mardi 11 mai 2021

Sobre o não-ser

 Sobre o não-ser para viver o ser


Compreendi que não há nada melhor do que a gente ter prazer naquilo que faz. Esta é a recompensa. Pois como é que podemos saber sobre o não-ser? – perguntou Qohélet. 

Qoh procurou a felicidade e a paz. Foi objetivo e prático na avaliação de seu tempo e constatou que o evento humano está sujeito à lei da alternância, que vai além da explicação imediata: o humano não tem domínio sobre as dinâmicas que governam a morte e a vida. E procurou refúgio na sofia grega. O texto hebraico de Qohélet, com a presença de palavras aramaicas e persas, sugere autoria anônima, situada entre 450 e 200 antes de Cristo, e se apresentou com a apodadura de Salomão. 

Qoh procurou entender o ser e o não-ser – aquilo que está fora, além da existência – no jogo de seus movimentos. Percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos.

Mas ele não foi o único a pensar nessas coisas. A pergunta pelo não-ser, presente na história do humano desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do ser. Qohélet – em português Eclesiastes e, segundo Haroldo de Campos, O-que-sabe – de forma magnífica, quase à maneira de Nietzsche, trabalhou o tema da morte e da vida e nos levou a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência – terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. Qoh numa abordagem existencial discute o ser, sua integralidade e potencialidades. 

Mas ele não foi o único a pensar a não-existência e a existência. Górgias (480-375 a.C.) traduziu no pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. Disse que se existisse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. E se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. Mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. Para Górgias, em formulação matemática (pv¬p)v(p^¬p), a proposição “pv-p” é verdadeira. Mas “v” é verdadeiro se e somente se “p” for verdadeiro. Na lógica proposicional do filósofo pré-socrático temos, então, a negação de “p”. Donde, o não-ser não existe. Górgias disse mais do que isso, mas essa constatação, o não-ser não existe, é o que nos interessa nesse momento. 

É interessante que Qoh apresentou o não-ser, aquilo que está fora, além da existência, de uma maneira que nos lembra Górgias. Disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também vão ser esquecidas. Que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos seremos esquecidos. Há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo lugar, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó. 

Disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. E considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. Ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. Que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. Por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. O amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. E nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol. 

A consciência do não-ser remete ao sentido do ser. E aqui há uma diferença básica com Górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, fez três afirmações que marcaram o pensamento lógico-matemático e balizaram o ceticismo: não dá para dizer que algo existe; se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; e se o ser existe não temos como explicar sua existência aos outros. 

Já o argumento de Qoh, a partir do não-ser, afirma o sentido do ser, único conhecido. A negação do não-ser de Qoh expressa o desejo de ser em abundância, enquanto está, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. O ser existe, mas tem espaço e tempo – hoje diríamos é existencial e histórico. Por isso, é melhor o sentido do ser, a intensidade das ações do ser do que ficar na espera do não-ser. Assim, quando o não-ser sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter sido plenamente, com intensidade, de forma abundante. 

E, por isso, Qoh nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. A comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois o Eterno já aceitou deliciado o nosso bem-fazer. Sejamos felizes, diz O-que-sabe. Enquanto vivermos na fumaça desse mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. E o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-ser é nada e no nada nada se faz, e no não-ser não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. E depois do ser, vamos repousar no nada. 

O fazer da existência vale a pena. O Eterno aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torah, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o Eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser.

 











mercredi 5 mai 2021

A propósito de Tillich

A propósito de Tillich

Sem uma relação universal com o humano a noção de chamado profético não é a medida correta para se construir uma teologia. Ou seja, não se pode construir uma teologia apenas sobre o terreno da transcendência. É importante, porém, entender que não existe uma interpretação absoluta do humano, já que a comunidade humana não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica no ato de existir. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma teologia absoluta, nem uma construção de tipo racionalista.

Toda compreensão do humano e como conseqüência toda teologia são concretas. Esse humano se situa no kairós, naquele momento determinado, pleno. Sua universalidade comporta riscos concretos. Ele não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual. O que é válido tanto para a pessoa, quanto para a teologia.

Exatamente por isso, toda teologia comporta dois aspectos: aquele traz o pensar teologicamente de volta à sua origem, ao fundamento do humano; e outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude.

Assim, a realização do humano deve se orientar em direção a ele próprio, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é transcendente. Ela exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, a teologia transporta ao transcendente e à vida, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta.

Dessa maneira, posicionar-se por uma teologia que parte do humano é posicionar-se por uma teologia da vida. E tal compreensão leva ao desenvolvimento criativo e estratégico deste humano enquanto vida que brota na história, criadora do novo.

A chamada a um posicionamento capaz de julgar e transformar, de resistência à barbárie, deve levar à necessidade de elaborar uma mensagem para o mundo simples. Mensagem de esperança. Nesse contexto, as pessoas têm autonomia, mas estão inseguras na sua autonomia. Isto leva as religiões à tentativa de emancipá-las da autonomia através da submissão à hierarquia e à tradição. Mas não podemos esquecer que na autonomia algo já foi experimentado, e esta é uma experiência que une aquele que protesta àqueles com autonomia secular.

O conceito de situação-limite, que se traduz como ameaça final à existência, é o diferencial do protestantismo. Esse conceito nasceu em torno da leitura da justificação pela fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da incondicionalidade de se realizar a verdade e fazer o bem. No reconhecimento da existência da situação-limite está a diferença entre as religiões que profetizam a favor da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite.

