jeudi 11 avril 2013

A violência da globalização


Um texto datado, mas ainda interessante, no mínimo, para pensarmos tragédias como a situação palestina ou a miséria que clama na Coréia do Norte. Abs, JP.

A violência da globalização
Por Jean Baudrillard


Seria a globalização uma fatalidade? De alguma forma, todas as outras culturas que não a nossa escapavam à fatalidade da troca indiferente. Onde se situará o limiar crítico da passagem ao universal e, depois, ao mundial? Que vertigem será esta que impulsiona o mundo para a abstração da Idéia, e esta outra vertigem que incita à realização incondicional da Idéia?

Porque o universal era uma Idéia. Quando se realiza no mundial, ela se suicida enquanto Idéia, enquanto fim ideal. Como o humano se tornou a única instância de referência e a humanidade imanente a si mesma passou a ocupar o vazio deixado por Deus morto, o humano agora reina sozinho, mas já não tem motivação final. Não tendo mais inimigo, engendra-o do interior e secreta todos os tipos de metástases inumanas.

Conquistas da modernidade e do progresso

Donde a violência do mundial - violência de um sistema que persegue qualquer forma de negatividade, de singularidade, inclusive a forma última de singularidade que é a própria morte - violência de uma sociedade em que estamos virtualmente proibidos de conflito, proibidos de morte - violência que, de certa maneira, põe fim à própria violência e que trabalha para instalar um mundo livre de qualquer ordem natural, seja a do corpo, a do sexo, a do nascimento ou a da morte.

Mais do que de violência, seria necessário falar de virulência. Trata-se de uma violência que é viral - que atua por contágio, por reação em cadeia, e destrói, pouco a pouco, todas as nossas imunidades e nossa capacidade de resistência.

Entretanto, nada está decidido, e a globalização não ganhou por antecipação. Diante desse poder homogeneizante e dissolvente, se vê, em toda parte, levantarem-se forças heterogêneas - não só diferentes, mas também antagônicas. Por trás das resistências cada vez mais intensas à globalização, sociais e políticas, é preciso ver mais do que uma rejeição arcaica: uma espécie de revisionismo dilacerante quanto às conquistas da modernidade e do “progresso”, de recusa não apenas da tecno-estrutura mundial, como também da estrutura mental de equivalência de todas as culturas.

Este ressurgimento assume aspectos violentos, anômalos, irracionais em relação a nosso pensamento esclarecido - formas coletivas étnicas, religiosas, lingüísticas - mas, igualmente, formas individuais de perturbação do caráter ou neuróticas. Seria um erro condenar esses sobressaltos como populistas, arcaicos ou mesmo terroristas. Tudo o que faz um acontecimento hoje o faz contra essa universalidade abstrata - inclusive o antagonismo do islamismo com os valores ocidentais (pelo fato de ser a mais veemente contestação desses valores, é que, hoje, o Islã é seu inimigo número um).

Vingança de culturas singulares

Quem poderia impedir o sucesso do sistema mundial? Certamente não o movimento antiglobalização, que só tem por objetivo frear a desregulamentação. Seu impacto político pode ser considerável, mas o impacto simbólico é nulo. Essa violência é também uma espécie de peripécia interna que o sistema pode superar sem perder o controle da situação.

O que pode impedir o êxito do sistema não são alternativas positivas, são singularidades. Ora, estas não são positivas nem negativas. Não são uma alternativa; são de outra ordem. Não obedecem mais a um juízo de valor nem a um princípio de realidade política. Podem, pois, ser o melhor ou o pior.

Não é possível, portanto, confederá-las numa ação histórica conjunta. Impedem o sucesso de todo pensamento único e dominante, mas não são um contra-pensamento único - elas inventam seu jogo e suas próprias regras do jogo.

As singularidades não são necessariamente violentas, e algumas são sutis, como as da língua, da arte, do corpo ou da cultura. Mas há algumas violentas - como a do terrorismo. É a que vinga todas as culturas singulares que pagaram com seu desaparecimento a instauração desse único poder mundial.

Despeito feroz entre culturas

Não se trata, portanto, de um “choque de civilizações”, mas de um confronto - quase antropológico - entre uma cultura universal indiferenciada e tudo o que, em qualquer área, conserva algo de uma alteridade irredutível.

Para o poder mundial, tão radical quanto a ortodoxia religiosa, todas as formas diferentes e singulares constituem heresias. Por esta razão, estão condenadas a entrar, querendo ou não, na ordem mundial ou a desaparecer. A missão do Ocidente (ou melhor, do ex-Ocidente, visto que há muito deixou de ter valores próprios) é submeter, por todos os meios, as múltiplas culturas à lei da equivalência.

Uma cultura que perdeu seus valores só pode se vingar nos valores das outras. Inclusive as guerras - como a do Afeganistão - visam primeiro, para além das estratégias políticas ou econômicas, a normalizar a barbárie, a obrigar todos os territórios a se alinharem. O objetivo é dominar toda e qualquer região refratária, colonizar e domesticar todos os espaços selvagens, tanto no espaço geográfico quanto no universo mental.

A instalação do sistema mundial resulta de um despeito feroz: o de uma cultura indiferente e de baixa definição em relação a culturas de alta definição; o dos sistemas desencantados, que perderam a intensidade, em relação a culturas de alta intensidade; o das sociedades dessacralizadas em relação a culturas ou formas sacrificiais.

Humilhação contra humilhação

Para tal sistema, qualquer forma refratária é virtualmente terrorista. É o caso ainda do Afeganistão. Que, num território, todas as permissões e liberdades “democráticas” - a música, a televisão, inclusive o rosto das mulheres - possam ser proibidas, e que um país possa tomar o contrapé total do que chamamos de civilização - qualquer que seja o princípio religioso invocado -, tudo isso é insuportável para o resto do mundo “livre”.

