mercredi 8 février 2023

Souvenirs rouge carmin

Memórias vermelho carmim 

 Jorge Pinheiro

 

 

Já que (...) não posso infundir a fé no coração de ninguém, não posso, nem devo obrigar ou coagir ninguém a isso, pois Deus opera isso sozinho e vem habitar anteriormente no coração. Por isso, se deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela: nós certamente temos o ius verbi, mas não a executionem. Cabe-nos pregar a palavra, mas as conseqüências pertencem unicamente ao agrado de Deus”. 

Lutero, reformador do século XVI. 

 

 

Introdução 

 

A memória é afetiva e seletiva. Na verdade, ela vai apresentando os fatos vividos a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos, onde vivemos situações-limite. Mas não pára aí. A memória sempre faz uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis. 

 

É por isso que os velhos são bons contadores de história e são olhados pelos netos como cavaleiros andantes de um tempo mítico. 

 

Mas nem por isso a memória deixa de ser história. Principalmente quando ela discorre sobre acontecimentos sociais amplamente conhecidos. E quando isso acontece, ambas se complementam e se enriquecem. A memória, ao apoiar-se nos fatos, deixa de ser o relato de algo particular, vive um processo indutivo, que lhe dá grandeza. E a história, inversamente, ao recorrer à memória traz emoção e vida ao fato documental. 

 

Mas nossas memórias não se entrecruzam apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como nossos sonhos, transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o imaginário, às vezes, é tão real quanto à história vivida. 

 

Nessas primeiras memórias apresento ao leitor, minha dor maior, meu primeiro exílio e a caminhada em direção ao paredón. Esses acontecimentos pertencem à história recente do Brasil e da América Latina. Muita gente viveu dores semelhantes e por isso fazem parte dessa história. Alguns estiveram ao meu lado e exerceram uma profunda influência em minha vida. Outros foram passantes.

 

Aqueles que já morreram e, por isso, mais do que nunca são personagens de nossa história latino-americana, aparecem aqui com seus nomes verdadeiros. Os que ainda estão vivos, construindo histórias, deixo que a memória os trate como imagens e por isso aparecem com pseudônimos.

 

Não há nesta atitude da memória nenhuma intenção de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que ainda não são histórias acabadas. Nesse sentido, a memória segue a tradição de muitas tribos indígenas brasileiras, onde os nomes mudam conforme o índio cresce. O nome definitivo não traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca de uma vida.

 

Quanto aos pesadelos, estão todos presentes. É o inconsciente revelando sua visão do mundo vivido pelo escritor. É difícil dizer qual é maior: o pesadelo ou a realidade da dor. Ambos são terríveis e por isso se complementam. E fica mais fácil entender um, no debruçar-se sobre o outro. É, inclusive, difícil dizer qual vem primeiro, já que o pesadelo pode ser sentido como futuro que se faz presente. E aqui ambos, pesadelo e dor, se fazem texto, esquizofrênico, estilhaçado, em pedaços, como a minha alma.

 

Ou como cantou Chico: 

 

“Oh, pedaço de mim, 

oh, metade adorada de mim,

leva os olhos meus, 

que a saudade é o pior castigo 

e eu não quero levar comigo 

a mortalha do amor”. 

 

E, assim, tudo chega através da memória, que afetivamente vai selecionando o que lhe parece mais verdadeiro, a fim de construir o mundo mítico de nosso heroísmo fugaz. 

 

 

11 de setembro de 1973 

 

Dez horas da manhã. Acordo. A noite foi longa e insone. Ficamos em treinamento até de madrugada. Tememos que o golpe possa ser deflagrado a qualquer momento. Allende se mostra indeciso. Deveria sublevar os cordões industriais e distribuir armas para os trabalhadores. Mas não quer romper a legalidade. Se o golpe vier agora não sabemos o que pode acontecer.

 

Muita gente da Unidade Popular confia na fidelidade das forças armadas ao governo. Mas parece que essa não é a experiência histórica...

 

Peguei a rádio Corporación. É Allende. Ele está falando.

