lundi 13 juin 2016

A escolha livre

O arbítrio livre é um princípio do judaísmo desde a construção dos textos antigos. Assim, Deuteronômio nos diz "e você vai praticar o que é certo e bom aos olhos de Eterno, para alcançar a felicidade ..." (6.18). Tal princípio é uma idéia-chave na tradição judaica, um pilar da Torá e está presente nos trabalhos do exegeta judeu Moisés Maimônides -- Mishnah Torah Hilkhote Teshuvah 5.3.


האיש הוא חינם

Na verdade, o arbítrio em liberdade é a pedra angular de todos as correntes judaicas, pois compreende que o Eterno deu essa liberdade ao ser humano quando o criou, fornecendo a ele o poder de saber escolher entre o certo e o errado. Confiante na sua criatura, Ele espera que o ser humano naturalmente escolha o bem, ou como diz Eclesiastes, "o Eterno criou o homem certo" (7.29). Mas se em relação a toda a criação, o Eterno disse ki tov --porque é bom – em relação ao humano omitiu tal afirmação. Esta omissão atesta a idéia de que o humano tem em si a possibilidade de escolha de fazer o bem ou o mal, e de reparar os erros cometidos, por ato de desejo intenso, e assim se livre dos grilhões que impedem o seu ser de crescimento, ao fazer dele escravo de sua própria natureza. O conceito de teshuvá, de voltar para o que você deve ser e para o Eterno, traduz esse princípio judaico.

"Mas se o ímpio se converter de todos os pecados que cometeu... praticar a lei e virtude, viverá..." (Ezequiel 18.21). E Simeão ben Zoma diz: "quem é forte? aquele que domina suas paixões?" Quem domina suas paixões supera o guerreiro que domina uma cidade. (Provérbios 16.32 e A ética dos Pais 4.1).

Assim, o Eterno sabendo que Abel corria perigo, após a recusa de ofertar como Caim, apelou para a consciência do irmão mais velho. "Se você fizer o melhor, o bem vai até você, se o pecado jaz à sua porta, ele deseja a chegar até você, mas você, deve saber dominá-lo" (Gênesis 4.7).

ישנם שני נתיבים

De acordo com Maimônides, "dois caminhos se encontram nas mãos do homem e ele é livre para ir aonde ele quer, nada impede, nem homens nem anjos". E o Gaone Vilna explica que o arbítrio livre implica exceder nossa natureza, o que é possível na contínua luta entre forças opostas. E tal idéia está explícita quando o Eterno nos diz "Eu dou hoje uma bênção e uma maldição" (Deuteronômio 11.15). Um primeiro nível de conhecimento do bem e do mal está no coração humano e o leva à sabedoria, onde saber distinguir entre o bem e o mal se torna o prêmio no conhecimento iluminado pelo Eterno.

Mas não nos enganemos. A moralidade não é escolher entre o bem e o mal. Todo mundo decide ser bom, mesmo as pessoas que são más e desprovidas de sentido moral. Hitler tinha concluído que os judeus eram os inimigos da humanidade e, portanto, em sua mente, pensando assim fazia o que era bom. Mas, na verdade, o livre arbítrio é a escolha entre a vida e a morte. Como está escrito na Torah, "Eu pus diante de ti a vida a morte... Escolhe a vida e viverás, então, tu e tua descendência". (Deuteronômio 30.19)

חופשי להיות

Mas os sábios judeus se fizeram uma pergunta, o humano é completamente livre em seus pensamentos, palavras e ações? Ele pode reivindicar a conquista da felicidade perfeita? Não! Ele está sujeito, por um lado, às restrições internas adquiridas pela educação e ditados pelo subconsciente escravizado por necessidades triviais, e em segundo lugar, pelas normas impostas pelo ambiente. Por isso, arbítrio livreé um chamado para que ele domine suas forças internas e impulsos.

E na sequência perguntaram: quais os limites do arbítrio livre? E porque o Eterno não intervém para por fim à iniquidade e parece indiferente à dor humana? "Por que você me deixa ver a iniquidade, e porque testemunha à injustiça?" (Habacuque 1.3). E a ética dos Pais 3.15 diz: "Quando violamos a justiça humana em face do Altíssimo, quando o mal é feito para o homem no seu pleito, o Senhor não vê isso? Quem vai dizer que algo acontece sem que o Senhor ordene? Não é a vontade do Altíssimo fazer surgir o mal e o bem?"

Como a vontade divina, que gera a história deste mundo, está conciliada com a idéia do arbítrio em liberdade? E mais uma vez a Ética do Pais nos orienta: "O mundo é julgado com benevolência e tudo depende da maioria das obras" (3.15). Ou seja, se a liberdade de ação dos seres humanos parece absoluta, a escolha a preferir a vida à morte, de fato, nos é ordenada pelo Eterno: escolha a vida.

Assim, as questões éticas no judaísmo repousam menos sobre a questão do determinismo, ou como o filósofo judeu Yitzchak ben Yehuda Abravanel esclarece, apoia-se em um caminho que conduz à melhoria do ser humano. Toda a bondade e a perfeição do ser humano repousam sobre o livre-arbítrio e sua habilidade sincera em reparar a falha cometida. A culpa de Caim, depois que matou seu irmão Abel, reside na sua recusa em aceitar a oportunidade oferecida pelo Eterno, de arrependimento, de reconhecimento do erro e confessar, de acordo com o princípio da escolha livre, a sua responsabilidade. Caim, sujeito à sua natureza cruel, ao contrário, levanta a questão: sou eu o guarda do meu irmão?

חופש הבחירה

Paradoxalmente, a perfeição, longe de ser o resultado de uma vida sem falhas, é sim uma expressão do poder do arbítrio livre para distinguir o certo do errado. "Dependo do Eterno, exceto do medo do Eterno" (O tratado das bênçãos, Bérakhote 33). "O homem foi criado apenas para deleitar-se com o Eterno e apreciar o esplendor da sua presença", disse o sábio Chaim Luzzatto, em sua Méssilate Yesharim. Na verdade, escravo é aquele que, privado de toda a liberdade de pensamento, está proibido de ação autônoma.

Vejamos um exemplo, o faraó, negou o conhecimento primeiro, ignorou essa tselem Elohim, a imagem do Eterno nos filhos de Israel e no humano em sua dimensão universal, por isso foi punido, perdendo o direito ao arbítrio livre. Gênesis 1.26. Isto se dá porque nas primeiras cinco pragas do Egito, o Eterno diz claramente ao faraó que ainda há tempo para libertar os filhos de Israel. Mas foi em vão, porque o "faraó endureceu o seu coração". E no correr das outras cinco pragas, faraó se torna escravo de si mesmo. "Meu rio é meu, sou eu que me fiz". Ele afasta de si a sua própria consciência e não retorna a ela. Nega sua imago Dei, rechaça sua consciência, faz sua opção pelo mal... E esta realidade é traduzida com a expressão, "o Eterno endureceu o coração de faraó".

Onde o homem decide ir, o Eterno o conduz. Ele paga "a cada um segundo os seus caminhos e de acordo com o mérito de suas obras" (Jeremias 32.19). Assim, os filhos de Israel provaram sua maturidade e mostraram sua grandeza ao firmar a decisão de deixar a escravidão. Esse é o ponto de referência. E no seu arbítrio em liberdade, "tomaram para si um cordeiro, e o sangue foi um sinal para todo o povo". Dessa maneira, o Eterno nunca impõe aos seres humanos a liberdade; eles têm a responsabilidade de aceita-la e impô-la. O Eterno elege aqueles que optam por agir como serres humanos livres.

