mardi 1 septembre 2015

A alma da Torá

Da Torá à Guematria
by Rev Yoffe ShemTov

Com um texto especial de David Zumerkorn


O alfabeto hebraico, também conhecido como Alef-Beit, é o utilizado para a escrita em hebraico, que é uma língua semítica pertencente à família das línguas afro-asiáticas, mas falada em Israel. Também é utilizado para escrever o iídiche, língua germânica falada pelos judeus da Europa Oriental e Alemanha. Assim como na escrita árabe, nesse alfabeto, os textos são escritos no sentido anti-horário, ou seja, da direita para a esquerda.

·                א - alef = sem som –                                                               número 1
·                ב - bet = b/ v --                                                                        número 2
·                ג - gimel = g --                                                                        número 3
·                ד - dalet = d --                                                                         número 4
·                ה - hei = h --                                                                           número 5
·                ו - vav = v/w (em certas palavras como a vogal o ou u) --     número 6
·                ז - zain = z --                                                                           número 7
·                ח - het = h aspirado --                                                             número 8
·                ט - tet = t –                                                                              número 9
·                י - iud = y --                                                                              número 10
·                כ - caf = k (no final de palavra ך) --                                         número 20
·                ל - lamed = l --                                                                         número 30
·                מ - mem = m (no fim de palavra ם) --                                     número 40
·                נ - nun = n (no fim duma palavra ן) –                                      número 50
·                ס - samekh = s –                                                                      número 60
·                ע - ain = nasaliza a vogal associada --                                     número 70
·                פ - pei/fei = p/f (no final de palavra ף) –                                  número 80
·                צ - tzadi = tz (no final de palavra ץ) --                                     número 90
·                ק - kof = k --                                                                              número 100
·                ר - reish = r --                                                                             número 200
·                ש - shin/sin = (ch/s, depende da palavra) --                              número 300
·                ת - tav = t --                                                                               número 400

O alfabeto hebraico só utiliza consoantes. As vogais podem ser representadas por sinais diacríticos, chamados niqqud ou sinais massoréticos. A letra "aleph" existe para representar as sílabas em que não há consoantes.

Os segredos da Guimátria
por David Zumerkorn

"Desvenda meus olhos para que eu possa perceber as extraordinárias maravilhas ocultas em Tua Torá". (Salmo 119:18)

Na hermenêutica judaica há quatro níveis de interpretação. O primeiro nível, Pshat, é o significado literal do texto sagrado. O segundo nível, Remez, é o significado figurativo, o ensinamento insinuado, contido em cada uma das palavras e dos versos dos cinco livros de Moisés. O terceiro nível, Drush, é o significado interpretativo e homilético - o ensinamento moral e filosófico que a Torá está a transmitir. E o quarto nível é o Sod, segredo -- o significado escondido das palavras da Torá, vulgarmente chamado de Cabalá.

Pshat, Remez, Drush e Sod formam um acróstico em hebraico, a palavra Pardês, que significa "pomar". Estudar a Torá em seus diferentes níveis de significado é um adentrar-se no "pomar de D'us", ou seja, no paraíso.

O Zohar, a obra fundamental do misticismo judaico, diz que "se você não aceita a tradição mística, a "Alma da Torá", não compartilha da revelação da Torá no Monte Sinai". Em outras palavras, um estudo da Torá que não inclua seus diferentes níveis de interpretação é um corpo sem alma.

Apresentaremos aqui uma introdução a uma faceta dos níveis de interpretação da Torá: a Guimátria, ou numerologia judaica. É fundamental ressaltar um princípio do judaísmo: de que D'us, ao outorgar a Torá no Monte Sinai ao povo de Israel, entregou a Moisés não apenas a Torá escrita, mas transmitiu-lhe, também, a Torá oral. O núcleo desta é o Talmude, que explica e elucida a Torá escrita e suas leis.

Um dos famosos ensinamentos do Talmude é a afirmação que formula 32 regras para explicar a Torá. A 29ª. regra é a Guimátria. Este sistema de numerologia baseia-se no fato de cada uma das 22 letras do alfabeto hebraico, do alef ao tav, possuir um valor numérico. As primeiras 9 letras estão associadas às unidades (1, 2, 3... 9). As 9 letras seguintes estão associadas às dezenas (10, 20, 30... 90). E as últimas quatro estão associadas às centenas (100, 200, 300, 400).