 

-- Certamente, esta é a última oportunidade em que posso dirigir-me a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da rádio Magalhães. Minhas palavras não contêm amargura, mas decepção. Que elas sejam um castigo moral para aqueles que traíram seu juramento. Soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Marinha, mais o senhor Mendonza, general rasteiro que até ontem manifestava sua fidelidade e lealdade ao governo, e que também se autodenominou diretor geral de Carabineiros...

 

-- Diante desses fatos, só me resta dizer aos trabalhadores: não vou renunciar!

 

-- Em meio ao trânsito histórico, pagarei com minha vida a lealdade ao povo.

 

-- Dirijo-me ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, e aqueles que serão perseguidos, porque no nosso país o fascismo já esteve muitas horas presente: nos atentados terroristas, voando pontes, cortando vias férreas, destruindo oleodutos e gasodutos, ante o silêncio daqueles que tinham a obrigação de cuidar. Estavam comprometidos. A história os julgará. Certamente, a rádio Magalhães será calada e o metal tranqüilo de minha voz já não chegará até vocês. Não importa. Continuarão a ouvi-la...

 

-- Sempre estarei junto a vocês. A lembrança que terão de mim será a de que fui um homem digno, fiel à pátria. O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve deixar-se arrasar, nem acribillar, mas também não pode ser humilhado. Trabalhadores de minha pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. Outros homens superarão este momento cinza e amargo quando a traição pretender se impor. Fiquem sabendo que, muito mais cedo do que imaginam, de novo se abrirão as grandes avenidas por passará onde o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

 

-- Viva Chile! Viva el pueblo! Vivan los trabajadores!

 

-- Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a traição.

 

Ele parou de falar, mas porque não chamou o povo a sair às ruas, a lutar. O que está acontecendo... Por que esse derrotismo?

 

Giro o dial. Uma voz metálica ameaça. Estarrecido ouço o general Augusto Pinochet ordenar a rendição incondicional do companheiro Allende, caso contrário a Força Aérea bombardeará o palácio La Moneda.

 

Corro até a janela e olho para o palácio. Imponente, de arquitetura espanhola, como será que ele tem coragem... Bombardear... Não, isso é impossível. Giro o dial de novo e pego o rádio-amador aqui ao lado, o da sede do partido socialista... Em meio a zumbidos, procuro uma melhor definição de onda.

 

Será que um golpe contra Allende pode ser bem-sucedido? É impossível prever. E o povo, e as fábricas, e os cordões industriais? Não irão às ruas, não vão resistir?

 

Peguei um diálogo... 

 

O Palácio de La Moneda está cercado por tropas do Exército. A polícia de Allende recebe uma proposta de rendição, transmitida por seus adidos militares.

 

O presidente rechaça a renúncia, diz que prefere morrer. Ninguém sabe ao certo o que está acontecendo. Allende suicidou-se, foi fuzilado?

 

-- Creio que a história do suicídio é falsa. Acabei de falar com o adido naval... Eu o encarreguei de convencer o chefe dos carabineiros a render suas tropas, do contrário vão ser bombardeadas, afirma o vice-almirante Patrício Carvajal ao general Pinochet.

 

-- De acordo. Acaba de me chamar o subsecretário da Marinha, e concorda que a exigência é rendição incondicional. Esse cara é traiçoeiro. Se quiser se render, que vá ao ministério da Defesa para se entregar aos comandantes.

 

Allende está acuado no palácio. Por telefone fala com o Ministério da Defesa. Só aceita dialogar no palácio presidencial.

 

-- O presidente da República só recebe em La Moneda, diz uma voz por telefone.

 

-- Esse cavalheiro está tentando ganhar tempo. Nós estamos nos mostrando débeis. Não aceito nenhum encontro. Encontro significa diálogo. A rendição é incondicional. É bem claro o que digo: rendição incondicional. Se quiser, ele que venha e se entregue. Se não, vamos bombardear o palácio o quanto antes.

 

Pinochet está irado. Seus pares concordam com ele.