Não se considera que a modernidade possa ser renegada em sua pretensão universal. Que ela não seja vista como a evidência do bem e o ideal natural da espécie, que se conteste a universalidade de nossos costumes e de nossos valores - ainda que por algumas mentes imediatamente caracterizadas como fanáticas -, tudo isso é um crime em relação à visão do pensamento único e do horizonte consensual do Ocidente.

Esse confronto só pode ser compreendido à luz da obrigação simbólica. Para compreender o ódio do resto do mundo em relação ao Ocidente, é preciso inverter todas as perspectivas. Não se trata do ódio daqueles de quem se tirou tudo e aos quais nada se retribuiu mas, sim, do ódio daqueles a quem tudo se deu sem que eles pudessem retribuir. Não é, portanto, o ódio da espoliação e da exploração, é o ódio da humilhação.

E é a este que responde o terrorismo do 11 de setembro: humilhação contra humilhação. O pior para a potência mundial não é ser agredida ou destruída, é ser humilhada. E a potência foi humilhada pelo 11 de setembro, porque os terroristas lhe infligiram, então, alguma coisa que ela não pode retribuir. Todas as represálias são apenas um aparelho
de coação física, ao passo que ela foi desfeita simbolicamente.

A guerra responde à agressão, mas não ao desafio. O desafio só pode ser aceito humilhando o outro em resposta (mas, de modo algum, esmagando-o sob bombas, nem trancando-o como cães em Guantânamo).

Saturação da existência

A base de qualquer dominação é a ausência de contrapartida - sempre segundo a regra fundamental. O dom unilateral é um ato de poder. E o “império do bem”, a violência do bem, consiste exatamente em dar - sem contrapartida possível. Consiste em ocupar a posição de Deus. Ou do Senhor, que deixa a vida ao escravo em troca de seu trabalho (mas o trabalho não é uma contrapartida simbólica; portanto, as únicas respostas, afinal, são a revolta e a morte). Deus, pelo menos, dava espaço para o sacrifício.

Na ordem tradicional, sempre existe a possibilidade retribuir - a Deus, à natureza ou a qualquer outra instância, sob a forma do sacrifício. É o que garante o equilíbrio simbólico dos seres e das coisas. Não temos, hoje, mais ninguém a quem retribuir, a quem restituir a dívida simbólica - e é essa a maldição de nossa cultura.

Não que nela seja impossível o dom e, sim, que nela o contra-dom é impossível, visto que todas as vias sacrificiais foram neutralizadas e desmontadas (resta apenas uma paródia de sacrifício, visível em todas as formas atuais da condição de vítima).

Estamos, desse modo, na situação implacável de receber, receber sempre, não mais de Deus ou da natureza, mas através de um dispositivo técnico de troca generalizada e de gratificação geral. Tudo nos é virtualmente dado e, queiramos ou não, temos direito a tudo. Estamos na situação de escravos aos quais se deixou a vida e que estão ligados por uma dívida insolúvel.

Tudo isso pode funcionar durante muito tempo graças à inserção na troca e na ordem econômica mas, num dado momento, a regra fundamental a vence, e a essa transferência positiva corresponde, inevitavelmente, uma contratransferência negativa, uma ab-reação violenta a essa vida cativa, a essa existência protegida, a essa saturação da existência. Tal reversão assume a forma de uma violência aberta (o terrorismo faz parte dela), ou da negação impotente, característica de nossa modernidade, do ódio de si e do remorso - todos paixões negativas que são a forma degradada do contra-dom impossível.

Veredicto e condenação da sociedade

Aquilo que detestamos em nós, o obscuro objeto de nosso ressentimento, é esse excesso de realidade, esse excesso de poder e de conforto, essa disponibilidade universal, essa realização definitiva - o destino que, no fundo, o “grande inquisidor” reserva às massas domesticadas em Dostoievski. Ora, é exatamente isso que os terroristas criticam em nossa cultura - donde a repercussão que o terrorismo encontra e o fascínio que exerce.

Tanto quanto no desespero dos humilhados e dos ofendidos, o terrorismo se baseia, por exemplo, no desespero invisível dos privilegiados da globalização, em nossa própria submissão a uma tecnologia integral, a uma realidade virtual esmagadora, a um domínio das redes e dos programas que traça, talvez, o perfil involutivo da espécie inteira, da espécie humana tornada “mundial” (a supremacia da espécie humana sobre o resto do planeta não seria à imagem da supremacia do Ocidente sobre o resto do mundo?). E esse desespero invisível - o nosso - é irremediável, pois decorre da realização de todos os desejos.

Se o terrorismo decorre, pois, desse excesso de realidade e de seu prazo impossível, dessa profusão sem contrapartida e dessa resolução forçada dos conflitos, então a ilusão de extirpá-lo como um mal objetivo é total, dado que, sendo como é, em seu absurdo e em seu contra-senso, ele é o veredicto e a condenação que esta sociedade emite em relação a si mesma.

Tradução: Iraci D. Poleti
Jean Baudrillard é filósofo, autor, dentre outros livros, de “La Guerre du Golfe n’a pas eu Lieu” (1991), “Le Crime Parfait” (1994) e “L’Esprit du Terrorisme” (2002), todos editados pela Galilée. Este texto foi extraído de seu novo ensaio, “Power Inferno” (ed. Galilée, Paris, 94 páginas).

mardi 9 avril 2013

ABORTO



Você deve ver o depoimento da jovem ex-diretora da clínica de abortos, mas assistir também o filme, antigo, mas forte e verdadeiro, já postado. Todos devem ver, debater e pensar sobre esta questão ética e humana, sem importar credo ou situação social. JP.

