mercredi 11 mai 2022

Fraqueza e força, os desafios

A nossa fraqueza e a nossa força


"Tu te relâches au jour de la détresse; étroite est ta force". Proverbes 24:10 - Français-Jewish Bible Chouraqui 1987 Deutérocanoni.

Quem é fraco numa crise é realmente fraco. Este provérbio está dividido em três momentos. Primeiro fala daquele que é rafah. Palavra hebraica pode ser traduzida por afundar, relaxar, deixar cair, estar desalentado, mostrar-se frouxo. Na verdade, quem se mostra frouxo, fica desalentado, deixa cair a bola, relaxa e afunda. 

O segundo momento do provérbio é a expressão yom tsarah, que pode ser traduzida por dia ou momento de aflição, dificuldade, problema. Mas, literalmente a expressão quer dizer dia da Sara e tem o sentido daquela que importuna ou de esposa rival. Talvez porque na tradição do judaísmo antigo, Sara, mulher de Abraham, era vista como brava e brigona, que maltratou Agar, a ponto dessa última fugir de casa. Se entendermos a expressão no sentido da família expandida hebraica, a esposa rival era aquela que em determinado momento entrava em choque com a outra, ou com as outras e desestabilizava o equilíbrio da família poligâmica. Para o macho, esse era o momento da crise. 

O homem, regente da família expandida hebraica, de estrutura reconhecidamente patriarcal, caso se mostrasse rafah, diz o ditado hebraico, ou seja, caso se mostrasse frouxo, ficaria desalentado, perderia o controle da situação e da família, entraria em depressão e afundaria. 

Caro leitor e leitora, o provérbio parte de uma realidade cultural, ilustrada na família patriarcal machista, onde as mulheres se chocam, e o marido não pode ser frouxo. 

Apesar de não concordarmos com essa estrutura familiar patriarcal machista, a lição do provérbio permanece válida. Assim, contextualizado, podemos dizer que a atitude que homens e mulheres devem tomar diante da crise não pode ser de alguém que se deixa desorientar, deixa cair a bola e afunda. 

A crise aí descrita fala de um momento onde há um elemento desestabilizador, que enlouquece um ambiente ou uma situação. Ser frouxo, ter uma atitude de deixa estar que depois melhora pode levar todos a afundarem juntos. Esse é o momento da liderança consciente, momento de encarar o problema com sabedoria e firmeza. Caro leitor, caríssima leitora, que Adonai lhe dê coragem e sabedoria para enfrentar problemas e conquistar vitórias! 

A palavra criadora, cheia de poder, se tornou um ser humano e habitou entre nós. É isso que o discípulo amado nos conta. 

O apóstolo João utilizou uma expressão grega, que traduzimos por “palavra”, para dizer que Yeshua é a poderosa comunicação criadora de haShem. Essa palavra tem o poder de criar a realidade. Vemos isso em bereshit, quando Adonai disse: Haja luz. E a luz começou a existir. 

A luz foi criada pelo poder da palavra de haShem. Mas a palavra de haShem, que é a comunicação de haShem, também revela aquilo que está oculto. Quando falamos, revelamos aquilo que está no nosso pensamento. Assim, a outra pessoa só sabe o que pensamos se usarmos a palavra. 

Quando dizemos que Yeshua é a palavra de haShem, estamos dizendo que Ele tem o poder de revelar o mistério insondável de haShem e mostrar como Ele é. Yeshua é a comunhão de haShem conosco e nos revelou que Adonai é amor, justiça e poder. É por isso que o apóstolo diz: Ninguém nunca viu Adonai. Somente o filho único, que é Yeshua e está ao lado do pai, foi quem nos mostrou quem é Adonai. 

Essa é a verdade maior: Yeshua tornou-se gente para que Adonai pudesse ter comunhão conosco e assim comunicar à humanidade o seu grande amor. 

A palavra continua entre nós e, na sua comunhão conosco, tem o poder de plantar a fé, converter os corações e criar um novo mundo de paz. É a palavra que nos revela os propósitos, a vontade e o amor de haShem pela humanidade. 


Luc 9:57-62
 
En ce temps-là,
en cours de route, un homme dit à Jésus :
« Je te suivrai partout où tu iras. »
Jésus lui déclara :
« Les renards ont des terriers,
les oiseaux du ciel ont des nids ;
mais le Fils de l’homme
n’a pas d’endroit où reposer la tête. »

Il dit à un autre :
« Suis-moi. »
L’homme répondit :
« Seigneur, permets-moi d’aller d’abord enterrer mon père. »
Mais Jésus répliqua :
« Laisse les morts enterrer leurs morts.
Toi, pars, et annonce le règne de Dieu. »

Un autre encore lui dit :
« Je te suivrai, Seigneur ;
mais laisse-moi d’abord faire mes adieux
aux gens de ma maison. »
Jésus lui répondit :
« Quiconque met la main à la charrue,
puis regarde en arrière,
n’est pas fait pour le royaume de Dieu. »


Os três curtos diálogos de Yeshua, presentes em Lucas 9.57-62, nos falam de três candidatos a discípulos. Originalmente são três estrofes onde o texto trabalha com imagens da natureza e costumes agrícolas da época de Yeshua. Falam do reino de haShem e todos os três diálogos apresentam sempre três temas: seguir + ir + preço. 