רצונו של אדם הוא חופשי

E voltemos a Maimônides: "... o homem tem o poder absoluto para agir naturalmente por seu livre arbítrio e sua vontade" (Guia dos Perplexos 3.17). E porque "a felicidade decorre do esforço humano" (A ética dos Pais), a escolha em liberdade é o esforço que só os seres humanos são capazes de fazer e que lhes permite distinguir a vida da morte. 

E como afirma a Declaração Universal dos Direitos, "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade".

mardi 7 juin 2016

O pensamento político (3)

A finalizar ...

A utopia e o kairós
Jorge Pinheiro, PhD


Cada tensão orientada para adiante comporta uma representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse ideal. A utopia está presente em todo agir incondicionalmente orientado à transformação do presente.[1] A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada.

A idéia do kairós nasce da discussão com a utopia.[2] O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a revolução no tempo, sem, contudo, fixar-se nele. Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo.[3]

Metodologicamente, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito profético da responsabilidade inelutável um choque entre este kairós e a utopia, que pensa poder fixar a eternidade no tempo presente. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito da profecia no tempo presente, que voltamos ao kairós, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inetulável.[4] 

Kairós significa tempo concluído, o instante concreto e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a irrupção do eterno no tempo. Kairós não é um momento qualquer, uma parte do curso temporal: kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do destino. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como aquele de uma decisão inevitável é considerá-lo enquanto espírito da profecia. Tal desafio não pode ser resolvido por um homem ou por uma mulher, por mais que encarnem o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa.

Essas duas raízes do pensamento político mantêm entre elas uma relação que é mais do que simples justaposição. A exigência predomina na origem. Considerando as várias tendências políticas, não se pode supor que elas sejam atitudes humanas justificadas. Onde são requeridas decisões, o conceito tradicional de realidade não é aplicável, diferente de quando estamos diante de uma exigência do incondicionado. 

Ninguém pode entender o socialismo se não experimentar a exigência de sua justiça como uma exigência do incondicionado. Quem não é confrontado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior.[5] Não pode falar dele porque é contrário às tendências políticas que defende. 

Aí está o nó da origem. Mas, todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento tácito das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder[6] e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. 

A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política.[7] Assim, religião e política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Religião e política estão imbricadas, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia,[8] enquanto grupo no poder. 

Notas

[1] Paul Tillich, Kairós II, op.cit., p. 260. 
[2] Paul Tillich, “Idéologie et utopie. À propos d’un ouvrage de Karl Mannheim” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 320-322. “Ideologie und Utopie”, Begegnungen, Gesammelte Werke XII, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1971, pp. 255-261. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier. 
[3] Paul Tillich, “Kairós II”, op. cit., p. 261. 
[4] Paul Tillich, História do Pensamento Cristão, São Paulo, ASTE, 2000, p. 24. Texto original: A History of Christian Thought, Ed. Carl E. Braaten, Nova York, Harper and Row Publishers, Inc., 1968. Vorlesungen uber die Geschichte des christlichen Denkens, Stuttgart, Evangelische Verlag W., 1971. 
[5] Paul Tillich, “La décision socialiste”, op.cit., p.31. 
[6] Paul Tillich, “Le problème du pouvoir. Essai de fondation philosophique” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 486-488. “Das Problem der Macht”, Christentum und soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1962, pp. 193-208. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier. 
[7] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, op. cit., pp. 239-240. 
[8] Paul Tillich, “Le socialisme” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 346. “Sozialismus”, Christentum und Soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1962, pp.139-150. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.


O pensamento político (2)

As concepções conservadoras e progressistas
Jorge Pinheiro, PhD


A concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura.[1] A força dessa concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano. 

Paul Tillich ao falar da plenitude do tempo no evento Jesus, explica a construção de sua concepção de kairós: um tempo carregado de tensão, de possibilidades e impossibilidades, qualitativo e rico de conteúdo. Nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos, nem tudo é exigido em todo momento. Diversos mestres, diferentes poderes cósmicos, reinam em tempos diferentes, e o Senhor que triunfa sobre anjos e poderes, reina no tempo pleno de destino e de tensões, que se estende entre a Ressurreição e a Segunda vinda. Ele reina no tempo presente que, em sua essência, é diferente dos outros tempos do passado. 

É nessa viva e profunda consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser elaborado o conceito de uma filosofia consciente da história.[2] A concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado como acontecimento único, é ele quem se revela em todos os sim e não do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousa o pensamento político conservador. Perdeu o sentido supratemporal do kairós.[3]

O mito expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de objetos e eventos nos quais o grupo humano percebe sua origem. Em todos os mitos ressoa a lei cíclica do nascimento e da morte. Todo o mito é mito da origem, responde à pergunta da providência e conta porque somos segurados na origem e estamos debaixo de seu império.[4] 

A consciência mítica original é a raiz de todo o pensamento político conservador e romântico. A consciência mítica não apresenta a origem de forma abstrata, mas concreta, sob a forma de poderes originais determinados. A existência humana distinta e suas origens são diferentes, assim como o são os poderes da origem, percebidos no mito e atualizados no culto. Porém, é possível operar alguns reagrupamentos significantes de poderes originais que têm uma grande importância política. [5]

Embora haja pontos de contato entre os conceitos expressos por Paul Tillich e o pensamento marxista, principalmente no que se refere à construção de um pensamento político conservador, é interessante ver as diferenças. Para Marilena Chauí, filósofa brasileira, teórica do Partido dos Trabalhadores, o mito deve ser entendido enquanto conceito antropológico, no qual a narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade. 

Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.[6]

Dessa maneira, para Marilena Chauí, o mito é sempre falsa consciência. Mas o ser humano vai além do colocar-se como realidade dada, vai além do saber colocar-se diante do ciclo do nascimento e a morte. Faz a experiência de uma exigência que separou o imediato da vida e o leva a colocar-se diante da pergunta da providência uma outra pergunta: por que? Esta pergunta quebra o ciclo de uma maneira fundamental, eleva o ser humano acima da esfera do simples viver. Porque é a exigência de algo que não está aí, que tem que se tornar realidade. 

Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que já é, disso que é, significa que tal exigência impôs ao ser humano o incondicionado. O por que não está dentro dos limites da fonte. É o incondicionalmente novo. Através desse por que o ser humano deve alcançar algo de incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência, quando o humano, por ser dividido, faz esta experiência. Ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da realidade, além daquilo que o cerca. 

Tal é a liberdade do ser humano: não que ele tenha uma vontade livre, mas não está preso, enquanto humano, ao que está dado. O ciclo do nascimento e morte foi quebrado, sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe, são rasgados os laços da origem, o mito original está quebrado. A ruptura do mito original pela exigência incondicional é a raiz do pensamento político liberal, democrático e socialista. 

A concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto revolução. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última. Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim incondicionais, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro adversário do espírito profético.[7] 

A exigência que o ser humano faz na experiência diante do incondicionado não é estranha a ele. Se fosse estranha à sua essência, não lhe seriam concernentes e ele não poderia discernir tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque coloca diante de seus olhos sua essência enquanto exigência. Funda-se a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser aborda o humano e exige ser afirmado por ele. Se a exigência é a própria essência do humano, então ela encontra seu fundamento na sua origem, e então a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. Ainda, diante do original, o que é requerido é o incondicionalmente novo. Assim, a origem é ambígua. Há nela uma separação entre origem verdadeira e a origem real. 

