Travessias da leitura
... ou para entender Olavo de Carvalho
Jorge Pinheiro, PhD
Primeira parte
O desafio maior para quem
lê é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar o texto em sua
aparente literalidade geralmente leva a um caminho oposto àquele que se
pretende. Ou seja, é necessário atravessar o texto por diferentes caminhos. É
necessário, sem dúvida, lê-lo a partir de sua literalidade, que é nossa
primeira leitura. Mas a literalidade nos leva ao símbolo, às imagens que são
trasmitidas pelas palavras ou conjunto de palavras. Por isso, o que parece
simples e claro, geralmente não é, já que as palavras são imagens e símbolos.
Vejamos um exemplo
simples, durante séculos os cientistas descreveram o mundo como semelhante a
uma máquina, governando o mundo estavam os princípios de regularidade e ordem.
Todas as coisas pareciam a soma das partes: as causas e efeitos estavam ligados
linearmente e os sistemas se moviam de modo determinista e previsível. Mas, com
o passar do tempo, os cientistas viram que existiam fenômenos que contradiziam
a lógica linear: as formas espirais das chamas de fogo, os redemoinhos em
correntes e as formações de nuvens, por exemplo, não podiam ser representadas
por simples equações lineares.
E a travessia dos textos
bíblicos nos mostraram que, para além da linearidade do texto, existe a leitura
simbólica que nos remete às construções teológicas. Assim, se existe a
realidade imediata do “deserto” como lugar árido, seco e de difícil
sobrevivência, a imagem “deserto” nos remete ao conceito teológico de que
espiritualmente e, mesmo existencialmente, muitas vezes, somos desafiados a
através o “deserto” que não é literal, é simbólico, mas que também existe.
Por isso, falamos de
travessias do texto bíblico. Essas travessias podem ser resumidas em quatro
caminhos: o literal, o simbólico, o ético e o do futuro. Ora, quando lemos o
texto uma primeira vez, sem dúvida, somos obrigados a partir da literalidade
dele. E para mergulhar nessa literalidade devemos utilizar recursos de análise e
intepretação como, por exemplo, pesquisar as condições e época em que foi
escrito, a quem foi dirigido e com que finalidade. Mas também os recursos
literários que foram utilizados na sua construção, ou seja, verbos,
substantivos, adjetivos, e expressões idiomáticas, por exemplo. E palavras-chave
que se destacam no texto serão importantes na compreensão dessa travessia,
porque podem e devem ser cruzadas com outros textos que também utilizam as
mesmas expressões, o que nos remeterão às imagens e aos símbolos construtores
de um conceito teológico. Ou seja, como vimos no caso de “deserto”.
O conceito teológico,
porém, vai apontar para o terceiro caminho. O que essa proposta teológica está
sugerindo que eu faça? Essa terceira travessia é a da ética, que me exorta a
viver de determinada maneira, a partir da travessia teológica. E se eu vivo de
determinada maneira, a partir da ética proposta pelo travessia teológica, essa
ética aponta para um futuro. Esse é a quarta travessia do texto bíblico. É a
via que remete ao meu futuro e da minha comunidade, fruto da ética, que veio da
teologia, que nasceu da literalidade do texto.
A esse conjunto de
travessias, que fazem a riqueza da leitura e compreensão não linear do texto
escriturístico, chamo de complexidade hermenêutica. Desculpem a expressão, mas
ela encerra elementos, conjunto de informações, fatos e circunstâncias que têm
nexo entre si, mas que navegam num mar aparentemnete caótico, que pode ser
entendido como o vazio obscuro e ilimitado que precede e propicia a geração da
compreensão final do texto para a vida de uma pessoa ou de uma comunidade. Na
construção da leitura complexa do texto, partindo da literalidade, podemos ir mais
fundo ainda nesta construção da compreensão do texto se vermos complexidade e
caos como aqueles comportamentos imprevisíveis que aparecem em sistemas regidos
por leis. Assim, determinadas questões teológicas são praticamente impossíveis
de serem compreendidas numa abordagem tradicional de causa-efeito. Mas as
dificuldades, às vezes, são atribuídas à impossibilidade de se isolar os ruídos
externos ao sistema teológico como, por exemplo, os dogmas confessionais que,
muitas vezes, levam às distorções de compreensão.
A compreensão, então,
para questões teológicas nem sempre está na procura de mais informações para
tentar encontrar uma relação de causa-efeito, mas em entender quais regras
básicas regem o comportamento do sistema simbólico de nossa religiosidade
judaico-cristã, que tipo de retroalimentação existe, de que forma esta
retroalimentação atua no sistema e o tipo e duração dos ciclos de
retro-alimentação. Isso é o que chamamos de hermenêutica da dinâmica não-linear
ou hermenêutica da complexidade para uso na teologia, onde o caos se refere às
áreas de instabilidade de fronteira, o que para nós significa, em termos
teológicos, que se move entre o equilíbrio de um lado, em especial a revelação,
e a complexa situação randômica da hermenêutica.
Necessitamos a
hermenêutica da complexidade para melhor compreender a relação entre a simbologia
da revelação e a interpretação e suas expressões estruturais e organizacionais.
Essas estruturas são sistemas complexos constituídos por agentes interativos
com uma tendência aparente para a auto-organização, pois os crentes nas
religiosidades judaico-cristãs são adaptativos, de modo que as regras de seus
comportamentos mudam à medida que eles aprendem. Na verdade, esse mundo
religioso judaico-cristão não é aquele representado pela metáfora de uma
máquina. As coisas são mais do que a soma de suas partes: equilíbrio é morte,
causas são efeitos e efeitos são causas, desordem e paradoxo estão em toda a
simbologia da revelação.
Por isso, dizemos que uma hermenêutica da
complexidade deve levar em conta que se antes, na modernidade, a
interpretação foi entendida como aparato de retroalimentação negativo, que
possibilitou a construção de dogmáticas confessionais e encaminhou fiéis na
direção da correção de seus desvios do plano traçado, à luz da hermenêutica da
complexidade o quadro é mais rico. As interpretações de origem iluminista estão
corretas para leituras ligadas às rotinas do viver diário, mas no que tange à
produção criativa de conhecimento que responda às necessidades das confissões
judaico-cristãs no mundo da alta modernidade elas se encontram em crise. Os
resultados de suas ações não podem ser definidos porque a estrutura do sistema
religioso torna o futuro impossível de ser controlado. O corolário é que o
dogma viável não é o resultado de um intento prévio de um intérprete
visionário, mas emerge das múltiplas possibilidades lançadas por várias
dinâmicas em colisão entre o texto e a vida humana. Assim, nós leitores deveríamos
pensar como jardineiros e, em vez de deliberar, deveríamos trabalhar
possibilidades.
Na literatura da teologia moderna, os intérpretes
controlaram suas produções a partir de estruturas e procedimentos ordenados. Se
isso é tudo o que podemos fazer em um mundo complexo, a institucionalidade das
confissões judaico-cristãs estão destinadas a seguir o caminho do Tyrannosaurus
rex. A tentativa de estabilizar o sistema leva a torná-lo incapaz de interagir
com o mundo e possibilitar a criação de alternativas futuras. Os intérpretes
modernos enfatizaram que as culturas e os valores compartilhados são essenciais
para fazer a leitura da religiosidade judaico-cristã. Em condições dinâmicas,
onde o texto escriturístico é formado por múltiplas e variadas possibilidades,
hermenêuticas monolíticas provavelmente falharão na geração da criatividade
teológica necessária para dotar as confissões de compreensões adequadas. Por
isso, as diversidades de opiniões e abordagens são importantes. O pensamento
único, que não comporta diferentes visões, pode ter sido um dos fatores
cruciais para a crise de parte das confissões judaico-cristãs no mundo moderno
e, em especial, nas últimas décadas do século vinte. Os hermeneutas modernos
acreditaram que o sucesso das leituras do texto poderia repousar exclusivamente
na manutenção do equilíbrio interno ao texto, mas se isso fosse possível, o
próprio texto teria deixado de apresentar novidade e a liberdade da
religiosidade no século vinte deveria ter sido reduzida à escolha da adaptação
certa ou errada. Mas no mundo da complexidade hermenêutica os riscos são muito
maiores. Primeiro porque equilíbrio exclusivo e permanente da internalidade do
texto significa morte, exatamente o contrário do que pensava a velha
hermenêutica. Segundo porque em condições não-estáveis o ambiente humano também
se fez presente no texto, tanto quanto ele no ambiente humano. As implicações
disto significam que as leituras hermenêuticas não podem culpar o mundo por
suas falhas: elas devem ser
vertiginosamente livres para criar o próprio futuro da leitura. Há um
verso de Nietzsche que pode nos servir de guia para uma hermenêutica da
alta-modernidade:
“Agora celebramos,
seguros da vitória comum,/ a festa das festas:/ O amigo Zaratustra chegou, o
hóspede dos hóspedes!/ Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina,/ É hora
do casamento entre a Luz e as Trevas...” [1]
Nietzsche pensava a ausência de horizontes. Em Além do Bem e do Mal, ele pensa contra a modernidade: faz um
libelo contra os valores da modernidade, como o sentido histórico, a
objetividade científica e, logicamente, a fé numa razão autônoma. Assim, é o
caso de perguntar: é possível continuar existindo algum contato com a chamada
realidade hermenêutica, quando a virtualidade, por exemplo, fica indistinguível
e até mesmo mais autêntica que o original, quando podemos criar mundos
sintéticos que são mais reais que o real, quando a tecnologia glosa a natureza?