O primeiro candidato estava disposto a seguir e ir, mas não estava disposto a pagar o preço. 

E nós, aceitamos pagar o preço? Caso queiramos poder e influência, talvez seja melhor seguir as águias, que têm segurança nos cumes das montanhas, ou quem sabe seguir as raposas, que dirigem seus negócios com astúcia. O filho do homem nos oferece um ministério sofredor, é isso mesmo que desejamos? 

O segundo candidato recebe o convite para seguir. Mas quer ir para casa. Yeshua diz que ele deve ir e proclamar o reino. 

Aquele que Yeshua chama às vezes está à margem da estrada pensando: O meu pessoal faz certas exigências, e a força dessas exigências é muito grande. Yeshua não espera que eu frustre as expectativas do meu pessoal, não é? Mas é exatamente isso que Yeshua quer que nós façamos. A proclamação do reino de haShem só tem significado quando apresenta o reino como uma realidade presente. Quem está espiritualmente morto pode cuidar de responsabilidades tradicionais, mas não tem condições de proclamar a chegada do reino. 

O terceiro candidato quer seguir e como o segundo quer ir primeiro para casa. E como o primeiro é desafiado a pagar o preço. 

Aquele que não pode resolver a tensão das lealdades em conflito e vive olhando para trás para ver o que os outros estão ordenando que faça, segundo Yeshua, não está apto para o reino de haShem. O camponês distraído pode dar com o arado numa rocha, pode quebrá-lo ou cansar o boi inutilmente. O camponês distraído por lealdades divididas não será capaz de manter a harmonia, não será apenas improdutivo, mas também destruidor. 

E você querido irmão, querida irmã, quer seguir, mas primeiro ir realizar tarefas que não podem ser adiadas? Ou até aceita ir, mas acha que o preço é alto demais? Lembre-se, nessas três curtas histórias, Yeshua está nos ensinando que quando somos pressionados por alternativas definidas, mesmo dolorosas, precisamos decidir. Eis o desafio que o Mestre nos coloca.



Chove à tarde em Figueires
Museu Dalí







vendredi 6 mai 2022

Marxismo e fé

Marxismo e fé

Gramsci e Tillich, mestres de fronteira

Jorge Pinheiro, PhD


 “A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”.


Quando pensamos no Brasil e, por extensão, na América Latina, nos vemos obrigados a pensar a teologia social como alavanca para transformações que confrontem as estruturas de classe que mantêm o status quo deste capitalismo neo-liberal, gerador de excluídos de bens e direitos. Dessa maneira, entendemos a teologia social como geradora de ações culturais, políticas e sociais, desencadeadas pela comunidade de fé consciente e crítica, com vistas à transformação radical, a fim de produzir mudanças estruturais no regime e construir uma nova ordem social tanto brasileira, como latino-americana. A teologia social tem, dessa maneira, como parceira organizações não-eclesiásticas, partidos e organismos de classe de trabalhadores e solidários. E tais ações fazem desta teologia social práxis que leva o cristianismo para além da comunidade de fé, que a faz confrontar desigualdades, exploração e miséria. Tal teologia social terá de confrontar e enfrentar, assim, a oposição dos inimigos da justiça, paz e alegria do povo. 


Por isso, este diálogo entre Antonio Gramsci (1891-1937, o mais importante pensador marxista italiano) e Paul Tillich (1886-1965, o mais importante teólogo alemão do século 20) ganha importância. E nos possibilita caminhar para a teologia social que, levando em conta as assimetrias, mas também as aproximações do pensar político dos dois pensadores, apresenta novas propostas de uma existência social e libertária.  


Gramsci e Tillich têm muito em comum. Ambos foram militantes políticos e fundamentaram parte de suas concepções em Karl Marx. Por isso, consideramos importante ver que aproximações e assimetrias existem em suas elaborações teóricas. Cristianismo, democracia e vida são temas que atravessam seus estudos, e que aqui vamos confrontar. Desejamos, dessa maneira, acrescentar elementos novos numa discussão cada vez mais acirrada: ainda é possível a construção de regimes que favoreçam a plenitude do sentido da vida?


Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também como fruto da instalação de governos nacionalistas no continente, a partir dos anos 1980, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras e latino-americanas, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes.


Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se nesse contexto de garimpagem do marxismo de fronteira, dito não-ortodoxo. Aqui, nos interessa pensar Gramsci em correlação com um filósofo, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento social de Tillich foi durante muito tempo desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou de socialismo religioso.


Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que a busca pelo sentido pleno de vida, que ele vai chamar de socialismo, traduz um anseio que brota da consciência crítica, transformadora, num mundo autônomo e racional. Assim, tal substância profética, ou seja, a consciência crítica e transformadora, se exprime na práxis e, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial. 