O que é realmente original não é o que é original de verdade. Dessa maneira, a realização da origem é esta exigência e este dever-ser pelo qual o humano é confrontado. O por que do ser humano é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira; mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura consciência mítica original ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da ambigüidade da origem. 

A exigência quer a realização da origem verdadeira. Porém o ser humano não recebe uma exigência incondicionada de outros. É no reencontro do "eu e você" que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido no você com a dignidade do "eu", a dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que apontada à origem. Reconhecer no você uma dignidade igual a do eu, isto é justiça. A exigência que nos arrasta à ambigüidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação e destroem um ao outro. 

Quando a origem é rompida vem o poder do ser, o declínio dos poderes que expiam e são julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo, como já evocou a filosofia grega. A exigência incondicional eleva acima deste ciclo trágico. Diante do poder e da impotência do ser, opõe a justiça, que provém do dever-ser. Mas essa teoria tillichiana de uma justiça criativa não deve levar aquele que a pratica ao esquecimento das violências do passado, quando grupos se lançaram uns contra os outros, mas nos opormos a essas ações e outras semelhantes, pois o amor pode ir além da separação, não ignorando diferenças, mas dirigindo as partes aos valores mais elevados. 

Esse é o desafio da justiça criativa: trabalhar a partir das relações pessoais e comunitárias para sobrepujar os problemas do passado e as estruturas existentes, a fim de desenvolver novos modelos de relacionamento e criar leis novas que contribuam para unir as pessoas e os povos, e aumentar o poder. A justiça criativa constitui a última interrelação do amor, do poder e da justiça, mas podemos senti-la e mesmo experimentá-la de maneira fragmentária e momentânea, em meio às ambigüidades da vida. A justiça criativa põe em evidência o poder transformador do amor.[8] 

Portanto, não há oposição entre justiça e poder, porque o dever-ser é a realização do ser. A justiça é o verdadeiro poder do ser. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência humana e as duas raízes do pensamento político, a exigência predomina sobre a pura origem, e a justiça, sobre o puro poder do ser. A pergunta do por que é superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença rompida, uma crença desvelada. Esse é o caminho da utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem crítica profética. Para Tillich, esse espírito profético está envolvido na situação histórica concreta, tem coragem de decidir e colocar-se sob julgamento ao nível do particular, sem esquecer que sua relação aponta ao incondicionado, e que o ponto mais elevado que é possível alcançar no tempo está submetido ao não. Por isso, o espírito profético não deve perder a audácia do não e do sim concretos. 

Notas

[1] Paul Tillich, “Kairos II. Idées à propos de la situation spirituelle du temps présent”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 253-267. “Kairos II, Ideen zur Geisteslage der Gegenwart”, Die Widerstreit von Raum und Zeit, Gesammelte Werke VI, 1963, pp. 29-41. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier. 
[2] Paul Tillich, “Kairós II”, in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), op. cit., pp. 259-260. 
[3] Paul Tillich, “Kairós II”, in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), op.cit., p. 260. 
[4] Martin Leiner, “Mythe et modernité chez Paul Tillich”, in Marc Boss, Doris Law, Jean Richard (ed.), Mutations religieuses de la modernité, Actes du XIVe. Colloque International Paul Tillich, Marselha, 2001, Hamburgo, Londres, LIT, 2002, p. 13. 
[5] Paul Tillich, La Décision Socialiste, op. cit., p. 17. 
[6] Marilena Chauí, Brasil, mito fundador e sociedade autoritária, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 9. 
[7] Paul Tillich, “Kairós II”, op.cit., p. 260. 
[8] Mary Ann Stenger, “La justice créative dans les écrits de Tillich sur le socialisme et dans ‘Amour, pouvoir et justice’”, in Etudes théologiques et religieuses, ETR, 79o. ano, 2004/4, p. 527, Montpellier, Institut Protestant de Théologie, 2004.


O pensamento político (1)

A construção do pensamento político
Introdução

Jorge Pinheiro, PhD


Quando se levanta a pergunta pelas raízes do pensamento socialista, faz-se necessário ir mais fundo, porque o socialismo é um movimento de mão dupla: de oposição à sociedade burguesa, mas enquanto mediação uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo possibilita entender as raízes do pensamento político que lhe deram origem. 

Por isso, é necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio ser humano. Para ele, sem uma imagem do ser humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento. Sem uma teoria do ser humano não se pode construir uma teoria das orientações políticas. 

Um dos conceitos trabalhados por Paul Tillich é especialmente importante para a construção de nosso referencial teórico: o de socialismo religioso. O socialismo religioso, teorizado por Paul Tillich, parte da consideração de que as forças demoníacas da injustiça, do orgulho e da vontade de poder jamais serão completamente erradicadas da história. Como conseqüência, o socialismo religioso acredita que a corrupção da situação humana[1] tem raízes mais profundas do que as meras estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano.[2] 

Para o socialismo religioso, por isso, o momento decisivo da história não foi o surgimento do proletariado, mas o aparecimento do novo sentido da vida na automanifestação de Deus. Essa é uma diferença central com o pensamento de Karl Marx e do marxismo posterior. Para Tillich, é tarefa do socialismo religioso fazer a crítica, trazer à tona as questões últimas e decisivas da sociedade. Assim, o socialismo religioso se faz radical e revolucionário, porque vê a crise social do ponto de vista do incondicionado e a partir do espírito crítico do profetismo e com os métodos do marxismo é capaz de entender e transcender o mundo atual.[3]

Em 1936, Tillich explicou sua visão do socialismo religioso dizendo que não é de surpreender que suas idéias anteriores sobre os papéis da religião e da cultura, sobre o profano e o sagrado, sobre a heteronomia e a autonomia fossem incorporadas à sua compreensão do socialismo religioso, que se tornou o ponto central de todo o seu pensamento.[4] 

O socialismo forneceu a Tillich fundamentos teórico e prático, quando se esforçou para elaborar uma filosofia da história a partir da teonomia. Assim, ao analisar o conceito de tempo histórico, enquanto diferente dos tempos físico e biológico, desenvolveu um conceito de história, onde entrava um componente: o movimento em direção ao novo, que é por sua vez exigência e espera. Esse conteúdo do novo em direção à história, que se movimenta e que pode ser visto através dos acontecimentos, ele chamou de “centro da historia”. E agregou: “do ponto de vista cristão o centro é a aparição de Jesus, o Cristo”.[5]

As correlações entre a religião e a política

Religião e política, para Tillich, não são realidades estanques, isto porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Pensamento político é a expressão de um ser político, de uma situação social. Não se pode entender o pensamento quando se subestimam as realidades sociais das quais vem o pensamento político. 

As raízes do pensamento político não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende de uma situação social, grupos ou formas de dominação determinadas, pois dependem de estruturas sociopsicológicas, da interação com a situação social objetiva. Assim, o primeiro referencial é o ser. Nesse sentido, Tillich trabalha com uma fenomenologia política quando analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político.[6] 

E a questão do ser, presente na teologia, leva a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial é traspassada pela religião, que é a dimensão da profundidade, o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano. A metáfora profundidade significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. Assim, a religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano.[7]

Nem sempre é necessário perguntar pelas raízes de um fenômeno social, mas quando a existência está sob risco, então é necessário perguntar quais são suas raízes? É necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio ser humano. Sem uma imagem do humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser político. 