Quando a hermenêutica livre das dogmáticas confessionais faz caminhos como o
filme Matrix?
Mark C. Taylor, hermeneuta norte-americano, percorre sob
outras condições questionamentos idênticos aos levantados por Nietzsche. Ao
trabalhar a questão da virtualidade na comunidade da alta-modernidade, utiliza
um conceito que já vinha sendo usado na crítica literária, a idéia de imagologia. Antes, na teoria
literária, e agora na hermenêutica de Taylor, a identidade do texto não pode
ser encarada como uma forma de ser plena e apriorística, mas como realidade
dinâmica ou relacional, onde se cruzam questões de identidade textual e
comunitária, o que também se dá na virtualidade, que acaba sempre por revelar
uma dimensão estrangeira, que é manifestação de um outro. Na medida em que há
constante busca identitária, o confronto com este outro supõe sempre uma
comparação, explícita ou implícita, e se integra naquilo que na terminologia de
Taylor será a imagologia,
estudo das representações do outro, que também pode ser entendido como
virtualidade. Nos últimos anos essa questão tem sido tema da simbologia da
revelação, como da própria teologia. As mídias têm demonstrado a força das
realidades artificiais. Essa questão, realidade e imagem na comunidade
imagológica, já tinha sido analisada por psicólogos da escola piagetiana.
Segundo eles, é difícil ensinar a pensar de modo lógico a um menino que está
sob o bombardeio de imagens distantes da lógica, como acontece nos programas
infantis. E onde até mesmo as entrevistas ao vivo fazem parte da criação de
algum gênio da publicidade. A moda e os shows de rock, por exemplo, fazem parte
desta realidade onde o que é apresentado pelo entrevistador não tem nada a ver
com a realidade da audiência ou com o próprio intérprete/produto, já que suas
imagens sofrem uma transformação mágica para poder ser popular, ou pelo menos
este é o objetivo. Para Taylor, a comunidade imagológica leva à ansiedade que
circula acima e debaixo do chão, que tem crescido e emaranhou-se num complexo
tecnológico e financeiro.
A complexidade hermenêutica, na
alta modernidade, é vista como marginal e fenômeno emergente. Não está fixa,
porque a complexidade é móvel, momentânea e o momento marginal de seu
aparecimento é inevitavelmente complexo. Longe de ser um estado, esse momento
emergente da hermenêutica reconstitui o fluxo de tempo, enquanto impulso que
mantém o texto em movimento. É significante que a palavra momento derive da
idéia de impulso em latim, mostrando movimento como sendo também impulso. Embora
freqüentemente representasse um ponto simples, o momento hermenêutico é
inerentemente complexo. Seus limites não podem ser firmemente estabelecidos,
porque sempre estão trocando de modos, que dão fluidez ao momento. Na
hermenêutica da alta modernidade vivemos o domínio do intermediário, que a
teoria da complexidade procura entender.[2]
A dinâmica do caos e da complexidade da hermenêutica parte de certas
características que diferem em importância e modos. Um sistema complexo é um
sistema único composto de várias partes compatíveis, que interagem entre si e
que contribuem para sua função básica, sendo que a remoção de uma das partes
faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente. Um sistema de
tal complexidade não pode ser produzido diretamente, isto é, pelo melhoramento
contínuo da função inicial, que continua a atuar através do mesmo mecanismo,
mediante modificações leves, sucessivas, de um sistema precursor. O exemplo
mais popular de complexidade irredutível foi apresentado por Michael Behe (A
caixa preta de Darwin): é a ratoeira. Ela tem uma função simples, pegar
ratos, e possui várias partes, uma plataforma, uma trava, um martelo, uma mola
e uma barra de retenção. Se qualquer uma dessas partes for removida, o aparelho
não funciona. Portanto, é irredutivelmente complexo. Um automóvel, em
contrapartida, pode funcionar com os faróis queimados, sem as portas, sem
pára-choques, etc, embora chegará um momento em que haverá um mínimo de peças
essenciais para seu funcionamento. Originariamente, a teoria do caos foi
desenvolvida como um corretivo para os sistemas fechados e lineares de físicas
de Newton, pois diante da ausência de ordem, caos é uma condição na qual a
ordem não pode ser averiguada por causa da insuficiência de informação.
Enquanto a física de Newton imagina um mundo abstrato governado por leis
definidas, que determinavam completamente as coisas reais, a globalidade não é
transparente porque não temos a informação adequada e necessária para
estabelecer leis, assim toda operação é sempre inacessível. A partir dessa
compreensão da teoria do caos e da complexidade, duas razões hermenêuticas
podem ser destacadas na abordagem dos textos escriturísticos judaico-cristãos.
Primeiro que os sistemas finitos, como é o caso desses textos, não estão fechados,
mas são sistemas abertos. E segundo que os sistemas ou estruturas dos textos
escriturísticos judaico-cristãos envolvem relações que não podem ser entendidas
apenas em termos de modelos lineares de causalidade. Nos sistemas
escriturísticos judaico-cristãos recorrentes é impossível medir as condições
iniciais com precisão para determinar as relações causais num período muito
limitado de tempo.[3]
Então, a
imprevisibilidade é inevitável. Ao contrário dos sistemas lineares, nos quais
causas e efeitos são proporcionais, nos sistemas escriturísticos
judaico-cristãos recorrentes, a avaliação é complexa, porque esses sistemas se
auto-alimentam da vida de seus leitores e na recorrência geram causas que podem
ter efeitos desproporcionados. Em contraste com a teoria do caos, a teoria da
complexidade está menos interessada em estabelecer a fuga ou o caos
determinado, pois oscila entre ordem e caos. Assim, o momento de complexidade é
o ponto no qual ecossistemas organizados emergem para criar novos padrões de
coerência e estruturas de relação. Embora tenha se desenvolvido fora das
investigações hermenêuticas dos textos escriturísticos judaico-cristãos, a
percepção de teoria da complexidade pode ser usada para iluminar as questões da
interpretação dos textos religiosos antigos.
Taylor projeta a discussão da teoria da complexidade para
a hermenêutica ao afirmar que a noção de que as fundações tenham desaparecido é
ameaçadora para muitas pessoas, mas que esse assunto é um tema recorrente na
teologia. Pensadores importantes na história de filosofia ocidental, como
Nietzsche, colocaram tal discussão na ordem do dia e influenciaram pensadores
da alta modernidade como Derrida. Uma das coisas que golpeia o pensamento
moderno é a ênfase desses filósofos na importância de entender que a idéia de
fim de fundamentos é uma metáfora, assim como a teoria da complexidade também é
uma metáfora. Ou como afirma Derrida, a metáfora é determinada pela filosofia
como perda provisória de sentido, economia sem prejuízo irreparável de propriedade,
desvio inevitável, mas história com vista e no horizonte da reapropriação
circular do sentido. É por isso que a avaliação filosófica foi sempre ambígua:
a metáfora é estranha ao olhar da intuição, do conceito e da consciência. [4]
E por isso Derrida dirá que a metafísica é a superação da metáfora, donde ao
discutir a hermenêutica devemos levar em conta que há rastros da metafísica nas
palavras que usamos: entender é um exemplo disso. Entender algo é não agarrar
alguma coisa superficialmente. O ato cognitivo envolve apreensão dentro de
condições de superfície e relativos à profundidade. A distinção entre
informação e entendimento é muito complexa. No domínio onde as pessoas pensam
em informação devemos falar de sobrecarga de informação. Somos bombardeados com
informação de todos os tipos. Entender é um modo de organizar e estruturar a
informação. Na revolução da informação, dispositivos filtrantes estão começando
a emergir. É crucial entender o poder das hermenêuticas que criam estas grades
culturais. Este é um dos temas de Imagologies.
[5]
E essas grades culturais, por sua vez, desenvolvem-se e mudam para prover
vigamentos interpretativos que criam possibilidades de construção da
compreensão de informação na qual estamos imersos. Temos, então, dois mundos, um
é o mundo tradicional, o mundo dos textos escriturísticos judaico-cristãos tal
como o recebemos. É um mundo platônico, no qual o assunto percebido é colocado
num nível agradável de fundação. Este mundo está presente, mas também está
acima, é a transcendência. Esse modelo se torna um modo de saber. Quando
começamos a conceber algo, concebemos figurando em termos de modelo. Através do
contraste descrevemos um mundo no qual um modelo diferente predomina. Temos
interações de planos, modelos e processos. Os textos escriturísticos
judaico-cristãos, assim entendidos, podem ser chamados de locais de consumo.
