vendredi 8 novembre 2024

Os batistas para principiantes

Os batistas para principiantes

É sempre importante voltar aos princípios que norteiam o ser batista. Faremos isso à partir da tradição do pensamento liberal e das declarações doutrinárias da Convenção Batista brasileira.
 
Nos séculos dezesseis e dezessete, em várias regiões da Europa, pequenos grupos de cristãos se reuniam de forma clandestina, fugindo da perseguição dos poderes ligados à igreja de Roma. Todos eles sabiam que faziam parte da igreja de Cristo, que tinha surgido lá atrás, na sequência da pregação do profeta João, o batista, que pregava à beira do rio Jordão. 

Esses nossos irmãos e irmãs conheciam histórias de comunidades de fé que tinham vindo antes deles e que, no correr dos séculos, milhares de discípulos do Evangelho de Cristo tinham sido perseguidos, presos, torturados e mortos. E, por isso, não puderam estabelecer com visibilidade suas comunidades. Todos, desde o profeta João, o batista, até aquele momento de terrível perseguição na Idade Média tinham consciência de que eram peregrinos e tinham sido chamados para serem testemunhas vivas do Evangelho do Senhor Jesus Cristo.

Esta compreensão de nossas origens, por ter João, o batista, como referência da pregação profética, o rio Jordão como referência geográfica e Jerusalém como sede da primeira comunidade de fé, passou a ser conhecida como teoria Jerusalém, João, Jordão.

Mas no correr do século 16, na Alemanha, e depois em vários países da Europa, um grupo de cristãos, que se caracterizava por sua fidelidade às Escrituras Sagradas e que só aceitava em suas comunidades pessoas convertidas pelo Espírito Santo de Deus e eram por eles batizadas, cresceu e marcou sua presença de fé no continente europeu. Estes irmãos e irmãs não reconheciam como válido o batismo administrado na infância, pois, crianças recém-nascidas não têm consciência de pecado, da necessidade de regeneração, da fé e da salvação. Na defesa destas posições estavam bem fundamentados no Novo Testamento, em especial nos Evangelhos. 

A exigência do batismo bíblico de pessoas convertidas chamou a atenção do povo e das autoridades e eles passaram a ser chamados de anabatistas, e depois de batistas, porque levavam às águas aqueles que tinham se arrependido de seus pecados e aceitado Jesus como Salvador e Senhor de suas vidas.

Assim, a designação de batistas se firmou no século 17, mas aqueles irmãos e irmãs estavam espiritualmente ligados a todos os que, através dos séculos, permaneceram fiéis aos ensinamentos das Escrituras Sagradas, dizendo não, mesmo com risco de suas vidas, às corrupções do Evangelho de Cristo.

Mas foi no século dezessete, na Inglaterra, que oficialmente uma comunidade de fé deu a si própria o nome Batista. Essa comunidade foi fundada por John Smyth (1570-1612), um pastor que defendia a liberdade religiosa, condenada pela igreja da Inglaterra. 

Atualmente, Smyth é considerado o fundador da moderna denominação batista. Mas não podemos esquecer que há uma unidade que soma os movimentos históricos que acabamos de apresentar e que podemos sintetizar assim: batista é uma designação que foi colocado a diversas comunidades cristãs no século 17 na Inglaterra. Esses irmãos e irmãs eram representantes daquela resistência cristã, daquele Cristianismo neotestamentário que atravessou a História, mesmo no período de densas trevas espirituais da Idade Média.

Assim, podemos dizer que, quando em qualquer parte do mundo, sejam quais forem as circunstâncias, uma comunidade de fé praticar as doutrinas do Novo Testamento teremos aí uma igreja batista.

Através dos tempos, os batistas se têm notabilizado pela defesa destes princípios: A aceitação das Escrituras Sagradas como única regra de fé e conduta; o conceito de igreja como sendo uma comunidade local, democrática e autônoma, formada de pessoas regeneradas e biblicamente batizadas; a separação entre Igreja e Estado; a absoluta liberdade de consciência; a responsabilidade individual diante de Deus; a autenticidade e apostolicidade das igrejas.

E caracterizam-se também os batistas pela intensa e ativa cooperação entre suas igrejas. Não havendo nenhum poder que possa constranger a igreja local, a não ser a vontade de Deus, manifestada através de seu Santo Espírito, os batistas, baseados nesse princípio da cooperação voluntária das igrejas, realizam uma obra geral de missões, em que foram pioneiros entre os evangélicos nos tempos modernos; de evangelização, de educação teológica, religiosa e secular; de ação social e de beneficência. 

Para a execução desses fins, organizam associações regionais e convenções estaduais e nacionais, não tendo estas, no entanto, autoridade sobre as igrejas; devendo suas resoluções ser entendidas como sugestões ou apelos.

Para os batistas, as Escrituras Sagradas, em particular o Novo Testamento, constituem a única regra de fé e conduta, mas, de quando em quando, as circunstâncias exigem que sejam feitas declarações doutrinárias que esclareçam os espíritos, dissipem dúvidas e reafirmem posições. 

Cremos estar vivendo um momento assim no Brasil, quando uma declaração desse tipo deve ser formulada, com a exigência insubstituível de ser rigorosamente fundamentada na Palavra de Deus. É o que faz agora a Convenção Batista Brasileira, nos 19 artigos que se seguem:

Os batistas são, depois do pentecostalismo, a ramificação mais numerosa do protestantismo evangélico, compreendido como um cristianismo biblicista, conversionista e militante. É a principal confissão protestante norte-americana e tem um crescimento significativo no Brasil. 

Em termos gerais, desenvolveu-se a partir de cinco traços distintivos: a prática do batismo por imersão da pessoa convertida, como testemunho de compromisso e fé; as Escrituras como regra em matéria de doutrina, ética e fé; Eclesiologia congregacionalista e de proclamação, com autonomia da assembléia local composta de militantes engajados; teologia de inspiração calvinista, com destaque para a conversão pessoal; defesa da liberdade de consciência e de expressão, e oposição à qualquer interferência da autoridade civil ou eclesiástica na vida da igreja.

Esse protestantismo se caracteriza, assim, pela referência à tradição confessional, mas também por uma plasticidade marcante. A nível global, a Aliança Batista Mundial/ABM reúne cerca de 35 milhões de batistas e busca definir políticas de evangelização, reconciliação entre batistas, defesa da liberdade religiosa e assistência às igrejas batistas localizadas em regiões carentes do mundo. A Aliança Batista Mundial foi fundada em Londres em 1905. 

Os precursores dos batistas foram, ideologicamente, os anabatistas da época da Reforma. Congregações anabatistas da Holanda no início do século XVII e grupos de puritanos independentes ou congregationalistas, que fugiram da Inglaterra para a Holanda fazem parte dessa construção histórica. Influenciados pelos anabatistas, puritanos independentes convenceram-se de que o batismo cristão é apropriado apenas para adultos convertidos, como testemunho de seu compromisso e fé pessoal.
De volta à Inglaterra, este grupo formou a primeira congregação batista em 1611. Duas décadas depois, Roger Williams (1639) formou a primeira congregação batista em Providence (Rhode Island/ EUA). 

A partir de então, os batistas, já com influências da teologia calvinista, cresceram rapidamente nos Estados Unidos. A democracia informal centrado nas Escrituras tornou-se uma referência política na construção de igrejas em situação de fronteira, sob as condições rurais instáveis do Sul, Meio-Oeste e Extremo Oeste norte-americano. Assim, essas regiões foram densamente povoadas pelos batistas, uma tendência que se mantém até hoje.

Os batistas olham a vida cristã como fé pessoal, serviço e testemunho. Isso faz dos batistas militantes da causa protestante evangélica. Cada pessoa deve nascer de novo, estar convertido para uma nova vida e a partir daí congregar numa igreja. Para os batistas, a igreja local é o resultado da conversão e da graça, uma comunidade de crentes reunidos: não é a mãe da experiência cristã, nem fonte de graça, como na tradição católica. 

A comunidade local é santa porque a fé e a vida de seus congregados são santas. A igreja local, pelo menos em princípio, não tem nenhuma autoridade sobre seus membros, em sua liberdade de consciência ou em assuntos eclesiásticos.

Devido à sua plasticidade, os batistas temos mostrado características opostas na história. Pela ênfase na autoridade da Bíblia, na compreensão puritana estrita, na ética vitoriana, e compreensão da absoluta necessidade da fé e santidade pessoal, a maioria dos batistas é conservadora, tanto nas questões de fé, como de moral. 

Mostram-se temerosos diante das filosofias e teologias modernas e da política liberal. O evangelho e a Bíblia são interpretados literalmente, dentro dos princípios tradicionais batistas. A ética cristã são os princípios básicos das Escrituras, que nenhum batista deve abandonar. Por esta razão, muitas convenções batistas se recusam a aderir ao movimento ecumênico e ignoram o evangelho social, e sua preocupação com a justiça econômica, política e social. 