 

-- De acordo... Em dez minutos, vamos bombardear La Moneda, declara o vice-almirante Patrício Carvajal.

 

Hawker Hunters, aviões de caça da Força Aérea chilena, surgem como pequenos pontos no horizonte. Vão crescendo e tomando forma como maldições que se materializam. E os mísseis, um, dois, três... Perco a conta, vão acertando o alvo. O centro da cidade é estremecido por um ruído rouco, que parece sair do próprio oco da terra. Um misto de terremoto e irrupção vulcânica, imagens tão dolorosas na vida desse povo que tanto se orgulha de sua democracia.

 

Paredes internas do palácio desabam. 

 

-- Pegue o ministério do Allende e vamos mandar todo mundo para fora do país. Já... De avião..., diz Carvajal.

 

-- Tem razão, se forem julgados ganham tempo..., concorda Pinochet.

 

-- Minha opinião é que esses senhores devem ser presos e mandados para qualquer lugar. No caminho, vão sendo eliminados...

 

O general Gustavo Leigh, comandante da Força Aérea, descarta qualquer possibilidade de julgamento. Para ele, comunista bom é comunista morto.

 

Os operadores de rádio, jovens cadetes, que estão transmitindo e sendo retransmitidos por todo o país por radioamadores, exclamam estarrecidos:

 

-- Esse sujeito é um facho.

 

Os assessores de Allende estão abandonando o palácio, a pedido do próprio presidente. Agitam uma bandeira branca. Pinochet quer saber se Allende integra o grupo.

 

-- E Allende? Saiu ou não saiu?

 

-- Não saiu, diz que o ministro Flores está incumbido de pedir condições decorosas para a sua rendição.

 

-- Não há nenhuma condição decorosa. Esse imbecil, o que ele está pensando? A única coisa que desejo é respeitar sua vida e já fazemos muito.

 

Pinochet aparentemente ainda trabalha com a idéia inicial de enviar Salvador Allende e seu círculo mais próximo para o exílio, num avião. Mas, a pressão de Leigh vai ganhando espaço entre os militares. Por volta do meio-dia, Pinochet concorda que seria preferível que o presidente morresse.

 

-- Mantemos a oferta de tirá-lo do país, mas o avião cai quando estiver voando.

 

-- De acordo... 

 

Sinistras gargalhadas ressoam na pequena sala de meu apartamento no Hotel London. Quantos estarão ouvindo a orquestração desse assassinato?

 

Após a saída dos assessores, o presidente Allende, dentro de La Moneda, é fuzilado por um grupo de militares. Informado, o Ministério da Defesa retransmite a notícia aos futuros dirigentes do país, entre eles Pinochet. Mas não contam a verdade.

 

-- Leigh e Pinochet, Carvajal. Há uma informação de dentro do La Moneda. Pela possibilidade de interferência, vou transmitir em inglês. They say Allende comitted suicide and is dead now. Digam-me se me entendem.

 

-- Entendido.

 

-- Entendido.

 

-- Em relação ao avião para a família, a medida não tem mais urgência.

 

-- Que joguem o corpo de Allende num caixão e o embarquem junto com a família. Que o enterro seja feito em outra parte, em Cuba. Até para morrer esse cara nos causou problemas.

 

São as últimas palavras de Pinochet. O zumbido aumenta, uma tristeza invade meu corpo. E eu começo a chorar. Convulsivamente. 

 

Nunca tinha visto nada igual. O céu ficou preto de fumaça e uma garoa fina começou a chorar sobre Santiago. Uma fuzilaria tomou conta de toda a cidade.

 

Não consigo sair do hotel. Chovia bala. Ao lado do hotel há uma sede do Partido Socialista. De lá de dentro matraqueia uma metralhadora e tiros esparsos de fuzil. A sede socialista esta cercada por militares entrincheirados.

 

Um helicóptero do Exército aparece, voa baixo, pára em frente ao prédio e abre fogo de metralhadora contra os resistentes. Fazem isso várias vezes. A impressão é que as balas vão arrebentar as paredes do hotel. É impossível por o pé na rua.

