grau de “boa opinião”, em que esta tem de se tornar penosa para todos os outros (provocando inveja). O indivíduo quer geralmente, por meio da opinião dos outros, certificar e fortalecer diante de seus olhos a opinião que tem de si; mas o poderoso respeito pela autoridade – respeito tão antigo quanto o homem – leva muita gente também a apoiar na autoridade sua própria confiança em si, portanto a só aceitar de mão de outrem: acreditam mais no critério dos outros do que no próprio”.
Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.

O pensamento pré-socrático inaugurou o problema que atravessará toda a história do pensamento ocidental, o problema do ser, ao caracterizar a verdade (em grego, alethéia) como o nexo entre linguagem (logos) e natureza (physis). Para Heráclito de Éfeso, por exemplo, o filósofo, que ama a sabedoria, é aquele que busca a unidade originária da totalidade de todas as coisas.

Logos, no grego 'palavra', foi entendido por Heráclito, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)].

Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural racional, o logos. Considerou o logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, concórdia e discórdia. Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo.

Portanto, o logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.

Mas, exatamente por ser razão e palavra, logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações dos sofistas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, Sócrates e Platão vão formular a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a essência, fundamento de toda instabilidade acidental da existência aparente.

O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, então, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza esta transformação quando afirma que "o que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.

O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte da existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o logos. Assim, o logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.

Dentre as inúmeras transformações que surgiram com a cidade democrática grega, a pólis, a mais importante foi a preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.

A palavra deixou de ser o termo ritual e passou a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que definirá o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética era a arte da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passaram a ser submetidas à arte da oratória e as decisões eram as conclusões dos debates. A política se tornou a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamentou na publicidade das manifestações sociais; se distinguiram os interesses comuns dos privados, consolidaram-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.

Esse desenvolvimento trouxe uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos da cultura, levou os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos ficaram expostos a interpretações e a debates apaixonados. Já não era possível a ninguém se impor apenas por prestígio pessoal ou religioso. Deviria haver o convencimento pela dialética.

A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe a possibilidade da divulgação do conhecimento. A escrita tornou-se pública, não mais estando presente apenas no palácio ou no templo. O saber fez-se público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deveriam ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.

Assim com a consolidação da importância da palavra, o saber passou a ser um bem público. A sabedoria percorreu as veredas da linguagem, do discurso, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Por isso, podemos dizer que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido no passado, a sabedoria.

Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propôs a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogo, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz.

Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.

Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como aná significa em grego mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que brota no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos aparece enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.

Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que pousa sobre o Cristo acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filo de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.

Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arché” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo ao Eterno, porque é pessoa de Deus, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.

Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e, por isso, não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1ª. carta aos Coríntios 2.16].

Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Vamos constatar que desde o princípio estivemos submetidos ao destino e que sempre desejamos livrar-nos dele, mas nunca conseguimos.

Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver a plenitude do tempo e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

«O interesse por si próprio, o desejo de se satisfazer alcançam no vaidoso tal nível que ele induz os outros a uma falsa estima de si falsa, demasiado elevada, e depois se fia, não obstante, na autoridade dos outros: desse modo provoca o erro e, contudo, lhe dá crédito. É preciso, portanto, admitir que os vaidosos não querem agradar tanto a outrem quanto a si próprios e que chegam ao ponto de com isso descurar seu proveito; pois, muitas vezes importa-lhes suscitar em seus semelhantes disposições desfavoráveis, hostis, invejosas, em decorrência desvantajosas para eles, apenas para terem satisfação de seu eu, o contentamento de si». Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.

Paulo dirá numa oração: “Que Eterno, que nos dá a paz, faça com que vocês sejam completamente dedicados a ele. E que ele conserve o pneuma, a psyché e o soma de vocês livres de toda mancha, para o dia em que vier o nosso Senhor Jesus Cristo”. Primeira carta aos Tessalonicenses 5.23.

Se o soma é o espaço do Eros, da vida e da materialidade; e a psyché o espaço do logos, da razão e da sensibilidade; o pneuma é o espaço da espiritualidade, entendido em grego como poiesis, espaço da experiência estética, que responde à necessidade criativa do sentido da vida.