Porém, devido a ênfase na liberdade de consciência e de crença pessoal e a importância da vida cristã longe da autoridade eclesiástica, de dogmas e rituais, os batistas são líderes do liberalismo tanto a nível político como teológico. Muitos seminários e igrejas batistas são conhecidas por estilo de adoração, atitudes sociais e teologias liberais. Os batistas foram importantes na criação do movimento ecumênico no início do século XX. E estiveram presentes nas controvérsias que dominaram o século XX nos Estados Unidos entre teologia moderna e fundamentalismo, evangelho social e evangelho individual, e ecumenismo e exclusivismo.

Mas, os batistas tiveram sempre papéis de destaque nos dois polos, apesar de contrários, exemplo disso foi Walter Rauschenbusch, pastor e teólogo batista e um dos teóricos do Evangelho Social. E no Brasil podemos citar o Manifesto dos Ministros Batistas de 1963, de claro conteúdo político e social a favor das reformas de estrutura no país. 

Existirmos -- a que será que se destina?

O século XXI confronta. Diante disso, novas questões entram na ordem-do-dia: sabemos mais ou menos o que fomos e um pouco do que somos, mas nada ou pouco do que seremos. O pensamento batista tem raízes na revolução liberal inglesa do século XVII, porém somos também herdeiros da Reforma radical e da Reforma magisterial. Mas foi no século XVIII, sob o Iluminismo, que o pensamento batista europeu lançou raízes e se espraiou. E desempenhou papel na história do pensamento na Inglaterra, na Europa continental e nos Estados Unidos. Combinou Escrituras judaico-cristãs e espiritualidade e no século XIX deu ao mundo pensadores de vanguarda, ao construir o que veio a se chamar Evangelho social. 

Ser batista brasileiro, hoje, não é algo definido e preciso, principalmente quando se entra na discussão se somos ou não protestantes e se pertencemos ou não ao tronco dos cristãos rebeldes da Idade Média. Por isso, os batistas são olhados como seitas autônomas sem representatividade civil e opositores de toda e qualquer expressão do Estado. Idéia que em parte se justifica se olharmos os batistas a partir da ótica de Ernst Troeltsch e Max Weber. 

E como é difícil definir a diversidade, já que encontramos movimentos batistas fideístas, fundamentalistas, liberais e racionalistas, vamos fazer o caminho da análise daquilo que nos é próprio, ou seja, das características do ser batista, que atravessa e permanece em todas as leituras batistas.

Em primeiro lugar o pensamento batista busca uma fé inteligente. Nega o divórcio entre a fé e o pensamento, embora reconheça a importância das correntes cristãs que olham a fé como ruptura da lógica, distanciamento da razão, e salto na irracionalidade do mistério insondável. O pensamento batista procura a consistência e as correlações entre fé e razão. Por isso, interage com a cultura. Sem negar que existe o mistério, e que não se pode confundir fé e razão, entende o pensamento como construção que não pode prescindir nem da fé, nem da razão.

O Brasil nesses tempos bicudos da alta modernidade combate o pensamento que se quer autônomo, por preferir a massificação das ideias. A sociedade brasileira na alta modernidade tem optado por reproduzir a globalização da indústria de entretenimento e da comunicação de massas. A vida proposta pela alta modernidade, para além dos problemas estruturais da sociedade brasileira, nos faz inquietos e superficiais. Visa o espetáculo e se perturba diante de perguntas que procuram razões. Desafiados a avançar, os batistas entendem que aquilo que parece não é, e o que não parece, é. Não dá para depositar confiança, asi nomás. 

A fé exige um pensar que não se atrofie e a espiritualidade não é um adversário, mas um aliado indispensável, precioso, na construção do sentido da vida. A razão sem fé, embora verdadeira, não é razoável, torna-se racionalismo. A razão, convenientemente conduzida, reconhece que há coisas que estão além dela, e que é incapaz de penetrar a contento no mistério da vida e do universo. Aceita seus limites e, portanto, a existência de dimensões para além dela. No entanto, mantém abertura e espírito de crítica. Isso impede que ter fé seja dizer ou fazer qualquer coisa.

Atualmente, temos a piedade emocional exuberante, quente. Cultiva afetos, mas teme o pensamento. Temos, então, dogmatismo, fundamentalismo, que ensina a olhar, a fazer, a dizer, formata opiniões blocadas sobre o mundo. Oferece certezas e, por extensão, conforto e preguiça. Foge das questões e perguntas dolorosas. Essa forma de piedade repousa sobre o realismo literalista. 

Mas temos um outro lado, a vida no questionamento permanente, que duvida da possibilidade da verdade, embora busque freneticamente a descoberta. Repousa sobre o ceticismo nihilista. Ora, fé implica em crença, paixão e sentimentos, é experiência com o mistério do Eterno. As Escrituras judaico-cristãs desafiam o amor humano a se realizar diante do Eterno com coração, força, mas também com o pensar. E é esse pensar que aprofunda, fundamenta e direciona a fé. Essa compreensão se contrapõe ao realismo literalista e ao ceticismo nihilista. 

O estudo histórico das Escrituras judaico-cristãs, principalmente o Novo Testamento, é uma necessidade. É necessário conhecer a antropologia e a cultura judaicas e não somente o grego koinê. O Novo Testamento não é revelação ditada, mas o testemunho da revelação. É um conjunto de escritos que nos dizem como pessoas, os discípulos, receberam e compreenderam o que Jesus disse e fez no meio do povo.

“Pois quando tu me deste a rosa pequenina/ Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina/ Do menino infeliz não se nos ilumina”.

Jesus mesmo não escreveu. Sabemos de sua doutrina e vida por aquilo que os discípulos relataram. Suas idéias encontram-se nas suas histórias. Donde, temos a documentação neotestamentária, como textos fundantes, para conhecer Jesus de Nazaré e sua pregação. Mas a investigação do Jesus histórico pode continuar, ao menos no nível acadêmico, se utilizarmos outras fontes e métodos, que remetem ao estudo dos textos e contextos, embora muitas vezes ofereçam mais hipóteses do que certezas.

A tradição cristã dá mais importância à pessoa de Jesus do que aos seus ensinos. O Credo apostólico diz a respeito dele: "... foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu aos infernos, subiu aos Céus ...". Menciona assim o Cristo da fé, encarnação, morte e ressurreição, mas omite seu ministério. 

Os eventos crísticos, que são ensinamentos, histórias e relatos, muitas vezes são esquecidos. Não podemos construir uma fé transformadora apenas sobre o Credo. A vida do Evangelho está no que Jesus disse, na forma como apresentou a ação e a presença do Eterno. Assim como sua concepção da existência humana, sobre o significado da fé. Para o ser humano, a mensagem é tão importante quanto o mensageiro. Em teologia dizemos que Cristo cumpre três funções, um função real – reina sobre o mundo --, uma função sacrificial -- foi oferecido em sacrifício para a salvação dos seres humanos – e uma função profética -- prega e ensina. 

Certas correntes do catolicismo romano e ortodoxo privilegiam a função real. O protestantismo magisterial realçou a função sacrificial. Mas não podemos deixar de lado, como que esquecida, sua função profética. 

A crucificação de Jesus que respondeu a circunstâncias históricas, dentro do projeto de redenção, é uma necessidade teológica para a salvação dos seres humanos. Passagens neotestamentárias falam da morte de Jesus como sacrifício oferecido ao Eterno, como pagamento pela alforria. Mas esse projeto redentivo estaria capenga sem a função profética, que fez dele messias e salvador.

A mensagem de Jesus foi apresentda dentro das categorias judaicas do pensamento de seu tempo. Temos, então, que traduzi-lo, ressignificá-lo, não para deformá-lo, mas para mantê-lo relevante e vivo. Para que possa ser aplicado à realidade brasileira, à nossa existência. Para Schweitzer, tentamos fazê-lo falar à "respeito pela vida", que é o coração da mística cristã e de ética de Jesus expressa em termos contemporâneos. A maor preocupação de Charles Wagner, que, tal como Schweitzer, tentou formular a mensagem de Jesus em uma linguagem quase secular para desenvolver uma moralidade e uma espiritualidade fiéis ao Evangelho, mas abertas ao mundo contemporâneo. 

Usei as palavras "ética" e "moral". Não deveríamos estabelecer uma equivalência entre o liberalismo e a permissividade do comportamento. Ouvir Jesus significa segui-lo, obedecê-lo. Alguns liberais, como Wilfred Monod, propôs dar mais importância para a ortopraxia, ou seja, para a conduta, e para a ortodoxia, a boa doutrina. Evidentemente, liberal não significa julgar ou condenar outros, mas é exigente, sobretudo, consigo mesmo. Ouvir de Cristo se reflete na maneira de viver.

Veja esta preocupação característica do protestantismo liberal. O cristianismo tem condenado as religiões não cristãs. Havia um monte de besteiras e horrores nelas, sem dúvida. Não apresentam uma revelação, tal como evidenciado pelas Escrituras judaico-cristãs. Mas, acreditamos que Deus age e se manifesta em todos os lugares, em todas as épocas, e fala também aos fiéis destas religiões não-cristãs.