Muitos trechos do Talmude citam a Numerologia judaica como um instrumento de apoio na tomada de decisões, principalmente no que diz respeito à Lei judaica (Halachá). O rabino Yossef Caro, autor do Shulchan Aruch, Código de Lei Judaica, disse que a palavra Guimátria pode ser dividida em outras duas: Guei (vale) e Mitúria (da montanha). Assim, questões que a princípio são difíceis na Torá – o que nos parece uma "montanha" de difícil escalada, são transformadas pela Guimátria em um "vale" de compreensão.

Vejamos um exemplo de Guimátria aplicada, que se encontra numa passagem talmúdica que discute as leis de um nazirita - pessoa que, nos tempos bíblicos, fazia votos de se abster de tomar vinho, cortar o cabelo e ter contato com os mortos. O Talmude afirma que a duração do nazirato é de 30 dias. Esta lei não é explicitada na Torá escrita, mas na Torá oral. Contudo, o rabino Matná, ao fazer uso da Guimátria, demonstra que esse ensinamento sobre o nazirato também se encontra, mesmo que de forma oculta, no Pentateuco. Aponta que a palavra "yihye - será" (Números 6.5), que no texto sagrado é usada para se referir ao nazirita, tem valor numérico de 30, revelando, portanto, que a duração do nazirato deve ser de 30 dias.

Associando números às letras hebraicas

A Torá possui 304.805 letras, formando 79.976 palavras. Ao analisar o verbo "contar", podemos defini-lo como: "verificar o número", "a quantidade de", "computar". O verbo contar também significa, em alguns idiomas como o português, "narrar" ou "relatar", como em "contar uma história". Desta forma, fica ressaltada a interação íntima entre números e letras, já que o verbo contar pode englobar os dois significados.

A palavra grega "geometria", um ramo da matemática que estuda as dimensões e suas relações numéricas, assemelha-se à palavra hebraica "Guimátria", que, na língua portuguesa é chamada de "gemátria". Mais tarde, surgiu o termo latino "gramática" para identificar o estudo da língua. Outra vez, vê-se a ligação entre números e letras, pois "Guimátria", "geometria" e "gramática" parecem ter a mesma etimologia. É notável que Guimátria faz lembrar duas outras palavras da língua grega: Gama e Tria. Sabe-se que a letra Gama é a terceira - Tria - do alfabeto grego, assim como a letra Guímel também é a terceira letra do alfabeto hebraico, possuindo um valor numérico de três.

Quando engenheiros ou arquitetos planejam construir algo, começam por desenvolver um projeto, uma planta. De forma similar, o Midrash cita que D'us, ao criar este mundo, utilizou a Torá como sua planta e as letras do alfabeto hebraico como agentes criadores. As letras hebraicas do Lashon Hakodesh, a Língua Sagrada, são consideradas como "pedras", enquanto as letras das demais línguas são os "tijolos". Pedras são criadas por D'us, tijolos são feitos pelos homens.

A Guimátria o confirma: a palavra hebraica Kochav significa "estrela". Esta palavra é composta das letras Kaf, Vav, Kaf e Beit e pode ser desmembrada em dois conjuntos de duas letras cada. O primeiro conjunto, com as letras Kaf (valor numérico 20) e Vav (6), soma 26 e é o valor numérico do Tetragrama (o Nome mais elevado de D'us); o segundo, com as letras Kaf (20) e Beit (2), soma 22, em uma alusão ao número de letras que compõem o alfabeto hebraico. Daí deduzimos que a Luz Divina ilumina todo o espectro do Universo, gerado pela combinação das 22 letras do alfabeto hebraico.

Um dos elementos relacionados à Criação do mundo é o conjunto das 10 Sefirot (no singular, Sefirá, palavra que também significa "contagem", como na expressão Sefirat Haômer - a Contagem do Ômer). A Torá também é chamada de Sefer Torá (Livro da Torá) e a pessoa habilitada a escrever a Torá é o Sofer, o escriba, que também conta as letras da Torá para saber qual a posição exata de cada uma. A palavra hebraica para "número" é Mispar, similar à palavra hebraica Sipur, que significa "história", "conto", "narração". Vemos, pois, que Sefirá, Sefer, Sofer, Mispar e Sipur são palavras que têm em comum, em sua raiz etimológica, estas três letras: Samech, Pei e Reish, cujos valores numéricos somados dão 340 (60 + 80 + 200) - exatamente o mesmo que na palavra Shem (nome), formado pelas letras Shin (300) e Mem (40). Notamos, uma vez mais, a associação entre números e nomes.