Assim, o sentido da vida não é experiência exclusiva da pessoa religiosa, mas experiência que traduz a criatividade humana. Tal espiritualidade, ou pnêumica, é gratuita. Essa graça está no ato do fazer com imaginação, na inventividade.

Entre os pais da Igreja, partindo de Paulo, Orígenes (185-254) via o humano como triunidade e relacionava a consciência trinitária à sua leitura e interpretação das Escrituras. Para ele, no soma estava o sentido literal da compreensão da revelação; na psyché o seu sentido moral; e ao nível do pneuma o sentido simbólico. Ou seja, a própria compreensão da revelação tinha que passar por estes níveis da consciência humana.

E porque a atividade humana acontece dentro da cultura, que comove, Tomás de Aquino viu a busca da beleza como busca da totalidade, daquilo que é pleno, que possibilita a sacada. Dessa maneira, o conhecimento implica na existência de uma ontologia que, ao dar uma classificação para a percepção sensorial, descreve a experiência como composta de objetos que existem independentemente dos seres humanos. Temos, então, as diferenças que fundamentam a classificação: humano versus não-humano.

Assim, a temporalidade é percebida a partir dessa triunidade da consciência humana: materialidade, razão, espiritualidade. E se apresenta associada aos critérios de confirmação através de experiências intersubjetivas. Essa consciência tripartite é a base do conhecimento nas culturas, a fonte da inteligibilidade entre os humanos, mas também a base para a compreensão da natureza e da revelação.

O objetivo da revelação, antes que ser o de responder às crises que afetam o humano, é recuperar a ordem daquilo que aparece como caos. Por isso, a crítica à complexidade da revelação e à não-regularidade do comportamento proposto por ela está equivocada por não entender o mundo como infinidade de realidades não-observáveis, pois o aparente objeto único do ponto de vista do senso comum é sempre constituído por infinidade de realidades.

Aqui, o que importa é o aspecto qualitativo: a revelação postula realidades pnêumicas para explicar a diversidade das experiências observáveis. Quanto à não-regularidade do comportamento pnêumico, isso é patente apenas na perspectiva daquele que está de fora, pois, para a pessoa que vive o fenômeno espiritual, essas realidades estão sujeitas a leis, sendo a regularidade a própria condição de seu poder explicativo.

A partir dessas leituras, atravessando a correlação entre a nefesh dos hebreus, o soma e o logos do dualismo grego, e o pneuma de Paulo, o apóstolo, podemos dizer que o humano é construção, unicidade e pluralidade da pessoa, na comunidade, ser lançado no cosmo. Imagem do que é eterno, ser aberto à transcendência. Há nele um deslumbramento permanente diante do absoluto e do mistério. E por pensar o que não está aqui e o que não é agora, e refletir sobre o além da realidade imediata, tem prazer em se debruçar sobre o que é eterno e transcendente.

Segunda parte

Uma análise teológica de Gênesis 2.7-23 nos apresenta o humano em equilíbrio com a natureza e em harmonia com a transcendência. Mas, há no texto a metáfora da ruptura, como aquela que vemos na parábola do filho pródigo, contada por Jesus de Nazaré. Esta foi a interpretação de Ireneu de Lyon (ca. 130-202 d.C.) e de Quintus Septimius Florens Tertullianus (ca. 160 - ca. 220 dC).

Tertuliano considerou que o humano no princípio da vida é semelhante ao Adão descrito em Gênesis. Ou seja, as pessoas nascem, idealmente, no paraíso do equilíbrio natural e da harmonia com a transcenência, mas com a construção da consciência e da identidade humanas deixam para trás o jardim e entram no mundo da culpa. Por isso, Tertuliano rejeitou o batismo infantil.

Aurélio Agostinho (354-430), dito de Hipona, apresentou uma leitura diferente ao dizer que Adão era perfeito, justo e imortal, até perder tal condição com o pecado. Para Agostinho, o batismo tiraria o pecado original e restauraria a imortalidade aos descendentes de Adão. Atribuiu a Adão não somente o estado de pecado original em que viveriam todos os seus descendentes, mas também a culpa herdada por todos os seres humanos. Apoiou o seu conceito da culpa herdada numa tradição errônea, baseada num texto latino, da carta de Paulo aos Romanos (5.12): “em quem todos pecaram”. Mas, o texto grego diz: “assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”.