Na verdade, o cristianismo tem mais afinidades com determinadas formas de organização social, porque a teologia leva a uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. A teologia condena o egoísmo internacional da força, que justifica a violência e a guerra sobre continentes, nações e povos, prega a submissão das nações, ricas ou pobres, propõe a construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a um internacionalismo real entre as nacionalidades.

Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. A partir da teologia, vemos que a pessoa não existe para a produção, mas esta supre necessidades e, por isso, o objetivo não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular, mas a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas.

O princípio da crítica e das ações protestantes leva a uma teologia não limitada ao sujeito, mas que se realiza na comunidade e, em última instância, na massa orgânica. É a partir desse ponto de vista universal, da teologia do humano, que remete ao finito, mas também ao incondicional , que se operam o protesto e a transformação. 

Autonomia e protestantismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período que se abriu a partir do Iluminismo, e que pôs em xeque a tradição e o autoritarismo, serviu de base para a ação protestante.

A autonomia é o momento supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o protestantismo construiu um sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência. 

Não devemos entender o protestantismo como confissão exclusiva, mas como brotar de fé que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé é hostil aos domínios que se colocam como senhores da vida e da morte. Nesse sentido, é uma experiência da profundidade última e a supressão do em cima absoluto e do embaixo relativo.

O espírito que move os movimentos da contracultura traduz uma vibração de graça e fé que circula nas massas, e não deve ser negado pelo protestantismo, ao contrário, é a partir daí que o protestantismo pode fecundar a autonomia dos movimentos das comunidades. 

Estes são os fundamentos de uma unidade entre o protestantismo e os movimentos das comunidades no Brasil, que deve ser mais que uma associação, que pode traduzir um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. 

Mas há limitações na utopia da contracultura. A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o transcendente abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. O neoliberalismo no terceiro mundo, em grande parte, é o resultado da utopia desencantada.

É aí que entra o kairós, enquanto idéia que nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter decisivo desse instante histórico enquanto destino. Mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua humanidade, aquele que faz a irrupção no tempo sem, contudo, fixar-se nele.

Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a esperança utópica pode desaparecer, mas não a sua ação. 

A resistência à barbárie é tarefa protestante, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança. Nesse contexto, o princípio protestante envolve um julgamento e relaciona este julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto da existência. Nesse sentido, crítica e necessidade de transformação levam, nesta contemporaneidade, ao princípio protestante. O que fica óbvio, em situações-limite, que ameaçam a vida. Para o princípio protestante, a situação dos trabalhadores não é algo opcional, que podemos considerar ou não. 

Metodologicamente, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há na crítica protestante um choque entre esse kairós e a utopia. Tal desafio não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais que encarne o protestantismo. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa.

A imediaticidade da massa faz com que desabroche nela movimentos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio imediato: a disponibilidade à compreensão do momento presente. Essa imediaticidade é o que leva a massa a ações destruidoras ou à novidade criadora. 

Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocionais e intelectuais são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e à destruição. A massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência. Este processo prepara a construção de um novo momento presente. Quando a massa vive esse processo, religião e cultura se misturam, e ela se torna massa mística.

Assim, o movimento da massa torna-se dinâmico, indo da mecanicidade da industrialização em direção à transformação da sociedade, em direção à sua própria libertação. O movimento dinâmico da massa parte da massa mecânica, já existente ou em vias de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica.

Temos aqui uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Por isso, a crítica protestante não se limita ao protestante ou ao intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma tripla ação, de protesto contra o arbítrio e a opressão, de liderança social e de transformação da situação-limite. 

Ao lado da desconfiança e da resistência há um desejo de governar de outro modo, que se situa na atitude protestante. Temos como pontos de ancoragem o retorno aos clássicos da contracultura, a invocação do direito contra a presença do arbítrio e o raciocínio científico contra o peso da autoridade. É certo que esse protesto faz prevalecer um universal contra um sistema de exclusão particular, mas o faz no interior de um dispositivo que liga estreitamente tempo presente e kairós. 

O protestar e o clamor não são vida, mas visam restaurar a vida sob ameaça na situação-limite. A luta contra o arbítrio localiza-se nas fronteiras desse próprio arbítrio. Assim, a ética se constrói no nível material do tempo presente, no confronto das relações de domínio e pessoalidades. 

A partir dessas relações de domínio se dá a passagem do campo estratégico de forças sem sujeitos em direção à razão transformadora da massa orgânica. Mas, será que a transformação social, que se dá como síntese de uma ação violenta, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva, tem um componente que não é instrumental, mas mediações de nível prático?

Se a estratégia de formação de uma comunidade política de trabalhadores, de massas, visa chegar a um fim exitoso é preciso perguntar se esse fim é uma mediação ou um fim. Ou, em outras palavras, quem é este sujeito das transformações e como se articula o intelectual com este sujeito histórico? 

A formação de uma comunidade política de massas como estratégia apoia-se na fórmula de que a contracultura não está ligada à organização dos trabalhadores, mas que eles próprios, os trabalhadores, são movimento que dialeticamente se confronta no dia-a-dia da vida com a sociedade de classes. Assim, o sujeito de todo movimento de contracultura é a massa orgânica ou consciência ilustrada, o povo filósofo do jovem Marx. 

O intelectual, por vir de uma classe estranha ao proletariado, adere à contracultura não por sentimentos de classe, mas por superação. Por isso, está mais exposto às oscilações oportunistas do que a massa orgânica, o proletariado ilustrado, elite e vanguarda do proletariado. Essa massa orgânica não perde o vínculo com o chão materno e encontra em seu instinto de classe um apoio mais seguro. Ora, a massa orgânica não é apenas uma massa que protesta, que simplesmente procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. Seu êxito é uma possibilidade, mas sempre traduz a teologia proposta. Assim, quando se trata de libertar os excluídos, o êxito dependerá de suas condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar kairós e utopia.