Como a linguagem tillichiana é teofilosófica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões profético e profecia? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, da paz e da alegria, que dariam conteúdo, seriam a essência da religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, movimento profético é práxis de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade e à autonomia. Mas, para Tillich, justiça, paz e alegria, ou seja, socialismo, implica em correlação permanente e necessária entre consciência crítica e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do stalinismo, como daquelas correntes que veem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia. É essa preocupação de Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita esse diálogo crítico com Gramsci.  


De Gramsci podemos dizer que recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos, ao falar de estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre o cristianismo, o intelectual e a democracia.


Marx partiu do fato de que o pensamento judaico/cristão torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo imaginário. Por isso, considerava que o trabalho do teórico consiste em dissolver o imaginário judaico/cristão em sua base terrena. Vai dizer, então, que Feuerbach não percebe que, findo o trabalho da crítica da herança judaico/cristã, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma.


O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da Sagrada Família, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a fé cristã por meio das contradições da sociedade e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Lucio Lombardo Radice, na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma judaico/cristã reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência. 


Gramsci verá o pensamento de Marx como herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa. Ou como nos diz Hugues Portelli, a filosofia da práxis pressupõe um passado cultural, o Renascimento, a Reforma, a filosofia alemã, a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo. Ou seja, a filosofia da práxis é o coroamento do movimento de reforma intelectual e moral e por isso está imbricada à Reforma protestante e a Revolução francesa. 


Marx pode, então, ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo. A estas fontes originais, Gramsci bebeu da tradição cultural italiana, principalmente de Maquiavel, e também de Croce que deu continuidade ao historicismo alemão.


Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma ao nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século 16, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras, a partir do rústico intelectual da Reforma, e está falando de Lutero, passando pela filosofia clássica alemã e pelo vasto movimento cultural nasceu o mundo moderno.


Podemos dizer que Gramsci, no que se refere ao cristianismo, faz uma ponte entre Émile Durkheim e Max Weber. Durkheim considera a religião a partir da idéia de vínculo social. A religião constituiria uma comunidade moral na os adeptos comungam um mesmo ideal. A palavra chave aí é solidariedade. E a solidariedade leva a uma memória coletiva, que organiza lembranças, ritualiza a crença. Os estudos de Durkheim sobre as sociedades têm o intuito de dar rumo a sua análise na qual a divisão do trabalho foi anteriormente sua preocupação central. Mais tarde, o diálogo com a antropologia será privilegiado e o universo da religião será pensado como consciência coletiva, abordagem que ele estende ao entendimento da nação, enquanto todo no qual os indivíduos partilham a mesma memória coletiva. 


Weber trabalha em sentido diferente. O cristianismo é instituição, é igreja, que atua como empresa de salvação das almas. É necessário, então, conhecer os meandros de sua doutrina, a organização de seu clero e a disputa entre visões e interesses distintos no quadro das crenças religiosas. Daí a atenção que dá ao pensamento divergente, as rupturas no interior de uma mesma ordem ideológica, e sua política com o poder de Estado. 


Assim, Durkheim busca o que une e Weber realça o que separa. Mas Gramsci está interessado nas duas dimensões, no que une e no que divide. O cristianismo, para ele, é uma concepção de mundo que elabora versões sobre a realidade, o que possibilita aos fiéis atuar segundo determinada ética, mas também os une no interior da mesma comunidade. Essa idéia atravessa as páginas dos Cadernos do cárcere, sintetizada na afirmação de que o catolicismo é o intelectual orgânico da Idade Média.


Partindo de uma leitura do contexto europeu medieval, Gramsci estudou o papel dos intelectuais católicos: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em política à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do pensamento divergente que ameaça a unidade da Igreja. Mas, na qualidade de orgânico, o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, o catolicismo integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. O catolicismo, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e cristianismo católico, e entre cristianismo católico e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica.


Dessa maneira, as análises de Gramsci rompem com a tradição marxiana, já que a ideologia, mas do que falsa consciência é entendida como elemento cognitivo, concepção de mundo que brota da vida social. Para ele, como concepção de mundo, o cristianismo não seria alienante, mas deve ser entendido como ideologia presente na história. Exemplo disso foi o catolicismo, que possuía valor positivo, era orgânico, e construiu vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças.

 

E se Gramsci se mantém marxiano no que se refere à crítica da transcendência e, por extensão, da natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. Gramsci prepara, assim, o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e Lévi-Strauss e seu "animal simbólico".


Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê o movimento de massas em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que gera a massa orgânica, com dupla ação: de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite. 


Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos dinâmicos das massas estão presentes nos movimentos religiosos do jovem cristianismo, no movimento político da migração dos povos, no movimento religioso da Reforma, no movimento anabatista e no movimento solidário. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, estão presentes em diferentes esferas da cultura, mas sempre como movimentos de liberdade: as massas dinâmicas são parteiras de escravos, de povos, de trabalhadores.


Por isso, segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como algo que já se esgotou, se nos propomos a fazer a crítica consciente e transformadora, pois a justiça não é justificativa ideológica das democracias, nem idealismo progressivo ou sistema de harmonia autônoma. A busca incondicional da justiça dentro do espírito da crítica profética e com os métodos do marxismo transcende o mundo. Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Só se a busca incondicional da justiça levar em conta que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano.