Documentário sobre o Aborto - Grito Silencioso

Você deve assistir o filme, antigo, mas forte e verdadeiro e ver também o depoimento da jovem ex-diretora da clínica de abortos. Todos devem ver, debater e pensar sobre esta questão ética e humana, sem importar credo ou situação social. JP.


dimanche 7 avril 2013

O Dia do Senhor


hwhy-Mwy

O dia do Senhor

O hoje, o kairós e o escatológico

Jorge Pinheiro


Há uma expressão no Antigo Testamento que têm sido motivo de análise e discussão por exegetas e especialistas: O Dia do Senhor. Esta expressão, que muitas vezes é tomada apenas em seu sentido escatológico, futuro, faz parte do linguajar teológico e pastoral. Por isso, queremos aqui refletir sobre ela e ver como nos apresenta uma abrangência que não se limita ao seu conteúdo escatológico.
Assim, teremos um objetivo em nossa análise: focalizar a expressão hebraica “yom Iaveh”,  Dia do Senhor, enquanto conceito teológico presente em textos do Antigo Testamento. Vamos partir do texto de Joel 2.1-3, que nos serve de referência, e procurar compreender os sentidos teológicos implícitos na expressão, conforme se encontram nos textos de Isaías 2.5, Isaías 58.13-14 e Joel 1.15 e em seus correlatos gregos no Novo Testamento: João 4.21-23, Gálatas 4.4 e 2 Pedro 3.7.
Como instrumental teórico, ou seja, como hermenêutica, utilizaremos uma (1) leitura trinitária dos textos: como e onde se expressam as Pessoas de Deus no dia do Senhor; (2) uma exegese dos conceitos nos idiomas originais numa análise comparativa com os os textos de Qumran. E uma (3) leitura contextualizada, levando em conta a história da vida cotidiana do povo judeu no tempo de Jesus.
E vamos delimitação o nosso tema, a fim de alcançar maior profundidade na análise. A análise estará circunscrita ao objeto de pesquisa, Dia do Senhor, descrito anteriormente. Por isso, não analisaremos em profundidade, nem vamos expor questões teológicas presentes nas expressões Ruach, Massiah e Iaveh, embora tais expressões apareçam no desenvolvimento de nosso estudo.

TOCAI a buzina em Sião, e clamai em alta voz no monte da minha santidade. Perturbem-se todos os moradores da terra, porque o dia do Senhor vem, ele está perto; Dia de trevas e de tristeza; dia de nuvens e de trevas espessas, como a alva espalhada sobre os montes, povo grande e poderoso, qual desde o tempo antigo nunca houve, nem depois dele haverá pelos anos adiante, de geração em geração. Diante dele um fogo consome, e atrás dele uma chama abrasa; a terra diante dele é como o jardim do Éden, mas atrás dele um desolado deserto; sim, nada lhe escapará”. Joel 2.1-3. 

Introdução

Mwy
yom é um conceito da teologia hebraica, relativo a tempo, presente no Antigo Testamento. Yom não deve ser entendido apenas como uma palavra, mas como conceito que dependendo do contexto em que é utilizado pode significar um instante, um momento especial ou um longo ou distante período de tempo. Mas, geralmente, é traduzido por dia, ano, tempo.

Assim, pode expressar o período de iluminação natural, em contraste com o período de escuridão. O dia é formado por oposto que se complementam, o período da tarde (ereb, tarde ou layla, noite) e da manhã formam uma unidade de 24 horas. Quando este dia luz ou dia tarde e manhã se refere ao dia hoje dizemos em hebraico mwyh hayom.

É importante dizer que o yom de luz no mundo hebraico não era medido em horas, mas de acordo com os fenômenos naturais e as atividades cotidianas. As duas refeições do dia, eram balizadoras das atividades do dia luz. E o dia ereb, tarde, ou dia layla, noite, eram divididos pelas três vigílias. Mas, além desse dia dual, havia o dia ano, e nesses casos o conceito vem no plural. Mas dia podia ser também um período indeterminado de tempo.

A palavra dia em português deriva do latim vulgar, dies, e de forma genérica significa o tempo em que a Terra está clara, ou seja, o intervalo entre uma noite e outra. Mas significa também a medida de tempo que nosso planeta ou qualquer corpo celeste leva para descrever uma volta em torno de seu eixo de rotação.

Temos, assim, em português, os dias ou os tempos quotidianos, o dia-a-dia. Os dias litúrgicos cristãos, que ao contrário dos primeiros são separados, escolhidos para a realização de alguma coisa especial. Podemos dizer, por exemplo, que o dia de ano-bom é o primeiro dia do ano, o 1º de janeiro; que o dia de Reis é 6 de janeiro, comemoração católica da adoração do Menino Jesus pelos Reis Magos (Baltasar, Melchior e Gaspar). Mas temos, ainda, um dia sem data, um dia de juízo, de julgamento final, de clamor, confusão e desgraça.  

I.          Dia luz, dia tarde e manhã

Dia de adoração e serviço


Então, em nossa análise, vamos começar por este dia luz, dia novo que começa a cada entardecer. Dia de tarde e manhã. Conforme nos diz Isaías, 2.5:

Venha, ó descendência de Jacó, andemos na luz do SENHOR! O Dia do SENHOR”.

Mas, se formmos ao Novo Testamento vemos uma idéia correlata em João 4.21-23:

Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem (oti ercetai wra), em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem

No texto de Lucas, Jesus fala com a samaritana que chegaria uma wra, e usa a palavra grega que deu a expressão hora em português (que podemos traduzir também por tempo ou mesmo dia) em que Deus exigiria de nós adorá-lo no Espírito e não mais segundo as tradições, fossem elas samaritanas ou judaicas.

E para falar dessa hora luz, desse dia luz, devemos entender como o Espírito de Deus se faz presente nele e atua em nossas vidas. Por isso, vamos ver rapidamente como hebreus e cristãos viam a ação do Espírito.