Conseqüentemente, percebe-se que a Criação do mundo é interpretada como uma fusão de padrões numéricos. Já que as letras estão associadas a números, a obra cabalística Tanya, escrita pelo Alter Rebe, Rabi Shneur Zalman de Liadi, explica que uma vez que D'us criou o mundo através da fala, os padrões numéricos criados pelas letras dos Dez Pronunciamentos da Criação refletem a interação das forças criativas de D'us. Os místicos judeus atribuíam especial importância à Guimátria, pois, conforme vimos acima, D'us criou o mundo com as letras do alfabeto hebraico. Usavam a Guimátria para descobrir os significados secretos dos Textos Sagrados, para, combinando várias letras, encontrar poderosos Nomes de D'us ou de anjos ou, mesmo, determinar o número exato de palavras que cada prece deveria conter.

A aplicação da Guimátria é feita, basicamente, de quatro maneiras:

A primeira implica em substituir uma palavra por outra de igual valor numérico. Por exemplo, diz o Midrash (Bereshit Rabá 68,12) que a palavra Sulam (escada) tem valor numérico de 130, idêntico à palavra Sinai. Esta aplicação de Guimátria faz referência a uma passagem no primeiro livro da Torá, Bereshit, em que é relatado um enigmático sonho do patriarca Jacob: "E saiu Jacob de Beersheva, e foi a Haran. E chegou ao lugar e lá pernoitou, porque já se pusera o sol. E tomou das pedras do lugar, e colocou-as à sua cabeceira, e deitou-se naquele lugar. E sonhou, e eis que uma escada (sulam) apoiava-se na terra, e seu topo chegava aos céus .... ".

A Guimátria, ao demonstrar que as palavras sulam e Sinai têm o mesmo valor numérico, oferece uma das várias interpretações do sonho de Jacob: de que a escada, que ascendia aos Céus, simbolizava a Revelação da Torá que seria entregue a seus descendentes no monte Sinai.

Um outro exemplo: O nome Avraham (Abraão) possui o valor numérico de 248, que é o mesmo de Raziel, um anjo cujo nome, em hebraico, significa "segredos de D'us". Além de ambos os nomes, em hebraico, possuírem 5 letras, há vários paralelos entre Avraham e Raziel e a Guimátria os confirma. Raziel foi quem revelou os segredos celestiais ao primeiro homem, Adão, e estes foram escritos em um livro feito de safira, chamado Sefer Raziel. Trata-se de obra de grande santidade e serve como segulá (remédio espiritual) para proteger o lar contra o fogo e outras calamidades. O patriarca Avraham também conhecia os mistérios celestiais e foi o autor do Sefer Yetzirá, o Livro da Formação, que contém muitos segredos a respeito da Criação do mundo. O Sefer Raziel e o Sefer Yetzirá são considerados os dois mais antigos textos do misticismo judaico.

A segunda aplicação da Guimátria implica em interpretar cada letra, em separado. O nome Yaacov, por exemplo, compõe-se das letras Yud (valor numérico 10), Ayin (70), Kuf (100) e Beit (2). O nome do patriarca, portanto, faz referência aos "10" mandamentos, aos "70" anciãos de Israel, à dimensão do Tabernáculo, de "100" amot (medida talmúdica de comprimento), e às "2" Tábuas da Lei.

Segundo seu valor numérico, pode-se substituir um número por uma palavra. Exemplo: Em Bereshit 14:14, lemos que Avraham foi em socorro de seu sobrinho Lot com 318 servos. Sabemos que o único servo de Avraham citado na Torá pelo nome é Eliezer, palavra com valor numérico também de 318. Os místicos deduzem daí que Avraham foi à guerra para salvar o sobrinho acompanhado de apenas um único homem, Eliezer.

A terceira aplicação: podemos, segundo o seu valor numérico, substituir uma palavra por um número. Em Bereshit 42:2, encontra-se a palavra Redu, que significa "descer para lá" (para o Egito) - cujo valor numérico é 210. A palavra faz alusão aos 210 anos em que os judeus viveram no Egito.