Mas uma estrutura não é aquilo que alguém busca, pois o texto enfatiza
movimento e troca, troca de informação, etc. Os modelos hermenêuticos de que
estamos falamos não são apenas conceituais, pois o conhecimento simbólico dos
textos escriturísticos judaico-cristãos emerge de uma interação entre
entendimento e as formas de fé, que são filtros através dos quais foram
processadas a informação. Se alguém pensa tais categorias como um vigamento
historicamente emergente de interpretação, em constante processo de formação,
deformação e reforma, estamos diante de um salto como o das tecnologias de
produção e reprodução em uma comunidade determinada. Começamos então a ver os
modos em que processamos a experiência, onde o conhecimento é constituído em
fluxo constante. Não é apenas uma questão de como pensamos, é uma questão de
como vemos, ouvimos e tememos. As novas mídias abrem uma percepção nova e
capacidades de apercebimento. O ponto em que se faz a troca também é uma
questão importante. Uma das coisas que o estruturalismo nos ensinou é que em
lugar de ser um local de origem, o texto deve ser entendido como constituído
dentro e pelas redes de troca no qual está imbricado. É um tipo complexo de
reversão. Pensando nessas estruturas como criadas por um tema original, temos
que pensar no assunto como uma função das redes estruturais nas quais está
situada. Essas redes estruturais levam a todos os tipos de formas. Podem ser econômicas,
sociais, culturais, etc. Entender o texto como constituído por redes de troca é
muito importante.
O século dezenove viveu a obsessão da genialidade. Mas o
que é genialidade? Simples: é originalidade. E ser original na hermenêutica
moderna significava não ser influenciado por nada diferente da relação direta
texto/intérprete. O intérprete é, então, o imóvel que tudo move da teologia
aristotélica. Essa noção de criatividade como absolutamente original definiu a
liberdade como autonomia, que não recebe a lei de outro. Em termos
hermenêuticos, sem dúvida, a troca da heteronomia pela autonomia foi uma
importante troca de condicionamento: significou não receber a lei de outro
alguém, mas procurar a lei na internalidade do próprio texto. Isto quer dizer,
o texto livre é algo que não é determinado ou que se exclui. Este é o centro
referencial da noção de liberdade na hermenêutica moderna. O modelo consistiu
em trocar a noção de tema centrado, para uma visão do texto em termos de
sistemas de troca nos quais os textos são locais de consumo. Tomemos a noção de
troca como crucial, mas pensemos em redes. Em lugar de temas que criam
estruturas, estruturas criam temas. Cada tema se torna algo como o nó de uma
teia infinita de relações. A situação do texto dentro daquela rede que envolve
trocas de todos os tipos, econômicas, psicológicas, simbólicas, constitui a
particularidade do tema. São as relações que constituem a particularidade de
qualquer texto. O texto se torna o que é em virtude de sua situação dentro de
redes complexas. Estas, porém, não são redes fechadas e estáveis como os
estruturalistas pensaram, mas estão abertas. Então, a subjetividade nunca é um
produto acabado, está em mudança porque as redes dentro das quais se inscreve
estão em permanente mudança. Por isso, as hermenêuticas podem se desenvolver de
diferentes modos. Um dos problemas como percebemos o reino de Deus na terra é
que não está separado da maneira como percebemos nossos medos. Assim, vamos
ressaltar um aspecto da dogmática: Deus é onisciente e pode controlar tudo, já
que nas comunidades modernas tudo está sendo visto. Temos então as economias da
representação e da dominação que reforçam nossos medos, pois operam dentro de
estruturas de referência que reivindicam para si o referir-se ao outro e são
estruturas de ego-referência que usam o outro, humano ou divino, para a
conformação de uma leitura de soberania.
Porém, no esforço para afiançar
a identidade intérprete/texto e estabelecer sua presença, o hermeneuta descobre
diferença e ausência. Embora lute para negar isto, esta é a realidade. A
procura pela presença em autoconsciência conduz à descoberta da ausência. A
auto-afirmação e a negação provam estar ligadas indivisivelmente. Ser
intérprete aparentemente tornou-se não ser intérprete. A viagem de volta ao ato
de interpretar é uma viagem perigosa, pois na representação o texto é quebrado
e aberto. A quebra do texto é registrada pelo rastro, que é, em geral, a
abertura do texto à exterioridade, à relação enigmática de um interior atravessado
pela externalidade. A ausência sempre está presente, e o exterior é sempre
isto: morte. O presente vivo sempre é marcado pela morte. E esta morte é a
não-conservação que assombra a presença, e dentro do espaço do rastro se
inscreve uma cruz que marca o local do desaparecimento do texto.[6]
Os intérpretes necessitam
compreender o que é a realidade imagológica, e como pode ser usada para prover uma interface mais íntima entre o
que é humano e a relatividade hermenêutica, e como dados sensoriais se
transformam em experiência
real. No entanto, o fundamental é analisar a representação que se coloca por
trás da imagem e dentro da estrutura. Pode-se dizer que tudo que o computador
faz é simulação, mas para definir simulação é necessário respostas científicas
e matemáticas. Assim, a realidade da imagem, que poderia ser um novo paradigma,
se tornou uma metáfora. É um conceito estranho e provocante, com certo senso de
aventura tecnológica. Esta filosofia da hermenêutica leva à uma totalidade
estrutural na qual tudo está dentro e tem seu próprio outro. Assim, alteridade
e diferença são componentes essenciais da hermenêutica, e a relação entre
alteridade e diferença é, em última instância, hermenêutica.[7]
Por isso, o texto, nos modernos projetos filosóficos de estruturas totalizantes,
é um texto de valor utilitário na construção do intérprete. Quando o texto
resiste a este papel, quando recusa ser usado ou consumido, sua
territorialidade é invadida ou sua alteridade
colonizada.[8]
Dessa
maneira, a realidade da imagem que o texto nos oferece termina sendo real.
Promete a realidade, que deixa de ser metáfora, e se transforma em criação
verdadeira. Nesse sentido, a imagem deixa de ser metáfora e se faz metafísica.
Assim, a mundialização dos textos escriturísticos judaico-cristãos, a partir
das tecnologias, computarização, digitalização, comunicações e internet, criou
a partir delas uma perspectiva do que são os textos escriturísticos
judaico-cristãos. Ou seja, estamos diante da recorrência da teoria da
complexidade. Se a perspectiva anterior era a divisão, a perspectiva da
mundialização dos textos é integração forçada. O símbolo do sistema anterior
era um muro que dividia o mundo. O símbolo da mundialização é a Web. Estes processos de mundialização criam uma
nova cultura de leitura dos textos cuja lógica complexa e dinâmica só agora
começamos a entender. O contraste entre grades e redes clarifica a transição do
sistema anterior para o de cultura em rede. O sistema anterior nasceu para
manter a estabilidade através de relações complexas e situações que deveriam
ser simplificadas em termos de grades com oposições precisas. Este era um mundo
onde as paredes pareciam prover segurança. Paredes e grades, porém, não
oferecem nenhuma proteção diante da
possibilidade de se criar teias. Assim, as paredes se desmoronam e tudo começa
a mudar. [9]
Novas
estruturas deslocam o velho, embora isso não signifique a aparição imediata do
novo. Nesta situação, as oposições estruturais que tinham formado o pensamento
hermenêutico anterior se desfazem e o equilíbrio de forças desaparece.
Considerando que as paredes dividiam e traduziam um esforço para impor ordem e
controlar, teias relacionam o emaranhado do mundo, transformando conexões nas
quais nenhum intérprete está no controle. Como proliferam conexões, a mudança
se acelera, trazendo tudo à extremidade do caos.
Partindo de Derrida[10] podemos dizer que o fim
do ser humano, como limite antropológico, anuncia-se ao pensamento hermenêutico
depois do fim do ser humano como abertura determinada. O intérprete é aquele
que tem relação como o fim. E o fim transcendental só pode aparecer e
desdobrar-se sob a condição da mortalidade, por isso o intérprete se inscreve
na metafísica entre estes dois fins.[11]
A unidade destes dois
fins do intérprete, a unidade da sua morte, do seu acabamento, do seu
cumprimento, envolve os conceitos de temporalidade, lugar e consumação. Dessa
maneira, o fim do intérprete sempre esteve prescrito na metafísica, e o que é
difícil pensar hoje é um fim do intérprete que não seja uma teleologia na
primeira pessoa do plural. Nesse sentido, quando a hermenêutica articula a
consciência natural e a consciência filosófica assegura a proximidade para si
de fixo e central, e aí se produz essa reaproximação circular. Mas, a partir do
niilismo
o intérprete reconhece que a redução ao ser humano é percebida atualmente como
uma redução do ser humano, por isso a noite trazida pelo fim do fundamento é
uma noite em que toda identidade texto/intérprete perece. Quando o fundamento
desaparece, o intérprete não se levanta autônomo e só. Deixa de estar de pé,
deixa de colocar-se a si próprio e ao texto, deixa de ser autônomo e separado.
Já não conserva pessoalidade e autoconsciência, já não conserva identidade e
autonomia. Por isso, o fim do fundamento encarna a morte de toda hermenêutica
autônoma.[12]
Mas
será que os textos escriturísticos judaico-cristãos, que se pensava firmes e
objetivos, que sustentavam as confissões diante das incertezas, desmoronou sob
as imagens? Podemos arriscar uma hipótese e dizer que não necessariamente, pois
novas hermenêuticas, entre as quais citamos a da complexidade e a da crítica
das ideologias, podem fazer a travessias dos textos e criar leituras que vão
além. E essa relação imagem versus
novas leituras se tornou preocupação hermenêutica, quando se descobriu que ela
abria a possibilidade de uma reflexão que rompe as tradicionais relações entre
imanência e transcendência.
