As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário.
Platão, em Fédon
[3], num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria.
E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?”
Paulo conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.
“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”.
Outras fontes de Paulo foram o profeta Daniel e outras literaturas intertestamentárias, que trabalharam com a idéia de “
despertar subitamente do sono”. Chifflot e De Vaux
[4] situam o livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Chifflot e De Vaux, já citados. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de “
vaticinia ex eventu”, dado que o texto é contemporâneo aos acontecimentos descritos. Esses capítulos expressam a reação contra a helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de pensamento afetado pela civilização helênica.
A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da “abominação desoladora”.
Durante o período helênico idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatolõgica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase.
Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulo, porém, somará um componente existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.
“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”.
É interessante que Paulo em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”. Tudo indica que Paulo gostava de teatro e de comédias.
Que Paulo recorreu à tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulo. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulo trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.
“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.
Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulo está preocupado com o corpo, com a vida.
“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psiquê, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psiquê , também há corpo espiritual”.
Para Paulo, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.
“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”.
Ícone da anástase
O pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psiquê, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal.
“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”.
Caso voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulo traduziu para as novas gerações o desejo judaico-helênico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.
Referências
[1] Menandro,
O Misantropo. Site: Oficina de teatro. WEB: www.oficinadeteatro.com
[2] Betty Fuks,
Freud e a Judeidade, a vocação do exílio, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 127-133.
[3] Platão,
Fédon, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1987.
[4] Th.-G Chifflot e R. De Vaux,
La Sainte Bible, Les Editions Du Cerf, Paris, 1973. Tradução:
A Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985, p. 1347.