Evangelicalismo e cidade
Mitos da religiosidade evangélica brasileira
Jorge Pinheiro
“O velho protestantismo está cada vez mais distanciado dos novos movimentos de lastro cristão. Não se pode mais ignorar as significativas diferenças que há entre eles, sob pena de cometer equívocos nos resultados das pesquisas. O pesquisador atual não pode furtar-se ao, às vezes, penoso labor de precisar classificações e conceitos. É preciso que distinga bem, ao estudar qualquer novo movimento religioso, o limite exato em que o velho protestantismo deixa de estar presente. Quando seus princípios básicos de liberdade – a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes – não estiverem presentes ou se apresentarem obscurecidos por outras práticas religiosas, não há mais protestantismo”. Antonio Gouvêa Mendonça.
Introdução
A academia em suas análises sobre o fenômeno evangélico brasileiro na alta-modernidade urbana criou três lugares comuns: mercado, trânsito religioso e fundamentalismo. Na verdade, a leitura reducionista da realidade traduz um defeito que nasceu de suas bases teóricas de análise, fundamentadas sobre les trois petits cochons da sociologia: Marx, Durkheim e Weber. É a partir dessa trindade que nos debruçamos sobre o fenômeno religioso. Esses três pensadores das ciências sociais, por mais importantes, tinham em comum a idéia de que a religião é sempre conseqüência, resultante de fenômenos ou situações sociais e nunca fenômeno fundante, embora relacional com contexto cultural de época, situação e geografia.
Os estudos da religião no Brasil, segundo Duarte, “pairam entre a marginalidade e a legitimidade de um campo de estudos”. O objeto religião é difícil de agarrar porque é necessário ir além da leitura dos profissionais do sagrado e também das análises fenomenológicas das ciências sociais. Ou seja, é necessário desdogmatizar o fenômeno religioso a dois níveis: àqueles da dogmática da tradição da igreja cristã e àqueles da dogmática do saber acadêmico. Isto porque o fenômeno religioso é maior do que o púlpito e o seminário, mas também não pode ser reduzido aos seus condicionantes pelas ciências sociais, porque enquanto espiritualidade traduz presença do transcendente.
Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a sociologia brasileira encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases estavam calcadas em leituras positivistas e estruturalistas, que construíram um instrumental primeiro-mundista de justificação de uma nova forma de colonização. Assim, os mecanismos operacionais de descrição do fenômeno religioso se transformaram em processos de referendum do status quo e do establishment.
É verdade que processos de revolução religiosa já tinham acontecido no Ocidente, a começar pela Reforma, com seus desdobramentos na Europa e Estados Unidos. Conhecemos, porém, as dificuldades que positivistas, marxistas e estruturalistas enfrentaram para entender o fenômeno religioso como fundante e criador de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora tenha caminhado no sentido de compreender o fenômeno religioso a partir das religiões ditas primitivas e não monoteístas, formatou leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis. Depois que Marx entrou em declínio com o fim do pensamento soviético, fato marcado nas universidades européias, Weber e o historicismo alemão foram tirados do ostracismo. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente.
Assim, o que poderia fazer a sociologia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Voltar aos pais da sociologia. E assim foi. A explosão do fenômeno evangélico passou a ser vista como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal. Mas, com a débâcle do marxismo, nos anos 1980, e o boom neoliberal que varreu o mundo, a sociologia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil como um subproduto do mercado capitalista. Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos absolutizados e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a dogmática sociológica reduziu o fenômeno e jogou fora as experiências que construíram o Ocidente protestante. Na sequência, por essencializar o fenômeno religioso e não ver a plasticidade e fluidez do processo de conversão, preferiu absolutizar o trânsito religioso.
E em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos? Por que lá podemos utilizar o conceito de conversão trabalhado por Weber e por que não aqui?
Podemos dizer, então, que em relação ao fenômeno evangélico brasileiro três componentes dificultam a análise: as dogmáticas auto-suficientes dos diferentes segmentos do evangelicalismo brasileiro, o preconceito diante de uma questão que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e o recurso a referenciais teóricos positivistas e estruturalistas que levam a um reducionismo do fenômeno estudado.
Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para a sociologia e para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Mas aqui queremos utilizar como referencial um trabalho de Paul Tillich: Teologia da Cultura. Desejamos, dessa maneira, a partir da teologia da cultura e de teóricos como Bauman, Mendonça, Robertson e Santos analisar a relação entre evangelicalismo, urbanização e a busca por fundamentos, e construir uma leitura própria dos caminhos transitados pelo evangelicalismo urbano brasileiro, em suas diferentes formas.