Se na modernidade a teologia oscilou entre enfatizar a
transcendência ou imanência divina, e podemos citar como exemplos extremos Karl
Barth, que procurou reafirmar a transcendência diante da degradação da
realização humana, e Thomas Altizer, que tentou restabelecer a imanência divina
como afirmação dos valores humanos. Nos perguntamos o que a oposição transcendência versus imanência omite? Há elementos de
correlação entre transcendência e imanência? Um desses elementos não pode ser a
complementaridade? Estes elementos abrem o tempo-espaço de uma relação
diferente que subverte as polaridades da reflexão teológica e da hermenêutica.[13]
Tal questionamento nos leva a um modo de pensar que nos mantém abertos a uma diferença necessária que não
podemos controlar.[14]
Isto significa falar dos limites, uma parapráxis que resiste ao fechamento e
niilismo do fundamentalismo, que denigre o mundo, e do antifundamentalismo
religioso, que santifica o mundo. Nem a não-declaração da religião
fundamentalista, nem a declaração positiva do humanismo religioso criam espaços
através do qual o sagrado pode ser olhado como afirmação de alteridade e diferença sem fim. Tais
questões mostram as falhas das estruturas hermenêuticas totalizantes, ou como
afirmou Nietzsche, “a crença fundamental dos metafísicos é a crença nas
oposições de valores. Nem aos mais cuidadosos entre eles ocorreu duvidar aqui,
no limiar, onde mais era necessário, mesmo quando haviam jurado para si
próprios de tudo duvidar. Pois pode-se duvidar, primeiro, que existam
absolutamente opostos; segundo, que as valorações e oposições de valor
populares, nas quais os metafísicos imprimiram seu selo, sejam mais que
avaliações de fachada, perspectivas provisórias, talvez inclusive vistas de um
ângulo, de baixo para cima talvez”, [15]
expondo a fragilidade da relação entre as estruturas lingüísticas de
representação amarradas a um
significado transcendental e estruturas sociais, políticas, econômicas
de dominação.[16]
Para Maraschin, Taylor tem chamado a atenção para a
falácia da hermenêutica platônica.
“Permitam-me
citar este trecho de um de seus livros: No fim, tudo se reduz à questão da
pele. E dos ossos. A questão da pele e dos ossos é a questão do esconderijo e
da procura. E essa é também a questão da detecção. Será a detecção ainda
possível? Quem são os detetives? Quem são os detectados? Existe ainda alguma
coisa que possa ser escondida? Existirá ainda algum esconderijo? Poderá ainda
alguém continuar a viver escondido? Será que a pele esconde alguma coisa ou
tudo não passa de pele? Peles roçando peles... peles, peles, peles”.[17]
Assim, tudo precisa ser desenredado e nada decifrado. A
estrutura pode ser percebida, desenrolada como a linha das meias em todos os
pontos e níveis, mas nada haverá debaixo disso; o espaço da escrita é para ser
percorrido, não violado. Dessa maneira a escrita ao recusar aceitar determinado
segredo, transforma-se em atividade última, atividade essa revolucionária posto
que a recusa de fixar sentidos é, afinal, a recusa da hipótese de razão,
ciência e lei.[18]
Dessa
maneira, o fim do fundamento hermenêutico é seguido pela morte do tema
autônomo.[19] O
desaparecimento de um requer o desaparecimento do outro. Mas, o fundamento não
desapareceu simplesmente, ele foi lançado fora. Esta é a questão: o fundamento
não morreu, tornou-se humano. Pois, uma
das coisas que precisam ser pensadas neste contexto é a mundialização. É o caso
de perguntar qual será o impacto das novas hermenêuticas na noção tradicional
dos textos escriturísticos judaico-cristãos. Podemos antever problemas quando vemos como os novos processos criam
dificuldades para as confissões nacionais. Outra questão é a relação entre
espaço e identidade texto/intérprete, já que a geografia e a cultura são
fundamentais para o intérprete, enquanto mediação simbólica. Parte do processo
de mundialização seguramente é a mundialização dos textos escriturísticos
judaico-cristãos e o fluxo livre dos
textos através de redes no mundo inteiro, que não estão restritos aos limites
nacionais. Infelizmente não se fala do ato hermenêutico propriamente,
quando intérpretes livres, usuários dos textos escriturísticos
judaico-cristãos, rompem com a geografia produzindo uma desterritorialização,
que coloca de lado a relação entre lugar físico e identidade texto/intérprete e
de outro a noção de espaço simbólico. Da mesma maneira, por serem usuários, ao
esquecerem o lugar primário das comunidades de fé, a identidade
texto/intérprete pode ser trocada do lugar físico para espaço telemático,[20]
criando um tipo diferente de configuração hermenêutica. E esse espaço
telemático, o espaço mediado pelas tecnologias de telecomunicações, televisão,
rádio e internet, tendencialmente crescem em importância. Os processos de
desterritorialização não são totalmente negativos. Se o intérprete livre olha a
partir da mundialização e compreende as lutas hermenêuticas presentes no mundo
da leitura dos textos das escrituras judaico-cristãs, o esforço para retificar
o choque territorial pode ser positivo, pois uma das oportunidades das novas
hermenêuticas é criar um espaço para a troca de informações. E isso é muito
importante para intérpretes livres que podem entrar nesse espaço para
apresentar modos construtivos e criativos. Sem dúvida, há uma conexão entre os
tipos de discussões da academia e da cultura relativo às perguntas
hermenêuticas feitas pelos jovens estudantes de teologia. Há uma semelhança
entre os debates nos Estados Unidos e os tipos de desenvolvimentos que vemos na
Europa e no Brasil. Para Taylor, as forças que emergem da mundialização são
irresistíveis. A internet criou um foro que nunca existiu. O mundo onde os
estudantes vivem e trabalham não é o mundo no qual fomos educados. Nós temos a
tarefa de preparar os estudantes para o mundo no qual estão se movendo. O mundo
seria melhor se nós e nossos estudantes nos encontrássemos no espaço comum de
salas de aula globais. Mas, infelizmente, nossa amnésia cultural é extraordinária.[21]
Esquecemos que a universidade é uma invenção moderna. O modelo da universidade
moderna foi posto abaixo por Kant no fim do século dezoito. A estrutura da
universidade moderna tem como modelo a indústria moderna. Parece ingênuo pensar
que as mudanças associadas ao modelo industrial, fabricando economia para um
contexto pós-industrial de informação não leve a uma universidade da
alta-modernidade. E aqui Taylor afirma que a universidade da alta-modernidade
será caracterizada por muitas das práticas pós-industriais. O número de
universidades será reduzido. Haverá uma crescente especialização dentro das
universidades. Como fica cada vez mais difícil para as universidades fazer
todas as coisas, a noção de que cada universidade deve ser um todo se desmoronará.
O que significa isso? Departamentos serão eliminados, programas serão
reconstruídos e reconfigurados. Mas há oportunidades nesta situação.[22]
Tipos diferentes de oportunidades educacionais surgirão para as instituições,
não só para compartilharem recursos dentro uma nação, mas globalmente. Talvez
nem toda universidade precisará de departamento de teologia. Tipos diferentes
de instituições vão surgir. Será discutida a viabilidade da educação
residencial. Terminou a idéia de alguém que recebe educação após o secundário
deva ter entre 18 e 22 anos. Pessoas serão educadas em fases diferentes e ao
longo de suas vidas e sempre poderão cursar uma faculdade residencial.
Atualmente, cursar o colegial via internet já é uma possibilidade. Um dia não
só haverá cursos on-line, mas a pessoa poderá participar das discussões de sala
de aula sem sair de suas casas. E isso terá um impacto tremendo nas
hermenêuticas, no trabalho dos intérpretes e nas leituras confessionais. Por
isso, o desafio é repensar sistema e estrutura de tal um modo que possamos
imaginar estruturas hermenêuticas não-totalizantes, que possam criar
possibilidades para conexão e cooperação, que reconhecem a necessidade e a
inevitabilidade de interconexões sem ter essas estruturas repressivas. Se não podemos imaginar aquela estrutura
hermenêutica não-totalizante, parece que o futuro é sombrio. Na lógica de redes
e teias há um modelo alternativo para sistemas e estruturas. Pensar e cultivar
estas redes poderiam criar a possibilidade para superar o impasse no qual nos
achamos na relação entre hermenêuticas e as confissões judaico-cristãs. Este é
o terreno que precisa ser explorado. Teólogos conservadores acharão tal
movimento insatisfatório, resistirão porque imaginar a estrutura hermenêutica
não-totalizante vai contra tudo o que eles consideram sagrado. [23]
Travessias da leitura
Ou para entender Olavo de Carvalho
Jorge Pinheiro, PhD
Segunda parte
Para entender a hermenêutica moderna
Diante dos desafios colocados
pela hermenêutica da complexidade faz-se necessário percorrer os caminhos da
construção hermenêutica na modernidade, já que estamos analisando
possibilidades de superação. Enquanto ramo da filosofia, a hermenêutica estuda a
interpretação dos textos religiosos. A palavra deriva do nome de Hermes, o mensageiro
dos deuses, a quem os gregos atribuíam a origem da linguagem e da escrita e
consideravam o patrono da comunicação humana. Assim, hermenêutica provém do
verbo grego “hermeneuein” e significa anunciar, interpretar e, também,
traduzir. Significa que alguma coisa é tornada compreensível ou levada à
compreensão. Alguns autores, no entanto, afirmam que o termo hermenêutica
deriva do grego “ermeneutike” que significa ciência, técnica. Seria, então, interpretação do
sentido das palavras dos textos: teoria voltada à interpretação dos signos e de
seu valor simbólico.