 

Quando chega a tarde recebo um telefonema da Base Aérea de Cerrillos. Anabella fala comigo chorando:

 

-- Estou presa, você precisa vir me soltar.

 

Passa pela minha cabeça que se eu não for soltá-la nunca mais vou vê-la. Mas eu tenho que ir para Indumet, tenho que juntar-me ao companheiros do comando León Trotsky, com os companheiros do MIR. Tenho que salvar Anabella. Ela vai ser fuzilada... 

 

No dia seguinte, a primeira coisa que faço, numa atitude totalmente tresloucada, é, esgueirando-me o melhor que posso, dirigir-me ao Quartel General do Exército. Chego lá e peço para falar com a assessoria de imprensa, como resposta recebo ordem de prisão:

 

-- Você é brasileiro? Está preso.

 

Não têm onde me por: me deixam no corredor, e aí fico de pé, de cara para a parede, desde o início da manhã até à tardinha, vigiado por um soldado. É o segundo dia do golpe, está uma confusão danada, e lá pela tarde o Quartel General começa a ser bombardeado por obuses. Os estilhaços caem dentro do corredor. Soldados correm para todos os lados. Trocam o soldado que me vigia e eu aproveito a confusão e dou uma ordem:

 

-- Leve-me imediatamente ao quinto andar, à assessoria de imprensa.

 

O soldado reclama, diz que não pode, mas diante de minha intransigência acaba concordando. Quando chego ao quinto andar, peço ao assessor de imprensa que providencie um jipe militar, porque tenho que ir à Base Aérea de Cerrillos liberar minha companheira que está presa, por engano.

 

-- Nós não podemos fazer isto, estamos sendo atacados, é impossível te dar um jipe. Volta aqui amanhã, talvez seja possível...

 

Concordo com ele e o soldado, ainda confuso, me deixa sair do quartel. Chegar ao hotel não será fácil. Há trincheiras ao longo da avenida e nas esquinas das ruas. Até um ponto do trajeto, trincheiras dos militares, e daí em diante trincheiras da resistência. Então eu levanto minha carteira de jornalista, e grito:

 

-- Sou jornalista.

 

Corro e pulo na trincheira. Converso um pouco, explico que tenho que seguir em frente e ouço:

 

-- Se você for em frente vai morrer, vão atirar em você.

 

Quando estou quase chegando à outra trincheira, volto a gritar:

 

-- Sou jornalista...

 

E assim à noite, por puro milagre, chego inteiro, são e salvo, ao hotel.

 

-- Hoje tenho que ir direto à Base Aérea de Cerrillos.

 

Ela que fica num bairro distante do centro da cidade. E eu passo o dia todo tentando encontrar algum transporte, mas não há condução. Há o toque de recolher, que proíbe às pessoas de transitarem pelas ruas. Tudo está parado. Às quase cinco da tarde passa um táxi, o único táxi que eu vira nesses dois dias. Quando o táxi chega próximo, lanço-me à frente dele e começo a gritar para que pare. Ele para. O taxista me diz que esta indo para casa, que fica longe, na cidade de Valparaíso. Então, ousadamente, dou-lhe voz de prisão:

 

-- Leve-me à Base Aérea de Cerrillos ou está preso.

 

Ele olha para mim, estupefato, e pergunta:

 

-- O senhor é da embaixada brasileira?

 

Sei que o governo brasileiro está apoiando o golpe militar, por isso não hesito:

 

-- Sou.

 

Então ele me leva até a base aérea. Quando chegamos, a base aérea está sendo bombardeada com morteiros. O táxi passa pelo portão principal, ouvimos os morteiros zumbindo sobre nossas cabeças e explodindo lá na frente. Rapidamente, os militares da Aeronáutica nos cercam. Cai uma garoa forte.

 

Ordenam que eu desça do carro. Fico no meio de um gramado, nas guaritas há soldados armados com fuzis e metralhadoras. Dão uma segunda ordem:

 

-- Tira a roupa, toda a roupa.