A teologia deve integrar os princípios enunciados na escolha de fins, a estratégia; os meios, a tática; os métodos, os modos de organização, que devem levar ao princípio do protesto histórico de transformação. 

Se entendermos o conceito de massa enquanto movimento que caminha através do princípio da crítica e da ação transformadora, é fácil ver que chegado um determinado momento os trabalhadores reivindicariam a formação de um partido próprio. É o dinamismo revolucionário, já que o entusiasmo dessa massa dinâmica faz dela veículo do destino. E onde entra aí a questão da revolução? O discurso teológico é o elemento fundante da transformação prática, isso leva, no sentido estrito, a uma teologia de transformação não reformista, à transformação plena. Mas, a transformação caminha sempre sobre o fio da navalha: de um lado está o anarquismo contrário à unidade da massa orgânica e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem partir de critérios definidos e de um princípio teológico geral que possibilitem cumprir às mediações existentes.

Os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios teológicos gerais, a fim de que, com factibilidade, se possam negar as causas da negação dos excluídos. Esse é um momento negativo do protesto, onde os meios deveriam ser proporcionais àqueles contra os quais o protesto era feito. Mas se por um lado o protesto traduz uma ação desconstrutiva, por outro promove transformações construtivas. Leva a uma nova ordem com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente. O kairós confronta a utopia e a fecunda, transformando-a em utopia possível.

Cabe ao intelectual enquanto pessoa levantar a teologia como protesto negativo diante de uma sociedade que vive uma situação-limite. A esse intelectual cabe a co-responsabilidade solidária, que parte do critério vida versus morte. Sem dúvida, o intelectual é desafiado a caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade diante dos excluídos e da paranóia fundamentalista.

Tal visão abre perspectivas para a compreensão da teologia e a análise de diferentes situações históricas – pode e deve lançar luzes sobre nossas críticas e ações diante do quadro político que temos pela frente.

Qui était Paul Tillich, par André Gounelle

https://www.youtube.com/watch?v=ehl_4Rk2ifc






mardi 4 mai 2021

Les valeurs et les principes de la République française

Les valeurs et les principes de la République française 

Apparue en France dès 1792, la République a mis près de cent ans pour s'imposer. Que signifie donc le terme république et sur quels principes la République française est-elle fondée ?

1. L'édification de la République

• La République apparaît en France trois ans après le début de la révolution de 1789 ; la monarchie est alors discréditée et les armées françaises reculent sur tous les fronts. Proclamée le 21 septembre 1792, jour de la victoire de Valmy, la ire République connaît quatre Constitutions successives avant de disparaître, en 1804, lorsque Napoléon Bonaparte devient empereur des Français.

• Cette fragilité des institutions républicaines se retrouve lors de la brève expérience de la iie République (1848-1852). La iiie République, plus durable puisqu'elle s'étend de 1870 à 1940, n'est dotée d'une Constitution qu'en 1875 ; elle disparaît dans les circonstances tragiques du désastre militaire de juin 1940.

À l'issue de la Seconde Guerre mondiale, la France opte à nouveau pour le régime républicain. Depuis le début de la ve République, en 1958, ce choix n'a plus été remis en question.

2. L'idéal républicain

• Le mot république vient du latin res publica qui signifie « la chose publique ». L'utilisation de ce terme sous-entend l'existence d'un espace public, commun à tous les membres de la collectivité. Cet espace est régi par des lois qui s'appliquent également à tous.

• Pour les penseurs de l'Antiquité et du Moyen Âge, la République est d'abord un État régi par des lois. Le régime républicain implique donc une soumission des individus à la loi ; c'est l'intérêt public qui prime sur les intérêts particuliers.

• À partir de la Révolution française, la République est pensée comme une association politique librement consentie par les membres de la collectivité. La contrepartie de cette adhésion des individus à l'idéal républicain, c'est la vocation de la République à rechercher le bien commun. Soumission de chacun à la loi dans le souci du bien de tous, tel est donc aujourd'hui l'idéal républicain.

• Dans le débat politique actuel, le mot république sous-entend toujours république démocratique, puisque, dans l'histoire de France, les régimes républicains se confondent avec les progrès de la démocratie. Il faut donc garder à l'esprit que les valeurs républicaines (comme la liberté, l'égalité) sont partagées pour la plupart par toutes les démocraties du monde, mêmes celles qui ne sont pas formellement des républiques – ainsi les monarchies parlementaires comme l'Espagne ou le Royaume-Uni.

3. Les principes de la République

a) Une « République indivisible, laïque, démocratique et sociale »

Dans l'article 1er de la Constitution de 1958, la France est qualifiée de « République indivisible, laïque, démocratique et sociale » :

« Indivisible » implique que l'intégrité du territoire et l'unité politique du pays doivent être maintenues ; ce principe est apparu dès l'origine de la République et s'est cristallisé durant la Terreur révolutionnaire (1793-1794) ;

« Laïque » veut dire que l'État et ses fonctionnaires respectent toutes les religions, mais sans en privilégier aucune ; ce principe s'est définitivement imposé au moment de la séparation de l'Église et de l'État en 1905 ;

« Démocratique » signifie que la souveraineté appartient au peuple et qu'elle ne peut être que déléguée aux représentants du peuple ; c'est ici la principale conquête de la Révolution de 1789 ;

« Sociale » montre l'attachement de la République à la protection des plus humbles ; c'est là un thème qui a cheminé longtemps avant de s'imposer comme principe fondateur au moment de la Libération (1944).

b) « Liberté, égalité, fraternité »

• Ces principes complètent ou précisent les valeurs exprimées par la devise de la République française : « Liberté, égalité, fraternité ».