A
interpretação faz parte da existência. Nem sempre damos conta de que as
escolhas e decisões se fazem a partir de interpretações. Elas se processam ao
longo do dia, dos anos e da vida. Mas vamos nos perguntar mais uma vez: o que é
interpretação? Questionar radica no que há de mais profundo em nós. Sabemos e
não sabemos, queremos e não queremos. O caminho da hermenêutica é a
interpretação do caminho como o não-querer e o não-saber de uma questão. Se já
soubéssemos o que desejamos na interpretação, não questionaríamos. Por isso,
existir é interpretar desafios. Mas o que é a interpretação para que nela se dê
o desafio? A interpretação, o questionar e o que somos estão interligados.
Quando tomamos como tema a interpretação, é em nossa própria existência que
estamos pensando. Interpretar nessa dimensão é interpretar-se. O desafio é: o
que é o interpretar para que nele possa acontecer um interpretar-se?
Mas, para entendermos essas
dimensões da interpretação vamos em primeiro lugar pensar como se construiu na
modernidade o conhecimento hermenêutico. Desde o século dezessete o termo
hermenêutica foi empregado no sentido de uma interpretação objetiva das
Escrituras Sagradas judaico-cristãs. Spinoza, filósofo judeu, foi um dos
precursores da hermenêutica bùiblica. Já para Schleiermacher, teólogo luterano,
a hermenêutica não visava o
saber teórico, mas sim o uso prático, a técnica da boa interpretação de um
texto falado ou escrito. Tratava-se da compreensão, que se tornou a finalidade
da questão hermenêutica.
Schleiermacher definiu a hermenêutica como reconstrução histórica e divinatória, objetiva e subjetiva, de um dado
discurso.
Já Wilhelm Dilthey afirmou que
há uma dualidade no processo hermenêutico, entre as ciências da natureza e as
ciências do espírito, que se
distinguem por meio de um método analítico esclarecedor e de um procedimento de
compreensão descritiva, assim os eventos da natureza devem ser explicados, mas
a história deve ser compreendida. Ele entendia compreensão como a apreensão de
um sentido, e sentido é o que se apresenta à compreensão como conteúdo. Dessa
maneira, só poderíamos determinar a compreensão pelo sentido e o sentido apenas
pela compreensão. O que parece um correr atrás do rabo, já que toda compreensão
é apreensão de um sentido. Essa visão de Dilthey acerca da hermenêutica se
diferenciava daquela de Schleiermacher, que fazia distinção entre compreensão
divinatória e comparativa. Para ele a
compreensão comparativa se apoiaria em uma multiplicidade de
conhecimentos objetivos, gramaticais e históricos, deduzindo o sentido a partir
do enunciado. E a compreensão
divinatória daria significação a uma apreensão imediata do sentido. O
filósofo alemão Martin Heidegger, em sua análise da compreensão, vai além, ao
dizer que toda compreensão apresenta uma estrutura
circular, pois para que uma interpretação
possa produzir compreensão ela já deve ter compreendido o que vai interpretar.
A partir dessas leituras, podemos falar
na modernidade de quatro estruturas básicas de compreensão: (1) estrutura de horizonte, quando o
conteúdo singular é apreendido na totalidade de um contexto de sentido, que é
pré-apreendido e co-apreendido; (2) estrutura
circular, quando a compreensão se move numa dialética entre
pré-compreensão e compreensão da coisa, em um acontecimento que progride em
forma de espiral, na medida em que um elemento pressupõe outro e ao mesmo tempo
faz com que ele vá adiante; (3) estrutura
de diálogo, quando mantemos nossa compreensão aberta, para enriquecê-la
e corrigi-la; (4) e estrutura de
mediação, quando a imediatez se apresenta e se manifesta em todos os
conteúdos, mas imbrica à compreensão o mundo e a história. Mas não podemos
esquecer que para Dilthey, estes dois métodos hermenêuticos estariam opostos
entre si, já que a explicação é própria das ciências naturais, e compreensão é
própria das ciências humanas. Ou seja, esclarecemos
por meio de processos intelectuais, mas compreendemos pela cooperação de todas
as forças sentimentais na apreensão, pelo mergulhar das forças subjetivas no
texto. Paul Ricoeur, filósofo cristão reformado francês, no entanto,
procurou superar esta dicotomia, afirmando que compreender um texto é encadear
um novo discurso no discurso do texto. Isto supõe que o texto seja aberto e que
ler é apropriar-se do sentido do texto. De um lado não há reflexão sem
meditação sobre os signos e por outro não há explicação sem a compreensão do
mundo e de si mesmo.
Travessias subjetivas na construção simbólica
Vamos
nesse estudo sobre hermenêutica e por extensão sobre os símbolos e a linguagem
utilizar o caminho circular do midrash judaico como forma de aproximação de
nosso objeto. E vamos começar pela história contada por um jornalista, o Robson
Pereira. [24]
Ele
relata que quando o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss escrevia Tristes
Trópicos, publicado em 1955, viveu uma curiosa experiência junto aos índios
nhambiquara. Compenetrado em suas anotações, Lévi-Strauss foi surpreendido por
índios que pegaram lápis e papel, rabiscaram coisas e depois devolveram a
folha. Segundo Pereira, o gesto tinha um significado: os nhambiquara queriam
que ele lesse o que haviam escrito. A partir daí, e dos estudos posteriores de
Lévi-Strauss, o jornalista concluiu que a leitura pressupõe sempre algum grau
de entendimento não contido no que se está lendo. E que por isso, decifrar
rabiscos ou palavras não é uma função meramente visual. Mas é necessário
recorrer a algo mais, acionar uma complexa rede de neurônios para compreender e
dar sentido a um simples conjunto de letras e espaços em branco colocados à
nossa frente. Assim, caberá ao escritor fornecer o nível de informações
necessário para que o leitor absorva a mensagem. Somente neste caso, o texto
terá cumprido integralmente o seu propósito. Talvez por isso Kafka tenha dito
que ler é fazer perguntas. Se for assim, cabe ao texto, revelado ou não,
instigar o leitor, guiando-o por um labirinto de indagações até um porto
seguro. Dessa maneira, podemos dizer que interpretar o texto bíblico,
decifrá-lo, arrancar dele significações é um desafio que não se resume a uma
pessoa ou a um curto período de anos. É nosso pressuposto que as Escrituras,
enquanto automanifestação do Deus criador apresenta mais conteúdos do que é
perceptível na leitura de toda uma geração. Aqui há uma dialeticidade que
permanecerá no equilíbrio de seus contrários, sem solução ou síntese enquanto
houver história, afinal a revelação do que é perfeito dá-se através de um
instrumento dinâmico, a linguagem humana. Nossa necessidade histórica de
interpretar nasce daí, desse processo construtivo entre significante e
significado. Em relação aos textos sagrados, a tarefa do intérprete consiste na
explicitação da mensagem através de um raciocínio dirigido e sistematizado. As
conclusões nada acrescentam ao significado do texto, pois estavam contidas ali;
embora sejam novas, uma vez que diferem do que está escrito. Em si não são diferentes, porque
estavam gravadas no subsolo do texto, que foi interpretado. Mas por serem as
Escrituras obra de um ser infinito, as interpretações nunca se esgotam. Cada
novo corte no texto aprofunda o seu sentido, mas sempre é possível avançar. As
interpretações se sucedem no tempo, mas se situam no mesmo locus.
Assim,
cabe ao intérprete reconstruir a realidade sócio-cultural onde o texto foi
construído, ao partir do pressuposto de que as Escrituras possibilitam um
diálogo que permite uma reconstrução dos significados da natureza humana. Tal
estudo deve tomar por base a revelação enquanto projeto de interação. Por isso,
a questão antropológica no processo da revelação é determinante, pois o desafio
é viver. Nesse processo desigual e combinado da revelação podemos distinguir
elementos que se sobrepõem e se complementam. Dentre eles, o mais fascinante é
a questão do significado e do significante. A revelação dá-se através de um
processo de adequação histórica e lingüística. Entretanto esse conhecimento não
demanda unicamente a apreensão de uma determinada realidade. Faz-se necessário
que esta realidade seja apreendida de determinada maneira, consoante a uma
construção de análise e síntese. Como premissa fundante temos que reconhecer
uma justaposição entre conhecimento intuitivo e conhecimento discursivo. O
conhecimento intuitivo faz-se a partir das condições necessárias para que ele
se processe, imediatamente, frente a uma determinada realidade, ao passo que o
discursivo requer passar de algo conhecido, através de uma série de juízos, à
apreensão do ainda não apreendido. Ao primeiro processo chamamos juízo
sintético e ao segundo juízo analítico. Mas a revelação não se dá simplesmente
como processo de adequação da mente humana ao novo que lhe é apresentado.