Segundo Agostinho houve uma queda histórica de Adão, o que fez com que a espécie humana herdasse o pecado original. Mas, a história de Adão nos remete à metáfora de uma experiência partilhada por todos na construção da consciência e identidade humanas. Não partimos de um estado de pecado, mas somos culpados por fazer pecados, conforme nos diz o apóstolo Paulo, “assim como, em Adão, todos morrem” (1ª. Coríntios 15.22), “outrora, sem a lei, eu vivia; mas, sobrevindo o preceito, reviveu o pecado, e eu morri” (Romanos 7.9). Assim, uma boa tradução para Gênesis 8.21 é “não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do ser humano, porque é mau o desígnio íntimo do ser humano desde a sua adolescência”, situando o movimento para a ruindade do coração a partir da construção da consciência e da identidade.

Adão estava em equilíbrio com a natureza e em harmonia com a transcendência, mas, também, em revolução permanente quanto ao conhecimento e às relações, com possibilidade de não escolher o distanciamento e de, no momento certo, superar a morte física pelo usufruto da árvore da vida.

Mas o humano, apesar de construído na semelhança do Eterno, desfrutar dos benefícios do equilíbrio com a natureza e da harmonia com a transcendência, viu que era diferente da natureza e que sua identidade se construía na separação da transcendência (Gn 3.1-5). Eis aí, a partir da alienação do estado natural e do mundo da transcendência, o surgimento do homo sapiens.

Esse distanciamento, no entanto, não surgiu apenas dentro da mente humana, mas veio também de fora. Veio da relação sujeito/objeto, do olhar a natureza e constatar que era diferente, do olhar a eternidade e ver-se humano. Nesse sentido, o desafio foi colocado pela natureza, que, ao existir, falou ao desejo de entendimento e de vida: “se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gn 3.5).

A curiosidade e reflexão surgiu a partir do próprio processo de conhecimento. Diante da natureza nasceu a consciência da diferença e a possibilidade de escolha que, por sua vez, leva a alternativas, escolher bem ou escolher mal, já que no início do processo nem sempre se sabe se será boa ou ruim a escolha feita. E, assim, o humano distanciou-se da natureza, embora ainda dependente dela, e também da transcendência. E com a consciência da diferença e de sua identidade humana, a morte chegou.

Não houve coerção, e, sim curiosidade, reflexão, escolha. O humano está livre para decidir.

Tais conceitos do humano em relação à alienação ressaltam que diante da hamartia a pessoa é culpada, não por participar do estado de pecado, mas, por praticar atos de pecado. O Eterno disse a Caim: “porventura se procederes bem, não se há de levantar o teu semblante? e se não procederes bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo; mas sobre ele tu deves dominar” (Gn 4.7) e profeta Ezequiel (18.20) afirmou: “a alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniqüidade do pai, nem o pai levará a iniqüidade do filho”.

Sem dúvida, há uma tendência humana para errar o alvo. Ou como disse Oseias (11.7), “porque o meu povo é inclinado a desviar-se de mim”. Mas, tendência não é sinônimo de compulsão ou depravação total. Assim, o distanciamento da transcendência levou à consciência dos desequilíbrios em relação à natureza e aos relacionamentos. Apareceu a culpa, fruto da alienação existencial -- “então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus” (Gn 3.7) e “esconderam-se o homem e sua mulher da presença do Eterno, entre as árvores do jardim” (Gn 3.8). Surgiu o medo existencial, fruto da consciência do poder transcendente: “ouvi a tua voz e tive medo” (Gn 3.10). E, também, à alienação nos relacionamentos (Gn 3.11-13 e 16) e à consciência da separação humano/natureza (Gn 3.17-19).

Dessa maneira, a alienação existencial levou ao lehatati e à consciência de morte, enquanto separação do humano daquilo que lhe é natural, seu próprio corpo, e daquilo que é transcendente, a presença da eternidade. Assim, como disse Byron Harbin, “a morte física é um rasgamento da alma (2Co 5.4) e a morte espiritual é um rasgamento da relação do espírito humano com o Espírito divino”. Mas tal ruptura tem como limite o amor do Eterno, pois “se ele retirasse para si o seu espírito, e recolhesse para si o seu fôlego, toda a carne juntamente expiraria, e o humano voltaria para o pó” (Jó 34.14,15).