O teólogo da vida deve entender que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. Precisa compreender que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. Por isso, explica Tillich, como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista. 


Por isso, a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. De todas as maneiras, para Tillich e para Gramsci há uma busca comum de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Ou como diz Gramsci, se a política entre intelectuais e povo, dirigentes e dirigidos, governantes e governados, é dada por adesão orgânica, onde a paixão torna-se compreensão e saber, é  então que a política se faz representação. E aí se produz o intercâmbio de elementos entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes. E é aí onde se realiza a vida social. Cria-se então o bloco histórico.


Para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em política às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. 


A partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionado pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico.


Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular.


Numa leitura cristã protestante, Tillich considerou a busca pelo sentido pleno de vida produto do desenvolvimento econômico e espiritual, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci. Assim, a busca pelo sentido pleno de vida surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendida a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias modernas de justiça. 


Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas, e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcada por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht. de dezembro de 1931, expõe seu conceito de Estado ampliado: 


“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercidas através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)”.


Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores.


Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política.


Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de Estado ampliado. O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política mais sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade.


O sentido de progresso civilizatório que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de estatolatria, considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo. 


Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política, estado-coerção, a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante, burocracia executiva e policial-militar; e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais: meios de comunicação e de massa. 


E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futuros. Isto só seria possível no início da década de 1950. É exatamente através dos meios de comunicação da alta modernidade, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo as ideologias da classe hegemônica vigente. 


Assim, o Estado é a sociedade política gramsciana. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após seu desenvolvimento histórico que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção. 


O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado. 


Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido pelo tecido hegemônico que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação. 


Assim, a luta pela construção de uma sociedade plena de sentido de vida, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma, o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao sentido pleno de vida será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de sociedade regulada. 


Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o estado-coerção será substituído pelo estado-ético. E esta figura remanescente do estado-coerção, torna mais factível o modelo social voltado para a democracia de bens e direitos e menos utópico em política ao que planejara Marx.

 

Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais possibilitariam o sentido pleno de vida. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxiano? 


Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do estado se dará pela absorção deste pelo estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no estado ampliado e, por isso, não se pode falar de extinção do estado, mas de uma reorganização do estado onde um de seus componentes, está atrofiado por disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso.


Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política. 


Nesse espaço a sociedade civil como espaço do domínio da ideologia, portador material da hegemonia, encontra a possibilidade de legitimidade, de consenso, através dos aparelhos privados de hegemonia que propagam valores ideológicos. 


Assim, o conceito de estado ampliado procura apreender a configuração de forças sociais e políticas resultantes dos estados ocidentais do século vinte, idéia que confronta a proposta de Trotsky de revolução permanente a partir da concepção de hegemonia civil. Tal proposta-conceito parte da idéia de guerra de posição, que exige uma frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas. A fórmula hegemonia civil propõe a participação das maiorias sociais nos aparelhos privados de hegemonia (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem as trincheiras de luta para obter posições de direção no governo da sociedade.


A proposta de extinção do estado, no entanto, nunca é plena, pois sempre restará o governo para cuidar da sociedade civil. É claro que se entendermos assim podemos dizer que na distinção de função entre as pessoas que governam e as que vivem a vida da sociedade de consenso está presente ainda a dominação entre as classes e, portanto, os restos da coerção do Estado se farão presentes.


Em Gramsci está presente uma utopia que atravessou todo pensamento solidário: sonhar com o bom selvagem de Rousseau, em oposição ao homem é o lobo do homem de Hobbes. Esse Estado ético é uma idealização do ser humano, que poderia viabilizar a construção de uma sociedade ética, igualitária e justa. 


Mas, mesmo questionando Gramsci, podemos utilizar seus conceitos de estado ampliado e de hegemonia civil como estruturas de pensamento válidas para a análise social, não como proposta da utopia solidário, mas como ferramenta para delimitar e compreender o desenvolvimento das sociedades ocidentais contemporâneas, principalmente aquelas que se propõem democráticas. 


A busca pelo sentido pleno de vida e os movimentos de liberdade sempre estiveram ligados, mas isso não significa que não existem tensões entre o momento universal e o momento particular. O momento universal pode formular exigências que ameaçam absorver o momento particular. A busca pelo sentido pleno de vida se tornará, então, uma idéia geral, desprovida de raízes sociais e perderá sua força histórica. Este é o perigo de uma luta pela justiça restrita à intelectualidade. Esse perigo provém da situação burguesa e de seu pensamento político particular, que procura elaborar uma ordem social fundada sobre a justiça, mas deixando de lado a situação proletária real. Seja qual for o valor que se atribua a esta tentativa, ela não será de fato justiça social. A luta contra o intelectualismo utópico se apoia sobre a ligação indissolúvel que Marx viu entre sentido pleno de vida e proletariado, que não pode ser quebrada por essa harmonia metafísica proposta pela globalidade burguesa.


Para Paul Tillich existe na esfera política uma política entre razão e autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da razão política. Assim, a teologia e a política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Teologia e política, no mundo ocidental, estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia. 