• Reconnue comme un droit de l'homme par la Déclaration du 26 août 1789, la liberté est la valeur fondamentale qui fait passer l'homme de la position de sujet au statut de citoyen. L'égalité est également reconnue par la ire République mais étendue aux femmes (droit de vote) seulement à partir de 1944 ; il s'agit là de l'égalité de tous devant la loi.

• La fraternité, enfin, est apparue dans la devise républicaine en 1848 mais il a fallu attendre 1946 pour voir affirmée, dans le préambule de la Constitution de la ive République, l'existence de droits économiques et sociaux (aide à ceux qui ne peuvent vivre décemment, droit au travail et à l'action syndicale, droit de grève).

Valeurs, principes et symboles de la République française
https://www.youtube.com/results?search_query=Les+valeurs+de+la+rapublique+francaise



lundi 3 mai 2021

Diadorim e Jael

Diadorim e Jael para homem nenhum botar defeito 


Deu-me uma vontade danada de falar de duas mulheres-guerreiras, que fogem aos parâmetros de gênero colocados pela cultura patriarcal judaico-cristã. A primeira faz parte da literatura brasileira, é Diadorim. 

De Diadorim, disse Guimarães Rosa, através de Riobaldo, no Grande sertão: veredas -- “montado à baiana, gineta, com estribos curtos e rédea muito ponderada, bridando bem, em seu argel travado, às upas: cavalo bulideiro, cavalo de olhos pretos conforme como a noite”. 

“Guerreava delicado e terrível nas batalhas. (...) Como era que era: o único homem que a coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às vezes eu invejei. Aquilo era de chumbo e ferro”. 

Mas Diadorim, “que quando ferrava não largava” tinha um inimigo nomeado: Hermógenes. 

“Vigiei Diadorim; ele levantou a cara. Vi como é que olhos podem. Diadorim tinha uma luz. Reponho: em tanto já estava noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar os outros embora. O que Diadorim reslumbrava, me lembro de hei-de me lembrar, enquanto Deus dura. Mas, entre nós dois, sem ninguém saber, nem nós mesmos no exato, o que a gente acabava de fazer, entestando nos fundos, definitivamente por morte, era o julgamento do Hermógenes”. 

“Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse… 

“Diadorim - nu de tudo. E ela disse: -- A Deus dada. Pobrezinha...” 

“E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: -- mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube… Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d'arma, de coronha…” 

Para Ana Luiza Martins Costa, quando se lê Grande sertão: veredas, no título está presente a ambigüidade: vereda como caminho e como ausência de caminho, como lugar aprazível e como lugar perigoso, enganador como o demo. 

Se Diadorim, afirma Martins Costa, possui traços femininos, também reúne em as qualidades masculinas mais valorizadas no mundo jagunço, onde “homem é rosto a rosto: jagunço também: é no quem-com-quem”: a coragem e a ferocidade na luta. Sempre pronto para o combate, Diadorim “se fazia em fúria”, “de pancada”, “ansiando raiva”. 

A segunda mulher-guerreira é Jael e faz parte da literatura hebraica antiga. Dela nos conta Juízes 4. 

“Porém Sísera fugiu para a barraca de Jael, mulher de Héber, o queneu. Ele fez isso porque Jabim, rei de Hazor, estava em paz com a família de Héber. Jael saiu da barraca para encontrar Sísera e lhe disse: — Entre, meu senhor. Entre na minha barraca. Não tenha medo. Então ele entrou, e Jael o cobriu com um tapete. E Sísera pediu a ela: — Por favor, me dê um pouco de água porque estou com muita sede. Ela abriu um odre de leite e lhe deu de beber. Depois cobriu Sísera de novo. E ele disse: — Fique na porta da barraca e, se alguma pessoa vier e perguntar se há alguém aqui, diga que não”. 

“Sísera estava muito cansado e caiu num sono profundo. Aí Jael pegou um martelo e uma estaca da barraca, entrou de mansinho e fincou a estaca na cabeça dele, na fonte. A estaca atravessou a cabeça e entrou na terra. E ele morreu. Quando Baraque chegou, perseguindo Sísera, Jael saiu para encontrá-lo e disse: — Venha cá, e eu lhe mostro o homem que você está procurando. Então Baraque foi com ela e encontrou Sísera no chão, morto, com a estaca atravessada na cabeça”. 

Jael, a cabra selvagem, no século XII a.C. matou Sísera, o chefe das milícias cananéias. Débora, profeta efraimita, disse que Jael era a mais abençoada das mulheres, porque pegou uma estaca numa mão e uma marreta noutra e esmagou a cabeça de Sísera, furou e deixou a cabeça dele em pedaços. 

É isso mesmo, dançando Débora cantou que Jael foi a mais bem-aventurada das mulheres porque Sísera, o diabo encarnado, isso sou eu quem está dizendo, caiu morto aos pés dela. 

A história em Juízes 4 fala de uma época violenta, como os sertões das Gerais de Guimarães Rosa. Jael não era efraimita e juntamente com seu homem, Héber, fazia parte de um clã nômade, queneu. Mas por bravura guerreira foi elogiada por Baraque, mor chefe da jagunçada efraimita. E foi bem-vinda no bando. 