A partir de “todos pecaram” -- Romanos (5.12) e Efésios (2.1 e 5) -- devemos entender que “estando vós mortos pelos vossos delitos e pecados” fala da morte como realidade humana resultante da ruptura com a transcendência. Esta morte frente ao espírito e a eternidade levou à morte física, “até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás” (Gn 3.19), providência do Eterno para que o humano retornasse ao estado anterior à alienação e, assim, partici­passe do Novo Ser, ao invés do rasgamento permanente.

Terceira parte

A existência, enquanto processo, pode ter determinação construtiva no sentido teleológico, por apresentar qualidades adequadas à sua natureza ou função. E o humano, momento da existência, tem possibilidades diante dela. Essas possibilidades podem ser chamadas de liberdade condicionada e relativa à própria existência. Mas tais possibilidades são desafios à compreensão da condição humana e de suas relações reais. Estamos, então, falando de alienação.

A alienação antecede o exercício da liberdade. A idéia, trabalhada por Tillich, a partir de Hegel, é de que pertencemos essencialmente àquilo de que estamos separados. Ou seja, o humano não está separado de seu ser, mas é julgado por ele, e mesmo quando este lhe é hostil não consegue separar-se dele. As possibilidades humanas estão, nesse sentido, mesmo enquanto determinação construtiva e dinâmica, sob funções correlatas, alienação e lei, liberdade e necessidade, que são realidades da existência.

Se a alienação é ruptura essencial, parto que vai produzir a consciência humana, remete tanto ao distanciamento como à aproximação com o Ser. Não seria, então, apenas disfunção, mas apontaria também às funções do humano, enquanto ser com possibilidades de realização somática, psíquica, cultural, ecológica e do sentido pleno da vida.

Na tradição judaico-cristã essa relação entre alienação e liberdade foi um tema teológico de importância. Dos textos judaicos resgatamos idéias como aliança, constância, fidelidade, que remetem à correlação alienação/lei. E no testamento cristão a idéia de destino traduziu o conceito de alienação em seus dois vetores, distanciamento e aproximação.

As tensões ao redor da compreensão das idéias de alienação, que traduz funções e disfunções do humano, e graça, enquanto ação divina para a salvação, apontam para duas outras questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz história. Livre significa liberdade de julgamento e ação no âmbito da existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas.

Na carta aos Romanos (5.12), Paulo afirma que hamartia entrou no cosmo através do humano e com hamartia, a morte. Ora, hamartia ou peccatus é um fazer, uma consequência que nasce deste conceito militar dos gregos, ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que a humanidade vive um fazer em que errar o alvo é possibilidade crescente na existência, embora não seja um estado dela.

Errar o alvo, ou, em hebraico moderno, errar o tiro, leva à conseqüências. Paulo privilegia uma delas, a consciência da morte. Para o apóstolo, hamartia ou peccatus produz uma consciência matricial, a consciência da morte. A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, o alvo é o desafio de acertar, e estão diante do humano, de forma permanente, as necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

Alvo implica, então, em necessidades e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do desafio da existência.

Ora, em termos teológicos, a partir dessa primeira reflexão, podemos dizer que todos são chamados à comunhão e cada pessoa pode responder positivamente a esse chamado. Caso o ser humano responda positivamente ao chamado, vive o processo de libertação que leva à comunhão plena. A comunhão consiste, então, em metanóia, que é volta ao estado de liberdade e permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.

As funções e disfunções existenciais do humano, ou seja, a alienação, fazem com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano à possibilidade de errar o alvo, lehatati (להחט'א), em hebraico, hamartia, em grego, e peccatu, em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, lehatati é a violação da lei. Mas lehatati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de disfunção, ou inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, lehatati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem lehatati, e a culpa de Adão recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso, todo ser humano é responsável pelo lehatati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e, por isso, tendemos também para o mal. Por isso, o texto acima citado de Gênesis diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano a metanóia e o perdão.

A libertação humana é um processo, por isso, a pessoa não é plenamente livre, porque depende dela permanecer ou não na opção escolhida. Se ela manter a escolha será plenamente livre, se abandonar a escolha retorna à alienação. Caso a pessoa livre se alienar, se não houver metanóia, se não voltar à comunhão, estará alienada.