Não podemos deixar de mencionar que a Guimátria é uma ferramenta muito importante para o estudo da Cabalá. Com o decorrer dos anos, principalmente em virtude de uma maior disseminação desta ciência, nossos sábios passaram a utilizar outros sistemas mais complexos de numerologia judaica. Entre eles podemos citar as transformações Atbash, Albam, Atbach, Achas-Beta, Ayak-Bachar, Ach-Bi, além dos sistemas, Kollel, Milui, Neelam, Rashei e Sofei Teivot, afora outros.

Há ainda um exemplo interessante de Guimátria que leva em consideração a forma gramatical da palavra. Em Êxodo 35:1, encontramos a frase: Eleh Hadevarim - "Estas são as coisas (ou palavras)...", seguida pelo versículo que trata das leis do Shabat. Nossos sábios interpretam a palavra Eleh ("estas" com as letras Alef, Lamed e Hei), tendo o valor numérico de 36. Os místicos consideram que a palavra "Hadevarim - palavras ou coisas" alude ao valor de 3 (três), pois, como explica o Rabino Yossef ben Hanina, se o texto usasse a forma singular Davar, poderíamos acrescentar 1; se usasse a forma plural contraída Divrei, poderíamos acrescentar 2. Mas como o texto usou a palavra no plural, escrita por extenso, Devarim, deve-se acrescentar 3. Portanto, Eleh Hadevarim somam um valor de 36+3=39. Este número faz alusão aos 39 principais trabalhos proibidos no Shabat.

A aplicação da Guimátria, assim como a própria Torá, é infinita. O antigo texto cabalístico do Sefer Yetzirá revela que podemos calcular o nome de uma pessoa juntamente com o da sua mãe, determinando assim muitas informações a respeito das influências astrológicas sobre a sorte dessa pessoa (Mazal), indicando desta forma o seu signo, planeta e anjo associados, além do dia da semana mais propício a atrair as boas influências, entre muitas outras informações.

Exemplificando: suponhamos que uma pessoa tenha o nome hebraico de Mazal e o de sua mãe seja Esther. Ao calcular a soma de Mazal (77) com Esther (661), temos o valor de 738. Com este número, utilizando as tabelas e cálculos apropriados, encontramos as seguintes associações para esta pessoa: Signo: Libra (Moznaim); planeta: Júpiter (Tsedek); metal: Ferro (Barzel); dia da semana: 5ª feira; anjo: Tsidkiel; letra hebraica: Tav; emanações (Sefirot): Fundamento (Yessod) com Reinado (Malchut); cor: Azul (Cachol); além de outras informações tocantes à personalidade da pessoa.

É verdade que nossos sábios ensinam "Ein Mazal LeIsrael" - ou seja, que o povo de Israel não está limitado ao poder dos astros, mas mesmo eles admitem que cada um de nós nasce com uma influência astrológica que influenciará na determinação de suas características e talentos. O estudo da Torá e a prática dos mandamentos Divinos, principalmente de boas ações, são a forma correta de canalizar as influências Divinas que têm o poder de tudo transformar para o bem.

Fica subentendido que, na visão judaica, cada número tem o seu significado e o seu porquê, tanto no conceito positivo como no negativo - pois D'us criou o mundo onde predomina a dualidade e a pluralidade. Com exceção de D'us, tudo no mundo tem o seu oposto. Ainda assim, não há número que seja "ruim". É verdade que, no judaísmo, há números de significado muito especial, como o 18, que representa Chai - vive. Também o 77, que é valor da palavra Mazal - sorte. Os atributos da Misericórdia Divina estão associados ao número 13, assim como a força (Koach) tem valor numérico de 28. No que toca ao número 7, sabemos que todos os sétimos são queridos, pois o número sete também faz alusão à palavra Sova - abundância. É também famoso o número 5, que além de lembrar a alegria do Criador, ajuda a afastar as influências negativas. Outro número muito importante é o 26, que é o valor do Nome Inefável de D'us, ou Tetragrama, conhecido por "Ha-va-ie". Este Nome Divino é formado por quatro letras: Yud (10), Hei (5), Vav (6) e Hei (5) e se refere ao Eterno, ou seja, a D'us Infinito, que transcende a Criação, a natureza, o tempo e o espaço em sua totalidade; ou seja, é o nível de Divindade que criou o Universo do nada e que continuamente sustenta toda a Criação.