Caminhos da espiritualidade
Uma das questões que nos perguntamos quanto relacionamos cidade e religião é se, de fato, o evangelicalismo outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, podemos dizer que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, mas que a religião no mundo urbano, nos grandes centros brasileiros, ocupa um espaço privilegiado enquanto tradução dessa espiritualidade, isso é verdade. Ora, a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano e no mundo urbano brasileiro essa busca, por vários fatores, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a igreja evangélica cresceu 267% nos últimos dez anos. Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade foi catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos 150 anos.
Que a espiritualidade traduzida nas religiões das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na ética, na estética, no conhecimento, isso é fato registrado pelas ciências da religião e pela teologia. Por isso, quando na cidade alguém conscientemente rejeita a religião, ou seja, se diz agnóstico ou ateu em nome de uma ética, de uma estética, ou por causa da busca de conhecimento, está a rejeitar a religião em nome da religião. Isto porque ela é o fundamento, a profundidade e a substância da vida espiritual do ser humano.
De forma geral, numa leitura antropológica cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. Por exemplo, quando multidões assistiram ao filme A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e foram despertadas, cada qual à sua maneira, para a miserabilidade humana, temos aí uma expressão da espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade sempre será traduzida em religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.
Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã invisível, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes e evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.
Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano o evangelicalismo é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante os anos da ditadura militar no Brasil, algumas igrejas e denominações apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores protestantes e evangélicos, membros de igrejas importantes. O evangelicalismo é desagregador quando se liga à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agrega quando defende a vida humana. Com isso, constatamos que o evangelicalismo pode ser uma coisa ou outra ou mesmo, dialeticamente, ambas.
Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos no período dos governos militares, até mesmo porque muitos crentes também foram torturados. O certo é que pessoas, em nome da agregação, do fanatismo e de conceitos bíblicos mal interpretados, foram cúmplices de torturas e mortes.
A busca por fundamentos
A Reforma desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes. A partir desses conceitos de liberdade, que depois foram acrescidos, surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia reformada como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras.
No Brasil, a sociologia viu o movimento evangélico como fundamentalista, passou a ver apenas seu lado integrista. É certo que o movimento evangélico é fundamentalista, e Mendonça explica o que isso significa:
“Seu apego à letra da Bíblia, ao mesmo tempo em que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente. A extrema racionalidade fundamentalista, com sua filosofia da história – história linear construída em etapas ou dispensações em que a última encerra com a segunda vinda de Cristo para iniciar o milênio --, levou o protestantismo ao desinteresse total pelo mundo. O pior nesse sistema é que o esperado milênio deverá vir com a derrocada do mundo a fim de cumprir todas as profecias bíblicas. É a mais estranha filosofia: quanto pior, melhor”.
Na verdade, a utilização da expressão fundamentalista para o evangelicalismo brasileiro ou setores dele não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica. E é isso que pretendemos analisar neste artigo.
O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, trinta por cento da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE (2007), hoje, oitenta e três por cento da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Oito em cada dez brasileiros vivem em núcleos urbanos.
Parte da população urbana concentra-se no sudeste do país, em especial em grandes áreas metropolitanas como São Paulo, 17 milhões na Grande São Paulo, e Rio de Janeiro, mais de 10 milhões na Grande Rio.
Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações.
O processo de modernização do país, na segunda metade do século vinte, gerou duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, que foram constituídas coração cultural e econômico do país, concentrando recursos e articulando em seu entorno uma constelação de aglomerações urbanas e cidades médias.
Nos últimos anos ocorreu uma tendência à desconcentração de atividades industriais, com o deslocamento de unidades produtivas do núcleo central de metrópoles como São Paulo para outras cidades e aglomerações urbanas de diferentes portes e localizadas em diferentes estados e regiões. E a redução no ritmo de crescimento populacional de São Paulo e do Rio de Janeiro é fato marcante, embora não signifique a redução do poder e influência nacional e internacional de ambas.
Crescem também outras aglomerações urbanas metropolitanas e não-metropolitanas e também o número de cidades médias por todo o país. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos.