Sem uma teoria do humano, não se pode construir uma teoria das orientações políticas. Mas, o ser humano, diferente da natureza, é um ser dividido. Não importa saber onde termina a natureza e onde começa o humano, não importa que a passagem entre os dois se faça através de lentas transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara. Há, no entanto, um processo vital indiviso, que desdobra a natureza sem interrogar nem requerer, um processo que está ligado àquilo que se encontra nele e faz parte do que ele é. Assim, existe um processo vital que deseja saber sobre o humano, e que coloca algumas questões para ele: já não é indiviso, mas também dividido. É idêntico a si mesmo quando diante de si mesmo, no ato de pensar e de conhecer. Mas não apenas isso.

O ser humano tem consciência de si mesmo, ou em outras palavras, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se um ser consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o humano não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente ou corpo e alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade. Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do pensamento político. Elas negam qualquer dedução do pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão. 

O pensamento político vem do ser humano enquanto unidade. Está enraizada no ser e na sua consciência, mais precisamente em sua unidade indissolúvel. É por isso que não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, o imbricamento de pulsões e interesses, os constrangimentos e as aspirações constituintes do ser social. Mas também é impossível separar o ser de sua consciência, ou ver o pensamento político como simples subproduto do ser. 

Assim, a consciência estrutura todo o ser do homem, todo o ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas. Quando se tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica da essência humana, o que produz uma distorção no quadro geral que ele faz de si próprio, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, afirma, o conceito de falsa consciência não é possível quando a coisa que se designa é não conhecível. 

A consciência justa é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político. O ser humano se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. Mas estar no mundo enquanto realidade significa que não vem de si mesmo, que não é sua própria origem. Conforme diz Heidegger, o humano é um ser lançado. Esta situação leva o ser humano a colocar-se o problema da fonte. O que mais tarde vai aparecer como questão filosófica. Mas tal discussão é uma construção, e o mito apresenta a primeira resposta, enquanto determinante para a discussão de conjunto. 

A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo novo, que não existiu antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio. Mas, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, nos segura firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira, ser-posto no mundo supõe caminhar para a morte. 

(continua ...)

Notas

[1] “Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do homem na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista”. Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São Paulo, ASTE, 1999, p. 193. Perspectives of 19th. and 20th. Century Protestant Theology, Ed. Carl E. Braaten, Nova York, Harper, 1967. Trad. pt. Jaci Maraschin. 
[2] Paul Tillich, A Era Protestante, São Benardo do Campo, Ciências da Religião, 1992, p. 271. Trad. pt. de Jaci Maraschin. The Protestant Era, Chicago, The University of Chicago Press, 1948. “Die protestantische Ara”, Der Protestantismus als Kritik und Gestaltung, Gesammelte Werke VII, Evangelische Verlag Stuttgart, 1962, pp. 105-123. Trad. al. Walter De Gruyter. 
[3] Paul Tillich, A Era Protestante, op. cit., p. 274. 
[4] Paul Tillich, On the Boundary, An autobriographial sketch, New York, Charles Screibner’s Sons, 1966. “Aux frontières: esquisse autobiographiques“ (1936) in Documents biographiques, Paris, Genebra, Quebec, Les Editions du Cerf, Editions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 2002, p. 13. Tradução e introdução da edição francesa de Roland Galibois. 
[5] Paul Tillich, Documents biographiques, Paris, Genebra, Quebec, Les Editions du Cerf, Editions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 2002, p. 52-53. Sein Leben, Frankfurt, Germany, 1993. 
[6] Paul Tillich, “La Décision Socialiste”, in Écrits contre les nazis (1932-1935), op. cit., p. 27. 
[7] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954.


lundi 6 juin 2016

Um pastor batista!

Jovem batista, você quer ser um pastor?
Lembre-se, não basta fazer uma faculdade ou seminário teológico ... Você deve ter sido chamado, ter sido vocacionado por Deus!

Um pastor batista vive na comunidade como Jesus ...


No projeto da família cristã, o pai tem como missão ajudar a construir o bem-estar da família, provendo financeiramente suas necessidades, transmitindo valores cidadãos e cuidando para que todos tenham saúde e alegria de viver. É ele quem deve se preocupar para que a família se desenvolva física, moral, social e espiritualmente.

Na comunidade cristã local, cabe ao pastor orientar o povo. A função do pastor é ouvir, orientar e reunir as famílias, atender os doentes, administrar os memoriais e transmitir a Palavra. As tarefas ministeriais do pastor batista são:

1 Pregar a Palavra.
2 Celebrar os cultos de adoração ao Deus trino.
3 Liderar o povo de Deus.

O povo testemunha sua fé e a Palavra de Deus, publicamente, através da vida cotidiana. O pastor tem o dever de ensinar o Evangelho ao povo, convidando-o a uma vida piedosa e santa.

O pastor serve os memoriais entregues por Jesus, a Ceia do Senhor, que nos remete, enquanto celebração, ao sacrifício vicário do Cristo; e realiza o Batismo bíblico, que é testemunho público da aceitação do Cristo como Salvador e Senhor. Mas também procura levar alívio e consolo aos enfermos, realiza a cerimônia religiosa do matrimônio, que confere à união dos esposos a bênção do Deus trino, e é quem também realiza o culto fúnebre, a fim de lembrar a familiares e amigos que a vida é passageira como o orvalho da manhã e que todos prestaremos conta de nossas vidas ao Criador. 

O pastor batista prega a Palavra, exorta e orienta com amor. Sob a unção do Espírito alimenta espiritualmente o rebanho entregue a ele pelo Senhor Jesus, vive uma vida digna, cuida com carinho de sua família e, através do exemplo, ensina suas ovelhas a tornarem-se fraternas e solidárias.

vendredi 3 juin 2016

Poder e secularização

Uma análise do conservadorismo político evangélico
no Brasil, a partir de Poder e Secularização, as categorias do tempode Giacomo Marramao

Jorge Pinheiro [1]


Em 1983, o cientista político italiano Giacomo Marramao[2] lançou Potere e secolarizzazione [3], em que de forma contundente trabalha a controvérsia sobre tempo pagão e tempo cristão e, como consequência, a questão das imagens do mundo e as representações do tempo.

No Brasil de hoje e, sem dúvida, no mundo da globalidade, podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para crentes e não-crentes, mas agora com a criação e combinação dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, os ritmos e tempos se interpenetram.

O conceito secularização não é apenas uma metáfora, que expressa o distanciamento progressivo da esfera religiosa enquanto poder, já que seu significado semântico continua em permanente construção. Para Marramao (1997), "a impossibilidade de reconduzir essa noção a uma concepção unitária não depende meramente, como no caso de outros termos característicos da modernidade, da sua polissemia ou polivalência semântica", mas necessita de uma "estrutural ambivalência de significado, a qual dá lugar a premissas antitéticas ou diametralmente inversas". [4]

Assim, o paradoxo maior da secularização mostra-se enquanto conflito Igreja versus secularidade, já que a Igreja assume uma caráter burocrático e a secularidade, cada vez mais, discute, opina e legisla sobre questões religiosas. Ou seja, há ou não um interseccionalidade de valores? A Igreja, e aqui estamos a falar dos evangélicos brasileiros, posa enquanto institucionalidade estatal e a secularidade cria características religiosas.

