Diadorim e Jael para homem nenhum botar defeito
Deu-me uma vontade danada de falar de duas mulheres-guerreiras, que fogem aos parâmetros de gênero colocados pela cultura patriarcal judaico-cristã. A primeira faz parte da literatura brasileira, é Diadorim.
De Diadorim, disse Guimarães Rosa, através de Riobaldo, no Grande sertão: veredas -- “montado à baiana, gineta, com estribos curtos e rédea muito ponderada, bridando bem, em seu argel travado, às upas: cavalo bulideiro, cavalo de olhos pretos conforme como a noite”.
“Guerreava delicado e terrível nas batalhas. (...) Como era que era: o único homem que a coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às vezes eu invejei. Aquilo era de chumbo e ferro”.
Mas Diadorim, “que quando ferrava não largava” tinha um inimigo nomeado: Hermógenes.
“Vigiei Diadorim; ele levantou a cara. Vi como é que olhos podem. Diadorim tinha uma luz. Reponho: em tanto já estava noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar os outros embora. O que Diadorim reslumbrava, me lembro de hei-de me lembrar, enquanto Deus dura. Mas, entre nós dois, sem ninguém saber, nem nós mesmos no exato, o que a gente acabava de fazer, entestando nos fundos, definitivamente por morte, era o julgamento do Hermógenes”.
“Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse…
“Diadorim - nu de tudo. E ela disse: -- A Deus dada. Pobrezinha...”
“E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: -- mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube… Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d'arma, de coronha…”
Para Ana Luiza Martins Costa, quando se lê Grande sertão: veredas, no título está presente a ambigüidade: vereda como caminho e como ausência de caminho, como lugar aprazível e como lugar perigoso, enganador como o demo.
Se Diadorim, afirma Martins Costa, possui traços femininos, também reúne em as qualidades masculinas mais valorizadas no mundo jagunço, onde “homem é rosto a rosto: jagunço também: é no quem-com-quem”: a coragem e a ferocidade na luta. Sempre pronto para o combate, Diadorim “se fazia em fúria”, “de pancada”, “ansiando raiva”.
A segunda mulher-guerreira é Jael e faz parte da literatura hebraica antiga. Dela nos conta Juízes 4.
“Porém Sísera fugiu para a barraca de Jael, mulher de Héber, o queneu. Ele fez isso porque Jabim, rei de Hazor, estava em paz com a família de Héber. Jael saiu da barraca para encontrar Sísera e lhe disse: — Entre, meu senhor. Entre na minha barraca. Não tenha medo. Então ele entrou, e Jael o cobriu com um tapete. E Sísera pediu a ela: — Por favor, me dê um pouco de água porque estou com muita sede. Ela abriu um odre de leite e lhe deu de beber. Depois cobriu Sísera de novo. E ele disse: — Fique na porta da barraca e, se alguma pessoa vier e perguntar se há alguém aqui, diga que não”.
“Sísera estava muito cansado e caiu num sono profundo. Aí Jael pegou um martelo e uma estaca da barraca, entrou de mansinho e fincou a estaca na cabeça dele, na fonte. A estaca atravessou a cabeça e entrou na terra. E ele morreu. Quando Baraque chegou, perseguindo Sísera, Jael saiu para encontrá-lo e disse: — Venha cá, e eu lhe mostro o homem que você está procurando. Então Baraque foi com ela e encontrou Sísera no chão, morto, com a estaca atravessada na cabeça”.
Jael, a cabra selvagem, no século XII a.C. matou Sísera, o chefe das milícias cananéias. Débora, profeta efraimita, disse que Jael era a mais abençoada das mulheres, porque pegou uma estaca numa mão e uma marreta noutra e esmagou a cabeça de Sísera, furou e deixou a cabeça dele em pedaços.
É isso mesmo, dançando Débora cantou que Jael foi a mais bem-aventurada das mulheres porque Sísera, o diabo encarnado, isso sou eu quem está dizendo, caiu morto aos pés dela.
A história em Juízes 4 fala de uma época violenta, como os sertões das Gerais de Guimarães Rosa. Jael não era efraimita e juntamente com seu homem, Héber, fazia parte de um clã nômade, queneu. Mas por bravura guerreira foi elogiada por Baraque, mor chefe da jagunçada efraimita. E foi bem-vinda no bando.
Assim, num momento de dispersão dos clãs hebreus, Débora convocou Baraque e seus guerreiros para lutar. O texto de Juízes 4 mostra a liderança de Débora, assim como a coragem de Jael, em oposição à debilidade de Baraque e a miserabilidade de Sísera. O texto ressalta o papel carismático da profeta ao exortar homens atemorizados e convocar os clãs à união. Essa fé é dançada com gritos de vitória e o ritmo quente da música cananéia-palestina. Mil e trezentos anos depois, na epístola neotestamentária aos Hebreus (11.32), o autor fará menção ao tempo dos juízes, citando Baraque, mas omitindo Débora e Jael. Por que?
No que se refere a Diadorim e Jael, é necessário desconstruir as idéias de exclusão da mulher-guerreira e analisar o contexto dos relatos sob uma nova leitura de gênero. Ou como diz Walnice Nogueira Galvão, para se compreender a mulher-guerreira é preciso compará-la: ela não é mãe, nem esposa, nem prostituta, nem feiticeira. Ela é outra e deve ser procurada ali onde não estão as anteriores (p. 34). Assim teremos Diadorim e Jael para homem nenhum botar defeito.
Eu a Alex amamos esta guerreira
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