As Escrituras judaico-cristãs não conduzem a qualquer exclusividade, pelo contrário. No livro do Gênesis, diz-se que Abraão pede a Melchisedek para abençoá-lo. O Antigo Testamento contém textos que inspiraram religiões egípcias, babilônicas e mesmo iranianas. Os profetas e os sábios de Israel nunca consideraram que não havia nada de bom em outras crenças, ou que não deveriam ouvir o que elas diziam. No Novo Testamento, os Magos, que viajaram a partir do conhecimento astrológico, chegaram a Belém. Jesus admirou a fé de um oficial romano. Em Listra, Paulo afirmou que lugar nenhumDeus deixou sem testemunha. Em Atenas, ele cita poetas e filósofos pagãos. 

Nesta linha, com base nesses exemplos, tanto quanto Troeltsch, Schweitzer, Tillich, Hick, Cobb têm-se centrado sobre o diálogo interreligioso, e associações têm trabalhado desde o início do século passado para desenvolver tal diálogo. Esta aproximação levanta muitos problemas, mas apesar de ser uma tarefa difícil, deve começar com clareza e abertura. O protestantismo liberal não pretende abandonar a mensagem cristã, que continua a ser a referência. Mas se recusa a desprezar a espiritualidade não cristã. Considera que, se os cristãos apresentarem sua fé, com amor e paz, às outras crenças, elas vão ouvi-las. 

Outro ponto importante para a teologia liberal refere-se ao papel do indivíduo enquanto pessoa. O movimento liberal foi acusado de falta de bom senso em relação à questão. Mas os liberais sempre trabalharam na e para a Igreja. Também estão preocupados com as questões sociais. Não defendem o individualismo fechado e negativo, de quem só pensa em si mesmo. Propõem que a individualidade seja aberta e positiva. E tal perspectiva parte de três componentes: 

Responsabilidade pessoal. Toda a pessoa tem o direito e o dever de tomar posições. Não deve se dissolver no todo. Nossas decisões, nossas ações, nossas palavras são nossas e implicam em engajamento pessoal. Eu não posso me esconder atrás dos conselhos recebidos, da opinião dominante, do estamento das autoridades. É meu dever tomar partido. Não podemos fazer como o bispo William Petit, em 1526, que disse: "Eu acredito na Santa Madre Igreja, e não me pergunte mais nada". 

Além disso, o pensar liberal se a recusa a condenar aqueles que não gostam de nós, mesmo quando achamos que estão errados. Deve-se sempre, quando possível, discutir com eles, tentar explicar e convencer. Mas não temos o direito de impor o silêncio, ou tratá-los com desprezo. Temos de aceitar as diferenças e respeitar as divergências. Se o erro não está livre, disse o suíço Alexandre Vinet, a verdade não é necessária. É o que leva ao pluralismo do pensar liberal.

Por fim, tendemos a acreditar que as instituições, civis e eclesiásticas, têm apenas valor relativo. Mas isso não significa que não tenham importância. Nossa crítica parte de quando as pessoas vivem a serviço delas, não entendem que essas instituições é que devem servir às pessoas e comunidades. Assim, a Igreja não deve ditar aos seus membros, crenças e atitudes, nem impor sua dogmática e moral. 

Vou-me alongar um pouco mais sobre as questões doutrinárias, pois parece-me fundamental. Para protestantismo liberal, não é o dogma, ou seja, as definições sobre a verdade que manifestam de forma plenamente satisfatória o que ela é. Todas as doutrinas exigem testes e revisões, que em cada tempo devem nos levar a receber e perceber a verdade. O dogma é o objeto da fé e da doutrina. Para explicar esta distinção entre o objeto e a expressão de fé, podemos pensar a doutrina da trindade. 
Esta doutrina foi definida pelos sínodos do quarto e quinto séculos. Afirma que Deus é uma essência ou uma substância (em grego "Ousia") em três pessoas (em grego "prosopon" ou "upostasis) consubstanciais (grego "omousios"). Evidentemente existem tais conceitos, ou essas palavras no Novo Testamento. Também são estranhas ao vocabulário e pensamento modernos. Eles pertencem à filosofia grega da Antiguidade tardia. A doutrina trinitária nasceu de um esforço para expressar na língua da cultura helenística a mensagem cristã. Este esforço parece perfeitamente legítimo, e creio que os sínodos tiveram o direito de realizar, mesmo que o resultado não fosse muito convincente. 

A partir daí começou uma deriva. Porque adotada pelos Sínodos, como promulgada pela autoridade civil e eclesiástica, como sagradas e canonizadas pelos séculos, a doutrina trinitária tornou-se um assunto de fé. Considerou-se que as fórmulas que ele utiliza são necessárias em todos os tempos e em todos os lugares, elas são obrigatórias para todos os fiéis, que devem necessariamente acreditar ou aderir. Que definem muito exatamente o ser de Deus. 

Para designar o Deus do Evangelho, o Deus de Jesus Cristo, falamos de três pessoas num só Deus. Mas devemos levar em conta que tal definição utiliza uma linguagem humana sobre Deus, e confunde nossa forma de representar a realidade com o próprio ser de Deus. Há sempre um abismo, uma distância, entre aquilo que Deus é, e aquilo que dizemos. Nós não podemos defini-lo, inclui-lo em nossas fórmulas. O dogmatismo que reivindica a posse da verdade sobre Deus é uma forma de idolatria. 
O pensamento liberal mesmo quando se preocupa com a atualização da mensagem evangélica, da doutrina e de tradição eclesiástica, não as rejeitam. Procuram interpretar, afirmam que o pensamento crítico está preocupado com o seu significado mais profundo. Para o movimento liberal, a doutrina procura dizer, tanto quanto possível no contexto de onde estamos, em que acreditamos. Mas entende que qualquer formulação da fé é aproximada e sempre possível de formulações outras. 

“Tampouco turva-se a lágrima nordestina/ Apenas a matéria vida era tão fina/ E éramos olharmo-nos, intacta retina:/ A cajuína cristalina em Teresina”.

Cada vez mais, os liberais rejeitam o rótulo. Isto porque cumpriram um papel relevante na história. Hoje, protestantes e evangélicos, utilizam instrumental e métodos liberais, quer em suas igrejas, quer em seus seminários. 

No mundo cristão, o movimento liberal é minoritário, conforme se pode ver nas igrejas da Europa e no Conselho Mundial de Igrejas. 

Porque isto acontece? Parte da dureza e da insegurança do mundo pós-moderno. Sentimos a necessidade de uma religião que tranquilize, que nos de certezas. É preciso reconhecer que, em qualquer caso, o pensamento liberal continua presente na reivindicação de que as pessoas pensem como indivíduos, assumam responsabilidade e exerçam seu livre arbítrio em cada situação da vida, tanto em relação à sociedade civil, quanto religiosa. Desta maneira o liberal é, de fato, contra a corrente.

Mas, vejamos como isso se traduz na Declaração doutrinária e nos Princípios batistas apresentados pela Convenção Batista Brasileira.
 
Por um ato especial, o ser humano foi criado por Deus à sua imagem e conforme à sua semelhança e disso decorrem o seu valor e dignidade. Seu corpo foi feito do pó da terra e para o mesmo pó há de voltar. Seu espírito procede de Deus e para Ele retornará. O Criador ordenou que o homem domine, desenvolva e guarde a obra criada. Criado para a glorificação de Deus, seu propósito é amar, conhecer e estar em comunhão com seu Criador, bem como cumprir sua divina vontade. Ser pessoal e espiritual, o homem tem capacidade de perceber, conhecer e compreender, ainda que em parte, intelectual e experimentalmente, a verdade revelada, e para tomar suas decisões em matéria religiosa, sem a mediação, interferência ou imposição de qualquer poder humano, seja civil ou religioso.

Deus e somente Deus é o Senhor da consciência. A liberdade religiosa é um dos direitos fundamentais do homem, inerente à sua natureza moral e espiritual. Por força dessa natureza, a liberdade religiosa não deve sofrer ingerência de qualquer poder humano. Cada pessoa tem o direito de cultuar a Deus, segundo os ditames de sua consciência, livre de coações de qualquer espécie. A Igreja e o Estado devem estar separados por serem diferentes em sua natureza, objetivos e funções. É dever do Estado garantir o pleno gozo e exercício da liberdade religiosa, sem favorecimento a qualquer grupo ou credo. O Estado deve ser leigo e a Igreja livre. Reconhecendo que o governo do Estado é de ordenação divina para o bem-estar dos cidadãos e a ordem justa da sociedade, é dever dos crentes orar pelas autoridades, bem como respeitar e obedecer às leis e honrar os poderes constituídos, exceto naquilo que se oponha à vontade e à lei de Deus.