Em nosso livro, "Numerologia judaica e seus mistérios" (editado no Brasil pela editora Maayanot), mostramos muitos tipos diferentes de codificações na Torá por meio dos números, tabelas, além de uma enorme quantidade de aplicações com exemplos e explicações, de acordo com a mais seleta tradição judaica, sobre os significados de nomes, astrologia judaica e, principalmente, dos números. Não podemos deixar de mencionar o Pirkei Avot, um dos tratados mais estudados da Mishná: "Rabi Eleazar, filho de Hismá, dizia: Os cálculos das épocas do ano e a numerologia judaica (Guimátria) são os aperitivos da sabedoria". Muitos dos nossos sábios, tais como os rabinos Moshe Cordovero, Shlomo Alkabets, Avraham Abuláfia, Yossef Gikatilla, Nathan Nata ben Shlomo Spira, o Arizal, o Baal Haturim (que fez seus comentários das parashiot, ou "porções" da Torá, embasados principalmente na Guimátria), entre muitos outros, concordavam que a ciência da Guimátria estimula a alma e atiça a vontade de se aproximar, cada vez mais, da Infinita Sabedoria de D'us.

Já que estamos às vésperas do Ano Novo Judaico de 5767, vamos analisar o que a Guimátria diz sobre o número 67. Seguem-se duas excelentes expressões, em hebraico, cujo valor numérico é 67. A primeira é Kol Tuv (tudo de bom) e a segunda é Yom Chag (dia de festa). O acróstico com as letras que compõem o próximo ano é formado por Tav, Shin, Samech, Zayin (5767), podendo ser lido como: "Que seja um ano com tudo de bom" ou, "Que seja um ano em que cada dia seja alegre como um dia de festa".

Que possa ser a vontade do Todo-Poderoso iluminar os nossos caminhos para que possamos entrar numa nova era e navegar no mar da Torá com grande sabedoria e, principalmente, com muita paz e felicidade.

Bibliografia

Rabi Aryeh Kaplan, A Torá Viva - Chumash - Ed. Maayanot
Talmude Bavli - Shabat 10b, Berachot 8a
Rabi Shneur Zalman de Liadi, Tanya - Kehot Publication Society
Rabi Eliyahu Touger, In The Garden of The Torah - Shemini - Sichos in English
Rabi Aaron L. Raskin, Letters of Light - Sichos in English
Rabino J. Immanuel Schochet, The Principle of Numerical Interpretation - Judaica Press
Rabi Matityahu Glazerson, What is in a Name - Himelsein Glazerson Publishers
Zumerkorn, David, Numerologia Judaica e seus mistérios , Ed. Maayanot
Tehilím - Salmos - David HaMelech




lundi 31 août 2015

A construção do Logos joanino

Do Logos de Heráclito ao Logos joanino
Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Logos, no grego 'palavra', foi entendido pelo filósofo grego Heráclito de Éfeso, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)].

JP, depois da produção, posando para o Mac, num momento estético-filosófico

Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural inteligente ou racional, o Logos. Considerou o Logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, ditos por ele, antropomorficamente, guerra e paz (ou discórdia e concórdia). Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo.

Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.

Mas, exatamente por ser razão e palavra, Logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre Logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações sofísticas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, o pensamento de Sócrates e Platão vai formular explicitamente a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a substância ou essência, fundamento de +toda instabilidade acidental da existência aparente.

O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir do pensamento de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, assim, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza expressamente esta transformação quando afirma em sua obra que "O que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.

O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o Logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o Logos. Assim, o Logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.

A importância do logos

Dentre as inúmeras transformações que surgem com a pólis, a mais importante é a extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.

A palavra deixa de ser o termo ritual e passa a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que irá definir o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética é compreendida como a arte real da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passam a ser submetidas à arte da oratória e as decisões são as conclusões dos debates. A política se torna a arte do domínio da linguagem.  Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamenta na publicidade das manifestações sociais; se distinguem os interesses comuns dos privados, consolidam-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.

Porém, esse desenvolvimento traz uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos de uma cultura, levamos os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos estão expostos a interpretações diversas e a debates apaixonados. Já não era possível se impor só por prestígio pessoal ou religioso... Devia haver o convencimento pela dialética.

A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe em si a possibilidade de uma completa divulgação do conhecimento. Neste momento, a escrita tornara-se pública, não mais estando presente apenas no palácio – como no período micênico. Neste contexto, o saber pode tornar-se igualmente público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deverão ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.