Tal compreensão da realidade ocidental no pós-guerra levou Tillich a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como a sua reflexão sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização da vida social plena de sentido, diante do visível abandono dos direitos civis e humanos, assim como a descoberta da existência de Gulags nos países comunistas, se desiludiu. Ou como publicou mais tarde – veja, Paul Tillich, Teologia protestante nos séculos dezenove e vinte:


“O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social”.


Tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade. Assim, alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista de que, em nome da busca pelo sentido pleno de vida, sociedades mergulhassem no totalitarismo, já que não aceitavam a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas-religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental, ao dizer que novos centros de poder podem aparecer levando à separação ou à transformação radical do todo. Isto porque o poder inicia sempre uma nova luta, e o período de determinado império mundial será tão limitado quanto foi o período de paz”. 


E afirmou que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o Reino, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. Assim, falar de teologia da existência significa entender que a busca pela incondicionalidade da justiça e, por extensão, da paz e alegria, traduz a defesa do sentido último do significado profundo das raízes do humano e que, no mundo contemporâneo, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à existência, deve levantar-se como voz profética de um mundo novo.




mardi 3 mai 2022

Cristianismo e ética solidária

A ética solidária e cristianismo social 
-- Leituras tillichianas para o Brasil 

Jorge Pinheiro, PhD 


O fundamento da unidade espiritual é a religião. O fracionamento espiritual que acontece em determinadas épocas traduz fracionamento econômico, choque e distanciamento entre classes. E nas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica. 

Por isso, na história, rupturas espirituais vêm associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que processos de unidade espiritual vêm associados a processos de unidade econômica. 

Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que correlaciona mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias, o cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou participa do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento, ou se retrai e entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido. 

Seja qual for a opinião sobre a relação ética entre cristianismo e capitalismo, um fato deve ser ressaltado: é necessário e possível para o cristianismo manter um relacionamento com todas as formações econômicas e sociais, em especial com aquelas que buscam a igualdade de direitos e possibilidades para o conjunto da população, já que a rejeição do princípio da igualdade social de direitos e possibilidades em nome do cristianismo fere a universalidade do cristianismo. 

E se o cristianismo não somente deve, mas pode manter um relacionamento com economias e políticas solidárias, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeiro: devem e podem os governos que buscam tais transformações ter um relacionamento construtivo com o cristianismo? 

Para muitos, as concepções não-cristãs, muitas vezes materialistas, negam a possibilidade dessa aproximação, mas se entendemos que mesmo em Marx as concepções políticas de fato não são materialistas, mas econômicas, vemos que tais concepções mostram uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização espiritual da cultura. E, ao contrário, tal fundamento dá às ciências do espírito uma possibilidade metodológica extremamente fecunda, que não tem nada a ver com ateísmo ou materialismo. 

Quanto às organizações de esquerda, sejam elas socialistas ou não, é necessário ver a diferente atitude que têm em relação ao cristianismo e em relação às estruturas hierárquicas das igrejas. A história das igrejas cristãs no passado, e muitas vezes no presente, é passível de críticas. Suas alianças e opções fizeram como que se afastassem e dificultassem seus relacionamentos com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação facilita e potencializa a pregação do materialismo. 

Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que o materialismo seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa cética e crítica. Essa herança foi adotada pelas correntes proletárias militantes e pelo socialismo na crença de que ajudaria a extirpar a ideia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais digno e justo. 

Embora, haja razões históricas para criticar as igreja cristas, os movimentos e partidos políticos socialistas erram quando negam a existência da base comunitária e solidária do ideal cristão, tal como pode ser percebida na pregação do Jesus apresentado nos Evangelhos. Quer dizer, ainda há em setores dos movimentos e partidos políticos socialistas uma hostilidade contra o cristianismo, hostilidade esta que fere a ética social, tão próxima daquelas propostas levantadas pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos. 

Mas, se as ideias sociais dos movimentos e partidos proletários e socialistas não traduzem oposição essencial, de princípio, com o cristianismo e com as igrejas que vivem o mandato evangélico, os cristãos podem sem nenhum temor ter uma atitude positiva em relação a estes movimentos e partidos. 

Atitude positiva deve ser entendida como a realização do princípio da solidariedade cristã, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram exclusão e miséria. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma outra ordem social, global sim, que inclua excluídos e periféricos. Isto porque as transformações sociais não são só necessidades e tarefas de operários e trabalhadores fabris, mas ideal ético que traduz anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade. 


[Sugiro a leitura de Paul Tillich, Le socialisme in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992].



lundi 2 mai 2022

Primeiro de maio -- consciência e transformação

Primeiro de maio -- consciência e transformação
Questões teóricas sobre o movimento de massas
-- Uma leitura tillichiana

Jorge Pinheiro, PhD

A palavra massa, para Paul Tillich [Masse et Esprit, Études de philosophie de la masse], transformou-se em slogan político e social. Expressão esta que conota superioridade e idolatria. Por isso, quando se deseja discutir seriamente o conceito massa, e logicamente o Primeiro de maio, é necessário definir seus contornos e esfriar um pouco a fervura do slogan. 