Como o sal da terra e a luz do mundo, o cristão tem o dever de participar em todo esforço que tende ao bem comum da sociedade em que vive. Entretanto, o maior benefício que pode prestar é anunciar a mensagem do evangelho; o bem-estar social e o estabelecimento da justiça entre os homens dependem basicamente da regeneração de cada pessoa e da prática dos princípios do evangelho na vida individual e coletiva. Todavia, como cristãos, devemos estender a mão de ajuda aos órfãos, às viúvas, aos anciãos, aos enfermos e a outros necessitados, bem como a todos aqueles que forem vítimas de quaisquer injustiças e opressões. Isso faremos no espírito de amor, jamais apelando para quaisquer meios de violência ou discordantes das normas de vida expostas no Novo Testamento.

A família, criada por Deus para o bem do homem, é a primeira instituição da sociedade. Sua base é o casamento monogâmico e duradouro, por toda vida, só podendo ser desfeito pela morte ou pela infidelidade conjugal. O propósito imediato da família é glorificar a Deus e prover a satisfação das necessidades humanas de comunhão, educação, companheirismo, segurança, preservação da espécie e o perfeito ajustamento da pessoa humana em todas as suas dimensões. Caída em virtude do pecado, Deus provê para ela, mediante a fé em Cristo, a bênção da salvação temporal e eterna, e quando salva poderá cumprir seus fins temporais e promover a glória de Deus.

A Bíblia revela que cada ser humano é criado à imagem de Deus; é único, precioso e insubstituível. Criado ser racional, cada pessoa é moralmente responsável perante Deus e o próximo. O homem, como indivíduo, é distinto de todas as outras pessoas. Como pessoa, ele é unido aos outros no fluxo da vida, pois ninguém vive nem morre por si mesmo.

A Bíblia revela que Jesus Cristo morreu por todos as pessoas. O fato de ser criada à imagem de Deus, e de Jesus Cristo morrer para salvá-la, é a fonte da dignidade e do valor humano. Ela tem, direitos outorgados por Deus, de ser reconhecida e aceita como indivíduo, sem distinção de raça, cor, credo, ou cultura; de ser parte digna e respeitável da comunidade; de ter a plena oportunidade de alcançar o seu potencial. 

Cada pessoa foi criada à imagem de Deus e, portanto, merece respeito e consideração como uma pessoa de valor e dignidade infinita. 

A pessoa, porque criada à imagem de Deus, torna-se responsável por suas decisões morais e religiosas. Ela é competente, sob a orientação do Espírito Santo, para formular a própria resposta à chamada divina ao evangelho de Cristo, para a comunhão com Deus, para crescer na graça e no conhecimento de nosso Senhor. Estreitamente ligada a essa competência está a responsabilidade de procurar a verdade e, encontrando-a, agir conforme essa descoberta, e partilhar a verdade com outros. Embora não se admita coação no terreno religioso, o cristão não tem a liberdade de ser neutro em questões de consciência e convicção. 

Cada pessoa é competente e responsável perante Deus, nas próprias decisões e questões morais e religiosas. 

Os batistas consideram como inalienável a liberdade de consciência, a plena liberdade de religião de todas as pessoas. O homem é livre para aceitar ou rejeitar a religião; escolher ou mudar sua crença; propagar e ensinar a verdade como a entenda, sempre respeitando os direitos e convicções alheias; cultuar a Deus tanto a sós quanto publicamente; convidar outras pessoas a participarem nos cultos e noutras atividades de sua religião; possuir propriedade e quaisquer outros bens necessários.

Tal liberdade não é privilégio para ser concedido, rejeitado ou meramente tolerado - nem pelo estado, nem por qualquer outro grupo religioso - é um direito outorgado por Deus. 

Cada pessoa é livre perante Deus, em todas as questões de consciência, e tem o direito de abraçar ou rejeitar a religião, bem como de testemunhar de sua fé religiosa, respeitando os direitos dos outros. 

Cada pessoa pode ir diretamente a Deus em busca de perdão, através do arrependimento e da fé. Ele não necessita para isso de nenhum outro indivíduo, nem mesmo da igreja. Há um só mediador entre Deus e os homens, Jesus. Depois de tornar-se crente, a pessoa tem acesso direto a Deus, através de Jesus Cristo. Ela entra no sacerdócio real que lhe outorga o privilégio de servir à humanidade em nome de Cristo. Deverá partilhar com os homens a fé que acalenta e servi-los em nome e no espírito de Cristo. O sacerdócio do crente, portanto, significa que todos os cristãos são iguais perante Deus e na fraternidade da igreja local. 

Cada cristão, tendo acesso direto a Deus através de Jesus Cristo, é o seu próprio sacerdote e tem a obrigação de servir de sacerdote de Jesus Cristo em benefício de outras pessoas. 

O lar foi constituído por Deus como unidade básica da sociedade. A formação de lares verdadeiramente cristãos deve merecer o interesse particular de todos. Devem ser constituídos da união de dois seres cristãos, dotados de maturidade emocional, espiritual e física, unidos por um amor profundo. O casal deve partilhar ideais e ambições semelhantes e ser dedicado à criação dos filhos na instrução e disciplina divinas. Isso exige o estudo regular da Bíblia e a prática do culto doméstico. Nesses lares o espírito cristão está presente em todas as relações da família. 

As igrejas têm a obrigação de preparar jovens para o casamento, treinar e auxiliar os pais nas suas responsabilidades, orientar pais e filhos nas provações e crises da vida, assistir àqueles que sofrem em lares desajustados, e ajudar os enlutados e encanecidos a encontrarem sempre um significado na vida. 

O lar é básico, no propósito de Deus para o bem-estar da humanidade, e o desenvolvimento da família deve ser de supremo interesse para todos os cristãos. 

O cristão é cidadão de dois mundos - o reino de Deus e o Estado político - e deve obedecer à lei de sua pátria terrena, tanto quanto à lei suprema. No caso de ser necessária uma escolha, o cristão deve obedecer a Deus antes que a homem. Deve mostrar respeito para com aqueles que interpretam a lei e a põem em vigor, e participar ativamente na vida de sua comunidade, procurando conciliar a vida social, econômica e política com o espírito e os princípios cristãos. A mordomia cristã da vida inclui tais responsabilidades como o voto, o pagamento de impostos e o apoio à legislação digna. O cristão deve orar pelas autoridades e incentivar outros cristãos a aceitarem a responsabilidade cívica, como um serviço de Deus e à humanidade. 

Uma igreja é um corpo autônomo, sujeito unicamente a Cristo, sua cabeça. Seu governo democrático, no sentido próprio, reflete a igualdade e responsabilidade de todos os crentes, sob a autoridade de Cristo.

Tanto a igreja como o estado são ordenados por Deus e responsáveis perante ele. Cada um é distinto; cada um tem um propósito divino; nenhum deve transgredir os direitos do outro. Devem permanecer separados, mas igualmente manter a devida relação entre si e para com Deus. Cabe ao estado o exercício da autoridade civil, a manutenção da ordem e a promoção do bem-estar público.

A igreja é uma comunhão voluntária de cristãos, unidos sob o domínio de Cristo para o culto e serviço em seu nome. O estado não pode ignorar a soberania de Deus nem rejeitar suas leis como a base da ordem moral e da justiça social. Os cristãos devem aceitar suas responsabilidades de sustentar o estado e obedecer ao poder civil, de acordo com os princípios cristãos. O estado deve à igreja a proteção da lei e a liberdade plena, no exercício do seu ministério espiritual. A igreja deve ao estado o reforço moral e espiritual para a lei e a ordem, bem como a proclamação clara das verdades que fundamentam a justiça e a paz. A igreja tem a responsabilidade tanto de orar pelo estado quanto de declarar o juízo divino em relação ao governo, às responsabilidades de uma soberania autêntica e consciente, e aos direitos de todas as pessoas ' A igreja deve praticar coerentemente os princípios que sustenta e que devem governar a relação entre ela e o estado. 

A igreja e o estado são constituídos por Deus e sitio perante ele responsáveis. Devem permanecer distintos, mas têm a obrigação do reconhecimento e reforço mútuos, no propósito de cumprir-se a função divina. 

Jesus Cristo veio ao mundo, mas não era do mundo. Ele orou não para que seu povo fosse tirado do mundo, mas que fosse liberto do mal. Sua igreja, portanto, tem a responsabilidade de permanecer no mundo, sem ser do mundo. A igreja e o cristão, individualmente. têm a obrigação de opor-se ao mal e trabalhar para a eliminação de tudo que corrompa e degrade a vida humana. A igreja deve tomar posição definida em relação à justiça e trabalhar fervorosamente pelo respeito mútuo, a fraternidade, a retidão, a paz, em todas as relações entre os homens. Raças e nações. Ela trabalha confiante no cumprimento final do propósito divino no mundo. 

Esses ideais, que têm focalizado o testemunho distintivo dos batistas, choca-se com o momento atual do mundo e em crucial significação. As forças do mundo os desafiam. Certas tendências em nossas igrejas e denominação põem-nos em perigo. Se esses ideais servirem para inspirar os batistas, com o senso da missão digna da hora presente, deverão ser relacionados com a realidade dinâmica de todo o aspecto de nossa tarefa contínua. 