E o movimento protestante/evangélico soube montar a cavalo no processo de urbanização brasileiro. A procura protestante/evangélica por fundamentos é uma mostra de que o movimento não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe dêem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos e são um fenômeno urbano. E por ser a alta modernidade líquida e fluída, sem definições precisas e sólidas, o movimento protestante/evangélico urbano necessita um permanente olhar a frente. As necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descontentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos evangélicos presentes no espaço urbano brasileiro.
Ao acrescentarmos a variável urbanização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas. E o movimento protestante/evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido de vida e esperança para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno protestante/evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade.
Os estudos publicados pelo IBGE mostram que, em 1970, a população protestante/evangélico tinha 4,8 milhões de fiéis. Em 1980, passou a marca dos 7,9 milhões. Em 1991, avançou a barreira dos 13,7 milhões. Em 2000, acima de todas as previsões estatísticas, ultrapassou os 26 milhões de adeptos. Durante a década de 90, a velocidade de crescimento da igreja protestante/evangélica foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Atualmente, o movimento como um todo tem 20% da população, ou seja, 35 milhões de adeptos.
Devemos reconhecer, porém, que a multiculturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, integrada cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direção à alta modernidade.
Uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra o movimento protestante/evangélico em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. É o lado misterioso dela. Há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo brasileiro, o que implica em ressignificar o estudo e a interpretação da Bíblia, o louvor e a adoração nas igrejas e até mesmo os currículos de faculdades de teologia. A caminhada em direção às tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta da alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a igreja local contribua para a espiritualidade mundial.
O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptação às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno protestante/evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade.
A maioria do movimento protestante/evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanas. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos, marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento protestante são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam. Mas tal fenômeno não é negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que o evangelicalismo local só é possível numa base cada vez mais global. Ou seja, para os protestantismos e evangelicalismos urbanos pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de protestantismo urbano viável. O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente complicações dispersas.
A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade. Mas, e esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformidade. Ou seja, dentro do conjunto movimento protestante/evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uniformidades. Podemos sintetizar essa idéia dizendo que a urbanização envolve a simultaneidade da globalidade e da localidade.
Globalidade e localidade
É por isso que, quando falamos em evangelicalismo urbano, apontamos para a comunicação interdenominacional. Esta questão está correlacionada com o processo urbano de compressão do espaço e do tempo. Ela é uma reação positiva ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos. Outro aspecto importante é que a comunicação interdenominacional é em si mesma uma manifestação da urbanização. A comunicação interdenominacional se faz em todos os níveis, está presente nas salas de aula, na presença marcada da mídia, e já chegou às igrejas e aos cultos. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferença autêntica, mas faz uma descrição simbólica, adequando evangelicalismo e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões.
Os protestantismos e evangelicalismos urbanos tendem estão à procura de fundamentos autênticos, numa busca por bases sólidas, mas não por um centro. Mas tal busca por fundamentos não nem sempre é bem resolvida por causa das inter-relações sociais. Ou seja, os evangelicalismos, como outras religiosidades urbanas na alta modernidade apresentam um forte grau de inautenticidade. Está claro que o evangelicalismo não é, por natureza, inautêntico em relação aos seus objetivos, mas muitas vezes chega próximo ao delírio na inautenticidade da experiência que oferece às pessoas. Por isso, o evangelicalismo globalizado, ou aquele de expressão local, solitário, é um espaço e tempo de produção da diferença, mas também de contínua produção da globalidade. Tal situação remete à urbanização global e à tendência de acomodação e de homogeneização do evangelicalismo.
A produção e consolidação da diferença e variedade é um ingrediente essencial à urbanização, que está envolvida na múltipla variedade do evangelicalismo. Ao mesmo tempo, as micro-expressões protestantes e evangélicas ocorrem no contexto das práticas protestantes globais. Assim, os evangelicalismos têm que se acomodar à materialidade do mundo urbano com suas contingências e à multiculturalidade, inclusive para dar sentido às necessidades de seus fiéis.
È importante nessa análise reconhecer os esforços do evangelicalismo em correlacionar o mundo global com o local. Isto porque o evangelicalismo em sua diversidade tem que responder às questões de suas micro-expressões dentro do contexto do interesse local, particular, mas também global. A questão do evangelicalismo urbano emergiu com força significativa na vida brasileira nos últimos quarenta anos do século vinte. E à medida que os protestantismos da urbanização cresceram, outra estrutura começou a ser construída, aquela do evangelicalismo como casulo para o crente que não quer se expor. E aí voltamos à força crescente da comunicação interdenominacional e da mídia, mais especificamente a televisão. É o caso do crente que quer ter acesso ao movimento protestante e evangélico, mas quer permanecer no casulo. Acessa as localidades protestantes globais. E como a televisão tem presença persuasiva, mas impossibilita o relacionamento vivencial entre local e global, em última instância se vive no evangelicalismo via televisão o triunfo da globalidade abstrata sobre a localidade experimentada. Nesse sentido, os evangelicalismos da mídia televisiva subestimam a localidade do espaço protestante. Menosprezam as urbanidades reais, cheias de conflitos e tensões, e falam a linguagem do protestantismo genérico.