Uma conversa com o Dr. Paul Tillich / Youtube -- Vitor Chaves de Souza. Fragmentos do video original "A conversation with Dr. Paul Tillich" [videorecording]. ("Uma conversa com o Dr. Paul Tillich") Legendado por Vitor Chaves de Souza http://www.vitorchaves.com Créditos: Title: A conversation with Dr. Paul Tillich and Mr. Werner Rode, a graduate student of theology [videorecording]. Published: [New Haven, CT] : Yale Broadcast & Media Center, [2010] Description: 1 DVD (28 min.) : sd., b&w ; 4 3/4 in. Notes: Telecast in 1956 on the NBC-TV series Frontiers of faith and produced by the National Council of Churches of Christ in the U.S.A., Broadcasting and Film Commission. Reproduced in new format on Sept. 30, 1986, by Union Theological Seminary in Virginia, Library Media Services Department. DVD copy of original VHS videocassette: [Virginia : Union Theological Seminary, 1986] Summary: Werner Rode, a graduate student at Union Theological Seminary, New York, interviews the theologian Paul Tillich in 1956 concerning his life and developments in theology during his career.

Segundo Tillich, há dois conceitos de massa, um formal e outro material, o primeiro de ordem psicológica e sociológica e o segundo de ordem histórica e social. Em termos formais, a massa consiste numa associação de pessoas que, na associação, deixam de ser indivíduos. Sua individualidade se perde e ele se submete à coletividade. A pessoa se torna um átomo, desprovido de suas qualidades, seu movimento próprio, e se transforma em pura quantidade subordinada ao movimento da massa. Através da psicologia das massas pode-se ver como a alma perde sua forma individualizada uma vez que toma a forma da massa e como o indivíduo entra em contradição com ele próprio, já que é um átomo da massa ou um ser bem singularizado. 

Tillich considera que no movimento psíquico da massa alguns elementos se separam e se isolam, adquirindo eficiências por eles próprios. Isto porque um indivíduo é o resultado de uma longa evolução interior e sua alma está ligada a milhares de liames à vida da alma em sua totalidade, que assim torna-se autônoma . Na massa, as forças de inibição, de reflexão e de matizações caducam. Tudo se transforma. Assim, podemos resumir essas transformações em duas leis. A lei da imediaticidade, segundo a qual a massa não reflete, mas é. Ela tem uma existência objetiva, não subjetiva como afirmou Hegel, ela é em si, não para si . 

A massa não sabe porque ela faz aquilo que faz. Quando acede a ela própria é sempre através de certos indivíduos, um orador ou chefe. A massa é imediata, vive inteiramente o presente, sem ligações com o passado ou o futuro, sem lembranças ou reflexões. Suas motivações são irracionais. Mas para Tillich, a lei da imediaticidade explica o desabrochar dos instintos biológicos imediatos, que estavam inibidos. Também mostra a existência de um princípio espiritual imediato que se faz presente, que pode ser traduzido como o abandono ao instinto do momento em direção à disponibilidade da revelação espiritual do presente, revelação de uma espiritualidade subjetiva impura . 

Ou seja, a irracionalidade das motivações pode dirigir ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. A outra lei da psicologia das massas, segundo Tillich, é a lei da amplificação. Se a vida espiritual do indivíduo perde suas inibições, se tal fato se repete em cada indivíduo presente, como num alternador, o vivido por um, suscita em outro experiência idêntica, porque a massa vivencia ela própria o ser massa. Essa lei nos leva a dois aspectos da vida da alma, o aspecto emocional e o aspecto intelectual. 

Em todo movimento da massa podemos observar a força do entusiasmo, a amplificação das paixões, da coragem, que podem levar ao seu sacrifício e destruição. Do lado intelectual, a lei da amplificação age de forma mais discreta, porque o processo de reflexão não convém à massa por causa de sua complexidade. De certo ponto de vista, a pessoa está mais alerta que a massa, mas a massa pode se elevar bem acima das consciências subjetivas, com suas intuições mais simples, mas também maiores e também com sua clarividência disso, que prepara o espírito objetivo no momento presente. A amplificação pode levar ao monumental e ao heroísmo, mas também ao demoníaco e à destruição. E as intuições da massa podem se conformar ao espírito ou lhe ser refratário. 

As leis da psicologia das massas são leis naturais, afirma Tillich. Elas são sempre válidas e necessárias onde uma pluralidade se encontra reunida. Elas têm valor para todos os estamentos sociais, para um grupo de marginais, assim como para uma assembléia de nobres. Com ironia superior, elas regem uma reunião de convencidos individualistas, assim como explicam o sentimento de superioridade existente na palavra massa, quando usado como slogan . No conceito material de massa, a essência de um grupo de pessoas determinado é ser essencialmente formado conforme a psicologia das massas. 

