samedi 14 novembre 2020

É Natal, participe Missões!


Meus queridos amigos, amigas, irmãos e irmãs, o Natal se aproxima e queremos dizer muito obrigado pelas orações e pelo apoio que nos tem dado.

Eu e Naira desejamos que tenham, apesar do momento dificil que atravessamos, um Natal cheio da graça e paz de Jesus, Senhor e Salvador de nossas vidas.

Queremos dizer também que se os queridos amigos, amigas, irmãos e irmãs desejarem fazer uma oferta especial de Natal para este casal missionário, fiquem à vontade.

É só entrar em contato conosco.

Que a luz de Deus resplandeça sobre suas vidas!

Em Cristo,
Pr. Jorge Pinheiro & Naira Pinheiro 
Missionários da Cruz Huguenote na França.


jeudi 12 novembre 2020

A Eclesiologia batista a partir de Atos dos Apóstolos

Compósitos universais da eclesiologia batista
Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Introdução

Partimos neste trabalho da hipótese de que existem compósitos universais na eclesiologia batista, e que a partir da experiência neo-testamentária e da tradição anabatista temos elementos para explicar tais universalidades desta eclesiologia. Tal entendimento nos leva a traçar um caminhar entre a tradição neo-testamentária e anabatista, teológica e histórica, a fim de explicar essas universalidades.

No início da era cristã, o evangelho de Lucas e o livro de Atos formavam uma só obra em dois volumes, que poderíamos chamar de "História das Origens Cristãs". Esses dois volumes só foram separados por volta dos anos 150. O título "Atos dos Apóstolos" surgiu nessa época, já que a literatura helenística conhecia os "Atos de Aníbal" e os "Atos de Alexandre", entre outros.

Documentação e Linguaguem

A sinopse padrão que delineamos para Atos está intimamente ligada às correntes de informação recolhidas por Lucas. É certo que o valor excepcional do livro se funda no testemunho ocular do autor em relação a uma série de acontecimentos. No entanto, Lucas teve acesso a uma documentação variada, extensa e pormenorizada, conforme ele próprio afirma no prólogo de sua obra (1:1-4).

Segundo o helenista P. Benoit, da Escola Bíblica de Jerusalém, "a despeito de uma atividade literária sempre vigilante, que por toda parte deixou seus traços e assegura a unidade do livro, facilmente se reconhece a utilização de documentos diversos". Benoit afirma ainda que a própria linguagem de Atos varia de um grego excelente, quando Lucas depende de si mesmo e se inspira nas suas notas de viagem, a um texto semitizante, às vezes incorreto, quando fala sobre os primórdios da comunidade cristã na Palestina. Muito possivelmente porque respeita e corrige o menos possível as informações de textos aramaicos, apesar dO livro de Atos e o evangelho de Lucas, (assim como o tratado aos Hebreus) conterem a redação grega mais culta de todo o Novo Testamento.

Assim, temos quatro blocos de informações diferentes, que podemos enumerar da seguinte forma: (a) aquele que se refere à primitiva comunidade de Jerusalém (do capítulo 1 ao 5); (b) as atividades de personagens como Filipe (8:4-40) e Pedro (9:32-11:18 e 12), que podem ter sido fornecidas pelo próprio Filipe, já que ele se encontrou com Lucas em Cesaréia (21:8); (c) o da comunidade de Antioquia, fornecidos por judeus helenistas (6:1-8:3; 11:19-30; 13:1-3) e, sem dúvida, pelo próprio Paulo, que deve ter passado a Lucas informações sobre sua conversão e sobre suas viagens (9:1-30; 13:4-14; 15:36s; 28); (d) o período final das viagens de missão contou com as notas pessoais de Lucas e muito possivelmente foi daí que transcreveu as seções em que diz "nós". Esses são trechos do livro onde se concentram as particularidades do texto de Lucas (11:28; 16:10-17; 20:5-21; 18; 27:1-28).

Esse material foi organizado num todo, interligado por recursos de estilo, como em 6:7, 9:31, 12:24, entre outros. É interessante ver que as descobertas arqueológicas têm confirmado a exatidão histórica de Lucas. Por exemplo, sabe-se atualmente que o uso que Lucas fez dos títulos de vários escalões de oficiais locais e governamentais de províncias, procuradores, cônsules, pretores, politarcas, asiarcas e outros, mostra-se acuradamente correto, correspondentes às ocasiões e lugares acerca dos quais Lucas estava escrevendo. Assim, o arrazoado lucano forma um texto que pode ser subdividido em doze blocos de acontecimentos e eventos, que seguem uma não muito estrita sequência cronológica, conforme apresentamos abaixo: (1) A fé se implanta em Jerusalém, onde a comunidade cresce em graça e número. Capítulos: 1 a 5. (2) Tem início a expansão fora de Jerusalém, devido à tendência universalista dos convertidos do judaísmo helenista e pela fuga em consequência do martírio de Estevão. Capítulos: 6:1 a 8:3. (3) Atinge-se a Samaria. Capítulo: 8:4-25. (4) A região sul e oeste de Jerusalém até a costa de Cesaréia é evangelizada. Capítulos: 8:26-40; 9:32 a 11:28. (5) Damasco já tem comunidades cristãs e a evangelização segue em direção à Cilícia. Capítulo: 9:1-30. (6) Antioquia recebe a mensagem de Jesus. Capítulo: 11:19-26. (7) Antioquia e Jerusalém estabelecem acordos sobre os principais problemas missionários. Capítulos: 11:27-30; 15:1-35. (8) Pedro, depois da conversão de Cornélio e da prisão em Jerusalém, parte com destino desconhecido. Capítulo: 12:7. (9) Primeira viagem de Paulo a Chipre e a Ásia Menor, antes do Concílio de Jerusalém. Capítulos: 13 e 14. (10) Outras duas viagens de Paulo o levarão até a Macedônia e a Grécia. Capítulos: 15:36 a 18:22; 18:23 a 21:17. (11) Paulo retorna a Jerusalém, é preso e levado cativo a Cesaréia. Capítulos: 21:18 a 26:32. (12) É conduzido preso até Roma, onde acorrentado anuncia a Cristo. Capítulos: 27 e 28.

Uma Abordagem Histórica

Podemos dizer que o texto de Lucas, em seu segundo livro, parte da percepção de que a história tem importante significado teológico. Aliás, o escritor apresenta em seus trabalhos uma visão da continuação dos atos de Deus no testamento antigo: quer no evangelho, como atos de Jesus, quer em seu livro segundo, como atos do Espírito Santo.

Lucas mostra que Deus se revela através dos atos e eventos da história humana, definidos por sua presciência. É fundamental entender que se há negação da realidade dos eventos históricos não há base para a fé. Nesse sentido, o evangelho não é uma mensagem meramente existencial, sem conexão imediata com a história.

A compreensão de Lucas da historicidade do cristianismo parte da própria tradição judaica, que entendia o monoteísmo ético e a esperança escatológica como frutos da intervenção divina na vida do povo judeu. Lucas traz essa tradição teológica, singular em relação à religiosidade do mundo antigo, para a vida do que seria anos mais tarde chamado de novo testamento.

Assim, para o escritor, todos os eventos que se registraram em Atos foram levados a efeito por meio da vontade e do propósito de Deus. E esses fatos surgem na vida da igreja como cumprimento das Escrituras. Dessa maneira, a história que Lucas descreve foi dirigida por Deus. E o poder de Deus revela-se através da ação do Espírito Santo, em sinais e maravilhas operados em nome do Senhor Jesus.

Entendendo que o livro de Atos tem como finalidade transmitir a força da expansão espiritual do cristianismo e o ensinamento teológico vivido pelos cristãos, podemos dizer que há um plano sinóptico claro, traçado por Lucas, que num primeiro momento se nos apresenta como histórico. Mas a história de Lucas não é a história da igreja, e sim aquela que foi possível redigir com os documentos e informações de que dispunha. Não relata, por exemplo, a fundação da igreja de Alexandria, nem a de Roma. E nada fala do apostolado de Pedro fora da Palestina. Mas, esses silêncios e omissões só contam a favor. Estamos diante de um homem que foi profundamente fiel à documentação de que dispunha.

Da mesma maneira, não podemos entender a história de Lucas sem inserir nela toda a contribuição vivenciada pelos primeiros cristãos. A fé em Cristo, base do querigma apostólico, aí está exposta, primeiro pelo triunfo do homem Jesus como kyrios, em grego, pela ressurreição (2:22-36), e depois, pela boca de Paulo, como Filho de Deus (9:20). Vemos ainda, através dos discursos, a formulação da cristologia e a base para a argumentação com os judeus, notadamente os temas referentes ao Servo (3:13-26; 4:27-30; 8:32-33), e a Jesus, com o novo Moisés (3:22s; 7:20s). A ressurreição é comprovada através do salmo 16:8-11 (2:24-32; 13:34-37). Dessa maneira, a história do povo eleito deve colocar os judeus de sobre-aviso contra as resistências à graça (7:2-53; 13:16-41) e aos pagãos invocam-se argumentos de uma teodicéia mais geral (14:15-17; 17:22-31).

O problema crucial da igreja nascente era o do acesso dos gregos à salvação, e o segundo livro de Lucas mostra como os irmãos de Jerusalém, reunidos em torno de Tiago, continuam fiéis à lei judaica (15:1-5; 21:20s), enqunto os helenistas, cujo porta-voz é Estevão, sentem a necessidade de romper com o templo. Pedro e Paulo garantem o triunfo da doutrina da graça no Concílio de Jerusalém (15:1-29), que dispensa os pagãos da circuncisão e das observâncias mosaicas. A verdade, de que a salvação vem de Israel, leva Paulo a pregar sempre, inicialmente, aos judeus, para depois voltar-se aos gentios, quando seus irmãos de raça o rejeitam (13:5+).

Aparentemente, o objetivo de Atos é descrever a missão definida em 1:8: "Sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até aos confins da terra". Acontece que o propósito da igreja é proclamar de Jesus.

Assim, a igreja se posiciona em relação ao reino, ao apresentar os elementos universais da nova aliança e entregar ao mundo as chaves do reino. Essas conclusões estão presentes numa abordagem que cruza o projeto redentivo e a realidade histórica. Ora, nenhuma menção à igreja é feita após as duas referências de Mateus (16 e 18) até depois do evento de Pentecoste em Atos. O Pentecoste foi iniciado com uma assembléia pessoas que perseveraram na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações (2:42). A primeira referência à igreja é encontrada em 5:11, após o primeiro exercício da função bloqueadora das chaves do Reino, no caso de Ananias e Safira. Sobreveio, então, um grande temor sobre toda a igreja e sobre todos que ouviram a notícia daqueles acontecimentos. Inicialmente, os discípulos foram chamados de irmãos, de santos (9:32), de fiéis (10:45), depois de numerosa multidão (11:26) e de muitas pessoas (12:12). Somente quando organizados e governados por pastores, eles são designados como igreja (cf. 13:1-3; 14:19-28; 15:1-41). E no final do livro de Atos encontramos referências a igrejas que tinham grupos de crentes batizados, que confessavam uma fé, eram ordenados por pastores, e que se reuniam para adoração, proclamação e missão. E tal igreja, a quem foi confiada as chaves do reino, deveria proclamar a mensagemdo reino, conforme Mt 24:14; 28:18-20.

A missão só pode ser compreendida se inserida na mensagem, que é Jesus. Essa é a tarefa dos apóstolos, que conviveram com o Messias, participaram de seu ministério e estiveram com ele após a ressurreição. E que agora estavam equipados para a proclamação da boa nova oferecida por Deus.