Dessa maneira, na polaridade alienação/comunhão dá-se a construção da história, ou seja, as pessoas e as comunidades humanas interagem, por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano porque criou e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do Espírito, aqui entendido como sentido da vida. A soberania especial está sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estão fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o lehatati.

E quanto maior a alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno contrai espaço-temporalmente sua justiça executora.

Por paixão ao ser humano, ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele.

O Eterno dirige o seu fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade e comunhão e liberdade e alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a alienação.

Podemos ler Gênesis 6.5, 8.21 e Deuteronômio 31.21 a partir da compressão do conceito de alienação. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas alienado. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita a metanóia. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se obedecerem aos mandamentos do Eterno e errarão o alvo se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28).

Assim, só o Eterno é capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la. Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita a construção da história. Por isso, Paulo diz que o Eterno fica de humor transverso com a alienação que distancia, mas segura as pontas com calma, por saber que a alienação é fruto da sua valência e, diante da alienação que aproxima, também obra sua, Ele expressa alegria. (Romanos 9.22-23).

Essa leitura da liberdade entregue ao ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o Reino.

Em relação à alienação, o ser humano herdou de Adão a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se a pessoa não desistir da corrida.

Paralelo ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma rica leitura do conceito de destino, que relaciona alienação e hamartia. O conceito destino nasceu da reflexão de que os deuses são imortais porque o humano está situado entre a finitude existencial e a infinitude potencial. Para os gregos o destino era finitude existencial, e esse é o tema da tragédia grega e da busca da superação filosófica, principalmente de estóicos e epicuristas. Era uma tentativa de colocar o humano acima do destino que o distanciava de seu ser, transformando-se em poder destrutivo que envolveu o mundo helênico em culpa e julgamento.

Um exemplo dessa leitura, que nos interessa para a construção de uma compreensão teológica da alienação, seria o arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem à metanóia, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão.

Dessa maneira, a graça tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E essa chave é: chegar à metanóia. Dessa maneira, o sacrifício de Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado à metanóia, produzindo então a libertação. Ou seja, graça plena mais metanóia é igual à libertação. E o sacrifício do Cristo sem a metanóia, produz justiça. Ou seja, o valor da cruz não é limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência como movimento e o Eterno como móvel.

Essa preparação pode ser pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito.

Por isso, podemos falar da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade. Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/diversidade correlacional plena e necessária.

Todas as pessoas e comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno que os resgatou.

Na teologia paulina, enquanto diálogo das concepções do apóstolo com o mundo helênico, principalmente em sua carta aos Romanos, alienação/destino é o tempo favorável que triunfa sobre o espaço. O caráter do tempo propício à liberdade substituiu o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir dessa compreensão, destino traduz aproximação, e apresenta novas possibilidades de construção da liberdade no tempo e na história.

Antes, a filosofia confrontava-se com a inspiração dos poetas, mas, a partir de Paulo, a revelação apodera-se da filosofia. Assim, o destino que distanciava foi questionado pelo pensamento paulino: “aquele que não era meu povo será chamado de meu povo, e aquela que não era amada passou a ser amada”. (Romanos 9.25). O transitório e perecível perdeu importância e a idéia da construção da existência enquanto tempo favorável foi tomando forma.

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, alienação/destino, no sentido de que os limites são potencialmente ilimitados, é a lei na qual surge o conceito de liberdade. Assim, alienação/destino correlaciona conceitos, porque a alienação está sujeita à liberdade; porque alienação significa que a liberdade também está sujeita à lei; e porque alienação significa que liberdade e lei são complementares e interdependentes.

Analisando o conceito cristão palestino de alienação/destino -- exposto por Paulo em sua carta aos Romanos -- podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram entrelaçadas. Para Paulo, assim como para a tradição judaica, lei é imposição de limites. Por isso, a alienação é um estado que surge da correlação entre lei e vida, porque se o julgamento é inerente a tudo na existência, também o é a liberdade.

Assim, a certeza de que a alienação/destino é propícia e tem significado realizador e não destruidor, é a peça chave do pensamento de Paulo, que coloca o sentido da vida acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance da razão humana, mas o sentido da vida traduz a imortalidade potencial do humano.