Por isso, no sentido histórico do termo, a massa, quer sejam classes ou ordens, raças ou círculos, partilha do destino de ser excluído de toda formação espiritual individual. Vemos, então, que a imediaticidade da massa faz com que desabroche nela instintos biológicos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio espiritual imediato: a disponibilidade à revelação espiritual do momento presente. 
Essa imediaticidade é o que leva a massa ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocional e intelectual são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e destruição. Assim, a massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência disso. Este processo prepara o espírito objetivo no momento presente. Quando objetivamente a massa vive esse processo de espiritualização, nela, religião e cultura se misturam. A esse primeiro momento de evolução da massa Tillich chama de massa mística.

No contexto geral de uma análise do socialismo, não se pode deixar de levar em conta que a evolução histórica dá nascimento a diferentes tipos de massa, conforme o modelo de desenvolvimento das relações entre religião e cultura. O primeiro estado consiste em uma unidade onde os dois ainda não se distinguem. Uma segunda etapa é marcada pela autonomia da cultura: assim, ela se diferencia mais e mais da religião, a ponto de gerar a secularidade moderna. Mas esta ruptura e separação são catastróficas tanto para a cultura como para a religião. E serão então superadas pela etapa final da teonomia, caracterizada pela presença de conteúdo religioso em todas as formas autônomas da cultura. 

Podemos facilmente reconhecer os elementos desse esquema na descrição dos diferentes tipos de massa. A massa mística corresponde à religião de origem: é a fusão dos indivíduos numa única comunidade que engloba tudo. Vem em seguida a etapa da autonomia, onde os indivíduos se diferenciam cada vez mais da comunidade de origem, até tornarem-se completamente independentes e separados. Mas ainda é massa sem forma e cultura, que não se colocou em movimento e caminhou para um estado de individualização. Essa é o estado de massa técnica ou mecânica, característico da moderna sociedade industrializada. 

A partir daí surge a perspectiva de uma etapa final onde a massa e a individualidade pessoal formarão uma nova união, uma síntese nova, chamada massa orgânica, que corresponderá ao ideal da teonomia. Logicamente, nem sempre se caminhará em direção a este ideal: mas o tempo histórico que orienta nessa direção é o da massa dinâmica. Dessa maneira, a massa dinâmica é sempre revolucionária, não unicamente no sentido político do termo – inclusive este é o sentido menos freqüente --, mas sempre em um sentido de fé espiritual e social. É necessário que ela seja revolucionária, porque o sentido de seu movimento é precisamente ir além do estado de massa e todas as formas que são responsáveis por este regulamento .

Assim, o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica e é essencialmente um movimento de libertação: o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica, já existente ou em perigo de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica, não importando que esse começo seja ou não atendido. 

Temos, então, uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Sem desejar fazer um confronto entre os dois pensadores, tocamos apenas no ponto que metodologicamente nos interessa: a vanguarda não se limita ao militante ou intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma dupla ação, de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite. 

Uma tal visão abre perspectivas interessantes na análise e compreensão de diferentes situações históricas. A questão da transformação da sociedade e a luta pela democratização são compreendidos melhor através do caminho metodológico construído por Paul Tillich. E como afirmou, todas as questões convergem para uma mesma resposta: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, onde será superada a oposição entre massa e personalidade. Onde um novo conteúdo será produto do destino e da graça.



La fonction Éros

La fonction Éros.
Contre Aristophane
et un poème de Caetano et Peninha au milieu
Jorge Pinheiro, PhD


A côté de la cathédrale de Santa Ana, devant une Guinness IPA, 50 cl, je me demande : qu'est-ce que la fonction Eros ?

Eh bien, il faut d'abord penser à Eros, puisque les préjugés et l'éloignement de la philosophie maudissent une telle fonction.

Les corps comprennent la solitude, la folie des désirs, les abîmes du plaisir. Si, après l'union des corps, la solitude est un partenaire, le corps est ce morceau de moi qui ne s'achève jamais.
Le texte hébreu des Origines dit que l'Éternel a dit : "il n'est pas bon pour l'humain de vivre seul, alors je lui construirai quelqu'un qui l'aidera à avancer". Nous le savons, dans un état de tranquillité, et conscients de nos désirs, nous recherchons l'intimité.

Autrement dit, sincèrement, nous voulons avoir quelqu'un à qui faire confiance, à qui nous pouvons révéler notre côté le plus profond. Nous aimerions tous pouvoir faire confiance à ceux qui apprécient notre intimité avec certains des sentiments que nous gardons sous clé. C'est peut-être pour cela que nous nous sentons attirés par les groupes sociaux comme Facebook, Twitter et autres. C'est vrai, dans les eaux peu profondes et profondes, nous voulons être désirés.

." Parfois dans le silence de la nuit, je m'imagine nous deux. Je reste là à rêvasser, réunissant l'avant, le maintenant et l'après " ("Sozinho", de Caetano Veloso et Peninha).

Dès lors, la question se pose : qu'est-ce qui nous empêche d'accepter la fonction Eros ? Avons-nous peur des risques ? Quoi rayures?