É interessante notar que Lucas coloca o centro de sua mensagem teológica na ressurreição e exaltação de Jesus. Essa postura, no entanto, é uma particularidade do cristianismo nascente e vemos esse pensamento funcionar como pedra angular entre todos os escritores do Novo Testamento. As bençãos provenientes dessa boa nova é o perdão dos pecados e o nascer do Espírito.

A Mensagem é a Missão

O roteiro do trabalho de Lucas é a expansão da mensagem. Lucas produz um texto, cuja história vai num crescendo emocionante, com clímax e anticlímax, até cortar repentinamente a narrativa. Momentos de clímax são a morte de Estevão, a conversão e o naufrágio de Paulo, entre outros. Momentos de anticlímax, que levam à reflexão teológica, são os discursos, o concílio e as defesas de Paulo ante tribunais e governadores. Esse roteiro acontece não somente dentro de uma situação histórica singular, como é histórico em seu próprio desenrolar.

O batismo no Espírito Santo, já anunciado por João Batista (Mt 3:11) e prometido por Jesus (At 1:8), será inaugurado no Pentecostes (2:1-4). A seguir, segundo o mandato de Cristo (Mt 28:19), os discípulos e apóstolos continuarão a administrar o batismo 2:41; 8:12 e 38; 9:18; 10:48; 16:15 e 33; 18:8; 19:5) como ritual de iniciação ao reino messiânico (cf. Mt 3:6+), agora "em nome de Jesus" (2:38+). Pela fé na obra redentora de Cristo (cf. Rm.6:4+), o batismo será não apenas de arrependimento, mas simbolizará a concessão do Espírito Santo (2:38).

O Espírito Santo, tema especialmente caro a Lucas (Lc 4:1+), aparece antes de tudo como um poder (Lc 1:35; 24:49; At 1:8; 10:38), enviado de junto de Deus por Cristo (2:33) para a difusão da boa nova. O Espírito Santo outorga os dons, que autenticam a mensagem: dons de línguas (2:4+), dos milagres (10:38), de profecia (11:27+; 20:23; 21:11), de sabedoria (6:3, 5,10), dá força para anunciar a Jesus Cristo, apesar das perseguições (4:8 e 31; 5:32; 6:10; cf. Fl. 1:19) e dar testemunho dele. Intervém, enfim, nas decisões capitais: na admissão dos gentios na igreja (8:29 e 39; 10:19,44-47; 11:12-16; 15:8) e nas missões de Paulo no mundo gentio (13:2s; 16:6-7; 19:11).

Assim, todo o livro está impregnado, dirigido e impulsionado pela presença irresistível do Espírito Santo. Ele atua na expansão da igreja (1:8) com tal poder que muitos se sentem a vontade para chamar o livro de "Atos do Espírito Santo".

Para Lucas, a organização e a vida da igreja são uma questão teológica. E graças a isso, aprendemos que a presença do Espírito Santo é a base do funcionamento da igreja. Ele guia na escolha dos líderes, na atividade evangelizadora e, inclusive, na estrutura que a igreja vai construindo. Apóstolos, anciãos, profetas e mestres, residentes ou itinerantes, todos tem atividades definidas, e se colocam sob a direção do Espírito Santo.

O Espírito Santo é Deus pleno. Por isso, Lucas vê a igreja como comunidade levantada e dirigida por Deus. Ele acredita no triunfo final do evangelho. Mas essa teologia da glória está mediada pelo sofrimento e pelo martírio, pela teologia da cruz.

Os discípulos de Jesus Cristo que vieram a ser designados pelo nome batista se caracterizavam pela sua fidelidade às Escrituras e por isso só recebiam em suas comunidades, como membros atuantes, pessoas convertidas pelo Espírito Santo de Deus. Somente essas pessoas eram por eles batizadas e não reconheciam como válido o batismo administrado na infância por qualquer grupo cristão, pois, para eles, crianças recém-nascidas não podiam ter consciência de pecado, regeneração, fé e salvação. Para adotarem essas posições eles estavam bem fundamentados nos Evangelhos e nos demais livros do Novo Testamento. A mesma fundamentação tinham todas as outras doutrinas que professavam. Mas sua exigência de batismo só de convertidos é que mais chamou a atenção do povo e das autoridades, daí derivando a designação "batista" que muitos supõem ser uma forma simplificada de "anabatista", "aquele que batiza de novo".

A designação surgiu no século XVII, mas aqueles discípulos de Jesus Cristo estavam espiritualmente ligados a todos os que, através dos séculos, procuraram permanecer fiéis aos ensinamentos das Escrituras, repudiando, mesmo com risco da própria vida, os acréscimos e corrupções de origem humana. 

Através dos tempos, os batistas se têm notabilizado pela defesa destes princípios:

1º - A aceitação das Escrituras Sagradas como regra de fé e conduta.
2º - O conceito de igreja como uma comunidade local democrática e autônoma, formada de pessoas regeneradas e, biblicamente, batizadas.
3º - A separação entre igreja e Estado.
4º - A liberdade de consciência.
5º - A responsabilidade individual diante de Deus.
6º - A autenticidade e apostolicidade das igrejas.
7º - Caracterizam-se também os batistas pela intensa e ativa cooperação entre suas igrejas. Não havendo nenhum poder que possa constranger a igreja local, a não ser a vontade de Deus, manifestada através de seu Santo Espírito, os batistas, baseados nesse princípio da cooperação voluntária das igrejas, realizam uma obra geral de missões, em que foram pioneiros entre os evangélicos nos tempos modernos; de evangelização, de educação teológica, religiosa e secular; de ação social e de beneficência. Para a execução desses fins, organizam associações regionais e convenções estaduais e nacionais, não tendo estas, no entanto, autoridade sobre as igrejas; devendo suas resoluções ser entendidas como sugestões ou apelos.

Para os batistas, as Escrituras Sagradas, em particular o Novo Testamento, constituem a única regra de fé e conduta, mas, de quando e quando, as circunstâncias exigem que sejam feitas declarações doutrinárias que esclareçam os espíritos, dissipem dúvidas e reafirmem posições. Cremos estar vivendo um momento assim no Brasil, quando uma declaração desse tipo deve ser formulada, com a exigência insubstituível de ser rigorosamente fundamentada na palavra de Deus.

CONCLUSÃO

Assim, Lucas mostra a diferença entre o cristianismo e a estrutura judaica oficial que entrava numa etapa de caducidade. Aqui, entre os cristãos, a organização não reflete poder pessoal, nem burocratismo. Não há como separar a vida e a estrutura da igreja nascente de sua mensagem e de sua missão. Estamos diante de uma totalidade viva, em expansão, cheia de glória e do poder de seu senhor e mestre: Jesus, juiz dos vivos e dos mortos (10:42).

As comunidades cristãs descritas em Atos fornecem elementos concretos e práticos sobre a ação e atuação ideais para a igreja de nossos dias. E essa é a conclusão que desejamos apresentar, conforme os parâmetros tão bem definidos por Scott Horrel em seu trabalho. Lucas fala de um cristianismo de adoração, de aprendizado, de comunhão e de evangelização. São as atividades primordiais de uma igreja habitada pelo Espírito Santo. 

Esse cristianismo pode ser descrito assim:

(a) Era uma igreja marcada pelo louvor. E o amor traduzia-se na criatividade das formas de adoração. Assim, ao invés de reduzir a adoração exclusivamente à música e à oração, os primeiros cristãos tinham a liberdade de experimentar formas que criavam condições para a igreja se deleitar no Senhor.
(b) O aprendizado, que pode ser traduzido em ensino, doutrina e teologia, era considerado fundamental para a vida cristã. Era a porta de entrada para conhecer a palavra de Deus.
(c) A comunhão era muito mais do que o mero bom relacionamento entre cristãos. A igreja, através da oração e do planejamento, desenvolveu formas de encorajar a comunhão genuína. Afinal, o relacionamento com Deus é medido mais pela comunhão com outros cristãos do que por qualquer outro fator.
(d) A evangelização era entendida como um ato corporal, não apenas como discurso. Isto porque, ao viverem num clima de adoração, de aprendizado e comunhão, os cristãos exerciam uma poderosa atração sobre aqueles que estavam procurando a verdade.

Dessa maneira, as comunidades cristãs de Atos romperam com a centralização nacional e geográfica de Israel e iniciaram a construção de uma igreja para todos os povos, em todo o lugar, em cada dia. Hoje, da mesma forma que o cristianismo nascente, a igreja local precisa ter claro sua essência, sua função, seu ponto de equilíbrio, sua forma e estilo. Isso significa que o propósito básico da igreja local é encarnar o corpo de Cristo na terra, fazendo a vontade Deus. Suas atividades primárias devem ser aquelas que caracterizavam a igreja no Novo Testamento e isso deve ser construído de forma equilibrada. Não desenvolvendo apenas uma função, mas todas as quatro. E por fim, deve adaptar sua organização ao povo e às novas gerações.

Existe ainda uma questão fundamental que é a responsabilidade diante da igreja como um todo. É necessário aprender a experimentar comunhão entre as denominações. Existem diferenças e muito possivelmente devem ser mantidas, mas as outras igrejas locais, as outras denominações não são inimigas. Representam grupos de pessoas, com experiências e tradições diferentes das nossas. Rejeitar a comunhão com um irmão é, de fato, rejeitar o corpo de Cristo.

E por fim, fica a pergunta: o que seria uma igreja sem templo, sem domingo, sem grande programa de culto e sem clero profissional? Aparentemente, poderia não ser o ideal, mas nem por isso deixaria de ser uma igreja local, se mantivesse a proclamação, o ensino e o serviço. Jesus Cristo instituiu a sua igreja (2), tornando-a real e efetiva (3), revestindo-a de condições para receber todos os povos, fazendo-os família de Deus (4), amando-a e dando-se a si mesmo por ela (5), a fim de torná-la o instrumento perfeito para o testemunho da sua graça e proclamação da sua salvação.

A igreja é uma congregação local, formada por pessoas regeneradas e biblicamente batizadas, após pública profissão de fé, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ela cumpre os propósitos de Deus no mundo, sob o senhorio de Jesus Cristo, o qual deseja criar um novo homem, segundo a imagem e semelhança do Deus Triúno, e formar uma nova humanidade, um povo para louvor da glória de sua graça, no tempo presente e na eternidade.

A igreja cumpre este propósito através do culto, da edificação dos salvos, da proclamação do evangelho, da ação social e da educação, vivendo em amor. No cumprimento destas funções, a igreja coopera com Deus para a consecução do plano divino de redenção. Baseada no princípio da cooperação voluntária entende a igreja que, juntando seus esforços aos de igrejas co-irmãs, pode realizar a obra comum de missões, educação, formação de ministros e de ação social, com mais eficiência e amplitude. A igreja é autônoma, tem governo democrático, pratica a disciplina e rege-se pela Palavra de Deus em todas as questões espirituais, doutrinárias e éticas, sob a orientação do Espírito Santo. Sem dúvida, a questão fundamental para nossas igrejas é saber, precisamente, qual a sua razão de ser e como está usando a liberdade que Cristo lhe deu.