 

Debaixo da garoa fina, tiro a roupa e mergulho numa imagem ancestral: a do judeu nu, massacrado, prestes a ser fuzilado.

 

Um oficial sai de uma das guaritas e pede o meu passaporte. Explico que vim buscar minha companheira. Debaixo da chuva fina, ele abre o passaporte, que é falsificado, olha-o rapidamente e me devolve. Manda chamar Anabella. Ela vem chorando, em prantos. Caminhamos para o táxi, mas o motorista, que também chora de raiva, por ter sido enganado, nega-se a nos levar de volta. Dirijo-me ao oficial e digo:

 

-- Este homem não quer nos levar de volta.

 

O oficial responde:

 

-- Tem que levar, vocês não podem ficar aqui.

 

E como entramos, assim saímos da base aérea, debaixo de explosões e do matraquear de metralhadoras.

 

Quando chegamos ao hotel, Anabella conta que na manhã do dia 11 de setembro, a fábrica onde trabalhava resistiu ao golpe até acabar toda a munição. Então, os militares da Aeronáutica, que tinham cercado a fábrica, invadiram as instalações, prenderam todos, encostaram os dirigentes na parede da rua e os fuzilaram na frente dos companheiros. Ela por ser loura e brasileira foi poupada. Afinal, não sabiam de quem se tratava. Foi levada para a Base Aérea e presa. No breve interrogatório, disse que era mulher de um jornalista brasileiro, correspondente da agência Dispatch News Service, de Washington. Teve, então, o direito de dar um telefone, aquele que eu atendi no hotel.

 

No hotel o ambiente está alvoroçado. A televisão apresenta uma lista de pessoas procuradas, exortando à população a denunciar todos os estrangeiros. Os militares deram dois dias para todos os estrangeiros se entregarem. Eu, logicamente, não vou me entregar.

 

Anabella e eu sabemos que podemos ser denunciados, mas não temos escolha. Vamos passar esta noite rasgando e jogando pela janela nossos textos e manuais de guerrilha urbana.

 

Acordo sobressaltado. Estão esmurrando a porta. Vou abrir. Levo uma coronhada na cara. É tudo muito rápido. Abro os olhos, em meio ao sangue que escorre pelo meu rosto, e levo outra coronhada. A cada coronhada eu desmaio e quando volto a mim sou golpeado de novo. Levam tudo o que podem levar, roupas, máquina de escrever, livros. Presos, somos obrigados a caminhar pelas ruas, com as mãos na nuca, numa estranha procissão. Depois nos jogam num ônibus, deitados. Começam então a maltratar Anabella. Chutando-na e pisoteam. Eu grito:

 

-- Não façam isso, ela está grávida.

 

É mentira, mas eles param.

 

Não sabemos para onde estão nos levando. Uma hora depois, com o ônibus cheio de presos, somos obrigados a descer diante de um quartel: é o regimento Tacna. Vemos muita gente machucada, uns segurando seus braços, quebrados, outros se arrastando, todos sujos de sangue, assim como eu. Minha cabeça dói terrivelmente. Sinto o rosto inchado e quente. Minha camisa está empapada de sangue, já meio endurecido. A sensação é muito desagradável. Parece que estou vivendo um pesadelo. O sentido de realidade se perde no meio desse cenário de morte.

 

Nos largam numa espécie de cozinha. Eu caio no chão e apesar de muito machucado tenho uma sensação de alívio. O chão de ladrilho é frio e transmite uma sensação agradável ao meu corpo. Estou vivo. Isso é o que importa.

 

Eu e Anabella estamos quietos. Quebro o silêncio e arrisco uma frase de humor:

 

-- Não se preocupe. Eles não têm nada contra você. Na semana que vem você já estará em Copacabana, no maior bronze.

 

Sei que vou morrer. Vão me meter uma bala na cabeça e vão me jogar numa vala qualquer. Estou calmo. Minha intimidade com Deus está anda precária, por isso não oro, nem peço nada. Mas gostaria que Anabella não fosse morta, gostaria muito que ela pudesse voltar para o Rio de Janeiro, ali para o Posto 4, para curtir a praia que ela tanto gosta.