A igreja tem uma posição de responsabilidade no mundo; sua missão é para com o mundo; mas seu caráter e ministério são espirituais.

Os batistas, historicamente, têm exaltado o valor da pessoa, dando-lhe um lugar central no trabalho das igrejas e da denominação. Essa distinção, entretanto, está em perigo nestes dias de autoritarismo e pressões para o conformismo. Alertados para esses perigos, dentro das próprias fileiras, tanto quanto no mundo, os batistas devem preservar a integridade do indivíduo. 

O alto valor da pessoa deve refletir-se nos serviços de culto, no trabalho evangelístico, nas obras missionárias, no ensino e treinamento da mordomia, em todo o programa de educação cristã. Os programas são justificados pelo que fazem pelos indivíduos por eles influenciados. Isso significa, entre outras coisas, que o indivíduo nunca deve ser usado como um meio, nunca deve ser manobrado, nem tratado como mera estatística. Esse ideal exige, antes, que seja dada primordial consideração ao indivíduo, na sua liberdade moral, nas suas necessidades urgentes e no seu valor perante Cristo.

Primordial na vida e no trabalho de nossas igrejas é a pessoa, com seu valor, suas necessidades, sua liberdade moral, seu potencial perante Cristo. 

Tanto a igreja local quanto a denominação, a fim de permanecerem sadias e florescentes, têm que aceitar a responsabilidade da autocrática. Seria prejudicial às igrejas e à denominação se fosse negado ao indivíduo o direito de discordar, ou se fossem considerados nossos métodos ou técnicas como finais ou perfeitos. O trabalho de nossas igrejas e de nossa denominação precisa de freqüente avaliação, a fim de evitar a esterilidade do tradicionalismo. Isso especialmente se torna necessário na área dos métodos, mas também se aplica aos princípios e práticas históricas em sua relação à vida contemporânea. Isso significa que nossas igrejas, instituições e agências devem defender e proteger o direito de o povo perguntar e criticar construtivamente. 
A autocrítica construtiva deve ser centralizada em problemas básicos, e assim evitar os efeitos desintegrantes de acusações e recriminações. Criticar não significa deslealdade; a crítica pode resultar de um interesse profundo no bem-estar da denominação. Tal crítica visará o desenvolvimento e a maturidade cristã, tanto para o indivíduo quanto para a denominação. 

Todo grupo de cristãos para conservar sua produtividade, terá que aceitar a responsabilidade da autocrítica construtiva. 

Como batistas, revendo o progresso realizado no decorrer dos anos, têm todos inteira razão de desvanecimento ante as evidências do favor de Deus sobre nós. Os batistas podem bem cantar com alegria: "Glória a Deus, grandes coisas ele fez!" Podem eles também lembrar que aquele a quem foi dado o privilégio de gozar de tão alta herança, reconhecidos ao toque da graça, devem engrandecê-la com os seus próprios sacrifícios. 

Eis o desafio da herança batista. A Deus toda honra e glória!

mercredi 6 novembre 2024

A práxis solidária e a teologia da vida

A práxis solidária e a teologia da vida
Manifesto a partir de Enrique Dussel

Jorge Pinheiro

Devemos nos distanciar do marxismo lido a partir do ateísmo e da religião que faz a legitimação da dominação. E a partir desse distanciamento, procurar definir caminhos para a militância política das comunidades cristãs. E aqui, sem dúvida, encontramos uma complementaridade fundamental e necessária à teologia: a atividade militante dos cristãos no interior das comunidades religiosas é motivada por diferentes opções históricas, tanto a favor da legitimação da dominação, que pode ser chamada de religião super/estrutural, como a favor da crítica da dominação, ou seja, da religião infra/estrutural. Entre os dois extremos situa-se um amplo campo religioso, ambíguo, já que a instituição religiosa necessita tanto do organizador como do profeta. E é a partir da análise dessa ambiguidade que devemos traçar as questões centrais que envolvem realidade brasileira e dão forma à práxis do militante cristão.

O momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade. É a superação da totalidade a partir da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. O momento analético é crítico por isso: é a superação do método dialético negativo. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada e inovadora. Como consequência, a analética é prática: é uma economia, uma pedagogia e uma política que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas tem o seu centro e fundamento na pessoa real.

Discutir a religião como infra/estrutura e super/estrutura é superar a visão de que as lutas de emancipação no Brasil e na América Latina tiveram origem nos movimentos milenaristas, que se adaptaram e organizaram movimentos políticos ou retrocederam convertendo-se em religiões alienadas no sentido mais limitado do termo. A religião é a primeira consciência que o ser humano tem de si mesmo, e as relações morais, do filho com os pais, do marido com a mulher, do irmão com o irmão, do amigo com o amigo, enfim do ser humano com seu próximo, são relações religiosas.

A religião, enquanto conjunto de mediações simbólicas e rituais, como doutrina explicativa do mundo e que se posiciona a partir da referência ao absoluto, participa do fechamento do sistema sobre si mesmo. Essa totalidade do sistema é um processo de divinização, que cumpre a função de ocultar a dominação. A noção de religião super/estrutural traduz esse processo de divinização do sistema europeu e depois norte-americano: significa des/historificar a totalidade social, dialetizar negativamente um processo que tem origem, crescimento e plenitude. A divinização leva a um outro processo, à fetichização, que apresenta uma compreensão não/histórica da totalidade social vigente. A fetichização consiste, então, na identificação da estrutura atual com a natureza, ou seja, ela está aí, está colocada por vontade divina.

As massas, enquanto excluídas e passivas, vivem a ideologia das classes dominantes, pois o sistema apresenta de forma ambígua ideais utópicos que oferecem respostas às suas necessidades. Ao aceitar a religião super/estrutural da classe dominante enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores e derrota dos dominados, as massas vivem sob a resignação passiva, a paciência derrotista e a humildade aparente.

A miséria religiosa é expressão da miséria real, entretanto, é também uma forma de protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da pessoa excluída, carente de sentido pleno de vida. A necessidade da religião em abandonar as ilusões sobre sua própria situação é a exigência de que abandone uma situação que necessita de ilusões. Por isso, a crítica da religião é a crítica do sofrimento enquanto expressão de santidade. A crítica da religião não descarta as necessidades reais daqueles que carecem de bens e possibilidades. A crítica da religião denuncia o mito da prosperidade mágica, para que o ser humano pense, para que atue e transforme sua realidade como pessoa consciente.

A tarefa do político cristão solidário consiste em verificar a verdade que está aqui. E é tarefa do cristianismo solidário, que se encontra ao serviço da vida, uma vez que está desmascarada a santidade da auto-alienação humana, desmascarar a auto-alienação em suas formas não santas. De tal modo que a crítica do céu se transforme em crítica da terra, e a crítica da religião em crítica da política.

A expressão religião infra-estrutural indica a anterioridade da responsabilidade prática que se tem com o excluído dentro do sistema. Essa anterioridade não diz respeito exclusivamente à super/estrutura de um sistema futuro, mas diz respeito também à sua infra/estrutura. O ser humano religioso transcende o sistema vigente de dominação e vê como sua responsabilidade o serviço ao excluído. A religião nesse caso é a instauração de uma nova práxis. O fato de que a práxis religiosa infra-estrutural possa se tornar super-estrutural não nega o fato de que a crítica profética continua a irromper na história. Essa presença de responsabilidade social com o excluído mostra a vigência do clamor profético e funciona como freio das pressões alienadas e super-estruturais.

O ateísmo, enquanto negação dessa necessidade de essencialidade, perde sentido, pois, ao negar o absoluto, afirma mediante a negação a existência do ser humano. Mas o cristianismo solidário não necessita dessa mediação, pois surge enquanto consciência sensível, teórica e prática do ser humano. É autoconsciência positiva do ser humano, não mediada pela superação da religião, do mesmo modo que a vida real é realidade positiva para o ser humano, não mediada pela superação da propriedade privada. O cristianismo solidário surge como negação da negação da emancipação e da recuperação humana, é o princípio dinâmico do porvir, mas não é em si a finalidade do desenvolvimento humano, a forma última e única da sociedade humana.

A militância religiosa faz parte de uma luta mais ampla, onde a religião infra/estrutural cumpre papel de aliado estratégico, levando o militante religioso a assumir tarefas, práxis nos níveis político, econômico e não apenas ideológico. O ateísmo, por isso, oculta, pois fecha as portas ao aliado estratégico, à religião infra-estrutural, que se fará presente enquanto houver seres humanos obstinados pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de justiça, esperança de um novo kairós.       

Assim, para o político cristão a história universal é produção humana a partir do trabalho humano, que transforma a natureza e produz o nascimento do ser humano em sociedade. É nesse processo permanente que o ser humano constrói sua essencialidade: do ser humano em direção ao ser humano, como essencialização da natureza, e da natureza para o ser humano, como existência humana. 