A expressão hebraica ruach e seu correlato grego pneuma significam literalmente vento ou sopro. Normalmente traduzimos esses termos, quer do hebraico ou do grego, por “espírito” ou por Espírito” com letra maiúscula. Quando optamos pela tradução “espírito” queremos nos referir ao espírito humano ou a um espírito, que pode ser um demônio ou um anjo. Optamos pela tradução “Espírito”, quando o texto se refere ao Espírito Santo ou Espírito de Deus. Assim, em 2Tesssalonicenses 2:8 significa sopro (“a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua boca”). E em Eclesiastes 8:8 indica o princípio essencial da vida, nosso fôlego de vida. Mas, ao nascermos de novo, através da aceitação pela fé do sacrifício de Jesus na cruz do calvário, o Espírito Santo passa a habitar em nós, como explica Paulo em 1Coríntios 3. Em Romanos 1:4, 2Coríntios 3:17 e 1Pedro 3:18 a expressão grega pneuma nos remete à uma das Pessoas da Trindade, ao Espírito Santo de Deus.

O Espírito Santo nos manuscritos encontrados em Qumran, que faziam parte da biblioteca dos essênios, piedosa comunidade judaica que vivia no deserto na época de Jesus, aparece de forma explícita como Pessoa trinitária.[1] Por isso, podemos dizer que nos textos de Qumran encontramos elementos conceituais da doutrina do Espírito Santo.[2] E é interessante ver que um manuscrito ao falar da promessa da autoridade profética, restauradora da justiça, apresentada na figura do Messias, diz que “O Espírito Santo desceu sobre o seu Messias”. 2Q 287 (3.13). “Céu e terra pertencerão ao meu Messias (...) e tudo o que neles há. Ele não se afastará dos mandamentos dos santos (linha 6) e o seu Espírito estará sobre os humildes e os crentes serão fortalecidos por seu poder”. 4Q 521 (fragmento 1, coluna 2).[3] E a Regra da Comunidade afirma que: “Ele purificará a carne de todas as obras ímpias pelo Espírito Santo e aspergirá sobre ela o Espírito de verdade como água de purificação”(IQS 4.21).[4]

Estamos, dessa maneira, diante de um dia onde se deve andar na luz do Espírito da verdade. É o dia tarde e manhã que, sucessivamente, Deus cria para nós: é dia de adoração. Este é um dia particular, me envolve como pessoa, mas é cotidiano, são todas as horas do dia, todos os dias. Mas deve ser comunitário, porque implica em reunião, porque é assim que se adora e se  serve no Espírito da verdade. É por excelência o dia da igreja.

II.        Dia kairós

Dia de salvação e proclamação


Quando falamos de kairós falamos plenitude, falamos de máxima extensão, brilho e glória. Plenitude é tempo de beleza, é um momento de graça onde a possibilidade humana se torna cheia da força divina. Mas este kairós é diferente de todos os tempos anteriores e futuros, pois aponta para a possibilidade de liberdade e salvação. E a esperança que o kairós gera é maior que a simples ilusão humana, pois esta esperança tem o próprio Cristo por fundamento, já que aqui a graça gera a plenitude. Assim, o kairós é o dia da plenitude, de grande magnitude e beleza. É um dia especial de irrupção da liberdade e da salvação. É um dia diferente, é particular, marca as nossas vidas e não se repete. É o dia do Senhor Jesus.

Se desviares o teu pé do sábado e de fazer a tua vontade no meu santo dia, e se chamares ao sabado deleitoso, e santo dia do Senhor, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, nem pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falar as tuas próprias palavras. Então te deleitarás no Senhor, e te farei cavalgar sobre as alturas da terra, e te sustentarei com a herança de teu pai Jacó; porque a boca do Senhor o disse”. Isaías 58.13-14.

No Antigo Testamento, o dia kairós era simbolizado pelo sábado, que traduzia a idéia de regeneração da vida e, por isso, de liberdade e salvação. Com o tempo, os hebreus perderam esse sentido maior do sábado e passaram a ver nele apenas um aspecto, o da separação e santificação, que sem dúvida está presente.

No Novo Testamento, o dia kairós ressurge com toda sua força simbólica na Pessoa de Jesus, que encarna na plenitude dos tempos, na época certa de liberdade e salvação.

Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”. Gálatas 4.4.

Por isso, ele traz a plenitude da salvação para nossas vidas através de um dia especial: o dia de nossa conversão. Esse dia acontece apenas uma vez em nossas vidas. Ele é definitivo e faz com que nossas vidas se dividam em antes de depois dele.

João testificou dele, e clamou, dizendo: Este era aquele de quem eu dizia: O que vem depois de mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu. E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça”. João 1.15-16.

Por isso, o dia kairós é um dia particular, pessoal, de encontro com o Salvador. É o dia do Cristo: é único, é transformador. Produz regeneração que se projeta na eternidade. Esse é o meu dia, da particularidade da minha salvação. Eu sei o que ele significa. É cheio de beleza, graça e força. E por isso eu testemunho sobre ele.

III.       Dia escatológico

Dia de juízo e justiça


Mas há um dia escatológico, de consumação do tempo e da história, quando os seres humanos que não aceitaram a alforria e a salvação pelo kairós do Cristo estarão sob a justiça e juízo do Deus eterno. Este é o grande e  terrível dia do Deus Pai, que abre um tempo novo, o yom eterno. 

O Deus eterno é Deus do tempo e da história. Isso significa que é Deus quem atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela. Essa meta pode ser compreendida de várias maneiras, como vitória sobre os poderes demoníacos, bem-aventurança, chegada do reino de Deus e, mais além da história, criação de novos céus e nova terra, ou seja, de uma realidade nova e superior.

Ah! aquele dia! porque o dia do Senhor (hwhy Mwy yom Iaveh) está perto, e virá como uma assolação do Todo-poderoso”. Joel 1.15.

A rainha do meio-dia (uma referência de Jesus à rainha de Sabá) se levantará no dia do juízo com esta geração, e a condenará; porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. E eis que está aqui quem é mais do que Salomão”. Mateus 12.42.