 

O que pensa um homem antes de morrer? Sempre tive essa curiosidade. E agora estou tendo a oportunidade de matá-la. Não penso em nada. É como se o meu cérebro estivesse vazio e os pensamentos passassem como se fossem nuvens rápidas antes da tempestade. Nem mesmo posso dizer que estou plenamente consciente.

 

Mais do que pensar, eu sinto. Sinto os ladrilhos frios no meu rosto inchado. E isso é agradável. Sinto o meu corpo imóvel, pesado, como se estivesse pressionando o chão. Tão pesado que parece que vai entrar chão adentro. E isso também é agradável. 

 

Talvez essas sejam as sensações de um feto. Ele não pensa, sente. E o tempo já não existe. Estou aqui faz minutos ou horas? Não sei... 

 

Chega um coronel e nos informa:

 

-- Vocês vão ser fuzilados no início da tarde.

 

O tempo é um redemoinho e eu estou mergulhando nele. Num momento estamos cansados, machucados, tontos, noutro, somos agarrados, levantados, levados. Nos colocam no início de uma fila, umas oito pessoas caminhando para o paredón.

 

De repente, um tenente me chama. Eu estava na fila, caminhando, e ele me chama. Saio da fila, faço um sinal para Anabella me acompanhar. E o oficial me pergunta:

 

-- Você foi preso com muito material subversivo, é verdade?

 

Digo que é verdade, que sou jornalista, e que tudo foi comprado. Ele diz que também tem muitos daqueles livros em casa. Sinto uma empatia profunda com aquele jovem. Estou diante de um oficial de esquerda. Apenas nos olhamos. Olhares cúmplices de companheiros que viram seus sonhos queimarem nas chamas do La Moneda.

 

Enquanto isso, os três ouvimos atrás de nós os tiros que abatem os outros companheiros.

 

Somos então mandados para interrogatório. Combino rapidamente com Anabella que apenas eu falarei para não entrarmos em contradição. Explico aos militares que estou estudando na Universidade do Chile, que amo esse país e que nunca me passou pela cabeça sair do Chile. É um interrogatório leve. Vêem que sou correspondente estrangeiro, e me entregam um salvo-conduto para que tenha livre trânsito.

 

Estamos apenas com a roupa do corpo. Não temos nada. Mas a vida é o bem maior, mesmo quando temos apenas a roupa do corpo. Andarillhamos pelo centro de Santiago, até que descobrimos um hotel perto da Plaza de Armas. O hotel está cheio de conhecidos, velhos companheiros, exilados brasileiros. Dudu, filho do Zé Maria, é um deles. Será que esse é o melhor lugar para um brasileiro se esconder?

 

Do hotel telefono para Nova Iorque, para um grande amigo meu, Peter, que pertence ao Socialist Workers Party. Não consigo falar com ele, peço então a uma amiga que trabalha no consulado brasileiro em Nova Iorque para entrar em contato com Peter. Explico a situação e peço para me mandarem duas passagens de avião Santiago/Buenos Aires e dinheiro via ordem de pagamento. Ficamos no hotel. Dois dias depois, o dinheiro chega. Compramos roupas. Quando os aeroportos abrirem chegarão também as passagens.

 

 

O autor e sua obra 

Antenor da Conceição

 

Jorge é jornalista, é teólogo e cientista da religião. Cursou Jornalismo na PUC do Rio de Janeiro, mas só terminou o curso na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Chile. Nos anos 1990 fez sua graduação em Teologia na Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É Doutor e é Mestre em Ciências da Religião pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. 

 

Desde a época de secundarista, no Rio de Janeiro, gosta de política. Foi exilado entre 1971 e 1974 no Chile e Argentina e, posteriormente, em 1977, na Espanha e Portugal. Em dezembro de 1979 foi anistiado. Nos anos 1990, passou a focar a questão social a partir da teologia da vida, o que, ele acredita, aumentou e não diminuiu seu compromisso com os deserdados da terra. 