O êxito nesse processo depende das condições de possibilidade, ou seja, é impossível separar teoria e práxis. Por isso, uma teologia da vida deve saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios, e métodos que devem levar à práxis crítica do sujeito histórico, aqueles que estão excluídos do sistema-mundo. Este sistema-mundo ao impossibilitar a produção e reprodução da vida semeia doenças, fome, terror e morte. As vítimas são os seres humanos, cuja dignidade e vidas são destruídas. 

A globalidade excludente e a onda de fascismização que ameaça nações e povos leva ao assassinato em massa e ao suicídio coletivo. A práxis solidária enfrenta, hoje, de um lado o anarquismo contrário à instituição e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem ser enquadradas dentro de princípios gerais, ético e crítico, a fim de que de forma factual ético-crítica se possa negar as causas da negação do excluído. Essa é uma luta des/construtiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada. Mas, se a práxis traduz uma ação des/construtiva, promove transformações construtivas: leva a um novo momento com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente.

mardi 5 novembre 2024

Evangelicalismo e cidade

 Evangelicalismo e cidade

Mitos da religiosidade evangélica brasileira


Jorge Pinheiro



O velho protestantismo está cada vez mais distanciado dos novos movimentos de lastro cristão. Não se pode mais ignorar as significativas diferenças que há entre eles, sob pena de cometer equívocos nos resultados das pesquisas. O pesquisador atual não pode furtar-se ao, às vezes, penoso labor  de precisar classificações e conceitos. É preciso que distinga bem, ao estudar qualquer novo movimento religioso, o limite exato em que o velho protestantismo deixa de estar presente. Quando seus princípios básicos de liberdade – a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes – não estiverem presentes ou se apresentarem obscurecidos por outras práticas religiosas, não há mais protestantismo”. Antonio Gouvêa Mendonça.



Introdução


A academia em suas análises sobre o fenômeno evangélico brasileiro na alta-modernidade urbana criou três lugares comuns: mercado, trânsito religioso e fundamentalismo. Na verdade, a leitura reducionista da realidade traduz um defeito que nasceu de suas bases teóricas de análise, fundamentadas sobre les trois petits cochons da sociologia: Marx, Durkheim e Weber. É a partir dessa trindade que nos debruçamos sobre o fenômeno religioso. Esses três pensadores das ciências sociais, por mais importantes, tinham em comum a idéia de que a religião é sempre conseqüência, resultante de fenômenos ou situações sociais e nunca fenômeno fundante, embora relacional com contexto cultural de época, situação e geografia. 


Os estudos da religião no Brasil, segundo Duarte, “pairam entre a marginalidade e a legitimidade de um campo de estudos”. O objeto religião é difícil de agarrar porque é necessário ir além da leitura dos profissionais do sagrado e também das análises fenomenológicas das ciências sociais. Ou seja, é necessário desdogmatizar o fenômeno religioso a dois níveis: àqueles da dogmática da tradição da igreja cristã e àqueles da dogmática do saber acadêmico. Isto porque o fenômeno religioso é maior do que o púlpito e o seminário, mas também não pode ser reduzido aos seus condicionantes pelas ciências sociais, porque enquanto espiritualidade traduz presença do transcendente.


Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a sociologia brasileira encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases estavam calcadas em leituras positivistas e estruturalistas, que construíram um instrumental primeiro-mundista de justificação de uma nova forma de colonização. Assim, os mecanismos operacionais de descrição do fenômeno religioso se transformaram em processos de referendum do status quo e do establishment


É verdade que processos de revolução religiosa já tinham acontecido no Ocidente, a começar pela Reforma, com seus desdobramentos na Europa e Estados Unidos. Conhecemos, porém, as dificuldades que positivistas, marxistas e estruturalistas enfrentaram para entender o fenômeno religioso como fundante e criador de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora tenha caminhado no sentido de compreender o fenômeno religioso a partir das religiões ditas primitivas e não monoteístas, formatou leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis. Depois que Marx entrou em declínio com o fim do pensamento soviético, fato marcado nas universidades européias, Weber e o historicismo alemão foram tirados do ostracismo. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente. 


Assim, o que poderia fazer a sociologia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Voltar aos pais da sociologia. E assim foi. A explosão do fenômeno evangélico passou a ser vista como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal. Mas, com a débâcle do marxismo, nos anos 1980, e o boom neoliberal que varreu o mundo, a sociologia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil como um subproduto do mercado capitalista. Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos absolutizados e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a dogmática sociológica reduziu o fenômeno e jogou fora as experiências que construíram o Ocidente protestante. Na sequência, por essencializar o fenômeno religioso e não ver a plasticidade e fluidez do processo de conversão, preferiu absolutizar o trânsito religioso. 


E em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos? Por que lá podemos utilizar o conceito de conversão trabalhado por Weber e por que não aqui? 


Podemos dizer, então, que em relação ao fenômeno evangélico brasileiro três componentes dificultam a análise: as dogmáticas auto-suficientes dos diferentes segmentos do evangelicalismo brasileiro, o preconceito diante de uma questão que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e o recurso a referenciais teóricos positivistas e estruturalistas que levam a um reducionismo do fenômeno estudado.


Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para a sociologia e para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Mas aqui queremos utilizar como referencial um trabalho de Paul Tillich: Teologia da Cultura. Desejamos, dessa maneira, a partir da teologia da cultura e de teóricos como Bauman, Mendonça, Robertson e Santos analisar a relação entre evangelicalismo, urbanização e a busca por fundamentos, e construir uma leitura própria dos caminhos transitados pelo evangelicalismo urbano brasileiro, em suas diferentes formas.


Caminhos da espiritualidade


Uma das questões que nos perguntamos quanto relacionamos cidade e religião é se, de fato, o evangelicalismo outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, podemos dizer que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, mas que a religião no mundo urbano, nos grandes centros brasileiros, ocupa um espaço privilegiado enquanto tradução dessa espiritualidade, isso é verdade. Ora, a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano e no mundo urbano brasileiro essa busca, por vários fatores, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a igreja evangélica cresceu 267% nos últimos dez anos. Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade foi catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos 150 anos.

 

Que a espiritualidade traduzida nas religiões das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na ética, na estética, no conhecimento, isso é fato registrado pelas ciências da religião e pela teologia. Por isso, quando na cidade alguém conscientemente rejeita a religião, ou seja, se diz agnóstico ou ateu em nome de uma ética, de uma estética, ou por causa da busca de conhecimento, está a rejeitar a religião em nome da religião. Isto porque ela é o fundamento, a profundidade e a substância da vida espiritual do ser humano.


De forma geral, numa leitura antropológica cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. Por exemplo, quando multidões assistiram ao filme
A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e foram despertadas, cada qual à sua maneira, para a miserabilidade humana, temos aí uma expressão da espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade sempre será traduzida em religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.

 
Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã invisível, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes e evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.


Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano o evangelicalismo é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante os anos da ditadura militar no Brasil, algumas igrejas e denominações apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores protestantes e evangélicos, membros de igrejas importantes. O evangelicalismo é desagregador quando se liga à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agrega quando defende a vida humana. Com isso, constatamos que o evangelicalismo pode ser uma coisa ou outra ou mesmo, dialeticamente, ambas.


Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos no período dos governos militares, até mesmo porque muitos crentes também foram torturados. O certo é que pessoas, em nome da agregação, do fanatismo e de conceitos bíblicos mal interpretados, foram cúmplices de torturas e mortes. 


A busca por fundamentos


A Reforma desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes. A partir desses conceitos de liberdade, que depois foram acrescidos, surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia reformada como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras.


No Brasil, a sociologia viu o movimento evangélico como fundamentalista, passou a ver apenas seu lado integrista. É certo que o movimento evangélico é fundamentalista, e Mendonça explica o que isso significa: 


Seu apego à letra da Bíblia, ao mesmo tempo em que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente. A extrema racionalidade fundamentalista, com sua filosofia da história – história linear construída em etapas ou dispensações em que a última encerra com a segunda vinda de Cristo para iniciar o milênio --, levou o protestantismo ao desinteresse total pelo mundo. O pior nesse sistema é que o esperado milênio deverá vir com a derrocada do mundo a fim de cumprir todas as profecias bíblicas. É a mais estranha filosofia: quanto pior, melhor”.


Na verdade, a utilização da expressão fundamentalista para o evangelicalismo brasileiro ou setores dele não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica. E é isso que pretendemos analisar neste artigo.


O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, trinta por cento da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE (2007), hoje, oitenta e três por cento da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Oito em cada dez brasileiros vivem em núcleos urbanos.


Parte da população urbana concentra-se no sudeste do país, em especial em grandes áreas metropolitanas como São Paulo, 17 milhões na Grande São Paulo, e Rio de Janeiro, mais de 10 milhões na Grande Rio.


Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações.


O processo de modernização do país, na segunda metade do século vinte, gerou duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, que foram constituídas coração cultural e econômico do país, concentrando recursos e articulando em seu entorno uma constelação de aglomerações urbanas e cidades médias.