A sabedoria e o logos

Com a consolidação da importância da palavra, o saber passa a ser um bem público. E a sabedoria, tão exaltada por filósofos como Platão, para o qual a sabedoria pertencia ao passado, ofereceu aos seus contemporâneos o amor à sabedoria, à filosofia. Assim, a sabedoria percorreu as veredas da linguagem, da palavra, do discurso, do logos, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Pode-se, em última instância, argumentar que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido, a sabedoria, mesclada à dialética.

Não foi sem resistência que esse percurso foi seguido. A popularização do saber, antes inacessível, foi questionada. Havia uma articulação para que os mitos que chegassem à praça publica e fossem objeto de exame, mas não deixassem de ser um mistério. A sua reformulação produziu um salto no desenvolvimento humano, mantendo seus reflexos até hoje.

Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propõe a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogos, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz. Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.

Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. 1 Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos irrompe enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.

Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que repousa em Jesus, o Cristo, acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filón de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.

Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arqué” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo a Deus, porque é pessoa divina, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.

Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e por isso não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1Coríntios 2.16].

Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo o ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

Notas


1. Enrique Dussel, “El Método de Pensar Latinoamericano: la Analéctica como Ruptura Teórica”, conferência proferida em novembro de 1972, in Introduccion a Una Filosofia de la Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977, pp. 117 a 138.

jeudi 27 août 2015

Descartes e Kant

Duas cabeças geniais
De JP para principiantes

Houve um momento da história humana onde o Ocidente vivia ao redor da religião. A Europa era cristianizada. Deus era o centro, ou pelo menos, considerado o centro do conhecimento humano. Esse momento da história é conhecido como Idade Média. René Descartes negou tudo isso, ao afirmar que qualquer pensamento que não tenha base científica, não merece confiança. Toda filosofia e teologia anteriores, a Escolástica , assim como o pensamento de Tomás de Aquino são negadas por Descartes (1596-1650). Nega porque não tendo base científica, não pode levar a uma certeza absoluta.


Descartes escreveu um trabalho intitulado Discurso do Método, onde traça o caminho para se chegar à certeza absoluta. Com Descartes há um retorno a maneira de pensar dos gregos. O pensamento grego negava a revelação de Deus e investigava a realidade do mundo à luz da razão. Dessa maneira, a partir de Descartes, a filosofia substitui o tema Deus, invertendo a preocupação central da filosofia medieval e conseqüentemente a teologia tomista ou escolástica. 

Ele baseia seus estudos no pensamento rebelde e criativo de cientistas que entraram em choque com a Igreja católica, em especial no polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), no alemão Johann Kepler (1571-1630) e no italiano Galilei Galileu (1564-1642), que eram astrônomos e matemáticos. Esses homens entraram em choque com a Igreja acerca de questões sobre a Terra ser redonda, o movimento dos corpos no espaço, o Sol como centro do sistema solar, etc. Eles mostraram que tudo em que se acreditava antes estava errado. Deus, então, vai ser substituído pela razão.

Para fazer essa transição, Descartes faz uma reflexão sobre a existência de Deus, sobre a relação entre filosofia, teologia e ciência. Escreveu Regras para a direção do espírito com a finalidade de evidenciar a única certeza que o homem pode ter: a certeza matemática. No seu Discurso do Método encontra-se sua famosa frase: “Penso logo existo”. Disse assim que a única certeza que alguém pode ter, de fato, é o próprio pensar.

“Notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era  falso, era necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade, penso, logo sou, era tão firme e tão segura que as mais extravagantes suposições dos céticos não podiam abalá-la, julgava que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que buscava”. 

O primeiro princípio da filosofia de Descartes é: “eu penso”. Quando se está pensando, agora, e tudo isso necessariamente não é verdade, ao menos o pensamento sobre isso é. Partindo de uma desconfiança universal, transformou-a em dúvida metódica. Ele não aceitava nada que não oferecesse garantia absoluta de verdade. Definiu quatro regras:

1. O critério geral da verdade. Tem de ter duas condições: a clareza e a distinção.

2. A regra de análise. Para se analisar alguma coisa, qualquer que seja, é preciso dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quanto possíveis e necessárias forem. Soluciona-se um problema, qualquer que seja, aos poucos e por partes.

3. A regra de síntese. O pensamento deve ser ordenado pelo mais simples e mais fácil de se conhecer, e subir aos poucos, como que por degraus até o conhecimento dos compostos, até a ordem daqueles que não precedem naturalmente uns aos outros. Por exemplo: H2O é a síntese, mas a análise diz H H O. 