BIBLIOGRAFIA

Baxter, J. Sidlow, Examinai as Escrituras, Período Interbíblico e os Evangelhos, São Paulo, Edições Vida Nova, 1988.
Cruz, Armando Bispo, Os Dons Espirituais, Despertando o Potencial Divino na Igreja Local, in Ultrapassando Barreiras vol 1, São Paulo, Edições Vida Nova, 1955, 91-108.
Getz, Gene A., Igreja: Forma e Essência, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1994.
Gundry, Robert H., Panorama do Novo Testamento, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1991.
Horrel, Scott J., A Essência da Igreja, Repensando a Eclesiologia à Luz do Novo Testamento, in Ultrapassando Barreiras vol 1, São Paulo, Edições Vida Nova,1994, pp. 7-28.
Horton, Stanley M., O Livro de Atos, Editora Vida, São Paulo, 1983.
Klooster, Fred H., Aliança, Igreja e Reino no Novo Testamento, in Vox Scripturae, vol V, número 1, São Paulo, 1995.
Marshall, I. Howard, Atos, Introdução e Comentário, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1991.
Pollock, John, O Apóstolo, São Paulo, Ed. Vida, 1994. 






mercredi 11 novembre 2020

Églises baptistes, toute une histoire / documentaire

 


Blogdesebastienfath

Qui sont les baptistes? D'où viennent leurs Eglises? 
Que représente le baptisme en France? Cette archive vidéo nous en dit plus. 
Elle a été originellement diffusée début janvier 2010 dans le cadre de l'émission Présence Protestante sur FRANCE 2. 

Ce film d'une demi heure auquel j'ai eu le privilège d'être étroitement associé a été réalisé avec maestria par Audrey Lasbleiz et Marjolaine Dorne à l'occasion des 400 ans du baptisme, commémorés en 2009.

Un documentaire fondamental pour découvrir l'histoire des églises baptistes 
et même leurs origines en France. C'est un documentaire auquel ont participé des pasteurs, des enseignants et des théologiens. Parmi lesquels l'historien baptiste Sébastien Fath.

mardi 10 novembre 2020

A vida além da vida

O rabino Moshe Chaim Luzzatto, mais conhecido como Ramhal, certa vez nos convidou a manter um diálogo entre nosso espírito e nossa psiquê. E nesse diálogo o espírito pergunta: é o meu desejo entender o texto de Devarim/ Deuteronômio 4.39, que diz: você deve saber em seu coração que o Senhor é Deus. Ora, este é um princípio da emunah, da fé como posicionamento. E diante da pergunta, a psiquê respondeu: para onde você quer ir? E a partir daí o diálogo aconteceu, onde o espírito constatou que os princípios da fé são válidos para ele também no que se refere a direção a tomar. No entanto, alguns são válidos e outros não. Afinal, estaria ele ainda circunscrito às leis da emunah?

Donde o intelecto perguntou quais eram verdadeiros para ele e quais ele compreende. O espírito respondeu, a existência de haShem, sua unidade, sua eternidade, o fato de que é incorpóreo e separado de toda a materialidade. E aceito também a criação do universo, a profecia, a profecia de Moisés, a imutabilidade da Torá e sua origem divina. Todos esses princípios fazem parte da emunah e eu os entendo e não preciso de explicação. Por outro lado, a providência, o princípio de recompensa e punição, a vinda do mashiah e a ressurreição dos mortos ... Eu tenho a emunah para o dever religioso, no entanto, desejo encontrar uma explicação satisfatória para eles.

Ora, estamos diante das diferentes leituras que fazemos enquanto pessoas e de nossas experiências neste mundo do aqui e agora. Por isso, podemos dizer, como já o fizeram alguns rabinos, que o Olam haba, o outro mundo, são os frutos de nossos esforços e nossos trabalhos neste Olam haze, neste mundo aqui. Por isso, o kadish nos direciona no sentido de sermos consagrados para servir a haShem com todo o coração, com toda a nefesh e com todos os nossos meios. A recompensa acontecerá no Olam haba de nossas boas ações terrenas, a única riqueza que carregamos. Isso é garantido e certo, e a recompensa no Olam haba será o ser levantado para a vida eterna. Essas foram palavras do rabino Shimone Zini.

Mas podemos falar de dois mundos futuros. Um é o mundo além do tempo messiânico, aquele que Adonai permitiu para todas as pessoas que Ele criou: para aperfeiçoar limites e reparar fraquezas. Segundo o Talmude, algumas pessoas conseguem isso por sua piedade, outras pelo arrependimento e outras pelo sofrimento. O tempo que Ele estabeleceu é de seis mil anos, de acordo com as palavras dos sábios. Então Ele renovará o Seu mundo para que os homens sejam como anjos e não como burros; eles vão ser despojados de sua matéria e as seus limites: a inclinação para o mal e seus resultados, conforme o rabino Ramhal, no Daat Tebunot.

O Talmude ensina que o mundo vai durar seis mil anos. Serão dois mil anos de idolatria para nos ensinar o obscurantismo e impacto devastador sobre a Terra e o universo; dois mil anos de Torá para nos ensinar a verdade e sua importância para a condição humana e dois mil anos do tempo do mashiah, que intercalará tempos de escuridão paradoxal e luz, para dar às pessoas uma última chance de desfrutar de seu livre arbítrio, a fim escolher livremente o bem, e para cada povo ter a sua oportunidade de escolher a verdade divina. Mas durante o sétimo milênio de história este mundo será destruído. Um mundo cuja forma grosseira desaparecerá em favor de uma forma sutil que se tornará refinada nos milênios que se seguem e que constituem o essencial da eternidade por vir, o Ôlam habam de que nos fala Daâth Tébounoth, 3.40.

Se tomamos o Olam haba em seu primeiro sentido, o além imediato, enquanto continuidade da morte terrena, ou em seu segundo sentido, de além do fim dos tempos messiânicos, a noção de vida após vida, corresponde no judaísmo à fé na imortalidade da pessoa. 

Esta compreensão é, sem dúvida, a parte mais complexa da tradição judaica. Mas tal fato não é frustrante para um fiel sefardita, como seu avô, pois aceitamos com humildade a submissão livre a haShem, ao reconhecer nossas limitações à condição humana. Assim, o jardim do Éden, o tempo do mashiah, a ressurreição dos mortos, são conceitos que, com abordagens diferentes e sentidos diferentes, nos falam da vida além da vida, deste ir além.

Deve ficar claro que há um cosmo, uma dimensão da vida além da vida e que toda ação humana tem repercussões para além do aqui e agora. O ruach, o sopro do haShem em nós, colocado ainda no jardim do Éden, é centelha de haShem em nós, é um sopro da eternidade em nós. Quando o espírito deixa a matéria, permanece em relação com este corpo, desde que não seja colocado no chão. O espírito flutua acima do corpo, contempla, vê e ouve tudo o que está acontecendo ao redor da antiga matéria. Então viaja pelo corpo em sua decomposição, durante os doze meses após a morte, até o colapso total da matéria. Tal concepção da vida após a vida permite considerar a vida neste Olam haze de forma madura e séria, especialmente quando em uma idade jovem é ensinado aos descendentes que aqueles que nascem vão morrer.

Os dias da nossa existência terrena não podem ser desperdiçados como fósforos que são queimados e depois jogados. As alegrias humanas muitas vezes são propósito legítimo, quando repousam sobre a dignidade, a pureza e a santidade. Mas são alienação quando se distanciam do real significado e propósito da existência neste Olam haze. É por esta razão que Shlomo, rei de Israel, foi considerado sábio por excelência e nos disse que é melhor ir a uma casa onde há lamentação, do que à uma casa onde há festa, porque na primeira casa vemos o desenlace e daí extraímos importantes lições. 

A lição é que não se deve sentir angústia ou medo da morte. Esta é uma passagem esperada, para a qual todos devemos nos preparar, mas que por si só não envolve nada de dramático para aquele ou aquela que continua sua viagem. Fica no entanto, a saudade legítima para aqueles queridos que estão no Olam haze, por causa da separação. Por isso, bereshit nos diz que haShem viu tudo o que havia feito e considerou que era eminentemente bom. E o rabino Meir disse que o era bom significa que aqui estava a morte e ela era boa. Portanto, não é a morte como tal que é temida, mas sim o modo de preencher nossa Olam haze. Por isso, dizemos que como ninguém sabe o dia em que dará início a sua travessia, vivamos o bem no eterno, pois uma hora de arrependimento e boas ações vale mais do que toda a vida do mundo futuro. E uma hora de felicidade no Olam haba vale mais do que toda a vida deste mundo.

E o rabino Eliezer Hakappar nos disse que aqueles que nascerem eventualmente morrerão, e os mortos serão ressuscitados, os vivos serão julgados, saberão, ensinarão e reconhecerão que Ele é aquele que é haShem, Adonai que forma, Adonai que cria, Adonai que compreende, Adonai que é Juiz, Adonai que é Testemunha, Adonai que é Parte no Julgamento, Adonai que pronunciará a sentença. Antes dele não há iniquidade, nem esquecimento, nem aceitação de pessoas, nem corrupção, porque todas as coisas são dele. Saiba que tudo é levado em conta. E que sua propensão não lhe tranquiliza fazendo você acreditar que o túmulo constituiria para você um refúgio. Pois é a despeito de você que você foi formado e sem o seu consentimento que você nasceu. E é a despeito de você que você vive, sem o seu consentimento você morrerá e apesar de você terá que prestar contas de seus atos perante o "Rei dos reis dos reis", o Santo abençoado seja ele, nos diz Pirké Aboth, na última Michna 4.

Se entendemos a permanência da ruach é para melhor capacitar-nos a apreender a vida terrena. Apesar de seus limites, desapontamentos, enfermidades, provações, a vida humana constitui a passagem única e indispensável da preparação neste Olam haze, tornando possível merecer a vida no Olam haba.

"Quando chegar a hora em que seremos cortados como espigas de milho, vamos cair sem medo, pois o campo de nossa ruach, fertilizado pelo penhor da dor e do orvalho do choro, nos enriquecerá com a colheita mais preciosa do que a dos campos terrestres”, disse o rabino Daniel Renassia.

Esta emunah no Olam haba é uma força vital em nossa rota terrestre, repleta de limites. Além disso, descobrir um homem de fé chamado Jó, é fonte reconfortante para os desamparados diante das injustiças humanas, dos ciúmes, das mentiras e do ódio.

A vida tem sentido e valor. Mas este sentido e valor cresce quando a motivação é norteada pelo viver os mandamentos da Torá, mas não morrer por eles. A Torá é para a vida que se projeta no além da vida. É por isso que os justos, mesmo quando estão mortos neste aqui e agora, são chamados de vivos no Olam haba, enquanto os injustos, mesmo quando estão vivos no aqui e agora são chamados mortos no Olam haba.

Há uma ideia muito bonita no judaísmo que diz que este mundo é como se fosse um vestíbulo do mundo futuro. Por isso, devemos nos arrumar no vestíbulo para poder entrar no palácio. 

Pessoas e povos afirmam que existem outras formas para acessar o Olam haba, com ou sem HaShem. Essas compreensões, tipicamente humanas, são vistas como aboda zara, a adoração da idolatria. E de acordo com a Torá, a falha original do primeiro homem feito à imagem de Adonai, era de que não deveria comer do fruto conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que comesse, morreria. E, interessante é que depois que comeu, hadam começou a perceber que, de acordo com as previsões anunciadas pela serpente, ele havia se tornado capaz de criar mundos, permitindo-lhe discutir, desafiar ou mesmo se opor à vontade de haShem, sem que Adonai o cortasse da sua vida terrena. Este erro de julgamento de hadam foi a punição por sua transgressão, mas também o ponto de partida das justificativas morais que darão origem a todas as diferentes formas de idolatrias.

A vida é também vida além da vida. Vida além da vida tem uma primeira relação com a materialidade humana, mas contém também o ruach, componente da eternidade no humano. Assim, seu destino, que repousa sobre seu livre arbítrio, na conclusão de sua missão terrestre, é a travessia em direção ao mundo eterno.

A travessia pode ser parto doloroso, mas também passagem gloriosa, que preside à inauguração de uma nova vida. Essa noção de durabilidade é reforçada pela esperança, que nasce da emunah, na ressurreição dos mortos, conforme nos diz o profeta Daniel 12.2.