É
necessário que o novo, inerente ao processo cognoscitivo, tenha um significado.
Uma relação de significado em que o ser humano opera como ser significante e o
novo como ser significado. Desta forma, a revelação não se processa entre
realidades ahistóricas, mas em relação espacial e temporal, exigindo para que a
interação humano e realidade se estabeleça que haja algo maior, alguma coisa
além de ambos, não causal, mas essencial. No processo da revelação, o ser
humano se encontra em construção, já que não é pleno senhor do processo. É um
ser colocado no tempo e no espaço, que estabelece relação com a realidade que o
cerca dentro do processo cognoscitivo enquanto dimensão humana e histórica. Por
isso, dizemos que a hermenêutica exige do estudioso qualidades sem as quais os
símbolos serão para ele mortos, e ele morto para eles. Suzane Langer fala da
simbolização como “um ato essencial ao pensamento, anterior a ele”, uma
necessidade básica da mente. Todo tipo de sensação captada pelos sentidos são
transformados em símbolos, idéias elementares que servem para acumular
informações de um jeito prerraciocinativo, mas não pré-racional. Langer coloca
o cérebro como um grande transformador, e a simbolização como o ponto de
partida de toda intelecção. Nossos atos seriam, segundo ela, governados por
representações e símbolos de várias espécies. Somente uma parte de nosso
comportamento é prática, e o restante surge de uma necessidade interna de
expressar estas representações “sem qualquer objetivo de satisfazer outras
necessidades, exceto a necessidade de contemplar em ação declarada o processo
simbólico do cérebro”.
Sendo então tal capacidade, o simbolizar, fundamental
para o pensar e o agir, quais seriam as qualidades essenciais do estudioso para
que se entenda em profundidade o que é e qual o papel de um dado símbolo, qual
sua eficácia em nosso ser? Podemos partir de uma constatação empírica, a de que
a revelação se apresenta através do simbólico, em níveis de complexidades
crescentes, onde aquilo que é evidente só será visto no desenrolar do texto,
com densidade na definição dos símbolos e no entendimento deles. Ou seja,
qualquer interpretação deve ser feita com todo o ser e não usando partes do que
somos, já que o símbolo faz-se ponte entre as partes visando a construção de
uma totalidade maior.
Em
nosso midrash, ato de rodear o texto, vamos fazer uma viagem ao redor dos
símbolos e trabalhar com as travessias subjetivas que desafiam a interpretação.
Em primeiro lugar, torna-se quase impossível tal tarefa sem entender a
travessia através da simpatia, enquanto atração pelas significações presentes
no texto. Essa travessia simpática traduz a atração que a comunidade de fé tem
pelo texto sagrado, na maioria das vezes uma cumplicidade, um amor por este
diálogo a que foi chamada. Essa correlação simpática no diálogo está na atitude
de colocar o texto como momento de uma revelação que extrapola limites, indo
além do momento, atravessando a história em direção ao reino de Deus. Esse
choque simpático diante da significação aparentemente deslumbra a comunidade de
fé, criando êxtase e adoração. Compreendemos tal postura e acreditamos que
nenhum hermeneuta deixará de levar tal fenômeno em conta, mas a tarefa
hermenêutica está desafiada a equilibrar-se entre a compreensão desse
deslumbramento diante da revelação e a análise dos componentes simbólicos da
revelação, responsáveis pela construção do destino humano expressos na
redenção, já que tal simbolismo visa manter a ligação com a totalidade do
processo histórico e transistórico a que chamamos reino de Deus.
Compreendemos,
assim, que os signos nas Escrituras são representações construídas pelas
comunidades de fé, que expuseram os estados mentais dessas comunidades. É uma
forma de ação onde a pessoa traduz a totalidade da revelação. Esse processo se
perpetua através da manutenção dos signos por operações mentais e materiais,
conectando as pessoas à sua cultura de fé e apontando sempre em direção ao
reino de Deus. E o reino de Deus, nesse processo, se realiza no tempo presente
enquanto expressão moral e de significados, que possibilitam a construção da
consciência pessoal. Permite que a pessoa ao participar da comunidade
ultrapasse a si mesmo, quando pensa, quando age no ato de adoração, quando
desfruta das sensações de integração oriundas desta força. É um ato através do
qual a comunidade toma forma e existe, por meio de movimentos exteriores, de
significações, pois a ação domina a adoração e a comunidade é sua fonte.[26]
Há um imbricamento de forças comunitárias, concepções pessoais e significados.
Esta é a forma pela qual o texto sagrado age no fiel, através de bases
conceituais e coletivas. Assim, para que apareça a consciência coletiva é
preciso que se produza uma síntese das consciências particulares, que
desencadeia uma multiplicidade de sentimentos, de idéias, de significações.[27]
Logicamente todo esse processo está localizado num tempo, com dias e tempos
religiosos definidos, e num espaço, numa geografia delimitada. Tais definições
permitem que as atividades produzam um acúmulo de imagens, por uma associação
de idéias e sentimentos, o que subordina o psicológico à ação religiosa da
comunidade. De todas as maneiras, permanece o ato pessoal, embora tenha raízes
na comunidade. Esta experiência tão intensa traduz um ponto de vista positivo,
de poder, subjetivo, mas eficaz. É a travessia simpática presente em todo o
processo da revelação, que o hermeneuta deve perceber presente no texto
escriturístico sagrado.
Mas
se falamos de simpatia, há uma segunda travessia nesta construção, é a fé,
compreendida como entendimento que sente o que está além do símbolo. E aqui
temos que relacionar símbolo e estrutura, construindo aquilo que Lévi-Strauss[28]
chamou de estrutura simbólica, por funcionar como reorganização estrutural ao
nível do psiquismo. Essa reorganização estrutural possibilitaria a edificação
de processos orgânicos, do psiquismo e do pensamento, atuando sobre o inconsciente.
Ou seja, atuaria sobre a função simbólica, e por extensão sobre a fonte da
história pessoal e seus significados, que tem suas raízes na comunidade onde
está inserida a pessoa. E se já vimos as travessias da simpatia e da fé devemos
falar da razão, que analisa, ordena e reconstrói noutro nível o símbolo, mas o
faz a partir da simpatia e da fé. A travessia da razão cumpre a tarefa de
examinar os símbolos num processo de correlação daquilo que está em cima e
daquilo que está embaixo. Mas, não poderá fazer isso se a simpatia não tiver
lembrado tal relação, se a fé não tiver chamado à cena o que estava oculto. Só
então a razão, indo além do discurso se tornará analógica e o símbolo poderá
ser interpretado.
Assim, ao entrarmos na semiologia descobrimos uma interpretação
que procura romper com a força da comunidade na compreensão do símbolo,
favorecendo os processos propriamente simbólicos, entendidos como visões que
interpretam o mundo. Mas, um dos problemas da semiologia é exatamente a
definição de símbolo. Poderíamos dizer que o símbolo permite a fusão de idéias
e imagens, e que por isso poderia ser interpretado de muitos modos, por ser uma
forma dinâmica de pensamento, que coloca as idéias em movimento e as mantêm
neste movimento. Se for assim, o símbolo é passível de interpretação, mas não
de solução. Está é a opinião do exegeta judeu Gershom Scholem, que define o
símbolo como uma representação expressiva de algo que em si mesmo está além da
esfera da expressão e comunicação, uma realidade escondida e inexpressível.[29]
Essa definição de símbolo de fato nos remete ao signo, sinal ou marca,
categoria que pode ser subdividida em uma complexa série de associações, em
geral de caráter emocional e difícil de descrever.[30]
Nestas definições podemos ver a idéia de polivalência dos símbolos, que
funcionariam como tijolos numa construção, como conjunto de classificações
cognoscitivas que estabeleceriam a ordem no universo, mas também dispositivos
capazes de despertar e canalizar emoções.[31]
Apesar da importância da teoria dos símbolos, a cultura continuou a ocupar seu
espaço como fator emergente que possibilita a centralidade da pessoa, que tem a
oportunidade de se expressar no diálogo e transformar a comunidade onde se acha
inserida. Assim, a pessoa é a matriz simbólica da comunidade. Essa compreensão
nos levará da idéia de diálogo à idéia de conversa, onde não temos apenas duas
personagens, a pessoa, a comunidade, mas também aquele que através da revelação
abriu a conversa.
Nesse contexto, os símbolos passam a ser estudados a
partir daquele que chama à conversa, da pessoa e da comunidade. Temos então a
idéia de símbolos multivocais, ou seja, passíveis de significações, mas
ancorados numa nova estrutura, que trabalha com canais de comunicação internos
ao texto, mas também expressos na relação entre pessoa/comunidade,
representações que traduzem a ordem temporal da estrutura. Essa nova
compreensão da estrutura como trindade simbólica nos remete àquele que abre a
conversa a partir de sua automanifestação. Nesse sentido, a revelação enquanto
texto sintetiza essa automanifestação e por isso deve ser entendida como
elemento que possibilita as travessias da simpatia, da fé, da razão e da
cultura.