4. A regra de comprovação. Fazer enumerações tão completas e revisões tão gerais até ter a certeza de não há erro. Todo o processo deve ser revisto e enumerado.

Descartes definiu um método para chegar a verdade natural. Isso para a Matemática. E Deus e a fé, onde ficam? Para encontrar Deus, ele não parte do mundo, mas de si mesmo, parte da revelação geral no próprio homem. O penso logo existo, tem um ponto de apoio: Deus. Ele é a causa de toda a perfeição, é uma idéia inata à pessoa. Ele não descarta Deus, coloca-o como início do processo. Para Descartes, a fé é a exceção das regras gerais e evidentes, apresenta a certeza maior, não é fruto do intelecto que conhece, mas da vontade. Por isso, para ele a fé deve levar a ética.

Para pensar através

O surgimento do pensamento científico vai influenciar os teólogos do século dezenove. Descartes é o início do período chamado Iluminismo. Ou seja, tem começo uma época que iluminará o Ocidente, antes imerso nas trevas da Idade Média. O Iluminismo vai abrir o longo período de modernidade, que deságua nas teologias dos séculos dezenove e vinte. 

IMMANUEL KANT

Immanuel Kant, filho de pais pietistas, transformou os avanços da astronomia de Copérnico em teoria do conhecimento. A partir de Kant, o conhecimento não está preso aos objetos, mas os objetos acontecem dentro do processo de conhecimento. 


Na sua época, a filosofia estava dividida entre racionalistas, cuja única fonte de conhecimento é a razão (Descartes), e empiristas, cuja fonte de conhecimento é a experiência (os ingleses que desencadearam a chamada Revolução Industrial). A palavra chave na filosofia de Kant será transcendental. Ele diz:

“Chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que de nosso modo de os conhecer, enquanto este deve ser a priori”.  

Transcendente é todo o conhecimento que se ocupa pouco do objeto. O objeto não é a fonte do conhecimento humano, mas está dentro dele. O conhecimento é transcendente em relação ao objeto. Transcendente refere-se aquilo que foi descoberto. Kant vai trabalhar com lógica, matemática e analítica. 

Traduzindo Kant para nossa linguagem, podemos dizer que, pensar transcendentemente significa mostrar como os objetos percebidos pelos sentidos são transformados mediante a razão em objetos do conhecimento. Por exemplo, ao falarmos mesa, não estamos falando de uma mesa específica, mas de um conhecimento transcendente que inclui todas as mesas. 

Ou seja, mesa não é apenas uma representação ou reprodução mental de algo que está no exterior, mas uma produção da razão humana. Há uma produção racional na atividade criadora do homem que transforma mesa em conhecimento universal. Quando se fala mesa, nessa transcendência, são mesas de todos os tipos, formas e modelos.

Para Kant, o fundamento do conhecimento humano é a relação sujeito/objeto. Caminha-se através de juízos e imprimem-se categorias aos objetos. Sua abordagem é crítica porque questiona perspectivas racionalistas e empiristas existentes até aquele momento. Sua teoria do conhecimento parte de quatro perguntas:

1. O que posso conhecer?
2. O que devo fazer?
3. O que posso esperar?
4. Quem é o homem?

O que podemos conhecer? Podemos conhecer tudo? Deus? O juízo pode ser analítico ou sintético. É analítico quando o predicado parte do sujeito. Por exemplo: o triângulo tem três ângulos. Diante de qualquer análise está implícito no sujeito, o predicado. O predicado é ângulo e é impossível falar triângulo sem este predicado. 

É sintético quando o predicado não está implícito. Por exemplo: o calor dilata os corpos. Temos aqui uma síntese. Podemos ter calor e corpos, mas quando dizemos, o calor dilata os corpos, unimos os dois através do conceito de dilatação.

Kant está descobrindo como a cabeça do ser humano funciona, fornecendo maneiras de chegar ao conhecimento comprovável. Ele descarta o racional porque trabalha somente com a razão, esquecendo a realidade da existência de objetos. Descarta o empírico porque só produzindo experiência não se transcende. Qual a importância desses conceitos e dessa epistemologia para a vida humana? 