Quando o humano faz a defesa do sentido incondicional da vida deixa de temer a ameaça da alienação/destino que distancia, e aceita o lugar que cabe à alienação enquanto estado da existência. Reconhecemos, então, que desde o princípio vivemos num estado de alienação e que sempre desejamos nos livrar dela, mas nunca conseguimos. Mas nessa análise da alienação cabe relacionar sentido de vida e tempo. O sentido de vida deve envolver as leis universais, a plenitude do tempo e a própria existência. E quando o sentido de vida alcança a existência, penetra no tempo e faz da alienação, aproximação.

É necessário, porém, entender que a consciência parte da alienação e que o reino da existência só é acessível ao conhecimento liberto da alienação que distancia. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade humana – que cresce na medida da expansão do sentido da vida – maior será sua consciência de destino.

O destino humano, que nasce da alienação, aponta para o sentido da vida que emerge das crises e desafios. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido paulino de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossas comunidades, tanto mais livres seremos.

Assim, a liberdade humana se dá na existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. A liberdade entende-se como correlação entre lei e sentido de vida. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade somada à ação transformadora. Ou seja, consciência da lei diante do estado de alienação que distancia é mudança radical, é ação transformadora da vida.

Lehatati, hamartia, peccatu é um fazer. Em relação ao imediato transforma-se em estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Lehatati, hamartia, peccatu acontece quando minha liberdade é desafiada, quando ela é chamada a surgir como feitura humana. Nesse sentido, lehatati, hamartia, peccatu não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois lehatati, hamartia, peccatu é um contra-tipo da liberdade.

Por isso, só podemos responder à alienação que distancia reconhecendo que lehatati, hamartia, peccatu é feitura minha e de minha espécie, e que devo promover a ruptura desse fazer através da ação de expansão do sentido pleno da vida. Ao nível do pensamento, do sentimento, da vontade e da ação -- pois a alienação que distancia é o que não devia estar -- devemos exercer uma ética radical de defesa da vida e de seu sentido, de combate ao estado de alienação na vida de pessoas e comunidades.

Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de liberdade desses três pensadores, sabendo que a autonomia e o ato livre são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicos, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. E essas se referem ao fato de que liberdade poderia significar a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre.

Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não foi gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamaram por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a alienação que distancia da condição humana na incipiente sociedade capitalista foi percebida por Cusa e Lutero: a liberdade do sujeito se dá como dor.

Mas ambos consideraram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partiram do distanciamento nessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deveria ser superada para que o sentido da vida florescesse. Aí, então, teríamos o fim da não-essencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não poderia acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade plena de vida, que sustenta o humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o sentido da vida constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partiu dessa discussão. Para ele, a religião era a realização imaginária da essência do humano, mas essa essência não tem realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva: a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo e como responsabilidade maior do ser humano.

Para Lutero, o humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação partiu da ansiedade teórica do século dezesseis, mas traduziu-se em superação da subjetividade alienada. O humano pleno do sentido de vida é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da vida em plenitude. Sua liberdade transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter da liberdade do humano pleno do sentido de vida se dá como processo: morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza.

A liberdade surge como deslocamento do humano alienado, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta. “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto sentido pleno de vida, uma dimensão de combate.

Os humanos são chamados a superar a alienação, ter a liberdade que vai além, a liberdade que é construída na expansão do sentido pleno da vida. E, assim como Paulo, devemos saber que morte ou vida, anjos ou governos, coisas presentes ou futuras, poderes, altura ou profundidade, ou qualquer criatura não poderá nos distanciar do amor do Eterno, que está no Novo Ser, o Senhor.















As fronteiras da igualdade e da liberdade

Quando analisamos os conflitos vividos pelas primeiras comunidades cristãs na Galácia, geradas pelas desigualdades raciais e religiosas (judeu/grego), sociais (escravo/livre) e de sexo (homem/mulher), vemos que o apóstolo Paulo propõe uma radical transformação daquela situação: que a unidade da igreja em Cristo leve as comunidades cristãs a viverem em igualdade e liberdade. Na verdade, o apóstolo propõe, em última instância, que as divisões entre irmãos e irmãs, oriundas de raça, condição social ou sexo, não existam nas comunidades cristãs.