Se o Olam haba parece difícil de ser alcançado e merecido, é certo que Adonai nunca apresenta desafios que o humano não possa enfrentar e vencer. Para aqueles que não pertencem ao povo da estrela, haShem definiu as lei de Noé, que tem como central uma ideia: que o humano se guie pela integridade de sua consciência, e respeite esses sete preceitos que representam os próprios fundamentos da moralidade humana: (1) Não praticar idolatria, (2) não blasfemar contra Adonai, (3) não cometer homicídio, (4) não roubar, (5) não cometer adultério e não manter relações incestuosas, (6) estabelecer tribunais e (7) não molestar os animais, ingerindo um órgão retirado em vida.

E fica uma lição, o humano foi criado para a alegria no haShem e para apreciar o esplendor da Sua presença, porque essa é a verdadeira delícia e o maior prazer, superior a todos os prazeres existentes. O propósito deste prazer é o mundo porvir, que foi criado e preparado para esse propósito. No entanto, o caminho que nos conduz com segurança parte deste mundo, nos disse o rabino Ramhal.

Assim, a Torá ensina que o dia virá quando o Senhor reinará para sempre, Shemot, Êxodo 15. E Adonai será rei sobre toda a terra. Naquele dia Adonai será Um e Seu Nome será Um, conforme nos disse o profeta Zacarias (14).





Nós batistas, ontem e hoje

A identidade batista, ontem e hoje


Quando em qualquer parte do mundo, sejam quais forem as circunstâncias, uma comunidade de fé praticar as doutrinas do Novo Testamento teremos aí uma igreja batista.

Através dos tempos, os batistas se notabilizaram pela defesa de sete princípios:

1º - A aceitação das Escrituras Sagradas como regra de fé e conduta.
2º - O conceito de igreja como comunidade local, democrática e autônoma,
formada de pessoas regeneradas e biblicamente batizadas.
3º - A separação entre Igreja e Estado.
4º - A liberdade de consciência.
5º - A responsabilidade individual diante de Deus.
6º - A autenticidade e apostolicidade das igrejas.

E sétimo -- Nos caracterizamos também os batistas pela cooperação entre as igrejas. Não havendo poder que possa constranger a igreja local, a não ser a vontade de Deus, manifestada através de seu Santo Espírito. 

Os batistas, baseados no princípio da cooperação voluntária das igrejas, realizam uma obra geral de missões; de evangelização, de educação teológica, religiosa e secular; de ação social e de beneficência. 

Para a execução desses fins, organizam associações e convenções, não tendo estas, no entanto, autoridade sobre as igrejas; devendo suas resoluções ser entendidas como sugestões ou apelos.

Para os batistas, as Escrituras Sagradas, em particular o Novo Testamento, constituem a regra de fé e conduta, mas, de quando em quando, as circunstâncias exigem que sejam feitas declarações doutrinárias que esclareçam os fiéis, dissipem dúvidas e reafirmem posições. 

Os batistas são, depois do pentecostalismo, o movimento mais numeroso do protestantismo radical, compreendido como um cristianismo biblicista, conversionista e militante. É a principal confissão protestante norte-americana e tem um crescimento significativo no Brasil. Em termos gerais, desenvolveu-se a partir de cinco traços distintivos:

1. A prática do batismo por imersão da pessoa convertida, 
como testemunho de compromisso e fé
2. As Escrituras como regra em matéria de doutrina, ética e fé
3. Eclesiologia congregacionalista e de proclamação, 
com autonomia da assembléia local composta de militantes engajados
4. Teologia de inspiração calvinista, com destaque para a conversão pessoal
5. Defesa da liberdade de consciência e de expressão, 
e oposição à interferência da autoridade civil ou eclesiástica na vida da igreja.

Esse protestantismo radical se caracteriza, assim, pela referência à tradição confessional, mas também por uma plasticidade marcante. 

A nível global, a Aliança Batista Mundial reúne cerca de 35 milhões de batistas e busca definir políticas de evangelização, reconciliação entre batistas, defesa da liberdade religiosa e assistência às igrejas batistas localizadas em regiões carentes do mundo. A Aliança Batista Mundial foi fundada em Londres em 1905.

Os precursores dos batistas foram, ideologicamente, os anabatistas da época da Reforma. Congregações anabatistas da Holanda no início do século XVII e grupos de puritanos independentes ou congregationalistas, que fugiram da Inglaterra para a Holanda fazem parte dessa construção histórica. Influenciados pelos anabatistas, puritanos independentes convenceram-se de que o batismo cristão é apropriado apenas para adultos convertidos, como testemunho de seu compromisso e fé pessoal.

De volta à Inglaterra, este grupo formou a primeira congregação batista em 1611, com John Smyth. Duas décadas depois, Roger Williams (1639) formou a primeira congregação batista em Providence (Rhode Island). A partir de então, os batistas, já com influências da teologia calvinista, cresceram rapidamente nos Estados Unidos. A democracia informal centrado nas Escrituras tornou-se uma referência política na construção de igrejas em situação de fronteira, sob nas regiões rurais do Sul, Meio-Oeste e Extremo Oeste norte-americano. Assim, essas regiões foram povoadas pelos batistas, uma tendência que se mantém até hoje.

Os batistas olham a vida cristã como fé pessoal, serviço e testemunho. Isso faz dos batistas militantes da causa protestante radical. Cada pessoa deve nascer de novo, estar convertido para uma nova vida e a partir daí congregar numa igreja. Para os batistas, a igreja local é o resultado da conversão e da graça, uma comunidade de crentes reunidos: não é a mãe da experiência cristã, nem fonte de graça, como na tradição católica.

A igreja local é santa porque a fé e a vida de seus congregados são santas. A igreja local, pelo menos em princípio, não tem nenhuma autoridade sobre seus membros, em sua liberdade de consciência ou em assuntos eclesiásticos.

Devido à sua plasticidade, os batistas temos mostrado características opostas na história. Pela ênfase na autoridade da Bíblia, na compreensão puritana estrita, na ética vitoriana, e compreensão da absoluta necessidade da fé e santidade pessoal, a maioria dos batistas é conservadora, tanto nas questões de fé, como de moral. Mostram-se temerosos diante das filosofias e teologias modernas e da política liberal. O evangelho e a Bíblia são interpretados literalmente, dentro dos princípios tradicionais batistas. A ética cristã são os princípios básicos das Escrituras, que nenhum batista deve abandonar. Por esta razão, muitas convenções batistas se recusam a aderir ao movimento ecumênico e ignoram o evangelho social, e sua preocupação com a justiça econômica, política e social.

Porém, devido a ênfase na liberdade de consciência e de crença pessoal e a importância da vida cristã longe da autoridade eclesiástica, de dogmas e rituais, os batistas são líderes do liberalismo, parece contraditório, mas não é, tanto a nível político como teológico. Muitos seminários e igrejas batistas são conhecidas por estilo de adoração, atitudes sociais e teologias liberais. Os batistas foram importantes na criação do movimento ecumênico no início do século XX e por suas participações nas controvérsias que dominaram o século XX nos Estados Unidos: entre teologia moderna versus fundamentalismo, entre o evangelho social versus o evangelho individual, e entre ecumenismo versus exclusivismo.

Mas, os batistas tiveram sempre papéis de destaque nos dois polos, apesar de contrários. Exemplo disso foi Walter Rauschenbusch, pastor e teólogo batista e um dos teóricos do Evangelho Social. E no Brasil podemos citar o Manifesto dos Ministros Batistas de 1963, de claro conteúdo político e social a favor das reformas de estrutura no país.

O século XXI confronta. Diante disso, questões entram na ordem-do-dia: sabemos mais ou menos o que fomos e um pouco do que somos, mas pouco do que seremos. O pensamento batista tem raízes na revolução liberal inglesa do século XVII, porém somos também herdeiros da Reforma radical e da Reforma magisterial. Mas foi no século XVIII, sob o Iluminismo, que o pensamento batista europeu lançou raízes se espraiou. 

E desempenhou papel na história do pensamento na Inglaterra, na Europa continental e nos Estados Unidos. Combinou Escrituras judaico-cristãs e espiritualidade e no século XIX deu ao mundo pensadores de vanguarda, ao construir o que veio a se chamar Evangelho social.

Ser batista brasileiro, hoje, não é algo definido e preciso, principalmente quando se entra na discussão se somos ou não protestantes e se pertencemos ou não ao tronco dos cristãos radicais da Idade Média. Por isso, os batistas são olhados como seitas autônomas sem representatividade civil e opositores de toda e qualquer expressão do Estado. 

Idéia que em parte se justifica se olharmos os batistas a partir da ótica de Ernst Troeltsch e Max Weber. E como é difícil definir a diversidade, já que encontramos movimentos batistas fideístas, fundamentalistas, liberais e racionalistas, vamos fazer o caminho da análise daquilo que nos é próprio, ou seja, das características do ser batista, que atravessa e permanece em todas as leituras batistas.

O pensamento batista busca uma fé inteligente. Nega o divórcio entre a fé e o pensamento, embora reconheça a importância das correntes cristãs que olham a fé como ruptura da lógica, distanciamento da razão, e salto na irracionalidade do mistério insondável. 

Assim, o pensamento batista procura a consistência e as correlações entre fé e razão. Por isso, interage com a cultura. Sem negar que existe o mistério, e que não se pode confundir fé e razão, entende o pensamento como construção que não pode prescindir nem da fé, nem da razão.

O Brasil nesses tempos da alta modernidade combate o pensamento que se quer autônomo, que tende à massificação das ideias. A sociedade brasileira na alta modernidade tem optado por reproduzir a globalização da indústria de entretenimento e da comunicação de massas. A vida proposta pela alta modernidade, para além dos problemas estruturais da sociedade brasileira, nos faz inquietos e superficiais. Visa o espetáculo e se perturba diante de perguntas que procuram razões. Desafiados a avançar, os batistas entendem que aquilo que parece não necessariamente é, e o que não parece, pode ser. Não dá para depositar confiança nas expressões culturais desta alta modernidade.

A fé exige um pensar que não se atrofie e a espiritualidade não é um adversário, mas um aliado indispensável, precioso, na construção do sentido da vida. A razão sem fé, embora verdadeira, não é razoável, torna-se racionalismo. A razão, convenientemente conduzida, reconhece que há coisas que estão além dela, e que é incapaz de penetrar a contento no mistério da vida e do universo. Aceita seus limites e, portanto, a existência de dimensões para além dela. No entanto, mantém abertura e espírito de crítica. Isso impede que ter fé seja dizer ou fazer qualquer coisa.

Atualmente, temos a piedade emocional exuberante, quente. Cultiva afetos, mas teme o pensamento. Temos, então, dogmatismo, fundamentalismo, que ensina a olhar, a fazer, a dizer, formata opiniões blocadas sobre o mundo. Oferece certezas e, por extensão, conforto e preguiça. Foge das questões e perguntas dolorosas. Essa forma de piedade repousa sobre o realismo literalista. Mas temos um outro lado, a vida no questionamento permanente, que duvida da possibilidade da verdade, embora busque freneticamente a descoberta. Repousa sobre o ceticismo nihilista. 

Ora, fé implica em crença, paixão e sentimentos, é experiência com o mistério do Eterno. As Escrituras judaico-cristãs desafiam o amor humano a se realizar diante do Eterno com coração, força, mas também com o pensar. E é esse pensar que aprofunda, fundamenta e direciona a fé. Essa compreensão se contrapõe ao realismo literalista e ao ceticismo nihilista.