No profetismo antigo muitos eram os símbolos para expressar a esperança escatológica e o Dia do Senhor era talvez o de maior impacto. No profetismo vétero-testamentário a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais e as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, pois o sofrimento do Filho da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais arrependidas. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma. Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo.

Mas os céus e a terra que agora existem, pela mesma palavra se reservam como tesouro. e se guardam para o fogo, até o dia do juízo, e da perdição dos homens ímpios”. 2 Pedro 3.7.

Nós evangélicos comprometidos com as missões mundiais vivemos a promessa desse dia quando fazemos missões, pois elas têm um caráter universal e visa criar uma consciência humana em Cristo. Esse tempo do Deus Pai alcança plenitude na história, porque a história aponta para o reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço.

No protestantismo temos outros símbolos de esperança escatológica de igual força e trancendência, como os apocalípticos da revelação joanina. De todas as maneiras, o Dia do Senhor, quer nos símbolos vétero-testamentários, quer na revelação apocalíptica neo-testamentária, traduz a idéia de que o círculo trágico do espaço será superado e que a história teve um princípio e terá um fim. E isso tem um significado especial para nós, já que o apóstolo Paulo também fala de “nova criatura”.

Com o Dia do Senhor o monoteísmo profético se apresenta como monoteísmo da justiça, porque os falsos deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca-se inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade de poder das comunidades submetidas a esses deuses espaciais não pode fazer justiça diante da vontade de poder de outras comunidades submetidas a outros deuses espaciais. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro de uma nação e para as próprias nações. O politeísmo, que é a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula a universalidade implícita na idéia de justiça. Este é um clamor do Dia do Senhor presente no monoteísmo profético.

Mas a ameaça profética do Dia do Senhor também pende sobre joio que se esconde em meio ao povo eleito, de ser rechaçado por o Eterno, por causa da injustiça. A tragédia e a injustiça são próprias dos falsos deuses do espaço, mas a realização histórica e a justiça o são do Pai eterno que atua no tempo para criar um dia eterno.[5] Por isso, o dia escatológico é um dia universal. Terrível para aqueles que rechaçaram a plenitude da graça e o viver no Espírito.

Considerações finais

 

A idéia do kairós nasce da relação com o eterno. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante, mas o dia kairós não pode existir num estado de eternidade no tempo. O dia kairós traduz a idéia de que o Deus eterno é, em sua essência, aquele que faz a revolução no tempo sem, contudo, fixar-se nele.

Assim, a realização plena do dia de hoje, como do kairós, se encontra além do tempo. Toda transformação exige uma compreensão do momento vivido, que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Toda transformação deve projetar-se na eternidade, deve entender que há na suave presença do Espírito, hoje, em nossas vidas, uma complementaridade entre este kairós de alforria e salvação e a eternidade que se abre com o fim dos tempos.

É a partir dessa compreensão do que significa o Espírito no tempo presente, que voltamos ao kairós, construído enquanto necessidade e responsabilidade que não podem ser adiadas ou recusadas. Kairós significa tempo concluído e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a irrupção da eternidade no tempo. O kairós não é um momento qualquer, não é uma parte do curso temporal: é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do nosso destino.

Considerar um momento de nossa vida como kairós, considerar o tempo do Cristo como uma decisão inadiável e inevitável é considerá-lo enquanto tempo que reúne o hoje da adoração no Espírito da verdade com o tempo do Pai eterno, lá onde tempo e história deixam de existir. Essas raízes do dia do Senhor mantêm entre si uma relação trinitária, que é mais do que simples justaposição. Por isso, o Dia do Senhor é tempo do Espírito, de adoração e serviço, é tempo do Cristo, de salvação e proclamação, é tempo do Pai eterno, de juízo e justiça.



[1]Conforme Escrito de Damasco; Regra da Seita caverna 1; 4 Q 414 (textos da caverna 4, segundo versão de R.H. Eisenmann e M. Wise, The Dead Sea Scrolls Uncovered, 1992); e Rolo da Guerra, caverna 1. A Regra da Seita 4: 21-22 diz: “Ele derramará sobre eles o Espírito da Vida como água purificadora para a purificação de todos os males”. Klaus Berger, op. cit., p. 69.
[2]Em 4 Q 521, fragmento 1, coluna 2, linha 6, o texto afirma, depois de nomear o Messias: “E o seu Espírito vai parar sobre os humildes, e ele restabelecerá os fiéis com seu poder”. Klaus Berger, Qumran e Jesus, op. cit., p. 105.
[3]Klaus Berger, idem, op. cit., pp. 90-92, 96-97.
[4] M. Burrows, More Ligth on the Dead Sea Scrolls,  Londres, Secker & Warburg, 1958, p. 60.
[5] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 40-42. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954.

vendredi 5 avril 2013

O conceito de Aliança como referência simbólica na teologia de Gênesis

por Jorge Pinheiro

[Em especial, para meus alunos de Filosofia II, 
para a discussão de historicidade e símbolo na construção da linguagem religiosa]  


Índice

1. Introdução

2. Um personagem transistórico num contexto real

3. A materialidade da Aliança

4. Uma construção histórico genética

5. Considerações



A
discussão em torno de referências simbólicas na teologia de Gênesis é polêmica, pois o próprio conceito de referência simbólica, para muitos teólogos, seria um limitação para um outro conceito: o de revelação progressiva. Ora, dizem eles, se a revelação é progressiva toda definição de referência é descabida [1]. Acontece que não devemos falar de uma referência linear em progressão, mas de uma expansão. Poderíamos tomar uma imagem, apesar dos perigosos que um grafismo pode representar, de círculos concêntricos formados na água ao cair de uma pedra. A expansão se dá em todos os sentidos, há sem dúvida uma progressão, mas temos uma referência, criada pelo choque da pedra com a água. 