Assim, num momento de dispersão dos clãs hebreus, Débora convocou Baraque e seus guerreiros para lutar. O texto de Juízes 4 mostra a liderança de Débora, assim como a coragem de Jael, em oposição à debilidade de Baraque e a miserabilidade de Sísera. O texto ressalta o papel carismático da profeta ao exortar homens atemorizados e convocar os clãs à união. Essa fé é dançada com gritos de vitória e o ritmo quente da música cananéia-palestina. Mil e trezentos anos depois, na epístola neotestamentária aos Hebreus (11.32), o autor fará menção ao tempo dos juízes, citando Baraque, mas omitindo Débora e Jael. Por que? 

No que se refere a Diadorim e Jael, é necessário desconstruir as idéias de exclusão da mulher-guerreira e analisar o contexto dos relatos sob uma nova leitura de gênero. Ou como diz Walnice Nogueira Galvão, para se compreender a mulher-guerreira é preciso compará-la: ela não é mãe, nem esposa, nem prostituta, nem feiticeira. Ela é outra e deve ser procurada ali onde não estão as anteriores (p. 34). Assim teremos Diadorim e Jael para homem nenhum botar defeito. 


Eu a Alex amamos esta guerreira


 


jeudi 29 avril 2021

Premier mai et l'utopie

1.

Premier mai et l'utopie. Quand je parle d'utopie, je ne sous-estime pas le rêve d'une société solidaire, mais je le place à un niveau de réalisation permanente, historique et transistorique. En d'autres termes, je vois le chemin permanent de l'utopie, je le sens, mais je ne vais pas forcément le vivre comme je le voudrais. 

Et les démons, à la suite de Nietzsche, sont les péchés de la jeunesse qui deviennent une vertu dans la vieillesse. Ce sont les cauchemars qui côtoient toujours les rêves. En ce sens, comme tout texte biographique, ces textes ont une fonction d'exorcisme. 

Exorcisez les fantômes et les démons et restez avec l'utopie qui génère de nouveaux rêves. Ainsi, je considère le feuilleton de la vie comme une trilogie attendue. C'est mon histoire et l'histoire de mon utopie, où tout le reste est décor. C'est une vie, mais aussi une fiction, puisque les rêves et les démons doivent être personnifiés, interférant dans la vie de l'auteur et dans son plus grand rêve.

2.

Appeler le mouvement 68 de rébellion des jeunes, ce n'est pas comprendre la richesse créative du kairós historique, c'est nier les luttes qui ont laissé les étudiants et travailleurs de France, des USA, l'Italie et l'Allemagne et jeter à la poubelle les luttes entre le capital et le monde du travail, les guerres au Vietnam, au Laos, au Cambodge et les soulèvements populaires au Chili, au Portugal et au Nicaragua.

Je n'ai pas de nostalgie, car je ne place pas mon action au passé, mais dans le présent, en tant qu'activiste politique et social que je suis. Le mois de mai français a ouvert un nouveau moment dans l'histoire de la planète et ne s'est pas limité à l'Europe. Il s'est répandu dans le monde entier.

Et ma vie politique, que ce soit au Brésil, au Chili, en Argentine et en Europe, était en corrélation avec le mois de mai français. J'ai appris dès mon plus jeune âge que vous ne crachez pas dans l'assiette que vous mangez. J'ai grandi en relation avec mon activisme de jeunesse, mais cela ne veut pas dire nier les moments nobles et puissants de ce même activisme dans les années 60 et 70.

3.

J'aime le Brésil. Je ne le vois pas comme un pays, mais comme une partie du sud des Amériques, occupée par différentes ethnies et cultures, que j'appelle les multicultures brésiliennes. Mais je ne peux pas oublier le rôle de la France dans ma vie.

Et là, je me souviens de Daniel Cohn-Bendit, un non-français qui a écrit deux histoires, la française et la mienne. Il y a des années, il a demandé aux nouvelles générations d'oublier le mois de mai français.

J'ai travaillé dur sur cette question. Et, contrairement à Cohn-Bendit, je ne nie pas la contemporanéité de 1968. Au contraire, je suis reconnaissant pour ce kairós, comme un effort pour rompre avec une société archaïque et en décalage avec le nouveau qui approchait et construire une société solidaire.


Photo Rosa Gauditano
Jorge au premier mai.









mercredi 28 avril 2021

Surrealismo místico

Surrealismo místico
Jorge Pinheiro


Paul Tillich, colega de viagem, em Teologia da Cultura, diz que a consciência imediata do incondicionado não tem caráter de fé, mas é auto-evidente. E que a fé contém certo elemento contingente e exige risco: combina a certeza ontológica com a incerteza a respeito de todas as coisas condicionadas e concretas. Chamo esse fato de surrealismo místico. Vou ilustrar.

Tomei o vôo TAM 8098 para Paris. Saí de São Paulo no dia 12 de maio (2009), às 19h45, com a alegria normal de um mortal que pretende estar de corpo presente no XVIIIe Colloque de l’Association Paul Tillich d’expression française. Acho que você também, leitor, estaria alegre. No mínimo porque o seu editor pagou os direitos autorais devidos e você não teve que enfiar a mão no bolso.

Nada mais justo que, à hora do jantar, diante da pergunta da aeromoça – o que o senhor deseja tomar? –, você dissesse: um tinto, por favor. E lá vem, para acompanhar a massa do avião, o vinho.

Tudo corre como planejado, quando, de repente, na poltrona da frente, um senhor pesado na sua obesidade reclina-se repentinamente. E o vinho todo é derramado no meu colo. Escorre por entre as pernas e se deposita ao fundo, me encharcando por completo. Mas, como se não bastasse, parte dele é derramado exatamente sobre o volume de Teologia da Cultura, em português, que acabou de ser lançado e que estou levando de presente para a associação tillichiana francesa.