O estudo histórico das Escrituras judaico-cristãs, principalmente o Novo Testamento, é uma necessidade. É necessário conhecer a antropologia e a cultura judaicas e não somente o grego koinê. O Novo Testamento não é revelação ditada, mas testemunhos da revelação. É um conjunto de escritos que nos dizem como pessoas, os discípulos, receberam e compreenderam o que Jesus disse e fez no meio do povo.

Jesus mesmo não escreveu. Sabemos de sua doutrina e vida por aquilo que os discípulos relataram. Suas idéias encontram-se nas suas histórias. Dondem temos a documentação neotestamentária, como textos fundantes, para conhecer Jesus de Nazaré e sua pregação. Mas a investigação do Jesus histórico pode continuar, ao menos no nível acadêmico, se utilizarmos outras fontes e métodos, que remetem ao estudo dos textos e contextos, embora muitas vezes ofereçam mais hipóteses do que certezas.

A tradição cristã dá mais importância à pessoa de Jesus do que aos seus ensinos. O Credo apostólico diz a respeito dele: "... foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu aos infernos, subiu aos Céus ...". Menciona assim o Cristo da fé, encarnação, morte e ressurreição, mas omite seu ministério.

Os eventos crísticos, que são ensinamentos, histórias e relatos, muitas vezes são esquecidos. Não podemos construir uma fé transformadora apenas sobre o Credo. A vida do Evangelho está no que Jesus disse, na forma como apresentou a ação e a presença do Eterno. Assim como sua concepção da existência, sobre o significado da fé. Para o ser humano, a mensagem é tão importante quanto o mensageiro. Em teologia dizemos que Cristo cumpre três funções, um função real – reina sobre o mundo --, uma função sacrificial -- foi oferecido em sacrifício para a salvação dos seres humanos – e uma função profética -- prega e ensina.

Certas correntes do catolicismo romano e ortodoxo privilegiam a função real. O protestantismo magisterial realçou a função sacrificial. Mas não podemos deixar de lado, como que esquecida, sua função profética.

A crucificação de Jesus que respondeu a circunstâncias históricas, dentro do projeto de redenção, é uma necessidade teológica para a salvação dos seres humanos. Passagens neotestamentárias falam da morte de Jesus como sacrifício oferecido ao Eterno, como pagamento pela alforria. Mas esse projeto redentivo estaria capenga sem a função profética, que fez dele messias e salvador.

A mensagem de Jesus foi apresentda dentro das categorias judaicas do pensamento de seu tempo. Temos, então, de traduzi-la, ressignificá-la, não para deformá-la, mas para mantê-la relevante e viva. Para que possa ser aplicada à realidade brasileira, e seja aplicada a nossa existência.


Jorge Pinheiro, pastor batista






jeudi 5 novembre 2020

Moshe Pinheiro, rabino italiano

A existência, a justiça e a imortalidade


Moshe Pinheiro, rabino italiano, que viveu em Livorno, no século XVII, foi um dos discípulos mais influentes de Shabbetai Zebi, com quem estudou literatura talmúdica e cabalística (1640-1650). Mas não apoiou as reivindicações messiânicas de Shabbetai Zevi, em 1648. Por volta de 1650, deixou Izmir e se estabeleceu em Livorno, onde se tornou um mestre respeitado.
 
E aqui partimos de algumas de algumas reflexões dos ancestrais que nos remetem à questão da justiça. Ou, se recorremos ao Séfer ha Neshamá, a letra jota no alfabeto hebraico tem sentido especial porque para representar a vida (חיים, jayim), precisa de equilíbrio, e por isso se situa entre hesed e gevurah. Isto porque a vida exige um equilíbrio delicado para sua manifestação: nem muito calor, nem muito frio, nem muita expansão, nem contração demais, nem muita dureza, nem muita suavidade, nem muita luz, nem muita escuridão. E assim está associada à justiça, que é a qualidade de ser justo, mas também preciso.
 
Mas há uma outra imagem, muito interessante, que parte da compreensão do Sefer Yetzirah. Nessa imagem, o jota corresponde a uma mulher sentada num trono, que tem uma espada na mão direita e uma balança na esquerda. Ela olha para a frente com os olhos bem abertos. Seu olhar encontra o nosso como um espelho que reflete fielmente o nosso interior. A espada voltada para cima é a espada da verdade, que decepa mentiras e tudo que está fora da Lei. A balança representa o equilíbrio necessário entre polos opostos, e está ligeiramente desequilibrada para um lado, já que a perfeição não existe no mundo manifesto, no qual tudo oscila em maior ou menor grau. O equilíbrio não é permanecer estático, mas evitar a polarização excessiva. A mão com a qual ela segura a balança destaca seus quatro dedos: são os níveis de nossa humanidade: espiritual, mental, emocional e físico, que se encontram com o polegar. É uma mensagem de unidade na diversidade. 
 
Assim, se no corpo existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de idéias e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro, do mental, e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é.
 
Tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência vai além do corpo ou só existe o corpo e o resto é extensão dele. Mas como combinar uma indigestão com o arrependimento?
 
Prefiro, seguindo os ancestrais, dizer que somos substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos além do corpo. A existência é essa extensão e cada pessoa tem uma identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una por ser simples e indivisível. Mesmo quando a gente envelhece e o corpo muda, a identidade permanece idêntica a si mesma. Somos um ao longo do tempo e é esta imutabilidade na existência que me confere identidade. Mas continua a leitura ... vamos ver isso mais profundamente na construção e na conclusão destas reflexões.
 
Vamos aprofundar os argumentos. A existência está unida ao corpo e participa da vida do corpo, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também é independente do corpo nas suas funções intelectuais. Deste modo, a existência pensa e deseja sem a ajuda destes órgãos. Assim, a existência não está imersa no corpo, é independente sob diversos aspectos.
 
Lembro-me de que Aristóteles dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as idéias? Ser inteligente, pensar são atividades da pessoa ou da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. A existência goza de livre arbítrio.
 
A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa para se expressar de um cérebro saudável.
 
O cérebro é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos. 
 
Talvez a existência seja a nefeche raiá soprada em nossas narinas, que será construção no caminhar de nossas experiências, sentimentos, emoções. E se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.
 
O reinar já chegou e começa no aqui e no agora. Esta vida no reinar é a “vida das eternidades”, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é deixar que o Eterno reine no pessoa e no corpo, o céu é a continuação do reinar do Eterno, mesmo após a morte.
 
A morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano continua após a morte o seu relacionamento com o Eterno, seja como for o mesmo -- na intimidade do reinar do Eterno ou na separação do Eterno, o inferno.
 
Se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. Pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo material.
 
Vimos que a correlação íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, sensibilidade, inteligência e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. Esta mesma correlação se verifica entre as operações psicológicas e as funções orgânicas.
 
Uma comoção violenta da existência faz parar a circulação do sangue, o medo paralisa, e a confiança sustenta as forças físicas, o trabalho intelectual intenso retarda a digestão, poder-se-ia citar fatos que provam a influência do físico no moral, e reciprocamente. Demonstrada a união da existência e do corpo, como se faz esta união? O corpo não existe antes da sua união com a existência. Da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele ser humano.
 
Assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. Quanto à existência, sem dúvida que existirá separadamente do corpo, vivendo a sua vida espiritual mas, sem o corpo, não mais poderá exercer as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a sensibilidade, a percepção externa e a imaginação.
 
Deste modo se conclui que o corpo é a matéria, e a existência é a forma, e que a união do corpo com a existência faz um todo verdadeiro e substancial. É esta união no ser que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência. É este o princípio que coloca em cheque o racionalismo.
 
Com a morte, o corpo se dissolve. Acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? O que é a imortalidade?
 
A imortalidade consiste na sobrevivência substancial e pessoal do eu, na identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de conhecer e amar, sem as quais não há felicidade humana. Após a morte, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do seu passado, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem castigo: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça divina. A metafísica afirma que a existência é imortal por sua natureza não corruptível. A razão para a sua sobrevivência após a morte do corpo é demonstrada pelo argumento moral. Que esta sobrevivência é indefinida e ilimitada, prova-o o argumento psicológico.
 
O corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência. A existência ao ser como é, simples e espiritual, não pode decompor-se nem se desagregar -- não morre, pois, com o corpo. Este é o argumento metafísico da imortalidade da existência.
 
Se há o Eterno e lei moral, a justiça exige absolutamente que o crime seja punido e a virtude seja recompensada. Neste mundo, nem a natureza, nem a sociedade, nem a própria consciência dispõem de sanções suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício; é necessário, portanto, que haja outra vida onde a justiça seja plenamente satisfeita, e a ordem seja estabelecida. Este é o argumento moral, que demonstra a sobrevivência da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração.
 
O argumento psicológico, que prova a perseverança da existência humana depois da morte, assenta sobre o princípio de que o Eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. Tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. Mas, se não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. E como felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.
 
O ser humano aspira a um objeto infinito, a uma verdade, beleza e bondade absolutas, cuja posse nos deve fazer felizes. Nossas faculdades superiores possuem capacidade ilimitada, que não se pode satisfazer fora deste bem infinito, que não é outro senão o próprio Eterno.
 
Mas, o que encontramos neste mundo que apague esta sede de felicidade humana, que preencha o vazio do coração criado para o infinito? A natureza é tão limitada e o mundo tão pequeno; esta vida é tão curta e a realidade tão imperfeita! Queremos amar, queremos viver o mais possível, mas encontramos decepção, dor e morte. Assim, é evidente a desproporção entre os nossos meios e as nossas necessidades.
 
O conceito hades é a expressão grega utilizada na Bíblia dos setenta para traduzir o termo hebraico sheol, lugar de continuidade daqueles que deixaram o mundo dos vivos. Na Torá, sheol é uma expressão de origem incerta, mas que aparece 65 vezes no testamento hebraico-judaico. O conceito sofreu mudanças ao longo da história da religião judaica. No rolo de Eclesiastes, por exemplo, nem entra em cogitação a possibilidade de uma vida além-túmulo. Quando, porém, surge na religião de Israel a construção do conceito de vida além-túmulo, surge como lugar de silêncio. O termo sheol, aparece, no entanto, ao lado de outros, como abadon, cujo primeiro significado é destruição, mas vai ser lido também como reino dos mortos. As duas expressões, porém, são imprecisas e estão muito vinculadas ao contexto em que estão inseridas. A idéia geral mais ampla seria de lugar dos que dormem. No rolo do patriarca Jó, abadon é a personificação do lugar de destruição. E o tehom, que pode ser traduzido por profundezas, abismo e, inclusive, pela idéia de deserto são símbolos da religião antiga de Israel para o mundo dos mortos. E uma das passagens mais ilustrativas do conceito de sheol está no rolo do profeta Isaías.
 
“O sheol desde o profundo se turbou por ti, para sair ao teu encontro na tua vinda; ele despertou por ti os mortos, todos os que eram príncipes da terra, e fez levantar dos seus tronos todos os que eram reis das nações. Estes todos responderão, e te dirão: Tu também estás fraco como nós, e te tornaste semelhante a nós. Está derrubada até o sheol a tua pompa, o som dos teus alaúdes; os bichinhos debaixo de ti se estendem e os bichos te cobrem. Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra tu que prostravas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas do Eterno exaltarei o meu trono; e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do norte; subirei acima das alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. Contudo levado serás ao sheol, ao mais profundo abismo.”
 