Essas travessias subjetivas fundamentam a natureza
genética da linguagem, que se encontra em constante devir. Dessa maneira,
significado e significante estão intimamente ligados à linguagem, enquanto
revelação e construção histórica e cultural. Assim, compreendemos que,
dependendo da utilização de determinado objeto ou realidade, o ser humano
conhece de determinada forma, e no processo pode construir conceitos diferentes
a partir de um objeto ou realidade anteriores. Podemos inferir ao que isso
conduz. A revelação está ligada à vida do ser humano, já que será a própria
experiência humana que agregará valor ao objeto ou realidade antes conhecidos e
vividos. Dessa maneira, o velho vai gerar o novo, uma essência que transcende,
uma universalidade, a partir da própria experiência de vida, que teologicamente
podemos chamar de obediência ao mandamento de Deus.
Mas ainda não definimos a
importância do significado e do ser significante dentro do processo da
revelação. Se a revelação é histórica, é importante notar que a própria
revelação age sobre a vida humana, sobre a historicidade do ser humano. E mais
do que isso, ao definir a historicidade humana muda o próprio meio onde o ser
humano vive e atua. Dessa forma, a revelação cria processos de formação,
escalas de valores, normas e condicionamentos. E é aí que reside toda a
problemática da revelação enquanto conhecimento: como o ser humano, a partir da
revelação, pode conhecer a Deus, seu propósito e dar um sentido ao mundo que o
cerca, assim como achar o seu papel dentro de todo esse complexo?
A verdade da revelação é o significado que uma determinada
realidade tem para a comunidade e a pessoa. Há uma construção intuitiva, quando
a experiência da revelação produz uma interação entre o ser humano e a
divindade, sem que essa experiência necessariamente influa no processo
discursivo de conhecimento. Mas mesmo neste caso o ser humano não abandona ou
perde sua formação. Não deixa de ser aquilo que é: pessoa inserida em
determinada comunidade. Mesmo quando esse processo dá-se em um nível superior,
instantaneamente, sem elaboração discursiva, o ser humano está condicionado
pela historicidade de ser cognoscente. E dentro dessa condicionante sempre se
processa a interação ser humano/realidade. Aqui, sentimentos e afetividades,
que geralmente passam despercebidos, são realçados. Isso porque nesse momento
específico, determinada realidade passa a ter significado, que mesmo não sendo
inerente, exige que se lhe dê um. E nesse caso o conhecimento da revelação faz
do ser humano ser significante. Assim a revelação dá ao mundo um significado
imanente.
O ser humano, enquanto pessoa e comunidade, através da revelação
passa a estar dotado de significado, mas ao mesmo tempo este conhecimento, este
significado dado, não se dá sem história, mas dentro das limitações de sua
própria obediência. Podemos, então, concluir que a partir da revelação o ser
humano é o significante da construção da comunidade, pois através do
conhecimento da revelação é ele quem historicamente pode modificar causas e
efeitos, imprimindo ao processo nova direção. Mas como se processa a relação
entre significado e significante, quer no caso isolado da interação entre ser
humano e realidade, quer no caso de todo o processo simbólico da revelação? Se
dentro do conhecimento da revelação o ser humano é um ser significante,
podemos, então, ver que a escala de valores do sistema ético, oferecido pela
revelação à comunidade, é parte integrante do significado dado ao mundo pela
própria revelação. Donde, dentro de uma interação significado significante
existem elementos dinâmicos de transformação.
O
universo é o mundo do ser humano. Nesse sentido, aí ele constrói seu habitat.
Desta forma, através do significado dado pelo ser humano à natureza, enquanto
domínio e expansão, dentro de um significado de utilização que lhe empresta,
atua sobre ela, produzindo cultura e transformação. E vejo a cultura como
conjunto integrado de costumes, crenças e instituições, onde incluo a revelação
e a espiritualidade, além de todos os hábitos e aptidões apreendidas pelo ser
humano enquanto membro de uma comunidade. [32]
Existem nesta definição duas grandes ordens de fatos, uma que diz respeito à
antropologia por tudo que somos, desde nosso nascimento, como características
legadas por nossos pais e ancestrais, à qual se liga à biologia e à psicologia;
e, de outra parte, todo o universo onde vivemos enquanto membros de uma
comunidade. O hermeneuta, armado de uma primeira leitura antropológica, procura
fazer na ordem da cultura interpretação idêntica àquela que o cientista faz na
ordem da natureza, na medida em que trata de necessidades fundamentais e de
necessidades cujas origens estão na antropologia e por isso são idênticas no
seio da espécie homo sapiens.
Ao
hermeneuta que se faz filósofo interessa o geral, mas não pode esquecer as
modulações, diferentes segundo as comunidades e as épocas, que se impuseram a
uma matéria-prima, por definição, sempre idêntica e presente em todos os
lugares. Assim, para o hermeneuta, como para o antropólogo, um dos eixos da
discussão é a linguagem, pois ela faz a ponte entre as características e
necessidades estruturais do homo
sapiens e o fato cultural. É uma característica, uma aptidão que vem da
tradição externa, mas ao mesmo tempo é instrumento essencial, o meio
privilegiado que dá possibilidade à realização do homo sapiens. Mas, ao mesmo
tempo em que é a mais perfeita manifestação da ordem cultural, e, nesse
sentido, manifestação histórica, permite o estabelecimento de um relacionamento
entre o ser humano e seu Criador. É verdade, no entanto, que o uso da linguagem
pelo homo sapiens é mais complexo quando se trata da espiritualidade do que em
relação a outras formas estéticas, já que usa e combina não somente elementos
fornecidos pela linguagem propriamente dita, mas também elementos brutos, que
por assim ser estariam fora da cultura.
A
revelação, e o homo sapiens faz parte dela, não pode ser identificada apenas
como expressão do Criador, nem somente com os estados que provoca nos sujeitos
receptores. Cada estado de consciência subjetiva tem algo de pessoal e
momentâneo que o torna inapreensível e incomunicável em seu conjunto, mas a
revelação está destinada a servir de intermediário entre seu autor e a
comunidade. A linguagem enquanto representação da revelação no mundo sensível,
sem nenhuma restrição, é acessível à percepção de todos. Mas, ainda assim, não
podemos reduzir a revelação à linguagem, pois acontece que a revelação,
deslocando-se no espaço e no tempo, muda de aspecto e reformata conteúdos. A
linguagem traduz na maioria das vezes apenas o significante, ao qual na
consciência da comunidade corresponde uma significação, dada pelo que têm de
comum os estados subjetivos provocados pela linguagem nos membros da
comunidade. Além desse núcleo central, pertencente à consciência da comunidade
há em todo ato de percepção da revelação elementos psíquicos subjetivos, que
podem ser entendidos como fatores associativos de percepção emocional e
estética. Tais elementos subjetivos podem, por sua vez, ser objetivados, mas
somente na medida em que sua qualidade geral ou sua quantidade são determinadas
pelo núcleo central, situado na consciência da comunidade.
Quanto
às diferenças qualitativas, é evidente que a quantidade de representações e
emoções subjetivas é mais considerável numa revelação em construção do que
naquela que já foi conscientizada coletivamente. O primeiro momento da
construção da revelação deixa a cargo do ser humano imaginar quase toda a
contextura do tema, enquanto que a revelação conscientizada pela comunidade
suprime quase por completo a liberdade de suas associações subjetivas pela
enunciação concisa. É desta maneira que, indiretamente, através do núcleo
pertencente à consciência da comunidade que os conteúdos subjetivos do estado
psíquico do sujeito perceptor adquirem um caráter objetivamente semiológico,
similar ao que têm as significações acessórias de uma palavra.
Ao negarmos a
relação existente entre a revelação com um estado psíquico subjetivo rejeitamos
a realidade estética da revelação. Sem esses conteúdos emocional e estético a
revelação pode no máximo atingir uma objetivação indireta na qualidade de
significação acessória potencial. Porém, não podemos dizer que esses conteúdos
emocional e estético fazem necessariamente parte da percepção da revelação,
mas, sem dúvida, no processo progressivo da revelação há épocas em que esses
conteúdos tendem a reforçá-la, assim com há outras épocas em que perdem força
ou mesmo, aparentemente, desaparecem. Assim, é no contexto dos fenômenos
sociais que a revelação, enquanto fenômeno social distintivo, é capaz de
caracterizar e representar época e história.
Por
isso, não podemos confundir história da revelação com história da cultura, pois
a história humana acontece como subconjunto da história da revelação. É verdade
que a relação entre revelação e contexto social muitas vezes nos parece mal
amarrada. Quando dizemos que a revelação visa a transformação definitiva do
contexto social, não afirmamos com isso que ela coincide necessariamente com
ele, mas que como signo, tem sempre uma relação indireta com o contexto social,
mesmo enquanto metáfora. Assim, da natureza semiológica da revelação decorre
que jamais uma revelação específica deve ser explorada como documento histórico
ou sociológico sem a interpretação prévia de seu valor documentário ou da
qualidade de sua relação com o contexto dado de fenômenos sociais. Dessa
maneira, o estudo objetivo dos fenômenos simbólicos da revelação deve
considerar cada revelação específica como um signo composto de símbolo sensível
criado por Deus; de uma significação ou objeto estético e emocional depositada
na consciência da comunidade; e de uma relação com a realidade significada,
relação esta que visa o contexto social. O segundo desses componentes contém a
estrutura propriamente dita da revelação.