Aristophane, Youtube
Aristophane (vers 450-385 av. J.-C.) – Une Vie, une œuvre [1995]
Rien ne veut rien dire 
Par Francesca Isidori et Claude Giovanetti. Emission diffusée pour la première fois sur France Culture le 19.01.1995. Intervenants : Philippe Brunet (de l'Institut de la papyrologie de la Sorbonne.) - Jean Taillardat - Alain Blanchard.

Pensons-y avec le poète Aristophane, de retour dans le Banquet de Platon. Il a dit que dans le passé, la nature n'était pas ce qu'elle est aujourd'hui. Nos ancêtres étaient duels, mais ils avaient une unité parfaite. Chaque humain était un tout, de forme sphérique, avec le dos et les flancs arrondis. Ils avaient quatre mains, le même nombre de jambes, deux visages identiques sur un cou rond, mais une seule tête pour l'ensemble de ces deux visages opposés. Ils avaient quatre oreilles et deux organes sexuels.

"Pourquoi me laisses-tu partir si librement ? Pourquoi ne restes-tu pas avec moi ? Je me sens très seul."

Cette dualité génitale explique pourquoi il n'y avait pas deux mais trois genres dans l'espèce humaine : les mâles, qui avaient deux sexes mâles, les femelles, qui avaient deux sexes femelles, et androgyne, qui avait les deux sexes. Le mâle, dit le poète, était le fils du Soleil, la femelle la fille de la Terre, l'espèce mixte de la Lune, qui participe du Soleil et de la Terre. Tous avaient une force impressionnante, et ils ont donc essayé de gravir le ciel et de combattre les dieux. Pour les punir, Zeus décida de les couper en deux, de haut en bas, comme une orange est coupée. Alors fin de complétude, d'unité, de bonheur ! Dès lors, chacun est obligé de chercher l'autre morceau.

" Je ne suis pas et je ne veux pas être votre propriétaire. C'est juste qu'un câlin se passe parfois bien. J'ai mes désirs et mes projets secrets ".

Maintenant, nous sommes séparés de nous-mêmes. Ce désir de chercher est ce qu'Aristophane appelait Eros et, lorsqu'il est satisfait, il est la condition du bonheur. Seul Eros reconstruit la nature, fusionner deux êtres en un seul. Ainsi, pour le poète, une personne serait homoaffective, hétéroaffective ou androgyne, selon l'unité perdue. Ainsi, partant du mythe, Aristophane considère que lorsqu'une personne - si elle est encline à homme ou femme – trouve sa moitié, devient un prodige d'amour et de tendresse.

« Pourquoi m'oublies-tu et disparais-tu ? Et si je m'intéresse à quelqu'un ? Et si elle gagner?".

Telle est la définition de l'Eros fusionnel d'Aristophane, qui nous ferait revenir à l'unité de la première nature, qui nous libérerait de la solitude, et qui serait, dans cette vie comme dans l'autre, le plus grand bonheur à atteindre. Mais, parce qu'elle exige une telle fusion de deux personnes, elle est toujours un moment et, donc, loin d'abolir la solitude, elle la confirme.

Si les âmes pouvaient fusionner, ce serait autre chose, mais ce sont les corps qui fusionnent un instant. D'où l'échec. Tout le monde veut être un, mais tout le monde est plus que jamais deux, toujours.

C'est pourquoi les Romains disaient "post coitum omne animal triste". Mais si Eros ne naît pas de cette fusion des ames, le plaisir naît. Ou, nous pouvons dire, les corps comprennent mieux Eros que les spécialistes. Les corps comprennent la solitude, la folie des désirs, les abîmes du plaisir. si après l'union des corps, la solitude est un partenaire, le corps est ce morceau de moi qui ne s'achève jamais.

Détail : Platon détestait Aristophane. Et l'histoire hébraïque, qui plonge dans les profondeurs de l'existence, n'en reste pas moins : nous sommes deux pareils, toujours. Et c'est du différent, du divergent, que doit naître l'unité. Ou comme l'a dit l'homme de Nazareth, et les deux seront une seule chair. Et que ce soit une bénédiction ou une malédiction, je pense que cela dépend les uns des autres.

« Soit tu me trompes, soit tu n'es pas mûr. Où es-tu maintenant ?
(« Sozinho », de Caetano Veloso et Peninha).


Hieronymus Bosch, Youtube / 
Les peintures troublantes de Hieronymus Bosch
"Il n'y a pas d'autre artiste comme Hieronymus Bosch. Pendant la Renaissance européenne, ce peintre hollandais évoquait des paysages d'enfer cauchemardesques, pleins de créatures grotesques et absurdes. Particulièrement dans sa pièce la plus célèbre, Le Jardin des délices. Mais pourquoi cet artiste a-t-il créé des peintures aussi dérangeantes ? Sont-ils le produit d'un imaginaire vif, empreint d'un sens religieux symbolique ? Ou sont-ils le produit d'un esprit troublé, affligé d'hallucinations intenses et effrayantes ? Examinons les peintures de Hieronymus Bosch et découvrons l'artiste derrière son travail étrange et troublant. J'ai vraiment aimé faire cette vidéo et j'ai beaucoup appris pendant sa réalisation. J'espère que vous l'avez tous apprécié aussi". Hochelaga.