Nos últimos anos ocorreu uma tendência à desconcentração de atividades industriais, com o deslocamento de unidades produtivas do núcleo central de metrópoles como São Paulo para outras cidades e aglomerações urbanas de diferentes portes e localizadas em diferentes estados e regiões. E a redução no ritmo de crescimento populacional de São Paulo e do Rio de Janeiro é fato marcante, embora não signifique a redução do poder e influência nacional e internacional de ambas.


Crescem também outras aglomerações urbanas metropolitanas e não-metropolitanas e também o número de cidades médias por todo o país. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos. 


E o movimento protestante/evangélico soube montar a cavalo no processo de urbanização brasileiro. A procura protestante/evangélica por fundamentos é uma mostra de que o movimento não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe dêem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos e são um fenômeno urbano. E por ser a alta modernidade líquida e fluída, sem definições precisas e sólidas, o movimento protestante/evangélico urbano necessita um permanente olhar a frente. As necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descontentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos evangélicos presentes no espaço urbano brasileiro.


Ao acrescentarmos a variável urbanização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas. E o movimento protestante/evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido de vida e esperança para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno protestante/evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade. 


Os estudos publicados pelo IBGE mostram que, em 1970, a população protestante/evangélico tinha 4,8 milhões de fiéis. Em 1980, passou a marca dos 7,9 milhões. Em 1991, avançou a barreira dos 13,7 milhões. Em 2000, acima de todas as previsões estatísticas, ultrapassou os 26 milhões de adeptos. Durante a década de 90, a velocidade de crescimento da igreja protestante/evangélica foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Atualmente, o movimento como um todo tem 20% da população, ou seja, 35 milhões de adeptos. 


Devemos reconhecer, porém, que a multiculturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, integrada cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direção à alta modernidade. 


Uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra o movimento protestante/evangélico em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. É o lado misterioso dela. Há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo brasileiro, o que implica em ressignificar o estudo e a interpretação da Bíblia, o louvor e a adoração nas igrejas e até mesmo os currículos de faculdades de teologia. A caminhada em direção às tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta da alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a igreja local contribua para a espiritualidade  mundial. 


O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptação às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno protestante/evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade.


A maioria do movimento protestante/evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanas. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos, marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento protestante são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam. Mas tal fenômeno não é negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que o evangelicalismo local só é possível numa base cada vez mais global. Ou seja, para os protestantismos e evangelicalismos urbanos pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de protestantismo urbano viável. O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente com­plicações dispersas.


A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade. Mas, e esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformida­de. Ou seja, dentro do conjunto movimento protestante/evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uniformidades. Podemos sintetizar essa idéia dizendo que a urbanização envolve a simultaneidade da globalidade e da localidade.


Globalidade e localidade


É por isso que, quando falamos em evangelicalismo urbano, apontamos para a comunicação interdenominacional. Esta questão está correlacionada com o processo urbano de compressão do espaço e do tempo. Ela é uma reação positiva ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos. Outro aspecto importante é que a comunicação interdenominacional é em si mesma uma manifestação da urbanização. A comunicação interdenominacional se faz em todos os níveis, está presente nas salas de aula, na presença marcada da mídia, e já chegou às igrejas e aos cultos. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferença autêntica, mas faz uma descrição simbólica, adequando evangelicalismo e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões. 


Os protestantismos e evangelicalismos urbanos tendem estão à procura de fundamentos autênticos, numa busca por bases sólidas, mas não por um centro. Mas tal busca por fundamentos não nem sempre é bem resolvida por causa das inter-relações sociais. Ou seja, os evangelicalismos, como outras religiosidades urbanas na alta modernidade apresentam um forte grau de inautenticidade. Está claro que o evangelicalismo não é, por natureza, inautêntico em relação aos seus objetivos, mas muitas vezes chega próximo ao delírio na inautenticidade da experiência que oferece às pessoas. Por isso, o evangelicalismo globalizado, ou aquele de expressão local, solitário, é um espaço e tempo de produção da diferença, mas também de contínua produção da globalidade. Tal situação remete à urbanização global e à tendência de acomodação e de homogeneização do evangelicalismo. 


A produção e consolidação da diferença e variedade é um ingrediente essencial à urbanização, que está envolvida na múltipla variedade do evangelicalismo. Ao mesmo tempo, as micro-expressões protestantes e evangélicas ocorrem no contexto das práticas protestantes globais. Assim, os evangelicalismos têm que se acomodar à materialidade do mundo urbano com suas contingências e à multiculturalidade, inclusive para dar sentido às necessidades de seus fiéis.


È importante nessa análise reconhecer os esforços do evangelicalismo em correlacionar o mundo global com o local. Isto porque o evangelicalismo em sua diversidade tem que responder às questões de suas micro-expressões dentro do contexto do interesse local, particular, mas também global. A questão do evangelicalismo urbano emergiu com força significativa na vida brasileira nos últimos quarenta anos do século vinte. E à medida que os protestantismos da urbanização cresceram, outra estrutura começou a ser construída, aquela do evangelicalismo como casulo para o crente que não quer se expor. E aí voltamos à força crescente da comunicação interdenominacional e da mídia, mais especificamente a televisão. É o caso do crente que quer ter acesso ao movimento protestante e evangélico, mas quer permanecer no casulo. Acessa as localidades protestantes globais. E como a televisão tem presença persuasiva, mas impossibilita o relacionamento vivencial entre local e global, em última instância se vive no evangelicalismo via televisão o triunfo da globalidade abstrata sobre a localidade experimentada. Nesse sentido, os evangelicalismos da mídia televisiva subestimam a localidade do espaço protestante. Menosprezam as urbanidades reais, cheias de conflitos e tensões, e falam a linguagem do protestantismo genérico.


A abordagem da urbanização do evangelicalismo brasileiro parte das generalizações empíricas referentes à crescente compressão do protestantismo em um campo global único, bem como de idéias conceituais sobre os modos pelos quais os protestantismos deveriam ser mapeados em termos sociológicos. As duas hipóteses desta elaboração estão relacionadas. Nos início dos quarenta anos de revolução protestante urbana no Brasil, a questão da busca de sentido era central. No final da década de 1970 teve início o ressurgimento dessa busca de sentido e o debate na academia tendia a vê-lo como fenômeno político-religioso, expressão da identidade social. Hoje, no entanto, vemos a busca por fundamentos, analiticamente, enquanto problema de particularidade do cenário global. Ou seja, nos vemos obrigados a analisar a construção global do fenômeno e como se deu essa busca por fundamentos e sentido no evangelicalismo urbano. 


Quando analisamos a primeira hipótese, focamos a compressão espaço temporal, que percebe a necessidade das cidades em expressarem suas identidades através de propósitos internos e externos. Olhando dessa perspectiva, a busca evangélica por fundamentos é uma reação e não uma criação da globalidade. Mas, a partir da segunda hipótese, vemos que a expectativa de identidade é construída dentro do processo geral de globalidade.


Quando falamos de urbanização brasileira na alta modernidade estamos nos referindo aos caminhos específicos que as cidades tomaram nos últimos anos na construção de suas singularidades. Mas também que no processo geral da globalidade, as cidades brasileiras, por razões geográficas e por suas diferentes expressões de multibrasilidade, tenderam a um processo de diferenciação. Estes dois aspectos, no que se refere ao evangelicalismo urbano estimularam os fundamentalismos propriamente ditos, conforme conceitualização de Robertson, gerando dois tipos de leituras e vivências: a totalizante e a antitotalizante.


Os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo totalizante apresentam um empenho estratégico de ligar sua urbanidade à globalidade, sob a suposição de que suas teologias e doutrinas e mesmo suas expressões eclesiológicas possam ser mais bem resolvidas no reconhecimento de ser enclave de um contexto maior. Mas considerem que seus desafios só podem ser resolvidos ao nível urbano. Essa leitura se expressa principalmente naquelas entidades e mesmo agrupamentos de tradições e heranças históricas, chegadas com os protestantismos de imigração e missão, que pensam seus desafios de forma estritamente analítica e constroem uma visão de mundo que acaba por excluir a cidade. De todas as maneiras, devemos entender que quando realçamos a globalidade tendemos a nos perguntar: mas podem as urbanidades não ser partes da globalidade? Ora, tal questionamento surge quando se pensa apenas a relação globalidade/ urbanidade em termos de grande/pequeno, forte/fraco, civilizado/nativo. A noção de globalidade refere-se à universalidade em sua plenitude, mas não é a única dimensão da expressão evangélica. 


Já os evangelicalismos que situam no campo do fundamentalismo antitotalizante, ao enfrentaram a questão globalidade/urbanidade não colocam a globalidade no centro da discussão. Ao contrário, dão importância ao fato de que as cidades brasileiras na alta modernidade se transformaram e continuam a se transformar em espaços de conquista. Por isso se voltam para as culturas regionais. Só que também as expressões urbanas, locais e regionais também se tornam cada vez mais globais. De certa maneira, o fundamentalismo antitotalizante nega a globalidade em seu sentido primeiro, como processo autônomo, e por sensibilizar que a principal dinâmica da globalidade envolve um processo de urbanização, privilegia o espaço urbano com suas possibilidades e desafios. 