Assim, é de se entender que a secularização, enquanto fenômeno interseccional, possui significado de afirmação e de oposição entre o espiritual e o secular. Dessa maneira, a secularização se apresenta hoje, na hipermodernidade sob três formas, o princípio da ação eletiva, o princípio da diferenciação/especialização progressiva, e o princípio da legitimação. E se falamos do princípio da ação eletiva, estamos a falar da emersão progressiva da pessoa na busca do significado do seu "eu" e da "consciência de si mesmo". Por isso, para Marramao (1995), "este aspecto comporta um modo cultural particular de estabelecer a linha de demarcação entre subjetividade e objetividade e, portanto, de construir a realidade social."

Já o princípio da diferenciação/especialização progressiva nos mostra que quando o princípio eletivo se torna afirmativo, a adoção do critério de escolha fica em aberto. Esse critério de escolha está no âmbito da racionalidade instrumental, assim, Marramao (1995) nos dirá que "a consequência disto é a relação estreitamente biunívoca que a se instaurar entre secularização e aumento de complexidade do mundo social."

Ao analisar a politica evangélica no Brasil, dois autores traçam linhas bem demarcadas, sobre como se lançaram contra os direitos civis, democráticos, seculares. Para Cowan, “a direita política evangélica no Brasil tornou-se presuntiva, mas foram prefiguradas durante os processos simultâneos de redemocratização nacional e de politização evangélica na década de 1970. 

Nesta encruzilhada, os líderes de várias denominações religiosas adotaram a linguagem de uma crise moral aguda, lançando as bases para uma direita evangélica. A própria crise moral tornou-se “nosso terreno”, o ponto de inserção dos evangélicos de direita na esfera política, e uma das várias questões-chave que dividem evangélicos reacionários e seus correligionários progressistas. Até o momento da Constituinte, a posição dos Batistas e Assembleianos, como vozes dos conservadores que apoiaram amplamente o regime militar e se opuseram às iniciativas de justiça social do ecumenismo de esquerda e ao comunismo, tinha sido estabelecida após anos de pronunciamentos que ligavam essas questões à crise moral.” [5]

E para Carneiro, “no Brasil, a formação da Assembleia de Deus por missionários suecos trouxe o que já se chamou de uma mistura do pietismo sueco com o patriarcalismo nordestino forjando a imagem popular do rigorismo do “crente” como alguém abstinente de todos os prazeres e de vestuário austero, que não gostava de dança nem de música e menos ainda de adornos corporais.

“Os novos cultos pentecostais acrescentaram, além dos elementos de transe e de práticas extáticas e de possessão, uma relativa abertura para um aggiornamento que levou algumas igrejas a se especializarem em segmentos jovens, de surfistas, rockeiros, etc. A diversidade de congregações traz as mais diversas atitudes, mas permanece nos grupos dominantes a identidade comum de abstinência como valor de pureza cristã. Quando essa atitude se torna um lobby político elegendo parlamentares e até candidatos presidenciais com a intenção de impor à sociedade os critérios particulares dessas igrejas estamos diante de um tipo de fundamentalismo religioso.

“No Brasil, o evangelicalismo evoluiu cada vez mais para a direita ao longo do período ditatorial e pós-ditatorial, constituindo o que já foi chamado de uma “nova direita” baseada na reação moral e cultural. Na ditadura houve uma distinção clara entre setores protestantes e evangélicos democráticos que se opuseram ao regime, como o pastor presbiteriano James Wright, fundador do Brasil Nunca Mais, e os grupos mais conservadores e anti-ecumênicos que apoiaram os governos militares.

“Esta ala direita se aproveitou de benesses do regime, cresceu e predominou. Sua atuação política mais destacada se deu em torno ao combate à pornografia, o alcoolismo, o tabagismo, o jogo, o divórcio, e a emancipação feminina. Defensores de que o lugar da mulher é no lar, se juntaram à Igreja Católica para se opor ao controle populacional e aos anticonceptivos.” [6]

Mas temos que ver, a partir de Marramao, que tal realidade se expressa de forma imagológica na política, fazendo com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelacem e produzam, como diz Giner, “mutações na vivencia e qualidade desses tempos”. [7] Assim, a bancada evangélica, presente hoje no Congresso brasileiro, expressa produções imagológicas de tempos, que apesar de suas volatilidades, acumulam de forma caleidoscópica mudanças no momento presente.

Em seu livro Passagem ao Ocidente, filosofia e globalização, de 2003, Marramao faz uma análise do pensamento contemporâneo e como este se debruçou sobre a investigação da globalização. Mas procura evitar a ocidentalização da abordagem, delineando uma política global.

Assim fez leituras de F. Fukuyama e Kojève e, consequentemente, ao fim da História e à universalidade do individualismo competitivo. Atravessa, então, o conflito de civilizações que, após o colapso do Muro de Berlim, viu o globo mergulhado num conflito intercultural mundial. E, chegou com S. Latouche, à concepção da expansão planetária de dominação da tecnologia sob o controle da razão instrumental.

Mas, para Marramao, a globalização deve ser vista como pressuposto típico da modernidade, na transição de um mundo fechado a um universo circum-navegável, que possibilita o encontro, mas também o choque de culturas, levando a sociedade a ser transformada por esse encontro diário, que se espraia a partir das megalópolis, mas que permanentemente desafia a nossa identidade.

No percurso dessa compreensão da globalidade, vai além da crise do Estado-nação, agora personificada pelo Leviatã democratizado de John Rawls[8]. Aqui temos a reconstrução do princípio de universalidade da diferença, que se dá em esfera global, onde o mundo aparece como presença-imagem da racionalidade técnica e econômica, que influencia tudo e todos através da criação de um modelo único de sociedade e pensamento. E que, ao mesmo tempo, tira proveito da riqueza das diferenças para construir uma globalidade cosmopolita, onde todos podemos cultivar nossos politeísmo de valores. 

Mas globalidade e temporalidade, para Marramao, estão imbricadas. E para chegar à sua construção da temporalidade da globalização, fez a reconstrução das concepções de tempo nascidas na reflexão ocidental a partir da análise de Timeu de Platão, até chegar às discussões sobre a flecha do tempo na física. Mas, construindo uma reflexão sobre temporalidade/identidade, onde busca os pontos de contato entre as abordagens focadas na pessoa e as sociais.

Assim, faz a crítica da sociedade contemporânea, onde o presente é dominado pelo movimento incessante, onde ninguém consegue saborear o presente. E reconstrói a etimologia do tempo latino, onde são colocados o sentido interno de tempo, a síndrome temporal da pressa e a busca insana para se recuperar a posse da existência.

Donde, o tempo kairós, tão caro à escatologia judaico-cristã, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. Isto porque o tempo privado deixa de ser humano e passa a depender de condições e variáveis que incluem desde a situação mundial às situações físicas e psíquicas, plasmando tempos esmagam pessoas e comunidades.

Dessa maneira, a síndrome da pressa, do tempo que falta, tornou-se parte do projeto moderno, numa racionalização da escatologia judaico-cristã, onde se busca o fim último do domínio da razão instrumental. Essa homogeneização, que se procura planetária, responde à síndrome da pressa repetindo, eternizando, a mesma cena neurótica, por não ser capaz de parar, considerando normal chegar sempre fora do tempo certo, tarde demais, vivendo a angústia e o trauma permanente da perda da oportunidade certa.