Um personagem transistórico num contexto real

A teologia de Gênesis tem como referência simbólica o conceito da aliança, não como paradigma doutrinário gerador de dogmas, mas como descrição de um processo vivo, que tem origem em determinado momento histórico, numa relação entre o Eterno e um homem transistoricamente definido [2]. Assim, ao entendermos o conceito de aliança como centro unificador do livro de Gênesis e, por extensão, do Hexateuco, a leitura do texto bíblico passa a ter uma compreensão definida, que cresce conforme a aliança se transforma em osso e carne, primeiramente, na vida dos patriarcas e, posteriormente, na formação da própria nação.

O livro de Gênesis apresenta a humanidade recém formada como monoteísta[3]. Até o capítulo 11 não vemos nenhum traço de idolatria. Só após Babel surge a idolatria, que seria contemporânea ao aparecimento das nações da Antigüidade. Assim, a partir de Gênesis 12, temos nações idólatras e politeístas e indivíduos que adoravam ao Deus único. Entre estes estão Abrão e Melquisedeque. A compreensão desse fato é importante para tirarmos das costas de Abrão a responsabilidade de ter criado a primeira religião monoteísta. Ele não criou a religião do Eterno único, mas deu seqüência a uma tradição, no sentido de transmissão de conhecimento e cultura, que vinha, em parte, de seus antepassados.

Vejamos um pouco mais sobre a transistoriedade  desse homem, conforme descrita em Gênesis 12:1 a 25:18. Ele vivia na terra formada entre os rios Tigre e Eufrates, às margens de um afluente do Eufrates, chamado Balique. Viveu com sua família em Harã, uma cidade altamente desenvolvida. Seus parentes - Terá, Naor, Pelegue, Serugue - têm seus nomes registrados nos documentos de Mari e dos assírios como nomes de cidades naquelas regiões[4].

A cidade de Ur, onde vivera antes de ir para Harã, é situada pelos arqueólogos na região da moderna Tell el-Muqayyar, a catorze quilômetros de Nasiryeh, no sul do Iraque. Segundo estudos de Sir Leonard Woolley, do Museu Britânico, que reconstruiu a história de Ur desde o quarto milênio até o ano 300 a.C., o deus-lua Nanar, que era adorado em Ur, também era a principal divindade em Harã.

É interessante agregar, que a ofensiva da teologia liberal, que se baseava principalmente nos estudos de Graf-Wellhausen[5], e que afirmam que Abraão, Isaque e Jacó não existiram como pessoas, mas são personagens criados pela literatura oral israelita entre os anos 950 e 400. Porém, essa visão entra em confronto com informações arqueológicas atuais. A partir de 1925, uma série de descobertas arqueológicas produziu uma revolução de informação até então inédita. “Temos agora textos, literalmente dezenas de milhares, contemporâneos ao período das origens de Israel”[6]. E Bright cita os 25 mil textos de Mari; os milhares de textos capadócios; os das Execracões, os do médio Império Egípcio; e os tabletes de Nuzi, Alalakh, e Ras Shamra, produzidos entre os séculos 20 a.C. e 14 a.C..

Ao sair de Harã, Abrão deixava para trás a cultura politeísta babilônica. Mas isso não significa que todos os seus parentes compartilhavam suas idéias sobre a adoração do Deus único. Em Josué 24:2 vemos que membros de sua família eram politeístas. Em Canaã, também estava rodeado de idólatras, mas mesmo assim erigiu um altar ao Senhor.

Este homem Abrão era, sem dúvida, alguém especial. Sua fé no Deus único produziu em sua vida um fruto muito especial. Era um homem que procurava a paz (13: 8+), generoso (14:21+), hospitaleiro (18:1+), intercessor (18:23+), que busca a justiça e o direito (18:19). Era um homem moral e temente a Deus.

A materialidade da Aliança

Dessa maneira, os livros de Gênesis e Êxodo apresentam a fé israelita, enquanto construção, fundamentada em dois acontecimentos históricos. O primeiro, é a escolha de um homem transistoricamente definido, chamado Abrão, que foi tirado da cidade de Ur e levado para Canaã, uma terra prometida a ele e sua descendência (Gn.19:31; 12:7). Essa promessa foi selada com um pacto, uma aliança entre o Eterno e Abrão, conforme Gênesis 15: 5-10. E o segundo fato histórico é a libertação dos descendentes de Abrão da escravidão do Egito, através de Moisés, e sua entrada na terra prometida (Ex. 3:6-10). Esses dois acontecimentos expressam a materialidade da aliança, que se traduz como escolha de Deus a favor de um homem, gerador de um povo, para uma missão definida. Realidade esta que foi reafirmada, centenas de anos depois, pelo príncipe dos profetas israelitas: “Ouvi-me, vós, que estais à procura da justiça, vós que buscais a YHWH. Olhai para a rocha da qual fostes talhados, para a cova de que fostes extraídos. Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, aquela que vos deu a luz. Ele estava só quando o chamei, mas eu o abençoei e o multipliquei”. Isaías 51: 1 e 2.

A aliança com Abrão foi selada com sangue, conforme os versículos 9 e 10 do capítulo 15 de Gênesis. Segundo os costumes semitas, o berit (pacto ou aliança) era feito através da degola de animais, geralmente um bezerro, que era dividido em duas partes, colocadas uma em frente à outra, e os contratantes passavam entre os pedaços (Jr.34:18-20) e diziam: “Que a Divindade corte em pedaços, como a estes animais, os violadores deste pacto”[7]. Daí as expressões, “karot berit”, imolar uma vítima para concluir um pacto; “bo ba berit”, entrar na aliança (Jr. 34:10); “abor ba berit”, passar pela aliança (Dt. 39:2); “amod ba berit”, parar na aliança (II Rs.23: 3).