É
por isso que dissemos que a revelação tem a função de signo autônomo. Mas ao lado
da função de signo autônomo, a revelação tem ainda a função de signo
comunicativo. Assim, uma revelação dada não funciona somente como revelação,
mas também como fala que exprime um estado da vida, pensamento, emoção, etc. A revelação tem, portanto, uma
dupla função semiológica, autônoma e comunicativa. Por isso, vemos aparecer no
movimento progressivo da revelação a antinomia relacional da função de signo
autônomo e de signo comunicativo. É lógico que não podemos separar ou opor homo
sapiens e cultura. Se entendermos por revelação o conjunto das manifestações da
divindade no universo no qual vivemos, é claro que a cultura faz parte do homo
sapiens e não somente o homo sapiens da
cultura.
Quando
opomos homo sapiens e cultura tomamos o termo homo sapiens num sentido mais
restrito, de conteúdo apriorístico. Nesse sentido, homo sapiens e cultura se
antepõem porque a cultura não provém do conteúdo apriorístico, mas da tradição
externa, isto é, da educação. Mas podemos dizer que a cultura em si, o fato de
que existem pessoas, de que essas pessoas falem, sejam organizadas em
comunidades que se distinguem uma das outras por costumes e instituições
diferentes, tudo isso é parte da comunidade dos homo sapiens, e mais do que
isso, é unidade e homogeneidade dessa humanidade.
A simbologia da revelação, enquanto relação entre
significante e significado, é relacional. Pois se é ela que faz da pessoa e da
comunidade ser significante, permite ao ser humano e sua comunidade transferir
ao mundo que o cerca a cosmovisão que utiliza essa mesma significação. Ao fazer
significante a realidade que o cerca, o ser humano dá origem a transformações,
engendra causas, e passa à construção do futuro, já não como sonho, mas como
realidade. Para viabilizar tais transformações é necessário que transfira,
enquanto comunidade, novos significados aos processos históricos e sociais.
Assim, através da relação estabelecida entre significado e significante
encontraremos as causas de conotações. À circuncisão, por exemplo, a partir de
determinado momento, daremos a conotação de aliança. A circuncisão se faz
aliança, signo, marca de um povo separado, mas só será assim quando pessoas e
comunidade que se tornaram significantes lhes dê significado.
A hermenêutica crítica
das ideologias
Em nosso labor interpretativo
trabalhamos a partir da hermenêutica da complexidade, mas entendemos que o
texto está e sempre esteve aberto ao fogo das ideologias e isto é uma das
razões que explicam os debates hermenêuticos entre Jesus e os intérpretes
literalistas de sua época. Entendemos
ideologia como conjunto de idéias orientado para as ações culturais e
religiosas. É um conceito genérico para os processos pelos quais o sentido é
produzido, contestado e transformado, por isso a hermenêutica crítica das
ideologias se preocupa em teorizar os processos de produção de sentido como
realidades culturais e religiosas. Daí que os interesses da hermenêutica
crítica das ideologias se correlacionam com formas diferentes de interpretação,
como a crítica cultural, a crítica sociológica e a crítica ética, entre outras.
A hermenêutica crítica das ideologias trabalha ao nível de três dimensões: a
relação entre a linguagem e a produção de sentido; os diferentes
discursos que atuam no texto; e a natureza das relações de poder. A partir
dessas buscas constrói os contextos institucionais dos textos, de sua recepção
e a influência exercida sobre os leitores em suas posições sociais específicas.
E, particularmente, sempre a utilizo como apoio ao uso que faço da hermenêutica
da complexidade.
Quando utilizamos a hermenêutica
crítica das ideologias devemos levar em
conta que a consciência humana é sempre cultural, histórica e social, e
sofre influência das condições concretas da existência. Isso significa que as
idéias nem sempre representam a realidade exatamente como ela é, mas que muitas
vezes por causa das determinações culturais, históricas e sociais nos
apresentam essa realidade de forma distorcida. Daí a necessidade de trabalhar
como a hermenêutica da crítica ideológica para descobrirmos as ideologias que
se confrontaram na produção da simbologia da revelação e, também, nas leituras
interpretativas de leitores, sejam eles teólogos ou não. A tarefa do
hermeneuta, para Paul Ricoeur, na crítica das ideologias é desmascarar os
interesses que impedem a realização humana e pautar a construção da linguagem
sem limite e coação. Jürgen Habermas, filósofo alemão fundador da hermenêutica
crítica das ideologias, e citado utilizado por Ricoeur, apresenta três
interesses como constitutivos das ciências: o interesse técnico, baseado nas
ciências empírico-analíticas; o interesse prático, que constrói a esfera da
comunicação a partir das ciências histórico-hermenêuticas; e o interesse pela
emancipação, constituído pelas ciências sociais críticas. A partir daí deve
partir a hermenêutica crítica das ideologias, mas, sem dúvida, é o interesse
pela salvação e liberdade que funciona nela como mola propulsora.
Assim, a crítica das ideologias situa-se na base de
atuação das ciências histórico-hermenêuticas, ou seja, a comunicação. É no
reconhecimento desse espaço que se constitui a idéia reguladora da conversa
livre da dominação. Ora, a comunicação é uma herança cultural da humanidade,
uma tradição, que é criada e recriada pela interpretação humana. O ideal da comunicação
nada mais é do que uma antecipação, que depende da hermenêutica mesmo para ser
anunciada como tal. Ou como disse Habermas:
“Não podemos antecipar simplesmente no vazio, um dos
lugares da exemplificação do ideal da comunicação é justamente nossa capacidade
de vencer a distância cultural na interpretação das obras recebidas do passado.
É bem provável que quem não é capaz de reinterpretar seu passado, também não
seja capaz de projetar concretamente seu interesse pela emancipação”.[33]
Parafraseando Heidegger,[34]
quando fala dos poetas, podemos dizer que os intérpretes são os vigias da casa
do ser, daquilo que somos, são os vigias da linguagem. Por isso, as
interpretações são as ações de vigiar a casa do ser, mas não são o ser.
Interpretar não é explicar nem analisar, é conduzir à conversa poética, onde o
real se manifesta na sua verdade multivocal. A interpretação não substitui a
obra da revelação, possibilita a conversa. O intérprete não salvaguarda o mundo
que a obra da revelação abre, mas salvaguarda a abertura de mundo.
Salvaguardar a abertura
de mundo manifesta a obra da revelação como vigor de ter sido no vir a ser do
porvir. A interpretação da revelação é acontecer, que não se propõe,
criticamente, como a única verdadeira. Mas a revelação sempre esconde
ideologias, sejam elas as predominantes na comunidade ou aquelas que se
encontram à margem. Isto porque os intérpretes, ou aqueles que produzem idéias
separam-se dos que produzem coisas e à medida que a revelação vai ficando cada
vez mais distante da comunidade real, os que pensam começam a acreditar que a
consciência e o pensamento estão, em si e por si mesmos, separados das coisas
materiais, existindo em si e por si mesmos. Esse é um fenômeno presente na
leitura das Escrituras, já que os intérpretes, devido à ideologia tendem a
acreditar na independência entre a consciência e o mundo material. Surge,
então, a compreensão das Escrituras como leitura de massas predominantemente
ideológica. Assim a ideologia torna-se ideologia quando não aparece sob a forma
de sonho, mas como explicação ideal da comunidade. A ideologia surge quando
desloca a palavra revelada e apresenta idéias descoladas da revelação sobre o
ser humano, o que é o bem, etc. E no século vinte apoiou-se esse tipo de
hermenêuticas, que ofereceram às comunidades imagens de ocultamente da
realidade comum, apresentando uma lógica ideológica de dominação social e
política. Por isso, ao interpretar o texto sagrado somos chamados à conversa
com o lado de ocultamento da ideologia, mas também a escutar a voz do real na
palavra da revelação.
Nessa escuta, que advém
da apropriação do que somos, a interpretação não é método ou mediação, mas
conversa e limite, experiência de sentido e verdade do ser. Interpretar
torna-se então abrir-se para a escuta e sentido do ser como ethos. Este abrir-se implica um
interpretar-se e não um exteriorizar-se diante do texto escriturístico. Não
consiste numa contemplação externa ou interna, mas um abrir-se para a vigência
do real, pela qual se dá na interpretação uma experiência da revelação. Nesta,
quem advém é o real como mundo. Experienciar a verdade do real como mundo é,
então, apropriar-se do que nos é próprio. A apropriação se dá nos limites da
travessia. Interpretar-se é experienciar a experiência de ser. Ser é o apropriar-se
em toda travessia do vigor de ter sido. Por ter sido é que podemos nos projetar
nos caminhos da interpretação. Por isso, a possibilidade e sentido de toda
interpretação é a questão da interpretação como possibilidade e sentido. É
sempre uma travessia. Tudo isso nos leva à questão da interpretação. E aí
voltamos a Guimarães Rosa, quando diz que “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.[35]
A questão da interpretação, então, como experiência da revelação nos leva a
inversão: à interpretação do desafio. E se aprendemos no exercício de ensinar,
nessa aventura vemos que a interpretação como travessia e experiência da
revelação são o concentrar-se na espera do inesperado.
Notas
[33] Paul
Ricoeur, Interpretação e ideologias, org., trad. e apresent. de Hilton
Japiassu, 4.ª ed., Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1983, p. 142.