Mas este projeto moderno, afirma Marramao, está em crise, e devemos olhá-lo com distanciamento, superando Weber, já que a racionalidade instrumental é um fenômeno típico do Ocidente, que não surgiu em nenhuma outra cultura, nem mesmo na China. É com este distanciamento que devemos analisar o capitalismo, nos debruçando sobre outras culturas, humildes na certeza de que têm algo a dizer e que podem nos ensinar a escapar da sociedade contemporânea e aprender a viver no presente, debruçados sobre um presente escatológico, renunciando à idéia de que lá na frente algo bom e definitivo deve acontecer.

Michael Löwy trabalha esta questão a partir de uma leitura weberiana, o que matiza os contornos aparentemente demoníacos da presença evangélica na política brasileira. Para ele, “os evangélicos são, no fundo, uma religião mágica. Eles acreditam que, fazendo certos rituais, orações ou mesmo dando dinheiro para a igreja, terão seus problemas resolvidos. Isso, para parte da população, sempre foi assim. Mas devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família, é fato. Por outro lado, essas igrejas são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas e, na maioria das questões sociais, regressivas. Além do quê, desenvolvem uma pretensa teologia da prosperidade que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo, que é bastante negativo.” [9]

Ou seja, podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente agradáveis e facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura, que nos leva, a partir de Marramao, a falar de conflitualidade endêmica do mundo e, como consequência, dos dilemas que traz para a política e para a religião. 

Ou como diz Barrera, “a contraposição mecânica entre a efervescência religiosa, que carateriza hoje as sociedades latino-americanas, e o conceito de secularização leva ao erro comum de negar o processo de secularização e esconde uma superficial compreensão do conceito. Muito pelo contrário, a discussão de conceitos como “secularização”, “desencantamento do mundo” e “saída da religião” mostram que é precisamente nas sociedades secularizadas onde tornou-se possível a pluralidade religiosa que, ao nosso ver, é a maior evidência do enfraquecimento da influência social do outrora poder institucional religioso“. [10]


Notas

[1] Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). É professor de tempo integral na Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Jornalista Profissional. Atua na área de Ciências da Religião, com especialização nas relações entre religião e política, e filosofia, teologia e cristianismo. 
[2] Nasceu em Catanzaro, a 18 de outubro de 1946, e é filósofo, professor de Filosofia Política na Universidade de Roma III, diretor da Fundação Lelio Basso e membro do Colégio Internacional de Filosofia em Paris. Seus estudos se iniciaram com o marxismo e atualmente versam sobre questões políticas, culturais e simbólicas da globalização. 
[3] Giacomo Marramao, Poder e secularização, as categorias do tempo, São Paulo, UNESP, 1995. 
[4] Saulo Barbosa, A secularização e seus problemas conceituais. webartigos.com. Acesso 03/10/2015. 
[5] Benjamin Arthur Cowan, Nosso Terreno, crise moral, política evangélica e a formação da “Nova Direita” brasileira, VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 30, no 52, pp.101-125, jan/abr 2014. 
[6] Henrique Carneiro, O proibicionismo na gênese do evangelicalismo na política: a nova direita. WEB: blogconvergência.org. Acesso 03/10/2015. 
[7] Salvador Giner in Marramao, op. cit., p. 13. 
[8] John Rawls, A theory of justice, Steven M. Cahn (ed.), 1999. 
[9] Michael Löwy, À brasileiros, sociólogo Michael Löwy propõe outra alternativa: o ecossocialismo. WEB: Brasileiros. Acesso em 03/10/2015. 
[10] Paulo Barrera Rivera, Desencantamento do mundo e declínio dos compromissos religiosos. A transformação religiosa antes da pós-modernidade. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p.87-104, out 2002.

Imago Dei, uma introdução necessária

Uma introdução necessária
Jorge Pinheiro, Phd


Para estudar e pensar a teologia do ser humano, ou seja, a imago Dei, devemos nos debruçar sobre questões fundantes para este estudo: o desafio do Cristo, o desafio do humano e o desafio da interpretação. Mas, ainda assim, é necessário pensar duas outras questões que estão imbricadas numa relação causal e definitiva -- revelação e teologia.

E nessa introdução necessária, desejamos analisar com você, caro leitor, ainda que a voo de pássaro, o fato de que a teologia que nasce dos textos antigos da tradição hebraica muitas vezes é abordada apenas sob um de seus aspectos, a auto-manifestação da divindade, deixando de lado seu aspecto fundante: de que nos textos primeiros da teologia judaico-cristã estamos diante de um diálogo, pois toda construção desses textos implicou em interação, na existência de um personagem, que muitas vezes deixamos de ver sua centralidade, a espécie humana, que não somente participa do diálogo, mas vive. E é a partir daí, da teologia que nasce da construção dos textos antigos enquanto diálogo, que deve partir toda e qualquer análise da imago Dei, enquanto teologia do ser humano.

A questão antropológica no processo da construção dos textos antigos da tradição hebraica é determinante, pois não basta ouvir, o desafio é viver. Nesse processo desigual e combinado presente nos textos antigos da literatura hebraica podemos distinguir elementos que se sobrepõem e se complementam. Dentre eles, o mais fascinante é a questão do significado e da significação que estes textos constroem na história do povo hebreu e por extensão no imaginário da tradição cristã. A construção dos textos antigos da tradição hebraica dá-se através de um processo de adequação histórica e linguística.

Entretanto essa construção não demanda unicamente a apreensão de uma determinada realidade. Faz-se necessário que esta realidade seja lida através de uma construção de análise e síntese. Como premissa fundante, temos que reconhecer uma justaposição entre compreensão intuitiva e conhecimento discursivo. A compreensão intuitiva vem de imediato à mente sem que se tenha à frente uma determinada realidade, palpável e visual, ao passo que o conhecimento discursivo requer passar de algo conhecido, através de uma série de juízos, à apreensão do ainda não apreendido. Ao primeiro processo chamamos juízo sintético e ao segundo juízo analítico.

Tal construção dos textos antigos hebraicos não se deu simplesmente como processo de adequação da mente humana, individual e coletiva, ao novo que lhe era apresentado. Impôs-se que o novo inerente ao processo cognoscitivo tivesse um significado. Uma relação em que o ser humano operou como ser significante e o novo como significado. Desta forma, a construção dos textos antigos não se processaram entre realidades que não são históricas, mas em relação espacial e temporal, exigindo para que a interação entre o ser humano e a realidade se estabelecesse como algo maior, alguma coisa além de ambos, da pessoa coletiva e da própria realidade em que estava situada esta coletividade, deixando assim de ser causal e tornando-se essencial. 

No processo da construção dos textos antigos o ser humano, enquanto pessoa e coletividade, também encontrava-se em construção, pois não havia senhorio pleno do processo. Era um ser colocado no tempo e no espaço, que estabelecia relação com a realidade que o circundava, que o cercava dentro do processo cognoscitivo enquanto dimensão humana e histórica.

Outro pressuposto é a natureza genética da linguagem, que se encontrava em constante construção. Dessa maneira, significante e significado estavam intimamente ligados à linguagem, enquanto construção cultural e histórica. Assim, compreendemos que dependendo da utilização de determinado objeto ou realidade o ser humano constrói conhecimento de determinada forma e no processo pode construir conceitos diferentes a partir de um objeto ou realidade anteriores. Podemos inferir ao que isso conduz. 

A construção dos textos antigos está ligada à vida do ser humano, já que será a própria experiência humana que agregará valor ao objeto ou realidade antes conhecidos e vividos. Dessa maneira, o velho gerará o novo, uma essência que transcende, uma universalidade, a partir da própria experiência de vida, que teologicamente podemos chamar de obediência ao mandamento de Deus. Mas ainda não definimos a importância do ser significante e do significado dentro do processo da construção dos textos antigos. Se tal construção é histórica, é importante notar que ela própria age sobre a vida humana, pessoal e coletiva, sobre a historicidade do ser humano. 