A abordagem da urbanização do evangelicalismo brasileiro parte das generalizações empíricas referentes à crescente compressão do protestantismo em um campo global único, bem como de idéias conceituais sobre os modos pelos quais os protestantismos deveriam ser mapeados em termos sociológicos. As duas hipóteses desta elaboração estão relacionadas. Nos início dos quarenta anos de revolução protestante urbana no Brasil, a questão da busca de sentido era central. No final da década de 1970 teve início o ressurgimento dessa busca de sentido e o debate na academia tendia a vê-lo como fenômeno político-religioso, expressão da identidade social. Hoje, no entanto, vemos a busca por fundamentos, analiticamente, enquanto problema de particularidade do cenário global. Ou seja, nos vemos obrigados a analisar a construção global do fenômeno e como se deu essa busca por fundamentos e sentido no evangelicalismo urbano.
Quando analisamos a primeira hipótese, focamos a compressão espaço temporal, que percebe a necessidade das cidades em expressarem suas identidades através de propósitos internos e externos. Olhando dessa perspectiva, a busca evangélica por fundamentos é uma reação e não uma criação da globalidade. Mas, a partir da segunda hipótese, vemos que a expectativa de identidade é construída dentro do processo geral de globalidade.
Quando falamos de urbanização brasileira na alta modernidade estamos nos referindo aos caminhos específicos que as cidades tomaram nos últimos anos na construção de suas singularidades. Mas também que no processo geral da globalidade, as cidades brasileiras, por razões geográficas e por suas diferentes expressões de multibrasilidade, tenderam a um processo de diferenciação. Estes dois aspectos, no que se refere ao evangelicalismo urbano estimularam os fundamentalismos propriamente ditos, conforme conceitualização de Robertson, gerando dois tipos de leituras e vivências: a totalizante e a antitotalizante.
Os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo totalizante apresentam um empenho estratégico de ligar sua urbanidade à globalidade, sob a suposição de que suas teologias e doutrinas e mesmo suas expressões eclesiológicas possam ser mais bem resolvidas no reconhecimento de ser enclave de um contexto maior. Mas considerem que seus desafios só podem ser resolvidos ao nível urbano. Essa leitura se expressa principalmente naquelas entidades e mesmo agrupamentos de tradições e heranças históricas, chegadas com os protestantismos de imigração e missão, que pensam seus desafios de forma estritamente analítica e constroem uma visão de mundo que acaba por excluir a cidade. De todas as maneiras, devemos entender que quando realçamos a globalidade tendemos a nos perguntar: mas podem as urbanidades não ser partes da globalidade? Ora, tal questionamento surge quando se pensa apenas a relação globalidade/ urbanidade em termos de grande/pequeno, forte/fraco, civilizado/nativo. A noção de globalidade refere-se à universalidade em sua plenitude, mas não é a única dimensão da expressão evangélica.
Já os evangelicalismos que situam no campo do fundamentalismo antitotalizante, ao enfrentaram a questão globalidade/urbanidade não colocam a globalidade no centro da discussão. Ao contrário, dão importância ao fato de que as cidades brasileiras na alta modernidade se transformaram e continuam a se transformar em espaços de conquista. Por isso se voltam para as culturas regionais. Só que também as expressões urbanas, locais e regionais também se tornam cada vez mais globais. De certa maneira, o fundamentalismo antitotalizante nega a globalidade em seu sentido primeiro, como processo autônomo, e por sensibilizar que a principal dinâmica da globalidade envolve um processo de urbanização, privilegia o espaço urbano com suas possibilidades e desafios.
Ora, o fundamentalismo evangélico brasileiro é urbano, o que facilita a emergência de movimentos que buscam o significado imediato das cidades e procuram ressignificações globais para as questões enfrentadas por seus membros. A globalidade das cidades leva à busca global por soluções localizadas. Tal busca leva aos cultos contextualizados às necessidades dos estratos sociais marginalizados e à proposta de reconstrução da vida. Tal compreensão, nesse tipo de fundamentalismo, repousa sobre a procura da pessoa urbana por respostas atávicas à globalidade. Essas respostas atávicas expressam atitudes antitotalizantes.