O contraste entre o desespero que se agarrava às existências dos homens no sheol, e a esperança que surgia pela esperança da ressurreição, está expressa no apocalipse do profeta Isaías. Ele diz com respeito aos ímpios: “Os falecidos não tornarão a viver; os mortos não ressuscitarão; por isso os visitastes e destruístes, e fizeste perecer toda a sua memória”. E tomado pela esperança declara que “os teus mortos viverão, os seus corpos ressuscitarão. Despertai e exultai, vós que habitais no pó, porque o teu orvalho é orvalho de luz”. O ser levantado para a vida é realidade do Eterno e do coração reto humano diante do Eterno. No texto cristão do Apocalipse, a morte e o hades são jogados no lago de fogo e sua força sobre a existência é aniquilada, de forma que tais poderes ficam sob o domínio do Eterno.
 
Ao retratar o conceito de inferno, com o emprego de termos como sheol e hades, os limites dos conceitos estão determinados pelas conotações das cosmologias antigas. Na cosmovisão hebraica de universo, o sheol fazia parte do mundo subterrâneo. O rabino de Nawaré trabalha a partir dessa cosmovisão, mas sua intenção na parábola não é realçar a dimensão espacial, mas a realidade relacional. Por isso, inferno não é tanto dimensão espaço-temporal, mas estado de solidão, separação, do Adon da vida. A leitura hebraico-judaica realçava o conceito normativo de retribuição. O justo recebia recompensa material, e o injusto carecia de bens, prazeres e saúde. Ricos eram naturalmente abençoados pelo Eterno e dignos do reino messiânico. Mas o rabino de Nazaré desconstrói essa normatização e nomeia o mendigo. É interessante notar que o pobre tem nome, é Lázaro, mas o rico não.
 
Lázaro é Eliezer, aquele a quem o Eterno ajuda. É grego transliterado. Ter nome compõe identidade, nomeia o quem é quem. Há aí distinção entre o valor da vida do pobre em relação ao rico. Naquela sociedade o rico tinha destaque, e atuava com desprezo frente ao mendigo. O Eterno, porém, o socorre. O rabino de Nazaré faz, assim, críticas às práticas dos fariseus: a negligência para com os despossuídos de bens e direitos, o fazer bem aos que podem retribuir, o orgulho e a infidelidade à lei, que exige amor ao próximo. O ensino do rabino nos últimos capítulos do evangelho do discípulo São Lucas está resumido nesta parábola.
 
O rabino de Nazaré fala da vida e embora trabalhe dentro da cosmologia hebraica antiga, levanta algumas questões que direcionam o pensar além-túmulo: há consciência do estado, memória, juízo imediato, mesmo que intermediário, o que implica em alguma forma de retribuição. Há conforto para os justos oprimidos, não há mudanças no juízo, e a informação para receber o descanso está na lei e nos profetas. Assim, o Eterno se preocupa com aqueles descartados pela sociedade. Não há retorno para esta vida terrestre após a morte. A confiança no Eterno é o único mérito de Lázaro, que se expressa no nome que tem. A vida neste mundo é de pouca valia quando se passa à dimensão além-túmulo.
 
Uma pergunta que provém do estudo da parábola pode bem ajudar a redefinir as prioridades do quotidiano. Que diferença faz a presente circunstância ou forma de atuar em termos de vida daqui a dez mil anos? Em certo sentido, é esta a pergunta do rabino aos fariseus através desta e outras palavras de ensino. Em outra passagem se registra as palavras do rabino em reação à preocupação de ter um corpo inteiro na ressurreição -- para tal queriam guardar qualquer parte do corpo que fosse amputado para ser incluído com o resto do corpo no sepultamento. Nesse contexto, o rabino de Nazaré diz que é melhor arrancar e jogar o olho fora se fizer a diferença no ingressar no reinar de Deus. Muito melhor viver no reino coxo, cego, ou aleijado do que perder o reino por completo.
 
Logo, se há um Eterno sábio e justo, esta contradição não pode ser definitiva; deve haver outra vida onde se restabeleça o equilíbrio entre o que desejamos e o que podemos, uma vida em que sejamos perfeitamente felizes. A duração ilimitada da imortalidade constitui o elemento essencial da felicidade completa; não se pode gozar plenamente um bem quando receamos perdê-lo. A incerteza dói tanto mais quanto maior é o bem possuído.
 
Logo, a vida futura da existência, a imortalidade, não tem fim, é infinita e ilimitada, e a sua tendência natural é a prática da virtude, em conformidade com os desígnios do seu criador, o Eterno.
 
Jorge Pinheiro
 
  

Os limites da existência, terceira parte

que bom saber que o eterno cumpre o que promete. yoffe estava sob a guarda da eternidade. miriam só tinha que ter paciência. qualquer dia ele entraria por aquela porta e a saudade cederia lugar à alegria do reencontro.
  
13.
 
o segundo limite da vida 


noite alta, o segundo limite da vida, mestra da lucidez e palavras, ficou pensando na viagem e na última coisa que o primeiro limite, morador dos castelos de edom, dissera antes de se retirar para a sombra de sua figueira: “limite bem sucedido trabalha em equipe. nós estamos incompletos: o terceiro limite é a parte que falta para criarmos o paraíso que desejamos”. palavras difíceis, como poderia catalogá-las?
 
amo essa terra, adoro essa hora da meia-noite. pensou. sem lua, sem aragem, esse silêncio de tudo. essa é a hora dos meio tons. não está gelado, mas faz frio. está escuro, mas não completamente. existe o mais e o menos. é a hora mais difícil para os humanos. eles ficam inseguros, procurando algo que se mova, que faça um ruído. ao menos uma folha, mas nada. e eu também fico quieta, acompanhando a ordem natural do momento. é certo que o céu está cheio de nuvens, que brincam de fantasmas com as estrelas. mas eles nem percebem. são seres medrosos.
 
às vezes, vem uma nuvem gorda, roliça de gula, e engole um punhado de estrelas. e fica mais escuro. é aí que as árvores e seus galhos secos começam a se espreguiçar. é o momento. vem um vento frio, desses que saem do fundo do inferno. sacudo a solidão eterna, espicho as pernas, vou até a cidade da consolação e começo a falar com os vivos.
 
sou amiga de merodach e sarpanitu. vivi e fui adorado em borsipa, mas na primavera desse país, o primeiro limite ia passando pela beira do grande rio do deus-morto, quando ouviu um soluço fino. um lamento do fundo das trevas. era eu. tinha sido desterrada, exorcizada para os confins do inferno. depois de muitas eras, vim para o cinturão de fogo. é aqui, a 2.660 metros, bem no alto, rodeado de neve, a minha casa, hueñunauca, há doze mil anos acendo o osorno.
 
e lá em baixo, no llanquihue, refletido no lago, vê-se a silhueta do vulcão que esquenta as minhas noites geladas. sua presença imponente domina a paisagem.
 
quem olha para a maravilha, mal pode imaginar os estragos que eu orquestro. na primavera, quando os loucos se apaixonam, derreto o gelo e formo um violento aluvião de barro, cinza, lava e troncos, que arrasta tudo que encontra pela frente. depois da corrida do vulcão, deixo fluir a lava, que incendeia tudo por onde passa. fiz isso em 1851 e foi um sucesso, mas agora tenho outros planos. gosto do gelo das geleiras. esta é a minha casa, a casa do limite. e foi por esses vulcões que entrei no mundo da violência e da morte, pelas mãos da minha irmã, o limite das onze horas.
 
posso estar velha e passar as noites aterrorizando os humanos que encontro, mas tenho bom ouvido. gosto de colecionar as palavras, tirando delas todo sentido, misturando tudo num saco de gatos -- que linda expressão --, e depois soprar nos ouvidos desatentos, convencendo salvos e perdidos de que tudo o que se ouve reflete apenas a loucura do mundo dos homens. falar sobre a vida não é fácil, já que eu estou do outro lado. mas é minha especialidade. a memória humana é uma colcha de sensações. eles sempre se lembram da dor das pedras. o momento suave é fugidio, escorrega na lembrança, mas o chute fica grudado. assim são eles. suas lembranças estão escritas no corpo: a mentira dita casualmente, o roubo rápido e furtivo, o aborto que ninguém soube. tudo fica escrito. até as marcas da saudade não se apagam. e para eu soprar no ouvido deles, basta uma leitura lenta, quase uma tradução de cada cicatriz, de cada marca.
 
aprendi a caçar os fantasmas humanos. mergulho no charco de suas vidas, farejo sentimentos escondidos, estraçalho lembranças esquecidas, levanto cadáveres antigos e mal cheirosos. não há matagal ou pântano que eu não atravesse para chegar à uma boa história de desespero. quem me ensinou esta especialidade limítrofe foi o limite das onze horas. no início ela me disse que o mundo das palavras fica aqui, entre ruínas, e que, por isso, não havia razão para eu me afastar. bastava aprender, com ela, a viajar na memória dos humanos. sempre levo comigo uma bolsa. é a bolsa onde guardo as palavras que vou achando no meio do caminho. são palavras fáceis, como exatamente, que parece precisa, mas que transformo numa centopéia lânguida. ou palavras difíceis, como formidável, que vira uma trilha de formigas incendiadas. são palavras de pobre, como cuspe, frio e maleita. são palavras das quatrocentas, como treme-treme e sezão. junto todas elas e à noite vou tirando-as do saco.
 
tenho o meu catálogo, que é infinito como as estrelas do azulão. e aí, sozinha, vou colocando cada uma delas na sua forma. e ficam todas sem alma: as más, as boas, as alegres, as tristes, as grandes, as pequenas, as gordas, as finas, as de morte. e vou formando frases, que classifico de furtivas, de paixão e destruidoras. o limite é formidável é, logicamente, uma frase furtiva, pois compara o velho  limite das onze horas a uma centúria de formigas flamejantes. na semana santa vou comungar é uma frase de paixão, pois se refere à morte de um deus. e a paixão e a morte são irmãs-gêmeas. ninguém está vendo é uma das minhas frases prediletas, é destruidora. é a porta de entrada da minha casa.
 
ao contrário de nós limites, na vida das gentes sempre ocorre um encontro de grande significado, encontro que modifica o prumo de seus sonhos. lembro-me de um jornalista que não tinha dúvidas. vivia com uma jovem italiana e, no fundo do coração, queria ser o dono do mundo. nessa época, eu, e meus dois outros limites  trabalhávamos juntos. tínhamos organizado uma grande festa.
 
era noite de lua cheia. corpos cheios de limites tinham montado gigantescos labirintos, que terminavam num círculo formado por toras de madeira. representavam os mortos esquecidos e os lembrados. no meio do círculo, comida. do fundo da terra e do oco das árvores saiam sons lindos e terríveis. sons de cantar, dançar e de fazer sexo. nunca me esqueço. o luar cobriu a floresta.  sharon vestida de teias e chorando a sinfonia quatorze de shostakovich penetrou no labirinto e depositou um gato, chamado miró, numa cova rasa. eu, cheia de palavras, resfolegando e soltando fumaça pelas narinas, recitava uma pequena carta de artaud: ... somos a força da vida, mas esta não é eterna, seja ou não o hálito de deus, o que respira não é eterno, e até o hálito-deus tem seu tempo contado. 
 
e sharon pensou: e se vida for uma só. e se a morte do miró for também a minha morte. e se esses dias, quando a vida dele vai se esvaindo, for também um esvair-se da minha vida. e se esses dezessete anos de vida em comum, dividindo a mesma casa, conversando em idiomas diferentes, mas muitas vezes multiplicando emoções e sentimentos, são parte de um todo que eu vejo como caleidoscópio? claro, eu sei que você vai dizer que não é nada disso. que ele é apenas um gato e eu sou apenas uma humana, não tão racional neste momento. e outros vão me achar boba, cheia de sentimentos infantis, piegas, porque estou com emoções em desequilíbrio e triste porque o gato do rabino que, na verdade, é o gato da filha do rabino, está a morrer de velhice aos dezenove anos de vida felina. 
 