O que você faria, além de chamar a aeromoça, como a criança que grita pela mãe diante de desastre semelhante? Como você se sentiria, além do desespero irado por saber que vai atravessar a noite com a calça e, em especial, os fundilhos molhados? Sem falar no cheiro do vinho impregnando o corpo e o friozinho desagradável produzido pela combinação líquido derramado e ar condicionado meio para o gelado.

A noite foi ruim. Habitada por pesadelos e uma ideia a martelar: cuidado com o vinho. Ah! meu Senhor, então, é isso? Ter cuidado com o vinho? Mas o que significa ter cuidado com o vinho? Segurar bem o copo para que não derrame, ou não bebê-lo? E o que significa não bebê-lo? É não bebê-lo muito, só um pouquinho ou nada? Puxa, não bebê-lo nada? Tem certeza? Nadinha, mesmo? Mas estou chegando a Paris!

Cheguei e me instalei no Au Pacific Hotel, ali na rue Fondary 11, perto da madame Eiffel e do senhor Seine. Recomendo o hotel. Simpático, bom atendimento, muito limpo e preços dignos. Não é merchandising não. É que gosto de dar dicas de viagem.

E à tarde, depois do banho tomado e da roupa trocada, fui a Saint Germain de Prés, fazer a ronda turística intelectual nos cafés, nas livrarias, lembrar um pouquinho de Wilde, de Hemingway no Les deux magots e de Sartre e Beauvoir por ali. Essas coisas.

Mas eis que ao deambular pelas redondezas, dou de cara com uma loja do Nicolas, que há quase um século tem uma atrativa especialidade: vinhos. E na vitrine vejo garrafas de pequenas colheitas artesanais de várias partes da França. Procuro uma da minha região ou próxima. Fiz parte de minha pesquisa de doutorado no sul da França, na Faculdade Protestante de Teologia de Montpellier, e elegi a cidade como minha casa francesa. E voltando à vitrine, eis que vejo Les petites récoltes, vin de Pays de la Cité de Carcassone.

Carcassone é uma cidadezinha medieval, murada. Está no sul da França e é aquele lugar de conto de reis e rainhas, magos e fadas. Torres, muralhas, pontes, ruazinhas. E vinho artesanal, lá perto do meu pedaço francês.

O rótulo da garrafa escrito à mão, e o preço tão em conta que eu não conto. Senão algum leitor pode duvidar e eu vou ficar mal na estória. Entrei, comprei, saí e me perdi. É isso mesmo, a poucas quadras do hotel, tendo a madame Eiffel como referência visual, me perdi ao tentar voltar a pé. Com le vin de Pays de la Cité de Carcassone numa sacolinha, parece, fiquei dando voltas sem achar o caminho. Três horas dando voltas. Até que me sentindo meio Balaão, um profeta meio louco do testamento hebraico, voltei à conversa que tinha iniciado no avião. É nem um pouquinho, mesmo, não é? Está bem, o Senhor me leva de volta ao hotel, e não pode ser de táxi, porque senão não tem graça. Já estou tri cansado. E eu não vou beber desse cintilante petites récoltes de la Cité de Carcassone.

Dito e feito. A cem metros encontrei o metrô. E eu estava, depois de andar tanto, a apenas uma estação de metrô do hotel.

Por isso, Tillich diz que o risco da fé não é arbitrariedade: resulta da união do destino com a decisão. Baseia-se num fundamento que não é arriscado: a consciência do elemento incondicional em nós e no mundo. A fé só pode ser justificada e é possível nessa base. Ou, como eu disse no início, isso é surrealismo místico. Ou como nos ensina Troeltsch, o discurso teológico não pode ser apenas o discurso objetivo da fé de uma comunidade cristã. Quando se fala de fé, o teólogo deve estar envolvido, deve se comprometer.
E, assim, passei o meu primeiro dia em Paris, nessa temporada francesa, a pão e água. A bem da verdade, baguette e Pérrier.







lundi 26 avril 2021

Matei porque me pisou

Matei porque me pisou

Multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. 

A violência estabelece uma proposição: um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana. Parece estar além da razão: é impensável.

Podemos, no entanto, partir do postulado de que há uma violência ontológica, que antecede toda violência manifesta. Esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é violência. Despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com a violência expressa. É a violência que é e está além da razão de ser violento.

"Há uma grande bomba atômica no Rio de Janeiro que tentam esconder, mas que dá sinais de que está pronta para explodir, como agora", afirmou um morador.

O que é violência está simbolizado no ser violento sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. Por outro lado, a violência incondicionada é dinâmica. A consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. Tal aspecto da violência é simbolizado na ideação “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. Um símbolo gráfico da violência presente no parir a vida. Este axioma fundante da violência, ontológico, remete àquilo que podemos simbolizar como características trinitárias da violência.

A natureza da causa da violência, derivada de causa aparentemente sem causa, aflora como consciência da violência, impessoal, que permeia a natureza. Esta causa da violência é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é um símbolo condicionado. Mas, ao atravessar pela negação a dualidade entre existência e consciência, sobrevém a tríade da violência: o espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência.

"Você vê meninas de 13 anos - uns bebês - grávidas, com outros bebês na barriga, vê garotos de 15 anos que dizem abertamente: morrer, para mim, é lucro. Não têm auto-estima, nenhuma perspectiva de futuro, e ninguém faz nada, nem escola, nem governo, ninguém está preocupado com eles", disse outro morador do Rio.

Espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência devem ser consideradas não como independentes, mas correlações que constituem a base do ser ou estar violento. Considerada esta trindade ontológica da violência como a raiz da qual procedem todas as manifestações violentas, a expressão “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. Ela é a fonte da força de toda violência individual e social e fornece os elementos para a análise da violência que perpassa o humano e sua história. Tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base da violência objetiva. Tal ideação do porvir humano é a raiz da violência individual e social, porque a substância pré-humana é o substrato da matéria violenta em seus diferentes graus.