Assim, o Eterno deu a Abrão uma formalização do pacto. Ou seja, o próprio Deus selou o acordo com um costume humano, a fim de que a aliança pudesse ser visualizada por Abrão. E o Eterno, em seu amor pelo contratante mais fraco, passa no meio dos animais partidos (Gn. 15: 17). O versículo seguinte agrega:

“Naquele dia, o Eterno estabeleceu uma aliança com Abrão nestes termos: à tua posteridade darei esta terra (...)”.

Aqui voltamos ao início dessa análise: por que a referência simbólica da aliança fornece uma base para a compreensão do livro de Gênesis? Em primeiro lugar, porque o diálogo do Eterno com Adão e Eva em Gênesis 3: 15 aponta para um Salvador. E em Gênesis 15 temos a primeira realização dessa promessa através da aliança com Abrão, que produzirá descendência, com duas missões: ser testemunha entre as nações, e ser nação separada, da qual nasceria o Messias prometido.

“É de suma importância entender que a aliança iniciou uma nova relação entre Deus e Israel, uma relação imposta por YHWH, mas exclusiva e íntima em seu ideal”[8]. Embora, na tradição judaica, o livro de Êxodo seja o livro da aliança, o conceito está presente e é desenvolvido no primeiro livro do Pentateuco. Na aliança está embutida a idéia de salvação e de relacionamento pessoal com o Eterno. Esta realidade nova dentro do plano de redenção do homem, está implicita na declaração do Eterno a Abrão: “Estabelecerei uma aliança entre eu e você, e a sua raça depois de você, de geração em geração, uma aliança perpétua, para ser o seu Deus e o da tua raça depois de você”. Gn. 17:7. E como todo pacto, além do “berit milah” (pacto da circuncisão), Abrão e seus descendentes são chamados à responsabilidade moral (v. 1) e a uma adoração permanente (v. 7 e 19). Elementos estes, que a partir de Moisés serão desenvolvidos, dando origem à religião de Israel, que tem por base, num primeiro momento histórico a primazia do culto e suas ordenanças e, num segundo momento, com o surgimento da profecia literária, da justiça social. Assim, é impossível fazer uma completa separação entre Aliança e Reino. Este último será uma construção que tem como primeiro tijolo a nova relação estabelecida pelo Eterno com pessoas.

Uma construção histórico-genética

Aqui, somos obrigados a recorrer a alguns conceitos da moderna epistemologia, para entendermos o papel da transmissão do conhecimento de Deus e de sua vontade, realizado através da aliança, que Gênesis nos aporta. Segundo Piaget, quando estudamos o desenvolvimento e a construção das estruturas de conhecimento, vemos que esta construção se dá através de uma dissociação de conteúdos e da elaboração de novas formas, mediante uma abstração reflexiva de conhecimentos anteriores [9]. Ora, a relevância da epistemologia genética está em que ela nos mostra que, por mais importantes que sejam as origens de dado conhecimento, o que vai determinar sua essência é seu movimento genético. Assim, quando temos a formalização desse processo temos de fato um conhecimento inteiramente novo, que extrapola os dados iniciais, transbordando o real.

Ora, sabemos que a circuncisão [berit milah] na época de Abrão era um costume generalizado, associado aos poderes da reprodução humana, que servia de distintivo tribal[10]. Sabemos, também, como vimos anteriormente, que os pactos eram selados com sangue e o seu rompimento significava a morte do transgressor. Esses conteúdos faziam parte da cultura de Abrão e de seu clã. Da mesma forma, outros conteúdos, como adoração / “edificar um altar” (Gn.12: 8), obediência / “foi habitar nos carvalhais de Manre” (13: 17-18), entrega de bens e posses / “e de tudo lhe deu o dízimo” (14:20), fidelidade / “ele creu no Senhor” (15: 6), e consciência da onipotência divina / “não fará justiça o juiz de toda a terra?” (18: 25) são conteúdos espirituais da fé de Abrão e dos homens santos que o antecederam.

Dessa maneira, a questão não está centrada nas origens desses conteúdos que, sem dúvida, são históricos e refletem as culturas das civilizações mesopotâmica e da bacia do Nilo, assim como a tradição monoteísta na época de Abrão. O fundamental aqui é entender que esses conteúdos se organizam em nova estrutura: a aliança abrâmica, que se constrói geneticamente, com história peculiar. Esta aliança, cuja gênese e história mostram uma elaboração sucessiva, que é o próprio Pentateuco, como síntese linguística, não é pré-formada. Sua construção histórico-genética é autenticamente constitutiva e não se reduz a um mero conjunto de conteúdos acessíveis.

Mas há um bereshit, um fiat, um momento especial que dá origem à essa estrutura nascente: é a revelação. A partir da promessa de Gênesis 3:15 temos, agora, uma revelação nova. A aliança surge como revelação, que dá vida a antigos conteúdos, colocando em movimento um processo histórico-genético que vai-se construir enquanto estrutura (povo escolhido / terra prometida) e dar novo salto com a formalização maior realizada no Sinai.

Esta realidade leva a uma outra, que é o da linguagem do Pentateuco, na sequência da aliança. Considerando a moderna linguística, do ponto de vista estruturalista, vemos que a linguagem tem duas grandes características: por um lado é universal, enquanto estrutura geral, humana[11], e, por outro, é livre e não serve apenas à função comunicativa, “mas é antes um instrumento para a livre expressão do pensamento e para a resposta apropriada às novas situações”[12]. Isto é o que explica o fato de que as grandes revoluções do conhecimento são sempre acompanhadas pelo surgimento de uma linguagem nova e de novas estruturas de pensamento. Ora, a aliança descrita em Gênesis 15 e 17 vai abrir um processo de revolução em relação ao conhecimento de Deus e de sua vontade, e vai gerar uma nova linguagem. De forma crescente vemos nos capítulos seguintes de Gênesis e dos demais livros do Pentateuco essa nova linguagem ganhar forma e consolidar-se enquanto linguagem da teologia da aliança. Algumas palavras serão fundamentais nessa nova linguagem: acordo / aliança / pacto (berit, conforme Gn. 12:2; 15:17; 17:7-8; 22: 16-18); altar / holocausto / sacrifício (conforme Gn. 12:7; 22:9; 35: 1,7; Êx. 17:5; 24:4; 27:1-8; 30: 1-10; Lv. 16:16-19); circuncisão (berit milá, conforme Gn. 17:9-14; Ex. 4:24-26; Dt. 10:16); justiça / misericórdia (conforme Gn. 15:6) e santidade (conforme Gn.17:1; Êx. 19:6; Lv. 20:6).