E mais do que isso, ao definir a historicidade humana muda o próprio meio onde o ser humano vive e atua. Dessa forma, a construção dos textos antigos cria processos de formação, escalas de valores, normas e condicionamentos. E é aí que reside toda a problemática dessa construção enquanto conhecimento: como o ser humano, a partir da construção dos textos, num primeiro momento presa à oralidade e só depois gravada em pedra e registrada em manuscritos, pode conhecer a Deus e dar um sentido ao mundo que o cerca, assim como achar seu papel dentro de todo esse complexo?

A verdade da construção dos textos antigos é o significado que uma determinada realidade tem para a comunidade e a pessoa. Há uma construção intuitiva, quando a experiência da própria construção produz uma interação entre o humano, pessoal e coletivo, e a divindade, sem que essa experiência necessariamente influa no processo discursivo de conhecimento. Mas mesmo neste caso o ser humano não abandona ou perde sua formação. Não deixa de ser aquilo que é: pessoa inserida em determinada comunidade. Mesmo quando esse processo dá-se sem elaboração discursiva, é intuitiva, o ser humano está condicionado pela historicidade de ser cognoscente. 

E dentro dessa condicionante sempre se processa a interação ser humano e realidade. Aqui, afetividades e sentimentos, que geralmente passam despercebidos, são realçados. Isso porque nesse momento específico, determinada realidade passa a ter significado, que mesmo não sendo inerente, exige que se lhe dê um. E nesse caso o conhecimento da construção faz do ser humano um ser significante. Assim a construção dos textos antigos dá ao mundo um significado imanente. 

O ser humano, enquanto pessoa e comunidade, através da construção do texto passa a ter significado, contudo este conhecimento e o significado dado não se dão sem história, mas dentro das limitações de sua própria obediência dos limites e regras que vão sendo definidos. Podemos, então, concluir que a partir da construção da antiga literatura hebraica, teológica e religiosa, o ser humano torna-se significante na construção da comunidade, pois através do conhecimento construído é ele quem historicamente pode modificar causas e efeitos, imprimindo ao processo nova direção.

Como se processa a relação entre significado e significante quer no caso isolado da interação entre ser humano e realidade, quer no caso de todo o processo da construção dos textos antigos? Se dentro do conhecimento da construção do texto o ser humano é um ser significante podemos, então, ver que a escala de valores do sistema ético, oferecido por esta construção à comunidade, torna-se parte integrante do significado dado ao mundo pela própria construção. Portanto, dentro de uma interação significante/significado existem elementos dinâmicos de transformação. O universo é o mundo do ser humano, em que ele constrói seu habitat. Através do significado dado pelo ser humano à natureza, dentro de um significado de utilização que lhe empresta, ele atua sobre ela produzindo cultura e transformação.

A construção dos textos antigos, enquanto relação entre significante e significado é dialética. Pois se ela faz da pessoa e da comunidade ser significante, permite a ambas transferir ao mundo que as cercam a cosmovisão que utiliza essa mesma significação. Ao fazer significante a sua realidade, o ser humano dá origem a transformações, engendra causas e passa à construção do futuro, já não como sonho, mas como realidade. Para viabilizar tais transformações é necessário que transfira, enquanto comunidade, novos significados aos processos históricos e sociais. Através da relação estabelecida entre significante e significado encontraremos as causas de conotações. 

Um dos exemplos desse processo encontramos no livro das Origens, quando a divindade ordena a circuncisão do clã de Abraão. A circuncisão, antes um costume presente em algumas tribos da Palestina, recebe a conotação de aliança. E a circuncisão, enquanto aliança, passa a ser marca de uma comunidade especial, separada, é mandamento do Eterno. Mas isso só acontece historicamente, quando pessoas e comunidade vivem tal ordenança. É, então, que a circuncisão faz de cada homem hebreu significante dessa construção, dando significado cultural, histórico e teológico ao ato de corte do prepúcio. 

Nesse sentido, revelação traduz o processo de construção dos textos antigos judaico-cristãos, conforme exposto acima, e, por isso neste trabalho damos a devida importância à linguística e à antropologia, para podemos construir uma teologia do ser humano, enquanto imago Dei. Por isso, consideramos que quando deixamos de colocar os desafios do Cristo, do humano e da interpretação em diálogo com a imago Dei compreendemos de forma fraturada questões fundantes quanto ao destino humano. 

Por isso, assim definimos nosso caminhar na construção dessa teologia do ser humano, construída com três momentos: o metodológico, o da leitura dos textos antigos, e o contextual-contemporâneo, quando a teologia do ser humano invade nossa vida, como desafio de ação e transformação.

Assim, desejamos que o leitor compreenda este processo de construção dos textos antigos, enquanto desafio ético, e possa caminhar nesta teologia do ser humano, que desafia à ação e transformação.





lundi 30 mai 2016

Il n'y a pas trace de péché originel dans le récit de la genèse

http://www.lemondedesreligions.fr/savoir/il-n-y-a-pas-trace-de-peche-originel-dans-le-recit-de-la-genese-19-05-2011-1516_110.php

INTERVIEW

"Il n'y a pas trace de péché originel dans le récit de la Genèse"

Rencontre avec James Kugel, professeur émérite de littérature hébraïque à l’université de Harvard et enseignant à la Bar Ilan University de Jérusalem, à l’occasion de la parution de son livre, La Bible expliquée à mes contemporains.

"Il n'y a pas trace de péché originel dans le récit de la Genèse"

En quoi est-il important de connaître et comprendre la Bible aujourd’hui?

Depuis cent cinquante ans, il y a eu une révolution dans notre connaissance de la Bible. Le monde dans lequel elle a été créée est désormais accessible, grâce à l’archéologie, la philologie sémitique ainsi que toutes les autres sciences appliquées à la Bible.

Le milieu universitaire propose désormais une conception tout à fait nouvelle de ces textes et de leurs significations. J’ai voulu rendre le fruit de ces recherches accessible au travers de mon livre, mais j’ai cherché en même temps à les voir dans une perspective plus large, celle de l’histoire de l’interprétation biblique.

Le livre porte, dites-vous, sur "l’intelligence de la Bible de deux points de vue radicalement différents, celui des anciens interprètes et celui des biblistes modernes". Expliquez-nous.

Je crois que le deuxième courant est plus ou moins connu, et la plupart des gens savent qu’il y a eu une révolution quant à l’étude moderne de la Bible. Par contre, la Bible telle qu’elle était lue dans les milieux religieux, soit chrétiens soit juifs, est tout à fait différente. Elle a elle-même été modifiée par un acte de réinterprétation qui s’est opérée dans l’Antiquité, vers la fin de la période biblique.

A dire vrai, cette relecture des textes bibliques (dont une grande partie remontait déjà à plusieurs siècles auparavant) était aussi radicale que celle des chercheurs modernes, et la transformation du sens apparent de ces textes n’était guère moins significative.

Il existait en effet plusieurs écoles d’interprètes, à la fin de la période biblique, entre le IIIe et le Ier siècles avant l’ère chrétienne, dont le but était de modifier le sens évident du texte, en faveur d’une lecture plus actuelle et souvent plus moralisante. Pour ce faire, ils cherchaient partout un sens caché derrière le sens apparent.