A correlação dos aspectos da violência ontológica, de origem, é fundante da existência enquanto violência manifesta. A ideação da humanidade, separada de sua substância, não se manifesta como violência individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que a violência aflora como violência que é, como ato alienado que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. Da mesma forma, a substância do humano, separada da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual a violência não poderia emergir. A violência-manifesta, assim, é permeada pela correlação, que é fundamento de sua existência como violência que se manifesta.

"A polícia deixa um rastro de insegurança e de prejuízo na comunidade, comércio fechado, escolas sem aulas, população com medo. E esta não é uma situação do Rio de Janeiro, é nacional, é internacional. Os maiores consumidores de drogas são os Estados Unidos, que são contra a legalização porque interessa alimentar a guerra do tráfico, as armas de um lado e de outro", afirmou um funkeiro carioca.

As correlações entre violência-manifesta, espírito e matéria da violência são símbolos da violência ontológica, presentes no universo manifesto da violência. Essa correlação é alienação existencial, a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza da violência, presentes na forma de leis da natureza e da sobrevivência do humano. A alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação. 

Ou como disse Lameque, ser violento mítico consciente do ciclo da violência, apresentado nas escrituras hebraicas: “Ada e Zilá, ouçam a minha voz. Escutem, mulheres de Lameque, as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. E um jovem, porque me pisou. Se sete pessoas foram mortas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”.

A consciência humana procede também da ideação da violência e fornece os meios que possibilitam à violência individualizar-se como substância do humano. A alienação em suas manifestações é o elo entre o espírito e a matéria da violência, presença que, dialeticamente, equilibra vida e morte, permanência e destruição.







samedi 24 avril 2021

Leituras do humano

Leituras do humano
Jorge Pinheiro

Primeira parte

“Nós nos importamos com a boa qualidade dos homens, em primeiro lugar porque ela nos é útil, em seguida porque queremos dar-lhes alegria (os filhos aos pais, os alunos aos professores e em geral as pessoas benévolas a todas as outras pessoas). É somente quanto a boa opinião dos homens é importante para alguém, abstraindo a vantagem ou seu desejo de agradar, que falamos de vaidade”.
Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.

O que é o humano? Se partirmos da teologia, teremos abordagens fundantes, que podem nos direcionar a uma compreensão mais abrangente do que é o humano. A primeira delas tem por base a antiga cosmovisão hebraica e apresenta uma antropologia da unicidade humana.

Dois textos do livro das Origens são paradigmáticos nessa leitura. O primeiro está em Gênesis 1.26 e conta que o Eterno disse: “vamos fazer os humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco” E assim o Eterno construiu os humanos; parecidos com Ele. O segundo texto descreve o modo de construção do humano, está em Gênesis 2.7 e diz que “do pó da terra, o Eterno formou o humano. Ele soprou em seu nariz uma respiração de vida e assim esse ser se tornou vivo”.

A partir do segundo texto, podemos entender que a matéria-prima utilizada pelo Eterno na construção do humano é ordinária, ele é uma unidade de carbono, enquanto material pertencente à ordem comum de ló nefesh, que também dá forma aos seres inanimados e animais. Assim, é o sopro do Eterno que faz especial essa matéria ordinária. Teologicamente, podemos nos fazer uma pergunta: será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criadora do Eterno transmitiu ao humano não somente vida, mas intensidade e profundidade? De certa maneira não é absurdo dizer que seres celestiais são criaturas espirituais. Sua existência procede do exterior da força criadora do Eterno. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criadora se dá através da palavra, de uma ordem criadora do Eterno.

A expressão nefesh, presente no segundo texto, leva a uma concepção de exterior versus interior, e tem por base o texto de Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte do Eterno faz seu povo”, já que mobiliza diferentes níveis da força criadora.

Nesse sentido, nefesh, fruto do sopro primordial, procede da interioridade do Eterno e por isso é conhecida como ein soph, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação “façamos o humano” (Gn 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, na tradição antiga dos hebreus, apesar de não tão fortes, os humanos são superiores aos anjos, porque procedem da interioridade do Eterno: traduzem ação mediadora e conjuntiva da força criadora.

Donde, o humano procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integralidade, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do espírito do Eterno, que indica em transbordamento e transparência no humano, que relaciona imanência com transcendência.

Mas, o texto de Gênesis 2.7 fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: não tem uma nefesh, é uma nefesh. O pensamento literário dos hebreus era sintético. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele, exige identificar com que parte do corpo o humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh. E para isso utilizaremos textos que apresentam diferentes sentidos da nefesh.

“A mansão dos mortos abre a sua nefesh, escancara as suas fauces desmedidamente”. Isaías 5.14.

“Ele escancara a sua nefesh sem medida, como a mansão dos mortos, e é como a morte, não se saciando nunca”. Habacuque 2.5.

Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta, em grego, por psyché, na maioria das citações em hebraico, o significado literal de garganta e estômago transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma, tradução do grego psyché, nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que o Eterno construiu o humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o humano se tornou um vivente que necessita Dele para ser saciado.

Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas uma existência colada à realidade das necessidades fundamentais do humano, que ao não serem preenchidas produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria.

Mas como o sopro do Eterno pode ter gerado um humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos nefesh como figura das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Eterno só podem ser saciadas por Ele.

“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência do Eterno. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39-40.

“Ó Eterno, tiraste a minha nefesh da mansão dos mortos”. Salmos 30.4.