Assim, tem razão Mullins, citado por Byron Harbin, quando diz que “no Antigo Testamento, a aliança entre Deus e Israel era a base de todo trato de Deus com seu povo. O significado da aliança foi que Israel pertenceu a Deus e Deus pertenceu a Israel. A relação foi às vezes descrita com semelhante àquela entre pai e filho, ou como aquela de marido e esposa. Eis a declaração frequente no Antigo Testamento que Deus é Deus ciumento (Ex. 20:5; 34:14; Dt. 4:24; Is. 54:5; 62: 5; Os. 2:19)”[13]. Dessa maneira, através de Abrão, a aliança é em primeiro lugar pessoal, abrangendo cada vez um espectro maior: tribal, nacional, universal. Mas, quer no primeiro caso, pessoal, quer historicamente, como redenção, ela é sempre estrutural.

Considerações

Mas, se aliança é eleição, escolha, implica em preferência por alguém, escolher por prazer ou por amor. E essa conceituação entre aliança e amor é muito claramente enunciada em I Reis 11:13, quando o Eterno afirma que escolheu Jerusalém por amor. Assim, aliança e amor não podem ser separados, embora não sejam a mesma coisa. A aliança é o selo, o pacto. O amor, o motivo que leva à aliança. No livro de Gênesis vemos o amor do Eterno na criação, na conversa com Adão e Eva e na promessa de um Salvador. Mas é na aliança que o amor pelo humano alienado torna-se material e compreensível. A saga dos patriarcas descendentes de Abraão, que se torna um pai de muitos povos, mostra o caminho da concretização dessa aliança. Eis o tema central de Gênesis e de todo o Pentateuco: o Eterno ama e casa-se com um povo, criado por ele, e comissionado por ele. O resto da história, nós conhecemos. E por amor estamos dentro da aliança abrâmica.


Bibliografia

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Citações


[1]”Não é necessário verificarmos a evolução do problema nos últimos dois séculos, quando surgiram apreciações bastante divergentes da teologia bíblica. A publicação da teologia de Eichrodt projetou a questão para uma nova dimensão. No seu entender, o “conceito central” e “símbolo apropriado” que garante a unidade da fé bíblica é a “aliança”.” Hasel, Gerhard F., “Teologia do Antigo Testamento / Questões Fundamentais no Debate Atual”, Juerp, São Paulo, 1992, pág. 57. 

[2] “A centralidade da aliança para a religião do AT já possuía defensores muito antes de Eichrodt: August Kayser, Die Theologie des AT in ihrer geschichtlichen Entwicklung dargestellt (Strassburg, 1886), p. 74: “A concepção dominante dos profetas, a âncora e o alicerce da religião do At em geral, é a noção de teocracia ou, utilizando a expressão do próprio AT, a noção de aliança”. G. F. Oehler, Theologie des AT (Tubingen, 1873), I, p. 69: “O fundamento da religião do AT é a aliança por meio da qual Deus recebeu a tribo escolhida, a fim de realizar seu plano de salvação”, in Hasel, Gerhard F., obra citada, pág.57.

[3]Kaufmann, Yehezkel, “A Religião de Israel”, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1989, pág.220.

[4]Schultz, Samuel J., “A História de Israel no Antigo Testamento”, Ed. Vida Nova, São Paulo, 1992, pág. 31.

[5]Wellhausen, J. “Prolegomena to the History of Israel”, Edinburgo, pág. 331.

[6]Bright, J. , “História de Israel”, Ed. Paulinas, São Paulo, 1978, pág. 97.

[7]Melamed, Meir Matzliah, “A Lei de Moisés e as Haftarót”, Flórida, 1962, pág. 33.

[8]Harbin, Byron, “Teologia do Antigo Testamento”, apostila, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, São Paulo, 1996, pág. 4.

[9]”A formalização constitui, desde o ponto de vista genético, um prolongamento das abstrações reflexivas que já atuam no desenvolvimento do pensamento, mas este prolongamento acontece através de especializações e generalições que se tornam dominantes, adquirindo uma liberdade e uma fecundidade combinatória que sobrepassam amplamente e em todas as partes os limites do pensamento natural, mediante um processo análogo àquele, segundo o qual o possível transborda o real”. Piaget, Jean, “La Epistemologia Genética”, A. Redondo Editor, Barcelona, 1970, pág. 84.

[10]Davidson, F, “O Novo Comentário da Bíblia”, Ed. Vida Nova, São Paulo, 1994, pág. 160

[11] “A aquisição da linguagem é uma questão de crescimento e maturação de capacidades relativamente fixas, em condições externas adequadas. A forma da linguagem adquirida é determinada em grande parte por fatores internos”. Chomsky, Noam”, “Linguística Cartesiana”, Ed. Vozes, Petrópolis, 1972, pág. 80.

[12]Chomsky, Noam, obra citada pág. 23.

[13]Mullins, Edgard Young, “The Christian Religion in the Doctrinal Expression”, Philadelphia, Judson, 1954, pág. 237, 431, in Harbin, obra citada, pág. 5.



Fonte: Jorge Pinheiro, História e religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007, pp. 59-65.