Construir o novo
mundo. Quem?
Jorge
Pinheiro
O planeta jaz na
barbárie. Quem poderá construir o novo mundo? Esta discussão sobre a construção
de um mundo novo nos leva à discussão de questões imbricadas à teologia, como
alienação e ética. Hoje, o mundo se pergunta: quem deve dirigir o processo de construção?
Obama crê que devem ser os Estados Unidos. A Europa, os países ricos. E a
esquerda institucional, no Brasil, o conjunto das nações reunidas em assembléia
geral. Quem tem razão? Quais os critérios?
Vamos analisar
tal questão a partir do conceito de estranhamento em Marx e da proposta de uma
ética crítica de defesa da vida. Para tal partiremos de dois trabalhos
acadêmicos, um de Maria Norma Alcântara Brandão de Holanda e outro de Tarcyane
Cajueiro Santos, citados na bibliografia.
“Então eu
me arrependi de ter trabalhado
tanto e
fiquei desesperado por causa disso.”
Eclesiastes 2.20
Karl Marx em Teorias
sobre a mais valia, conforme expõe Maria Norma Alcântara Brandão de
Holanda, afirma que o desenvolvimento das forças produtivas enquanto "desenvolvimento
da riqueza da natureza humana como fim em si" se efetiva mediante
"um processo no qual os indivíduos são sacrificados".
O que está em
questão aqui não é o desenvolvimento das forças produtivas, mas o
reconhecimento de seus limites ontológicos, que se expressam no âmbito do
desenvolvimento econômico-social.
O
desenvolvimento das forças produtivas é também o desenvolvimento da capacidade
humana, mas este não produz obrigatoriamente desenvolvimento da pessoalidade
humana. Ao contrário, muitas vezes, potencializando capacidades singulares,
pode desfigurar tal pessoalidade.
Estamos aí
diante de um processo de alienação antropológica e existencial. Estamos diante
de um paradoxo, desenvolvimento das forças produtivas e desenvolvimento da
pessoalidade humana. E, pelo que vemos hoje, mais desenvolvidas as forças
produtivas mais evidentes tais contradições.
As exigências
colocadas pelo desenvolvimento da economia globalizada, ao mesmo tempo em que
apresenta possibilidades para o desenvolvimento humano, tem produzido um
impressionante nível de desumanidade.
Marx, nos Manuscritos
econômico-filosóficos de 1844 escreve: "quanto mais produz o operário
com seu trabalho, mais o mundo objetivo, estranho que ele cria em torno de si,
torna-se poderoso, mais ele empobrece, mais pobre torna-se seu mundo interior e
menos ele possui de seu".
Ao partir de sua
preocupação central, o estudo da economia política de seu tempo, Marx diz que
"a miséria do operário está em razão inversa do poder e da grandeza de sua
produção". Mais produz, maior é a sua miséria.
Assim, a
produção não faz apenas do homem mercadoria, a mercadoria humana, o
homem sob forma de mercadoria, mas o faz também ser espiritual e
fisicamente desumanizado....
Se o desenvolvimento
das forças produtivas ao mesmo tempo em que desenvolve as possibilidades
humanas cria a reprodução da desumanidade, evidenciam-se os limites
antropológicos e existenciais de tal desenvolvimento, já que toda relação
social não se dará apenas através de uma elevação espiritual, mas de movimentos
de deixam em aberto as possibilidades para a própria destruição do humano.
“Como a justiça encaminha
para a vida,
quem insiste no mal caminha
para a morte”.
Provérbios 11.19
Se olharmos sob a perspectiva da ética, tal
processo leva ao esgotamento da moral que deve ser, presente na história
ocidental cristã, e na emergência da amoralidade globalizada, que se
transformou em instância de definição da legitimidade de comportamento imperial
hegemônico em detrimento das singularidades nacionais e culturais.
O choque entre projeto imperial hegemônico e
diferenças culturais deve nos levar a uma consciência crítica de defesa das
barreiras éticas contra a destruição do humano, fruto, como vimos, tanto do
desenvolvimento das forças produtivas, como do estranhamento humano presentes
nesse mesmo desenvolvimento.
É nessa fronteira entre elevação espiritual e
degradação, que globalidade e culturas devem negociar as margens do caos.
Aqui a ética nascerá da delimitação da violência
capitaneada pelo império hegemônico, já que a globalização se tornou personagem
principal do processo de desenvolvimento das forças produtivas mundializadas.
Assim, a ética crítica, como meio e não como
fim, “está baseada no livre exercício do corpo e da alma, no desejo e na
afirmação da vida”, como afirma Tarcyane Cajueiro Santos.
Porém, a virtude esbarra na heteronomia, na contradição do
estranhamento, conforme detectou Marx. Somos parte da natureza, vivemos
circundados por número ilimitado de efeitos externos e poderosos. Somos seres
passivos ou cheios de paixão, enquanto
causa parcial, dominados e conduzidos por forças externas ao nosso corpo
e à nossa alma.
E as paixões, como afirma Spinoza, não são em si nem boas nem más, pois
fazem parte da natureza: a alegria, a tristeza e o desejo vibram em nosso ser.
A alegria aumenta a capacidade de existir, enquanto o estranhamento degrada a
existência.
“Sem conselhos os planos fracassam,
mas com muitos conselheiros há sucesso”.
Provérbios 15.22
O movimento da paixão à ação, da
heteronomia à autonomia, ocorre na imanência do próprio desejo, a partir do
instante que temos condições de controlar e submeter o estranhamento que
degrada. Nesse momento, a liberdade torna-se “atividade que transcende o
presente pela possibilidade do futuro como abertura no tempo”, conforme diz
Marilena Chauí.
No caminhar da globalização, a
ética deixa de ser dever moral, imperativo categórico a priori, e passa a ser
compreendida como balizadora daquilo que é humano.
Para construir tal ética crítica
é necessária a existência ao nível mundial de um sujeito ético moral, nas palavras de Chauí, “que sabe o que faz,
que conhece as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e
de suas atitudes e a essência dos valores morais”.
Hoje no planeta,
com todas as dificuldades reais, tal sujeito só pode ser traduzido na
existência de um organismo internacional democrático. Assim, a construção do novo
mundo deve ser obra dos humanos, na diversidade de credos, gêneros e raças, apoiados por
uma assembléia global, que traduza as realidades e os sonhos da espécie humana.
Fontes
Karl Marx, Manuscritos
Econômico-Filosóficos, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Editora Abril,
1997.
Maria Norma Alcântara Brandão de
Holanda, Lukács e o estranhamento em Marx, Unicamp, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Centro de Estudos Marxistas:
www.unicamp.br/cemarx
Marilena Chauí, Convite à filosofia, São Paulo, Ática, 1999.
Tarcyane Cajueiro Santos, O eticismo da sociedade tecnólogica e a
ética em Espinosa, ECA-USP, Núcleo
de Estudos Filosóficos da Comunicação: www.eca.usp.br/nucleos/filocom