Ora, o fundamentalismo evangélico brasileiro é urbano, o que facilita a emergência de movimentos que buscam o significado imediato das cidades e procuram ressignificações globais para as questões enfrentadas por seus membros. A globalidade das cidades leva à busca global por soluções localizadas. Tal busca leva aos cultos contextualizados às necessidades dos estratos sociais marginalizados e à proposta de reconstrução da vida. Tal compreensão, nesse tipo de fundamentalismo, repousa sobre a procura da pessoa urbana por respostas atávicas à globalidade. Essas respostas atávicas expressam atitudes antitotalizantes. 


Para o fundamentalismo antitotalizante o centro da teologia e da prática não é apenas a procura por fundamentos, mas a correlação entre a busca por fundamentos e a comunidade, onde as crenças caminham pari passo com a saudade de algo que ficou para trás. Dessa maneira, o fundamentalismo antitotalizante trabalha com um sentimento de perda, de nostalgia. Mas, quando a procura por fundamentos é organizada em bases extra-urbanas a idéia de volta aos fundamentos reais fica problematizada. 


E aqui uma questão deve ser levantada: a possibilidade de a pessoa urbana globalizada ser livre sob tais condições. A multiplicação das narrativas evangélicas coloca em discussão a teoria da escolha racional e abre espaço para outra idéia a da seleção racional de espiritualidades e valores.


Caso olhemos apenas do ponto de vista da alta modernidade, os evangelicalismos urbanos brasileiros sugerem a existência de um campo global fluido e desordenado. Nessa perspectiva, escolha racional traduziria modos padronizados em que as preferências seriam exercidas em situações cada vez mais complexas de escolha. Tal leitura privilegia a heterogeneidade e a variedade. Mas se olharmos a partir da seleção racional de espiritualidades e valores, supomos homogeneidade global e humana. A primeira leitura destaca a cidade, a segunda a globalidade. Mas como vimos no correr do estudo há uma convergência dos fenômenos.


A procura por fundamentos foi uma marca do protestantismo, mas na urbanidade brasileira aprofundou-se o conservadorismo fundamentalista, quer totalizante ou antitotalizante. Mas é preciso entender que tais fundamentalismos viabilizaram o movimento evangélico. Hoje a busca por fundamentos tem que encarar a realidade da comunicação interdenominacional, a fala inteligível entre protestantismos diferentes. Mas tanto em interesse, como em aparência, a comunicação interdenominacional, por mais confusa que possa parecer, aponta para conexões imprevisíveis e crescentes. Os protestantismos vivem numa urbanidade que é um espectro de diferenças entrecruzadas. Esta é a urbanidade onde os protestantismos funcionam, onde o aqui e agora não está mais isolado, nem está definido. Por isso, a questão da busca por fundamentos preocupa. E essa procura associa, de forma estranha, mas compreensível, a defesa tanto de fundamentos totalizantes como antitotalizantes.


Considerações finais


Para entendermos o papel do evangelicalismo na urbanidade brasileira é necessário compreender que Deus é o Deus da cidade. Isso significa, em primeiro lugar, que Ele é o Deus que atua na cidade com vistas a um objetivo. Com o cristianismo e sua mensagem, o círculo trágico da sucessão dos deuses do politeísmo, com poderes ilimitados e injustos sobre os povos, foi superado. Em Cristo se salva o universo. Vivemos a plenitude da história e a história alcançará, no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. Esta é a mensagem cristã para as cidades.


Ou nas palavras de Tillich: 


Existe uma zona média entre o princípio absoluto do amor e as situações concretas sempre em mutação. Esses princípios são a democracia, a dignidade de todos os seres humanos, a igualdade perante a lei etc. Não são imutáveis como o princípio absoluto, mas mediadores entre o princípio supremo e a situação na qual vivemos. Esta idéia impede a identificação da mensagem cristã com determinados programas políticos. Permite, entretanto, que o cristianismo não se afaste dos problemas reais da existência humana histórica. Os teólogos americanos criaram, assim, nova maneira de pensar a ética social cristã, tornando a mensagem da igreja relevante não apenas para a relação do indivíduo com Deus, mas também de Deus com o mundo”. 


A partir daí podemos falar do papel do protestantismo no futuro próximo. Em primeiro lugar, é de se esperar, por sua base ética expressa no Sermão do Monte, que o protestantismo e o evangelicalismo expressem publicamente seu papel político: a defesa da democracia, da dignidade de todos os brasileiros, da igualdade perante a lei, enfim a defesa da justiça. As pessoas compreendem a necessidade de justiça e a política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve às reivindicações da justiça. Às vezes, o protestantismo se perde, cai na espiritualidade negativa, ao negar a diferença, e se torna instrumento de segregação e exclusão.

 
Sem dúvida, esta é uma questão da alta modernidade: a relação do protestantismo e as cidades. Na verdade, o respeito pela diferença protestante é um bem que pode salvaguardar as cidades, embora o caminho para a salvação tenha inimigos dentro e fora do protestantismo. Em outras palavras, diante da necessidade de defesa da democracia, da dignidade de todos os brasileiros, da igualdade perante a lei, a comunicação interdenominacional franca é indispensável. 


Ora, as cidades se transformaram em um território de insegurança e medo. Bairros fechados, muros e mecanismos ditos de segurança  restringem o contato de uma pessoa com outra. O resultado é um espaço que promove a segregação e não o encontro de diferenças, marca das cidades em sua origem. O desafio é recuperar a dimensão comunitária do espaço, construir uma coexistência amigável, pacífica e segura. Diante disso, quais seriam as alternativas para se buscar a paz e as ações transformadoras em nossas cidades? Talvez devêssemos partir daquilo que a Reforma nos transmitiu: a consciência dos direitos da pessoa. Neste sentido, a questão é a viabilidade de uma comunicação interdenominacional que possibilite ações transformadoras para a conquista e manutenção dos direitos da pessoa. E isso só será possível quando leigos, pastores e teólogos de diferentes protestantismos não impedirem a construção de princípios comuns de defesa da vida humana.


Mas será que os protestantismos, no Brasil urbano, estão preparados para lidar com este quadro de comunicação interdenominacional? Bem, não é possível falar de comunicação interdenominacional sem falar de poder. Por isso, fica a questão: amor e poder são compatíveis? Os protestantes e evangélicos, como qualquer outra instituição, têm uma existência objetiva que remete à prática do serviço ao próximo, por isso, não podemos deixar que protestantes e evangélicos se tornem totalitários, ou seja, não reconheçam os limites de seu poder. E esse limite é o amor. Dessa forma, numa sociedade democrática, urbana e plural, os protestantes e evangélicos podem, a partir de seus limites, conviver e seguir o caminho da justiça.


Voltemos então a Tillich:


Onde estão as pessoas para as quais queremos comunicar o evangelho de tal maneira que possam fazer uma decisão genuína? Podemos dar uma resposta geral, imediatamente. Todos os que participam na existência humana. É uma resposta universal. Mas não é simples. Pensemos um pouco nas implicações da participação na existência humana”.


E continua:


A primeira coisa que devemos fazer é comunicar o evangelho como mensagem aos que entendem sua própria situação. O que podemos fazer, e com êxito, é demonstrar a estrutura da ansiedade, dos conflitos e da culpa. Essas estruturas, que realmente refletem o que somos, estão em nós, e se estamos certos, também estão presentes nos demais seres humanos. Quando mostramos a eles essas estruturas, é como se tivéssemos um espelho no qual se contemplariam. Se tal procedimento terá êxito, ninguém sabe. Trata-se do risco que devemos tomar. É o mesmo risco que os missionários sempre tomaram. Não pode ser substituído por evidências. Mas não podemos usar evidências para mostrar a natureza humana como ela é. Só o podemos fazer em termos de risco. Assim, tornamo-nos humildes; podemos saber como somos (embora se trate do mais difícil dos conhecimentos), mas nunca saberemos como seremos. E não podemos medir o que seremos a partir do que somos agora. Surge, então, a pergunta: qual evangelho comunicaremos? Há este consolo. Ninguém está obrigado a falar para todas as pessoas em todos os lugares e épocas. Comunicação envolve participação. Quando não há participação, não há comunicação. Estamos diante de uma condição limítrofe porque nossa participação é inevitavelmente precária”.


Por isso, a intervenção cristã só tem sentido na participação, na comunicação e no testemunho. Quando falamos de testemunho estamos resgatando Barth, que entendia vida cristã como plenitude do Espírito. Aí está a chave da questão: sem plenitude do Espírito não há participação, comunicação, testemunho e a intervenção que sair daí não terá amor. Antes, será uma arma de guerra: conduzirá à segregação, à exclusão e à morte. Quando analisamos o protestantismo brasileiro, que busca fundamentos para a reconstrução de identidade e intervenção social, devemos ter claro que comunicação e participação interdenominacionais podem ser ferramentas eficazes no projeto protestante de levar a mensagem cristã a todas as pessoas deste país. 




Bibliografia


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