Em primeiro lugar, Kant nos mostra, sempre partindo da razão, que os juízos analíticos não tem por base a experiência, são independentes e por isso só podem ser pensados. Faz uma crítica aos racionalistas, no sentido que Descartes despreza os objetos. O homem pensa e existe, mas mesmo que não existisse, o mundo existe. O mundo não existe porque o homem pensa. 

Em segundo lugar, os juízos sintéticos baseiam-se na percepção sensível, na experiência. Ou seja, o calor dilata os corpos, mas foi necessário uma experiência para chegar à essa conclusão. Daí, Kant conclui: é impossível fazer ciência a partir de juízos analíticos (a priori). A ciência não pode ser apriorística. 

Trabalhar apenas com os elementos que a razão pode fornecer produz uma estagnação. Os juízos sintéticos não levam ao conhecimento porque são particulares e contingentes. Não é possível fazer ciência usando só juízos analíticos ou só juízos sintéticos. A ciência, na verdade, é constituída por juízos sintéticos a priori. Kant está tentando resolver o grande problema medieval.

Os juízos sintéticos a priori são aqueles que tem por base a experiência, só que esta é a priori. Ou seja, são universais e necessários aos quais se chega pela intuição evidente. Um exemplo matemático: a linha reta é distância mais curta entre dois pontos. 

Kant está dizendo que o cientista chega a experiência porque já teve uma intuição antes. Assim, o conhecimento não é fruto nem do sujeito, nem do objeto, mas é a síntese da ação combinada entre os dois. O sujeito dá a forma e o objeto dá a matéria. O conhecimento é resultado de um elemento a priori, o sujeito, e outro a posteriori, o objeto. Ou seja, o conhecimento é uma relação entre sujeito e objeto. 

Para Kant, é impossível haver uma ciência de Deus ou uma ciência das realidades metafísicas. Ele traça como caminho alternativo a razão prática que leva à consciência moral. Ele tira Deus do objeto do conhecimento. Pela razão pura conhece-se o que é, e pela razão prática o que deve ser. Moralmente é necessário aceitar a existência de Deus. Assim, o que não se pode provar pela razão pura torna-se um postulado da razão prática. 

Depois de eliminar Deus da ordem do pensamento e da realidade, postula a existência de um Deus justo que fundamenta a relação entre a virtude e a felicidade. A verdadeira religião é a moral. A religião revelada é imposta e servil. Deus é a razão da moral prática. O cristianismo para Kant identifica-se com a consciência, sem necessidade do conceito de Deus. Kant aprofunda o ceticismo aberto por Descartes, que marcará o pensamento moderno.

Para pensar através

Durante a modernidade, a ciência se desenvolve, produzindo frutos comprováveis, o que fará com que a teologia do século 18 fique estagnada. No século 19, os teólogos entram de cabeça no estudo dos filósofos modernos e vão pesquisar história de Israel, arqueologia, etc., a fim de conseguir produzir uma teologia a partir de objetos comprováveis. A teologia absorve o ceticismo.

A base da teologia é a Cristologia, esse é nosso fundamento teológico. Temos o Cristo da fé e o Jesus histórico. A base da teologia cristã sempre foi a Cristologia, que entende a encarnação como Deus e homem juntos, uma só pessoa e duas naturezas. A Cristologia correta é saber que o Jesus histórico e o Cristo da fé não podem ser separados. 

Isso ficou claramente definido nos concílios Nicéia e Calcedônia. O que acontece no século dezenove é que o Cristo da fé será bombardeado. Jesus não era um mito porque de fato existiu, mas não era Deus. Ele era o carpinteiro, o profeta, mas não o Cristo da fé. Por causa do ceticismo, a Cristologia se dividiu. Indo mais além, o ceticismo acabou por colocar em xeque até o Jesus histórico. O que sobrou foi a moral e a fé. Só que a fé cristã está baseada na integridade do Jesus histórico, que ressuscitou. O apóstolo Paulo diz:

“E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados”.  I Coríntios 15:17.

O século vinte produzirá grandes teólogos que vão defender a fé, dizendo que tudo isso é ideologia, e que a fé é fundamental para o conhecimento de Deus. Por exemplo, Karl Barth defende o Jesus histórico defendendo o texto. O que Barth faz é retornar ao texto e o faz de forma genial. O texto é a revelação quando eu abro os antigos escritos e o Espírito fala através deles. É uma relação sujeito/objeto, conforme Kant, que produz conhecimento. Se o texto estiver fechado não há revelação.