Para o fundamentalismo antitotalizante o centro da teologia e da prática não é apenas a procura por fundamentos, mas a correlação entre a busca por fundamentos e a comunidade, onde as crenças caminham pari passo com a saudade de algo que ficou para trás. Dessa maneira, o fundamentalismo antitotalizante trabalha com um sentimento de perda, de nostalgia. Mas, quando a procura por fundamentos é organizada em bases extra-urbanas a idéia de volta aos fundamentos reais fica problematizada.
E aqui uma questão deve ser levantada: a possibilidade de a pessoa urbana globalizada ser livre sob tais condições. A multiplicação das narrativas evangélicas coloca em discussão a teoria da escolha racional e abre espaço para outra idéia a da seleção racional de espiritualidades e valores.
Caso olhemos apenas do ponto de vista da alta modernidade, os evangelicalismos urbanos brasileiros sugerem a existência de um campo global fluido e desordenado. Nessa perspectiva, escolha racional traduziria modos padronizados em que as preferências seriam exercidas em situações cada vez mais complexas de escolha. Tal leitura privilegia a heterogeneidade e a variedade. Mas se olharmos a partir da seleção racional de espiritualidades e valores, supomos homogeneidade global e humana. A primeira leitura destaca a cidade, a segunda a globalidade. Mas como vimos no correr do estudo há uma convergência dos fenômenos.
A procura por fundamentos foi uma marca do protestantismo, mas na urbanidade brasileira aprofundou-se o conservadorismo fundamentalista, quer totalizante ou antitotalizante. Mas é preciso entender que tais fundamentalismos viabilizaram o movimento evangélico. Hoje a busca por fundamentos tem que encarar a realidade da comunicação interdenominacional, a fala inteligível entre protestantismos diferentes. Mas tanto em interesse, como em aparência, a comunicação interdenominacional, por mais confusa que possa parecer, aponta para conexões imprevisíveis e crescentes. Os protestantismos vivem numa urbanidade que é um espectro de diferenças entrecruzadas. Esta é a urbanidade onde os protestantismos funcionam, onde o aqui e agora não está mais isolado, nem está definido. Por isso, a questão da busca por fundamentos preocupa. E essa procura associa, de forma estranha, mas compreensível, a defesa tanto de fundamentos totalizantes como antitotalizantes.
Considerações finais
Para entendermos o papel do evangelicalismo na urbanidade brasileira é necessário compreender que Deus é o Deus da cidade. Isso significa, em primeiro lugar, que Ele é o Deus que atua na cidade com vistas a um objetivo. Com o cristianismo e sua mensagem, o círculo trágico da sucessão dos deuses do politeísmo, com poderes ilimitados e injustos sobre os povos, foi superado. Em Cristo se salva o universo. Vivemos a plenitude da história e a história alcançará, no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. Esta é a mensagem cristã para as cidades.
Ou nas palavras de Tillich:
“Existe uma zona média entre o princípio absoluto do amor e as situações concretas sempre em mutação. Esses princípios são a democracia, a dignidade de todos os seres humanos, a igualdade perante a lei etc. Não são imutáveis como o princípio absoluto, mas mediadores entre o princípio supremo e a situação na qual vivemos. Esta idéia impede a identificação da mensagem cristã com determinados programas políticos. Permite, entretanto, que o cristianismo não se afaste dos problemas reais da existência humana histórica. Os teólogos americanos criaram, assim, nova maneira de pensar a ética social cristã, tornando a mensagem da igreja relevante não apenas para a relação do indivíduo com Deus, mas também de Deus com o mundo”.
A partir daí podemos falar do papel do protestantismo no futuro próximo. Em primeiro lugar, é de se esperar, por sua base ética expressa no Sermão do Monte, que o protestantismo e o evangelicalismo expressem publicamente seu papel político: a defesa da democracia, da dignidade de todos os brasileiros, da igualdade perante a lei, enfim a defesa da justiça. As pessoas compreendem a necessidade de justiça e a política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve às reivindicações da justiça. Às vezes, o protestantismo se perde, cai na espiritualidade negativa, ao negar a diferença, e se torna instrumento de segregação e exclusão.