No relato de Gênesis 2.7 o humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Por isso, como vimos, quando integrado ao Eterno, nefesh é transbordamento e transparência do espírito do Eterno, o que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em baixo com o que está em cima.

Mas essa natureza também se constituirá enquanto expansão dos significados da imagem do Eterno, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial garganta e boca, que possibilitam o sopro. Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade do Eterno. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem o destino humano.

Esse é o destino humano: ter sua nefesh saciada pelo Eterno e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do espírito do Eterno.


no jardim ...


vendredi 23 avril 2021

Miss Météores


Miss Météores
Ou da morte e da consciência

Jorge Pinheiro

 . 


Estou no Buffalo Grill ouvindo country, comendo burguer e lendo Bernard Reymond, À decouverte de Schleiermacher. É, em Paris, nem sempre faço como os franceses. Mas não dá para esquecer que estou aqui, e eu nem quero.

 
Caí por essas bandas da Gare du Nord porque daqui a pouco parto para Bruxelas, para a casa de Marcela, minha filha. E para assistir ao show Miss Météores, de Olivia Ruiz, a nova Piaf, no Ancienne Belgique, Anspachlaan, 110. É a casa de show mais badalada de Bruxelas. Gosto de cebola roxa e esta está simplesmente deliciosa. As cebolas roxas são como as outras, só que mais suaves. Boas para comer cruas. Não, não estou tomando Coca-Cola. Nem vinho. Parei no suco de laranja.

 
Não sei por onde começar, 

Eu devo viver a lua ou minha bela estrela 

Até que a vida acabe por passar, 

Ou provocar o destino fatal 


Paris desvenda meu amor,

Perdida entre toda essa gente,

Paris entrega meu amor

Eu estarei sobre a ponte dos amantes 

(Olivia Ruiz, Paris)

 
Acho que devo dar sequência a uma crônica anterior. E começarei dizendo que a fé parte da experiência e da compreensão teológica de que não existe acaso ou coincidências. A existência é sempre permeada pela atualidade e pela contingência através das quais se faz presente o incondicionado.

 
Por isso, a expressão “faça sem culpa” não procede: em primeiro lugar, porque para além do mal fazer ou do não fazer bem está a consciência ontológica da morte, que se traduz existencialmente como ausência e separação. E foi esse estar diante da morte que fez o hominídeo dar o salto existencial/ antropológico: passar de homo sapiens a sapiens sapiens. Conhece a morte, sabe que vai morrer e passa a temer a ausência e a separação definitivas.

 
Tanta gente e tão poucos olhares,

Tanta gente e tão poucos sorrisos 

Nunca têm tempo de se oferecer ao acaso,

Tão pouco tempo que a gente gostaria de acabar 


Paris desvenda meu amor, 

Perdida entre toda essa gente, 

Paris entrega meu amor 

Eu estarei sobre a ponte dos amantes 


Em sua carta aos Romanos (5.12), o apóstolo Paulo explicita esse processo de construção do humano ao afirmar que a hamartia entrou na vida humana por um primeiro, e com a hamartia, a consciência da morte. Ora, hamartia era uma expressão militar dos gregos que se referia ao ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que vivemos sempre sob a possibilidade de errar os alvos existenciais. Por isso, a compreensão de hamartia é ausência, separação, alienação, já que implica em distanciamento do objetivo existencial. Para um vôo antropológico sugiro o livro de Philippe Ariès, já traduzido para o português, O Homem diante da Morte.

 
Errar o alvo, ou seja, ausência, separação, alienação, enquanto estado da existência, leva à compreensão da origem do humano enquanto tal. E Paulo fala, então, da consciência da morte. Para o apóstolo, o estado de ausência, separação e alienação na existência produz uma consciência matricial, a consciência da morte.

 
A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos apenas natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, hamartia implica em conseqüências: necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência, e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

 
Um pouco cansada 

Ela avança em meio à multidão 

em sentido contrário 

Um barco embriagado sobre a onda 


Bela Paris, seja generosa

para com a minha pobre alma triste

Eu direi por toda parte que és maravilhosa, 

Se você me encontrar um único eu te amo 


Assim, diante da ausência, do distanciamento e da alienação presentes e futuras estão necessidade e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do estado da existência.

 
Quando proferimos o “fazer sem culpa” rebaixamos a consciência ante os desafios da existência e negamos possibilidades: perdemos esperança e liberdade. E assim a vida é corroída pelas bordas.

 
Em se falando de tristeza, vejam Olivia Ruiz interpretando Piaf. Mas, não se esqueçam que Olivia é boom entre os roqueiros na Europa. E, sem dúvida, como sempre acontece, é bem melhor ver e ouvir ao vivo. 


Lá fora a primavera está nublada, garoenta, nos 15 graus. Toda gente meio que esperando um pouco mais de frio, encasacados, à exceção de uma moça de mini-saia. De onde ela veio? Mistérios da urbanidade global.

 
Gosto de estar brasileiro. Não, não sou um cidadão do mundo. Percebo o mundo a partir de minha brasilidade, de meu gênero, de minha idade. E, por que não, das letras que me fazem delirar. Afinal, como canta Olivia Ruiz: 


Paris encontra meu amor,

Perdida entre toda essa gente,

Paris entrega meu amor

Eu estarei sobre a ponte dos amantes


Daqui a pouco, de TGV, estarei em Bruxelas. Chez Marcela.



Miss Météores est le troisième album studio d'Olivia Ruiz sorti le 13 avril 2009 . Cet album entre directement n°1 des ventes à sa sortie, et se vendra à plus de 380 000 exemplaires.