As fronteiras da igualdade e da liberdade:
o amor e a unidade
Pr. Jorge Pinheiro



“Pois, por meio da fé em Cristo Jesus, todos vocês são filhos de Deus. Porque vocês foram batizados para ficarem unidos com Cristo e assim se revestiram com as qualidades do próprio Cristo. Desse modo não existe diferença entre judeus e não-judeus, entre escravos e pessoas livres, entre homens e mulheres: todos vocês são um só por estarem unidos com Cristo Jesus”. (Carta aos Gálatas 3.26-28. Nova Tradução da Linguagem de Hoje, SBB).

Esses versículos do apóstolo Paulo são a chave para se entender a carta aos Gálatas. É a partir dela que Paulo discorre sobre a possibilidade da superação das desigualdades raciais e religiosas, sociais e de sexo na igreja. E o fundamento do argumento do apóstolo é a unidade em Cristo, que possibilita a igualdade e liberdade, e que conduz à unidade do corpo de Cristo.

Assim, Gálatas 3.26-28, coração da carta aos Gálatas, faz uma proposta de abertura de fronteiras, de derrubada de muros, de superação de conflitos e antagonismos que dividiam a igreja.

Três questões desafiadoras

Sem dúvida, Paulo apresenta questões desafiadoras para nós batistas. Podemos dizer que as disparidades econômicas e sociais, étnicas e de sexo estão presentes nas igrejas, mesmo quando não desejamos, nem concordamos com essas posturas. Às vezes, é a discriminação aos irmãos afrobrasileiros ou brasilíndios, às vezes é a discriminação aos irmãos migrados de regiões mais pobres, às vezes é a discriminação aos pobres ou mesmo a discriminação de nossas irmãs, apenas por pertencerem ao sexo feminino. Por isso, este texto de Paulo tem hoje tanta atualidade quanto na época em que o apóstolo escreveu.

Converse com a classe sobre as desigualdades raciais, sociais e de sexo na sua cidade. E, por acaso, se ela existe também na sua igreja. Caso exista convide a classe a orar para que o amor em Cristo supere todas as diferenças e preconceitos e mantenha a unidade da igreja.

Lembre a seu povo:

“Saulo foi para Jerusalém e tentou juntar-se aos seguidores de Jesus. Porém todos tinham medo dele porque não acreditavam que ele também era seguidor de Jesus”. Atos dos Apóstolos 9.26.

O Novo Testamento mostra que as igrejas são um projeto de Deus para todos os seres humanos que aceitarem a Jesus como Senhor e Salvador. Isso significa que mesmo aqueles que são diferentes de nós também serão chamados.

O desafio da igualdade e da liberdade

Somos desafiados por essas duas questões, a igualdade e a liberdade. Como vimos, na época de Paulo, as contradições nas comunidades da Galácia do Norte eram geradas por disparidades raciais, sociais e de sexo, mas o apóstolo Paulo acreditava que podiam ser superados pelo amor e pela unidade em Cristo.

O padre Antonio Vieira, um dos maiores pregradores em língua portuguesa, disse no Sermão do Mandato (1643), que “o amor não é união de lugares, senão de vontades; se fora união de lugares, pudera-o desfazer a distância, mas como é união de vontades, não o pode esfriar a ausência”. E explicou que a ausência maior que temos é a de Cristo, que voltou para o Pai, mas que está conosco todos os dias através do Espírito. Por isso, distâncias não nos podem separar, sejam elas de que tipo forem, as distâncias geográficas, as diferenças raciais, a quantidade de dinheiro que temos nos bolsos ou na conta bancária, o fato de ser homem ou mulher, podem parecer separações excessivas, podem parecer separar os corpos e as vidas, mas não podem e não devem dividir os corações. Podem, às vezes, embaçar os olhos, mas não podem esfriar o amor.

No século 17, quando surgiram as primeiras igrejas batistas na Inglaterra, o pastor John Smyth e Guilherme Dell, fundadores do pensamento batista naquele país, fizeram a diferença levantando as bandeiras da igualdade e da liberdade.