Sem dúvida, esta é uma questão da alta modernidade: a relação do protestantismo e as cidades. Na verdade, o respeito pela diferença protestante é um bem que pode salvaguardar as cidades, embora o caminho para a salvação tenha inimigos dentro e fora do protestantismo. Em outras palavras, diante da necessidade de defesa da democracia, da dignidade de todos os brasileiros, da igualdade perante a lei, a comunicação interdenominacional franca é indispensável.
Ora, as cidades se transformaram em um território de insegurança e medo. Bairros fechados, muros e mecanismos ditos de segurança restringem o contato de uma pessoa com outra. O resultado é um espaço que promove a segregação e não o encontro de diferenças, marca das cidades em sua origem. O desafio é recuperar a dimensão comunitária do espaço, construir uma coexistência amigável, pacífica e segura. Diante disso, quais seriam as alternativas para se buscar a paz e as ações transformadoras em nossas cidades? Talvez devêssemos partir daquilo que a Reforma nos transmitiu: a consciência dos direitos da pessoa. Neste sentido, a questão é a viabilidade de uma comunicação interdenominacional que possibilite ações transformadoras para a conquista e manutenção dos direitos da pessoa. E isso só será possível quando leigos, pastores e teólogos de diferentes protestantismos não impedirem a construção de princípios comuns de defesa da vida humana.
Mas será que os protestantismos, no Brasil urbano, estão preparados para lidar com este quadro de comunicação interdenominacional? Bem, não é possível falar de comunicação interdenominacional sem falar de poder. Por isso, fica a questão: amor e poder são compatíveis? Os protestantes e evangélicos, como qualquer outra instituição, têm uma existência objetiva que remete à prática do serviço ao próximo, por isso, não podemos deixar que protestantes e evangélicos se tornem totalitários, ou seja, não reconheçam os limites de seu poder. E esse limite é o amor. Dessa forma, numa sociedade democrática, urbana e plural, os protestantes e evangélicos podem, a partir de seus limites, conviver e seguir o caminho da justiça.
Voltemos então a Tillich:
“Onde estão as pessoas para as quais queremos comunicar o evangelho de tal maneira que possam fazer uma decisão genuína? Podemos dar uma resposta geral, imediatamente. Todos os que participam na existência humana. É uma resposta universal. Mas não é simples. Pensemos um pouco nas implicações da participação na existência humana”.
E continua:
“A primeira coisa que devemos fazer é comunicar o evangelho como mensagem aos que entendem sua própria situação. O que podemos fazer, e com êxito, é demonstrar a estrutura da ansiedade, dos conflitos e da culpa. Essas estruturas, que realmente refletem o que somos, estão em nós, e se estamos certos, também estão presentes nos demais seres humanos. Quando mostramos a eles essas estruturas, é como se tivéssemos um espelho no qual se contemplariam. Se tal procedimento terá êxito, ninguém sabe. Trata-se do risco que devemos tomar. É o mesmo risco que os missionários sempre tomaram. Não pode ser substituído por evidências. Mas não podemos usar evidências para mostrar a natureza humana como ela é. Só o podemos fazer em termos de risco. Assim, tornamo-nos humildes; podemos saber como somos (embora se trate do mais difícil dos conhecimentos), mas nunca saberemos como seremos. E não podemos medir o que seremos a partir do que somos agora. Surge, então, a pergunta: qual evangelho comunicaremos? Há este consolo. Ninguém está obrigado a falar para todas as pessoas em todos os lugares e épocas. Comunicação envolve participação. Quando não há participação, não há comunicação. Estamos diante de uma condição limítrofe porque nossa participação é inevitavelmente precária”.
Por isso, a intervenção cristã só tem sentido na participação, na comunicação e no testemunho. Quando falamos de testemunho estamos resgatando Barth, que entendia vida cristã como plenitude do Espírito. Aí está a chave da questão: sem plenitude do Espírito não há participação, comunicação, testemunho e a intervenção que sair daí não terá amor. Antes, será uma arma de guerra: conduzirá à segregação, à exclusão e à morte. Quando analisamos o protestantismo brasileiro, que busca fundamentos para a reconstrução de identidade e intervenção social, devemos ter claro que comunicação e participação interdenominacionais podem ser ferramentas eficazes no projeto protestante de levar a mensagem cristã a todas as pessoas deste país.
Bibliografia
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CARLOS, Ana Fani Alessandri, Espaço-tempo na metrópole: a fragmentação da vida cotidiana, São Paulo, Contexto, 2001.
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