e a vida vai deixando ele devagar. vai morrendo aos minutos, às horas, mas de forma vagarosa. não está sofrendo, só deixando de viver. o gerúndio aqui é o jeito mais perfeito de dizer, vai deixando de viver. é como se a vida estivesse nele em camadas, e fossem se desfazendo no ar. ou quem sabe, se de fato tivesse sete vidas que fossem se desprendendo não uma a uma, mas cada uma delas em primeiro lugar formasse uma bolha de vida ao redor dele e essa bolha fosse se esvaziando aos poucos. e é possível que cada uma dessas bolhas dure dias. dias sem comer, sem beber, sem miar, mas que permitem a ele olhar para mim com olhos fundos, mas fundos mesmo, olhasse de dois buracos, e me dissesse, chefa você falou com o eterno sobre mim? a vida que ele me deu, as sete, estão a se esvaziar, cada uma delas, mas quero lá na frente estar contigo, como seu companheiro e matemático. 
 
eu sei miró, nós falamos sobre isso nesses dezessete anos de convívio, quero você lá comigo. falei com o eterno que quero você lá. e como você sabe, e como ele sabe, quero você como meu matemático. meu gato matemático, que sabe falar a linguagem do meu coração e sabe fazer todos os cálculos que eu preciso, como por exemplo a equação para se conhecer a hipotenusa, ou outras mais complexas como a equação de hagen-poiseuille. e querido miró, inteligente, falante e matemático, você vai me dizer que esta é a equação do físico francês jean louis marie poiseuille, que relaciona o caudal q de um tubo cilíndrico transportando um líquido viscoso com o raio r, comprimento l, pressão p e coeficiente de viscosidade n. 
 
e que a equação de hagen-poiseuille é uma lei da física que descreve um fluxo, que não pode ser comprimido, de baixa viscosidade através de um tubo de seção transversal circular constante. e eu vou rir porque sei que é isso mesmo, mas eu quero ter você ao meu lado em minhas viagens por essa eternidade do eterno.
 
mas, por enquanto, estou vendo o seu momento que me parece um momento difícil. as bolhas que se esvaziam devagar, e você quieta conversando com a eternidade. é um momento seu, talvez um momento de sabedoria, de conversa de amigas. e eu só posso olhar e pensar que quero entrar na conversa também. ontem, como boa protestante, cheia do meu jeito brasil, também conversei com o eterno. e disse para ele, que se a minha alienação existencial era a responsável pelo esvair-se de sua vida, que ele me perdoasse. e ele disse para eu deixar de ser convencida, pois o esvair-se da vida é o momento mágico do renascimento. e eu calei o meu pensamento, entendendo perfeitamente que você vai continuar comigo, ranzinza, reclamante, mas cheio de matemáticas, ao meu lado, neste cruzar eterno da eternidade sem fim.
 
estou saindo agora para minhas lides, e se a última bolha se esvaziar... nos vemos depois. te amo, miró. obrigado pela parceria nesses dezessete anos, que projetam a eternidade no meu coração e em nossas vidas.
 
e como não fazíamos há muito tempo, utilizando corpos expropriados, comemos, bebemos, dançamos e fizemos o sexo dos loucos, malditos e suicidas. foi então que apareceu o rapaz. ele olhou, mas não viu. nós vimos, lembramos velhas histórias e falamos.  sharon, toda sensual, chamou: menino, entra na roda.
 
ele levou um susto. não entendeu como sabíamos o nome dele. mas cheio de orgulho, aceitou conversar. quem é você?  sharon respondeu: você sabe, entra na roda e vem dançar comigo.
 
o corpo do terceiro limite era lindo aos olhos humanos. usava um vestido vermelho rodado, todo trabalhado em renda branca. sorria para ele, dançava fazendo o vestido levantar. sob a luz da lua, a cena era encantadora. os atabaques batiam no ritmo do coração. o ar era de sensualidade e magia. cuidadoso, mas cheio de autoconfiança, o rapaz respondeu: não posso entrar aí. sou filho do eterno da guerra.
 
ah! se ele pudesse ouvir nossas gargalhadas. quisemos saltar dentro dele. era uma casa nova, quase limpa, se comparada às que tínhamos. partimos para o ataque, mas uma espada nos impediu. ele pertence à eternidade. estão proibidos de romper os seus limites e tocar na vida dele. esta é uma ordem diante da qual os limites se dobrarão.
 
aquela luz brilhava demais. feriu nossos olhos, apavorou nossos corações. nossa festa tinha chegado ao fim. o ódio odiado estremeceu os corpos que ocupávamos. urramos, gritamos e fizemos com que se lançassem uns contra os outros. depois, semimortos, os abandonamos ali. a partir daquele momento, resolvemos estraçalhar a vida daquele que nos perturbara.
 
nenhum encontro é casual. há sempre aquele que busca. só que nem sempre o que se encontra entra na forma da imaginação. descobri que a carne sente o gosto da madeira e do metal, mas também do ódio e da mentira.
 
no verão, quando sopra aquele vento quente da madrugada, saio pelos montes, atravessando paredes e casas. transformo o calor no frio da morte, mato a esperança com uma palavra de medo, destruo a aliança com um sopro de adultério. sobrevoo as árvores, matas e rios, envolvo tudo em trevas, tudo que vejo, imagino ou pressinto. as folhas que se mexeram sem minhas ordens, a mancha escura da nuvem que corre fugaz, o pensamento feito ladrão, que assalta e mata. e o tempo, para que serve? 
 
 
eu transformo o tempo na memória da solidão. minhas palavras são punhais assassinos. elas amedrontam a noite e congelam o dia. e eu fico encantada, como num conto de fadas. afinal, sou o segundo limite, mestra da loucura, um limite muito especial, cheio de malícia e de palavras. 
  
14.
 
espero alegremente a saída


vai e goza a vida com a mulher que tu amas, pois isso é tudo o que você vai receber pelos seus trabalhos nesta vida dura que a eternidade lhe deu, disse aquele que anuncia. 

diego rivera e frida kahlo serão pintores, peregrinos e apaixonados. o pensamento está na ponta de suas mãos, nos olhares. eles vivem em seus corpos, como numa dança, num ato sexual, e se projetam em seus quadros, é assim que se falará deles. a pintora e sua arte virarão tela na produção estrelada. 

atípica, frida não será apenas pintora, mas uma das mais incríveis personalidades do século vindouro. viverá de forma intensa, até morrer deixando não apenas os seus quadros de trágica beleza, mas ideias. será filha da revolução e terá uma vida marcada por tragédias. vai contrair pólio, será para as amigas do colégio frida perna de pau... 

agora, vou olhar para trás. anos mais tarde, quando já havia superado a doença, o ônibus em que viajava chocou-se contra um bonde. sofreu múltiplas fraturas e uma barra de ferro atravessou-a, entrando pela bacia e saindo pela vagina. por causa do acidente fez várias cirurgias e ficou muito tempo presa à cama. começou a pintar durante a convalescença, quando a mãe pendurou um espelho no teto. 

"eu pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor". 
pintou os medos e o amor por diego, o marido. produziu uma arte íntegra e, em toda a vida, não aceitou nada que limitasse sua liberdade. pintar significou declarar amor por diego, o sofrimento desse amor, o limite terrestre e a crença na eternidade do amor. escreveu em seu diário:

diego-princípio, diego-construtor, diego-meu menino, diego-pintor, diego-meu pai, diego-meu filho, diego-meu amante, diego-meu esposo, diego-meu amigo, diego-minha mãe, diego-eu, diego-universo, diversidade na unidade. por que o chamo meu diego? nunca foi nem será meu. é dele mesmo.

frida se tornou membro da trilha em 1928. alguns de seus quadros, como o auto-retrato com stalin, revelam a fé no comunismo. foi nessa época que conheceu diego rivera.

apaixonaram-se e se casaram no ano seguinte. há quem afirme que foi um casamento meio por amor, meio por ser diego alguém que a compreendia. diego tinha muitas amantes e frida, por mágoa ou opção, teve alguns. um desses amantes de frida foi o revolucionário russo león trotsky, quando do exílio no méxico. 

frida pintou, em 1926, o auto-retrato com vestido de veludo, o primeiro trabalho sério de sua vida e que deixava entrever o interesse pela pintura renascentista italiana. nele, ela retratou o seu pescoço de forma alongada, ao estilo de amedeo modigliani, numa pose aristocrática e algo melancólica. a partir desse momento, seus trabalhos passaram a evidenciar não apenas anseios profundos, como sentimentos ambíguos e a realidade de suas crenças. 

"pensaram que eu era um surrealista, mas eu não era. nunca pintei sonhos. pintei a minha própria realidade". 

ao final da vida, como na juventude, a revolução voltou a ter força para o marido diego. ele retomou o caminho da sua arte, imperioso, sensual, que escapa a trivialidade e inventa a lógica do extraordinário. diego morreu em 25 de junho de 1957. três anos após a morte de frida, em 13 de julho de 1954, de embolia pulmonar. 

na última página do diário de frida, diante do anjo da morte, palavras cheias de beleza expressam sua postura diante da vida: "espero alegremente a saída -- e espero nunca mais voltar -- frida". 

e eu pergunto, os peregrinos vão para o céu? para além da metáfora, ir para o céu é liberdade na eternidade. para aqueles que consideram a possibilidade da liberdade eterna, conforme acreditarão muitas pessoas, na plenitude do tempo todas as pessoas renascerão para a vida restauradas para a eternidade. hosea ballou, dirá no futuro em seu tratado sobre a expiação, que o sacrifício não é uma posição jurídica, mas moral. 
 
sofremos a violência para a humanidade, mas não em seu lugar. a liberdade dos humanos leva à morte, e este é o último limite. libertação é amanhã, é ir além dos limites da alienação e dos alvos errados, mas, também é presente que nasce da misericórdia: amizade com o sem fim e fora de todos os limites. donde, fica a provocação: os peregrinos vão para o céu?
 
 
a terceira chave
os bons ventos da paz
  
15.
  
quem não gosta de wilhelm reich?
 
 
este inverno está terrível. eu e reyna estamos nos separando. não tem lógica nenhuma. eu a amo, eu preciso dela, mas não aguento ir ao pedagógico, assistir aulas, vê-la alegre e cercada de amigos.
 
ando deprimido, não consigo aceitar a československá como minha nova morada, com a possibilidade de nunca mais voltar ao  a terra dos brasis. o frio, as árvores desfolhadas, esse sol de virilidade duvidosa que não esquenta nada, nem ninguém...
 
hoje resolvi andar sem destino. peguei a bernardo o’higgins e caminho como se carregasse um trem nas costas. o inverno de praha é noiva a caminhar para o altar. e eu carrego o meu trem nevado sobre terra e sob céu, brancos. paro num bar, sento e peço um conhaque. tiro um livro do bolso e começo a ler. sou professor assistente da cadeira de psicologia social. dou aulas de reich.
 
a análise do caráter e a revolução sexual estão entre meus livros prediletos. tenho nas mãos o livro de um autor que não é encontrado nesta československá de masaryk/dubček. os peregrinos não gostam de reich e pressionam para eu desistir de meu projeto. 
 
a vida é tão simples (...). apenas torna-se complicada pela estrutura humana caracterizada pelo temor à vida. a consecução geral teórica e prática da função vital e da segurança de sua produtividade chama-se revolução cultural. sua base somente pode ser a alegria do trabalho natural. amor, trabalho e saber são as fontes de nossa existência. deverão regê-la também, afirma o amigo reich. eu até acho que ele tem razão, mas nunca vi alguém viver isso.
 