L’un des exemples parmi beaucoup d’autres, c’est l’histoire d’Adam et Eve. Tout le monde sait que cette histoire traite du péché originel et de la chute de l’homme. Au début, Adam et Eve étaient censés vivre une vie éternelle et sans péché dans un merveilleux jardin.

Mais le diable, sous la forme d’un serpent, serait venu tenter Eve avec la pomme de l’arbre interdit, et aurait provoqué la chute de ce premier couple d’humains, et depuis, les hommes vivent une vie mortelle et douloureuse. Tout le monde connait cela, pourtant, aucun de ces détails ne figurent dans le récit de la Genèse.

Il n’y a pas trace de péché originel, ni de la "chute de l’homme". Le texte ne parle jamais d’une existence éternelle, il n’y a pas non plus trace de diable, mais seulement d’un serpent parlant. Même la présentation du fruit comme une pomme ne se trouve pas dans le texte. Tous ces détails sont le fait des anciens interprètes, et ils se sont imposés sur le récit biblique et continuent à s’y imposer de nos jours.

L’Ancien Testament est rempli d’exemples similaires : l’interprétation traditionnelle a présenté Abraham comme le premier monothéiste et Jacob comme "Jacob le Juste", mais un examen scrupuleux de l’Ecriture révèle que ces idées ne proviennent pas du texte écrit. A nouveau, elles sont le fruit des anciens interprètes.

Comment ces interprétations du texte biblique ont-elles été véhiculées?

Des commentaires bibliques apparaissent déjà dans les manuscrits de la mer Morte et chez Philon d’Alexandrie par exemple. Pourtant, la forme choisie par les anciens interprètes n’est pas celle du commentaire, mais plutôt le choix de raconter d’une nouvelle manière le texte.

Cela fonctionnait au niveau de la phrase, en substituant par exemple un mot actuel à un mot désuet, afin de rendre accessible le texte. Mais cela se passait surtout au niveau du récit. Des choses qui n’étaient pas comprises, dans la Genèse ou l’Exode, étaient racontées avec toute sorte de détails inédits.

On trouve cela dans le Livre des Jubilés par exemple, un texte apocryphe rédigé au début du IIe siècle avant l’ère chrétienne, et qui raconte presque tout le livre de la Genèse et une partie de l’Exode avec des détails nouveaux.

Je crois que l’homme qui l’a écrit avait l’intention qu’on l’accepte comme partie intégrante du corpus mosaïque. D’ailleurs, le texte est écrit en imitant de manière très rigoureuse l’hébreu biblique, une langue qui n’était plus d’usage quotidien pour l’auteur et ses lecteurs.

Comment la recherche biblique moderne et le judaïsme ou le christianisme traditionnel peuvent-ils se concilier?

Dans le judaïsme comme dans le catholicisme, l’interprétation biblique a toujours été quelque chose de très traditionnel, et le vrai sens du texte était dans une large mesure celui des anciens interprètes. Les deux religions ont donc résisté aux connaissances modernes, qui dans une grande mesure s’opposaient a l’interprétation traditionnelle.

Par contre, le protestantisme était dès le début beaucoup plus positif vis-à-vis la nouvelle connaissance de la Bible; celle-ci leur offrait un argument de poids pour dénigrer l’autorité du pape, et elle entraînait un réexamen des doctrines chrétiennes les plus fondamentales, ce qui était après tout l’un des buts principaux de la Réforme.

Il est vrai que dans les dernières cinquante ou soixante années, le catholicisme et le judaïsme réformé se sont montrés plus ouverts vers cette nouvelle connaissance de la Bible, mais le judaïsme orthodoxe a continué à lui tourner le dos. A mon avis, on ne peut pas ignorer l’existence de ce que l’archéologie, la philologie et les autres disciplines ont pu découvrir à propos de la Bible.

Personne ne veut faire partie d’une religion qui ferme les yeux face à la réalité. Mais en même temps, la substitution de cette nouvelle compréhension archi littérale du texte représente une déformation de ce que la Bible a toujours été. Dès le début, avant même que les dernières parties de l’Ancien Testament aient vu le jour, et bien avant que le canon biblique ait été fixé de façon définitive, on lisait ces textes de la manière autorisée par les anciens interprètes.

La Bible ne se réduisait jamais aux seuls mots sur la page. La chose est tout à fait claire en ce qui concerne le judaïsme. L’idée principale du judaïsme comme religion, c’est que toutes les actions de chaque homme et femme dans la vie quotidienne devraient être adressées à Dieu. Pour ce faire, il existe la Bible, bien sûr, qui sert de guide.

Mais le judaïsme ne se réduit jamais à ce qui est écrit dans le Pentateuque. Il y a des bénédictions, des prières, à réciter, et tous les autres actes -rituels et autres- à faire au long de la journée, en passant par une multitude de prescriptions pour le shabbat, les fêtes, etc. En obéissant à ces lois, en s’y conformant au mieux, on tourne -en théorie tout du moins- son attention vers Dieu.

Pour ce faire, le texte littéral de la Bible n’était qu’un point de départ, et très souvent, il était évident que l’on ne pouvait pas prendre le texte au pied de la lettre. Dans le livre, je donne l’exemple de la fameuse loi du talion, où l’injonction œil pour œil est réinterprétée par les rabbins dans le sens contraire.

Un œil perdu doit être dédommagé, mais en aucun cas vengé par le même acte. On retrouve toujours, dans les interprétations, cette idée que le texte dit ceci, mais qu’en vérité il signifie cela. Et bien souvent entre le texte et son interprétation, de grandes différences se font sentir.

Existe-t-il un danger à séparer la science biblique moderne, qui permet de contextualiser historiquement, d’une compréhension selon laquelle tout ce qui est écrit doit forcément s’appliquer directement à notre vie d’aujourd’hui?

Ce danger existe surtout en l’absence d’une interprétation traditionnelle, car tout est alors ouvert. On a par exemple vu, surtout après la Réforme protestante, des interprétations justifiant la peine de mort pour la violation du shabbat, ou qui légitimaient l’esclavage par exemple.

A dire vrai, je crois que ce danger peut surgir même dans les milieux de l’interprétation la plus traditionnelle. Quiconque connaît l’histoire de l’interprétation biblique sait, hélas, que les gens ont toujours eu tendance à détourner le sens du texte pour favoriser leur propres idées politiques et autres.

Est-ce que la science biblique moderne n’a pas tendance à diminuer la force de la Bible pour les lecteurs contemporains?

Si notre texte n’est que le produit d’auteurs et de rédacteurs anonymes, et si ce qu’il raconte est contredit par nos connaissances en histoire, science, etc., comment peut-on continuer à prétendre qu’il s’agisse d’un texte inspiré par Dieu? J’ai coutume de dire que l’inspiration divine, qui, pour les croyants, définit le texte, est la seule chose sur laquelle la recherche moderne n’a rien à dire. Car, en effet, comment pourrait-on distinguer un texte avec ou sans inspiration de Dieu?

Cela n’est évidemment pas possible, et il est tout à fait raisonnable d’accepter l’existence d’éditeurs, de rédacteurs humains, sans abandonner la croyance en l’inspiration divine du texte. Cela signifie que la science biblique n’est pas un danger pour le croyant, puisque l’une et l’autre ne s’occupent pas du texte sur le même plan. Chacun considère le livre, la Bible, à un niveau différent.

Pour aller plus loin

James Kugel, La Bible expliquée à mes contemporains (Bayard, 1003 p., 49 euros