John Smyth e Guilherme Dell defenderam a liberdade de consciência absoluta, e usaram cada oportunidade para mostrar que não é plano de Deus que as pessoas tivessem sua liberdade de consciência cerceada. Dell considerou que o uso da coação por parte do poder monárquico inglês contra puritanos, separatistas e batistas era um ato deletério que não vinha de Cristo, porque somos todos iguais e, por isso, salvos pela graça. Mas também porque somos, em Cristo, livres diante de Deus. Livres para adorar e iguais porque na vida de fé ninguém pode se colocar acima de nós, a não ser Cristo, o filho do Deus vivo.

Assim, esses dois homens entenderam a mensagem do Novo Testamento, inspirada por Deus. E fica em nossos corações a proposta de Paulo, que apresentou o mandamento da superação das barreiras de raça, de condição social e de sexo e mostrou às igrejas da Galácia e a nós batistas os fundamentos do amor e da unidade, que definem as fronteiras da igualdade e da liberdade.

Lembre a seu povo:

“No caminho ele viu um eunuco da Etiopia, que estava voltando para o seu país. Esse homem era alto funcionário, tesoureiro e administrador das finanças da rainha da Etiópia”. Atos dos Apóstolos 8. 27-28.


O etíope era negro, uma pessoa diferente em relação a Felipe, mas perguntou "como poderei entender, se alguém não me explicar?". E esse homem de cultura, cor, país diferente creu, quando o Evangelho do Reino lhe foi apresentado.


O eunuco aceitou o Evangelho e foi batizado. Então, o que diremos a Deus quando pessoas diferentes se acercam de nós? Certamente com gratidão, porque fomos chamados à comunhão e à obediência. Por isso, o apóstolo Paulo fala de que há "um só Senhor, uma só fé e um só batismo", apesar de sermos diferentes uns dos outros. (Efésios 4.5).

Da reflexão à ação

A abrangência do texto apostólico nos leva da reflexão à ação sobre os três temas que estão imbricados nessa abertura de fronteiras: igualdade, liberdade e unidade em Cristo.

Assim Paulo nos obriga a repensar às questões de etnia, escravidão e sexo, extrapolando as paredes da igreja e apresentando a todos os cristãos uma proposta de abertura de fronteiras, onde haja aequalitate, paridade, iguais direitos e oportunidades. E libertate, de tal forma que cada pessoa possa dispor de seu arbítrio, em pleno gozo dos direitos de ser humano autônomo diante de sua consciência e de Deus, como imagem dEle, que tem garantidos seus direitos à existência e à vida.

Se a revelação é uma conversa entre Deus e o ser humano, em Cristo, é a partir desse diálogo que temos os elementos fundamentais para conhecer aquilo que Deus deseja que sejamos: iguais e livres, unidos do amor de Cristo. Nesse sentido, por mais decaído que esteja o ser humano, por mais abandonado e discriminado socialmente, ainda lhe resta a liberdade de consciência necessária para aceitar o diálogo proposto pelo Criador.

Nós batistas consideramos que a missão do povo de Deus é a evangelização do mundo, visando a reconciliação do ser humano com Deus, não importando condição financeira, social ou se é homem ou mulher. Os discípulos de Jesus e as igrejas foram chamadas a proclamar através do exemplo do amor e da unidade em Cristo e através do pregação do Evangelho da paz e, assim, fazer novos discípulos de Cristo em todas as nações. Cabe às igrejas batizá-los, ensinando-os a observar o que Jesus ordenou. Evangelização e missões acontecem quando nós vivemos na igreja igualdade e liberdade e testemunhamos a fé através de nossas próprias vidas.

Lembre a seu povo:

Foi o próprio Jesus quem nos deu a diretriz: “Eu sou a videira e vocês são os ramos. Quem está unido comigo e eu com ele, esse dá muito fruto, porque sem mim vocês não podem fazer nada”. João 15.5.


Jesus é a videira, mas os frutos da justiça brotam das comunidades que estão ligadas nele. Que todos possamos, unidos com ele, produzir frutos de justiça e dignidade reconhecidos. É isso que Jesus espera de nós.

Esta é a mensagem de Paulo para nós :

Se formos um só em Cristo Jesus – e é isso que deve ser buscado -- a igreja não pode estar dividida entre judeus e palestinos, entre poderosos e miseráveis, entre homens e mulheres.