irina, minha amiga e catedrática de psicologia social, me enturmou com um pessoal que está realizando uma experiência inédita aqui em praha, uma clínica de terapia de grupo ao ar livre, com jogos, pouca roupa e muito rock. é meio woodstock, mas eu gosto. só não sei se vai dar certo. já tive vários problemas.
 
vi minha terapeuta transando com um dos nossos. vi por acaso, mas não gostei. na verdade, morri de ciúme. márcia é uma jovem belíssima. do tipo loira esguia. às vezes, tomamos banhos juntos, todo mundo, debaixo de uma árvore centenária. somos uns dez, mais ela e rodolfo, outro terapeuta.
 
num desses dias, estávamos sentados em roda, e márcia pediu que eu expressasse o que sentia para um jovem que estava ao meu lado. ele se levantou. eu me levantei e dei-lhe um soco no meio da cara. foi a maior confusão. mas por que você fez isso? e o sujeito chorando. chorando de soluçar. imagina, chega na terapia e leva um soco na cara.
 
por que eu fiz? porque queria. você não disse para eu me expressar? então quebrei a cara dele. pressionaram e eu dei um abraço nele. pedi desculpas. ele aceitou.
 
outra vez saímos da terapia, em grupo. estávamos, não sei porque, na maior felicidade. ríamos, brincávamos, quando saiu um sujeito de um bar e passou a mão, espalmada e vagarosamente, nas partes de liliane. a menina deu o maior berro, de susto, imagino.
 
dei um grito, um salto e quebrei o nariz do sujeito. ele correu para dentro do bar, com a mão no nariz. os amigos pegaram tacos de sinuca e vieram contra mim. parei no meio da rua e comecei a lutar contra uns cinco. todo o esforço do lurton, que nos dava treinamentos especiais para briga de rua, floreava naturalmente. eu era um bailarino, voando nos peitos daqueles coitados.
 
uma mulher, cambaleante de bêbada, com uma criança no colo começou a gritar desesperadamente.
 
-- ele deu um murro no meu filhinho, deu um murro no meu filhinho.
 
perdi a concentração. o balé perdeu seu ritmo, pessoas começaram a me rodear e, de repente, uma multidão correu atrás de mim. os dos tacos de sinuca, gente com paus e pedras. uma multidão. eu ia ser linchado...
 
liliane me salvou. chamou a polícia, que de viatura e sirene aberta me agarrou e me levou para a delegacia. mas a multidão não desistiu. correu para a delegacia. queriam me linchar de qualquer jeito. eu era um perigo para a pacífica  československá.
 
e uma outra história foi contada ao delegado. eu, um carateca humano, louco, havia esmurrado uma criancinha de colo e, por isso, aqueles pacatos jogadores de sinuca se sentiram na obrigação de defender a criança e sua mãe.
 
depois de umas duas horas de xilindró, a situação se acalmou e o delegado me chamou. já tinha ouvido o depoimento de liliane e do pessoal da terapia. ouviu o meu, me deu alguns conselhos sobre não ficar usando meus conhecimentos de artes marciais por aí, me desejou boa sorte e me soltou.
 
irina e márcia diagnosticaram machismo incurável. liliane gostou, passou a dizer que era seguro andar comigo. 
 
o conhaque é espanhol. reich continua a falar mal da família e da monogamia, diz que a comuna é a nova família. os peregrinos nunca vão aceitar isso.
 
a compulsão à destruição é obsessiva. conheci uma jovem loura e tímida, que acaba de chegar de brasília. joguei reyna fora, sem ao menos me dar conta de que estava vivo graças aos cuidados dela. mudei de casa e iniciei um longo mergulho de sensualidade e niilismo. eu e náiade fazemos sexo doze horas seguidas. e dormimos as outras doze horas. conseguimos passar semanas inteiras sem sair de casa, sendo alimentados pelos amigos, que estarrecidos, deixam as refeições na porta do apartamento, para que não morramos de fome. só depois de um mês de puro sexo saímos pela primeira vez. 
 
é impossível esquecer aquela noite. era inverno, passamos pela casa de gabriel, bebemos muito, e fomos assistir à uma peça de teatro na universidade da československá. antes mesmo de terminar o espetáculo, eu aplaudia e gritava como um alucinado. mal se fecharam as cortinas, pulei no palco e fui abraçar os atores. minha euforia era contagiante. noite gelada, céu estrelado e uma sensação de gaudiosos poderes. náiade se enroscava em mim. estava feliz. todos meus amigos estavam felizes. yoffe superou a crise, está curtindo a vida, apaixonado. não vai se suicidar.
 
aliás, já tinham realizado algumas reuniões de cúpula com mário pedrosa e mary, sobre minha situação. e o velho mário, muito sábio, declarou: "não se preocupem, é uma crise epistemológica. se ele superar, aprende com ela e vai em frente. cresceu. se não superar, se suicida. não merece a vida que tem". todos tinham um amor muito grande por mim. muito grande mesmo. eu era violento, assassino e suicida em potencial, mas meus amigos me amavam. só que eu não tinha tempo para olhar para esses detalhes. o importante era guerrear a guerra da vida. o resto, ora que resto?
 
era noite de são iohanan. convidei um grupo de amigos para jantar em casa. tínhamos feito um peixe assado, o vinho branco estava na geladeira, e íamos servir o jantar à luz de velas. antes, porém, fui fazer uma visita ao iohanan. quando cheguei lá, vi um sujeito que não conhecia e que, coitado, acabava de chegar do rio de janeiro. estava acompanhado de uma moça magra, elétrica, que vestia verde e usava uma boina, imaginem, verde também. parecia um grilo. olhei para o sujeito, gritei que não ia com a cara dele. dei um urro horroroso e pulei com os dois pés do peito dele. o sujeito quase caiu morto: de susto, aterrorizado. convenceram-me a ir embora e saí babando de ódio. com náiade do lado, mansa como se nada tivesse acontecido. horas mais tarde, quando íamos dar início ao jantar, entre os convidados, quem chega? os dois. ele e ela.
 
todos se sentam à mesa. levanto-me, dirijo-me à carioca recém-chegada e pergunto:
-- vou tomar um banho de banheira, você quer vir comigo?
 
ela responde afirmativamente. todo mundo está estatelado, principalmente náiade. 
 
eu pergunto:
-- como é seu nome?
 
-- annabella.
 
eu e alex fazendo pesca submarina na praia vermelha. a gente sai cedo de casa e leva toda a tralha em duas sacolas grandes: pés de pato, máscaras de mergulho, tubos de respiração, facas e arpões. não usamos acqualung. mergulhamos no fôlego.
 
levamos também água potável, dois sanduíches e duas maçãs.
 
da praia vermelha, ali ao lado do forte, nadamos uns quinhentos metros, cada um com sua sacola, até a ponta da pedra. ficamos em frente ao mar aberto. 
 
instalamos nosso qg ali. escolhemos uma área protegida para as sacolas e a comida e iniciamos a pesca.
 
o mergulho. o sol atravessa às duras penas a transparência do mar. só aqui no fundo encontro o verde que eu quero verde. os cardumes de peixes coloridos diante de meu nariz e as algas que docemente oscilam ao sabor da corrente dão a agradável sensação de vôo livre.
 
o arpão está armado, mas a primeira hora de mergulho é só de observação. eu e alex sempre mergulhamos aqui, por isso já conhecemos esses amigos das profundezas. a gruta da lagosta, que sempre foge à nossa chegada e que não nos preocupamos em caçar. nem fisga para lagosta a gente traz. bagre e peixe pequeno a gente também não pesca. é a maior vergonha aparecer lá em cima com alguma coisa pequena.
 
caçonete é a meta. mas não é fácil. depende da temperatura da água, da corrente e até mesmo da claridade do dia. água fria, turva, e dia nublado favorecem a caçada, mas mesmo assim não é fácil encontrar o cação.
 
depois do cação vem a arraia e o polvo. se o mar tem cação, tudo bem. é uma questão de destreza e mira. às vezes, ele passa diante da tua cara e quando você vai atirar, ele já saiu da linha de tiro. você persegue e ele mergulha. você vai até onde o fôlego dá. pode ter sorte ou ter que subir rápido porque os pulmões ameaçam explodir.
 
já a arraia são outros quinhentos. ela fica lá em baixo, quietinha, mimetizada na areia. se bobear, você passa por ela e nem vê. ela então dá uma deslizada rápida pelo fundo, em busca de outro esconderijo. 
 
esse é o momento. você está em vôo livre, por cima, armado. tchum... o arpão corta a água e atravessa a arraia. ela fica grudada no fundo se contorcendo. você tira a faca e corta o rabo dela. segura o arpão e a traz para a superfície.
 
-- peguei, peguei uma arraia...
 
alex me ajuda, a enrola em jornal e coloca numa das sacolas.
 
tem ainda o polvo. o certo é pescá-lo com fisga. ele se esconde nos buracos das pedras e acertá-lo com arpão não é fácil. o melhor é a fisga. por isso, só levamos polvo para casa, quando, num golpe de sorte, ele dá bobeira e a gente consegue acertá-lo.
 
parada para o lanche.
 
-- tia lucy fez os sanduíches. misto quente, frio.
-- ta bom.
-- você está gostando de morar com o aeyal?
-- ele é gente fina. está me ensinando boxe.
 
eu e alex sempre nos demos muito bem, mesmo quando brigamos. geralmente sou eu quem brigo. ele é muito inteligente. aprendeu a ler aos três anos de idade, mas prefere a contra-mão. já fugiu da escola várias vezes. é menino do rio. passa o dia na praia. magro, muito queimado de sol, olhos negros, sobrancelhas enormes, lembra o shemtós, diz orgulhosa a pequena miriam. é um garoto lindo, saudável, um pequeno animal selvagem. marinho.
 
-- gostaria de ter conhecido o shemtós, ou me lembrar dele.
-- você era o nariz de batatinha. ele gostava tanto de você, que você recebeu sua primeira surra aos três anos.
-- pó, e isso é sinal de gostar?
-- para ele sim. o shemtós tinha um padrão de educação meio antigo. quem ama, educa.
-- você apanhou muito, não é?
-- não mais que o necessário. shemtós e miriam ficavam loucos comigo. eu era um moleque da pá virada.
-- por falar nisso, acho que o tempo vai virar. vamos mergulhar mais um pouco. se o mar picar, adeus pesca.
-- vamos lá.
 
já temos uma arraia, mas sei que alex não quer voltar de mãos vazias. quando não pescamos nada, levamos mariscos. eles aqui são grandes e bonitos.
 
tia lucy gosta. transforma peixes em caldeiradas e frutos do mar em paellas. nas mãos dela tudo vira banquete. e na hora do jantar, sempre regado a suco de frutas brasileiríssimas, carambola, jabuticaba, tamarindo, faz um elogio rasgado à nossa destreza de pescadores submarinos.  waldemar, daniel e eduardo também comentam e aprovam. eu e alex somos os heróis da noite.
 
waldemar é filho de alemães. seu pai tinha uma metalúrgica em joinville, onde daniel e eduardo nasceram.
 
ele e tia lucy se conheceram no rio, quando ele fazia faculdade de medicina. depois a fábrica pegou fogo, um dia depois do seguro vencer, o pai deixou de mandar dinheiro e ele passou a representar madeireiras do sul aqui no rio.
 
é um sujeito esperto, com muito tino para os negócios. trabalha sozinho, em casa. usa telefone, a western para seus telegramas, e toda a madeira vem de navio, cif ou fob, a gosto do cliente. forneceu madeira para a construção do maracanã e está ganhando muito dinheiro.