 

Palavras e palavras 

 

Quanto aos anjos e demônios, tão presentes na novela, Jorge lembra que na mística judaica, são palavras, palavras de Deus, palavras humanas que constroem e destroçam. É uma leitura antiga da magia das palavras, que vem possivelmente dos sumérios. E proferida a palavra, ela abre as asas, tornando-se mensageira, que se desloca entre os deuses e os humanos. As palavras podem, assim, voar para lugares e épocas que as pessoas não podem chegar e, nesse sentido, são intermediárias do bem ou do mal, ligando o mundo humano a outros mundos. 

 

Os sumérios acreditavam que cada pessoa tinha uma palavra, companhia inseparável na vida. Quando os semitas conquistaram a Suméria, cerca de dois mil anos antes de Cristo, entraram em contato com essas angelologia e demonologia matriciais. 

 

Para a mística judaica, existem palavras que cantam e dançam ao redor do trono de Deus: chayot ha kadesh, ophanim, erelim, hashmallim, elohim, bene elohim, cherubim, ishim, metatron, raziel, tzaphkiel, tzadkiel, khamael, raphael, haniel, gabriel, sandalphon. Essas devem ser proferidas com muito cuidado pelos humanos, pois Deus as separou para si. 

 

Sobre os demônios, quero citar o profeta Isaías (34.14), quando fala da terra de Edom e a apresenta como amaldiçoada e deserta: “As feras do deserto e as hienas morarão ali: demônios chamarão uns aos outros, e ali Lilith (súcubo noturno) encontrará um lugar para descansar”. 

 

Ora, se as palavras são anjos e demônios, que vagam pelos desertos, que voam, constroem e destroçam, fica o conselho do homem de Nazaré: “Seja, porém, a tua palavra: sim, sim, não, não. O que passar disso é de procedência maligna”. E é por isso que eu digo devemos cortar as asas das palavras mal ditas. 

 

Liberdade e justiça 

 

Jorge é um utópico. Acredita que como cristão deve se posicionar a partir de uma ética da responsabilidade social, o que implica em entender o paradoxo da multicultura relacional brasileira, de que vivemos num país onde impera a moral autoritária do senhor, da casa grande e da senzala, e a moral libertária da contracultura, a moral do “não existe pecado do lado de baixo do Equador, vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”. 

 

Por isso, costuma dizer que qualquer atuação no campo social implica em compreender esta realidade. Mas, consciente de que as sociedades devem se organizar através de relações democráticas, afirma que a igreja na América Latina tem como desafio embasar seu compromisso no imperativo protestante: liberdade, conhecimento e justiça. 

 

Fala de um processo que crescerá conforme cresça a consciência de que os cristãos têm a tarefa de transformar o Brasil num país onde todos possam acessar condições dignas de vida e justiça social. E, logicamente, todo o continente. 

 

Assim, Jorge lembra a seus leitores e leitoras certas palavras ditas num morro distante: “Felizes os que têm misericórdia, porque Deus também terá misericórdia deles”. E eu assino embaixo: soli Deo, gloria! 

 



 

 

 

A aliança rebelde e o império do mal

Ou, como os evangélicos constróem a realidade
Jorge Pinheiro

O pensar evangélico nos constrange. Às vezes nos perguntamos, mas de onde saiu esse sujeito? De alguma caverna? Desceu da Lua e aterrizou aqui por acaso? Mas, se você já pensou em pós-modernidade e virtualização do pensamento e suas consequências éticas, sociais e políticas, está no caminho para entender esta presença que já se aproxima de um quarto da população brasileira. 

Há um verso de Nietzsche que pode nos servir de guia para pensar a religiosidade evangélica:
 
“Agora celebramos, seguros da vitória comum, a festa das festas: O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes! Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina, É hora do casamento entre a Luz e as Trevas...”
 
Nietzsche pensava a ausência de horizontes. Em Além do Bem e do Mal, ele pensa contra a modernidade: faz um libelo contra os valores da modernidade, como o sentido histórico, a objetividade científica e, logicamente, a fé numa razão autônoma. Assim, é o caso de perguntar: é possível continuar existindo algum contato com a chamada realidade, quando a virtualidade fica indistinguível e até mesmo mais autêntica que o original? Quando podemos criar mundos que são mais reais que o real? Quando a tecnologia glosa a natureza?
 
Aqui, ao pensar a questão da virtualidade na comunidade religiosa brasileira, utilizo um conceito que foi usado na crítica literária, a idéia de imagologia. A imagologia tem sido  um método de literatura comparada que estuda a relação entre o escritor e as geografias, culturas, relevantes na construção de seu]pensamento.  Hoje, as mídias têm demonstrado a força das realidades imagológicas. Essa questão, realidade e imagem na comunidade imagológica, já tinha sido analisada por psicólogos da escola piagetiana. Segundo eles, é difícil ensinar a pensar de modo lógico a uma criança que está sob o bombardeio de imagens distantes da lógica, como acontece nos programas infantis. E onde até mesmo as entrevistas ao vivo fazem parte da criação de algum gênio da publicidade. A moda e os shows de rock, por exemplo, fazem parte desta realidade onde o que é apresentado pelo entrevistador não tem nada a ver com a realidade da audiência ou com o próprio intérprete/produto, já que suas imagens sofrem uma transformação mágica para poder ser popular, ou pelo menos este é o objetivo.
 
Assim, antes, na modernidade, as criações virtuais eram imitações da realidade. Mas hoje, na pós-modernidade, falamos de virtualidade enquanto criação de realidades que não correspondem ao que temos no mundo imediado, quer cultural, social ou político. Agora, como disse Nietzsche, “rasgou-se a horrível cortina, é hora do casamento entre a luz e as trevas...”. 

Vivemos um momento de complexidade sem precedentes, onde as coisas mudam mais rapidamente que nossa habilidade de compreender. Por isso devemos resistir à tentação de procurar respostas simples, pois o que antes era força do pensamento moderno agora é fraqueza que nos deixa abandonados à mercê da sorte. Diante disso, será possível distinguir entre realidade e virtualidade na comunidade imagológica evangélica ... se virtualidade e mídia constroem a nova realidade? Bem, vivemos um mundo colocado em processo de equilíbrio instável, e para entendê-lo devemos ir às margens do sistema.    
 
As religiosidades evangélicas podem ser chamadas de locais de consumo e apontam para  a construção imagológica de uma monarquia teocrática, onde um rei libertador governará apoiado por profetas. Nesse sentido, o capitão Jair Messias Bolsonaro encarna e sintetiza a imagologia evangélica. Mas uma estrutura não é aquilo que alguém busca, pois as religiosidades enfatizam movimento e troca. O conhecimento simbólico nas religiosidades evangélicas emerge de uma interação entre entendimento e as expressões de fé, que são filtros através dos quais são processadas a informação. Se alguém pensa tais categorias como um vigamento historicamente emergente de interpretação, em constante processo de formação, deformação e reforma, estamos diante de um salto como o das tecnologias de produção e reprodução. O movimento evangélico traduz tal revolução: é pós-moderno, quando nega a modernidade e sua racionalidade hermenêutica, e quando defende a economia de livre mercado. Começamos então a ver os modos em que os evangélicos processam a experiência, onde o conhecimento pertence às pessoas, mas está em fluxo constante. Não é apenas uma questão de como pensam, é uma questão de como vêem, ouvem e temem. E aí entram ethos evangélico e política, e questões como aborto, feminismo e movimentos gays, enfim, direitos civis, passam à centralidade do pensar a política. E neste ver, ouvir e temer, as mídias abrem uma percepção nova e capacidades de apercebimento. O ponto em que se faz a troca é uma questão importante. Essas redes de troca não são apenas religiosas, são culturais, políticas, sociais. Entender as religiosidades evangélicas como constituídas por redes de troca é fundamental.

No Brasil de hoje podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para evangélicos e o restante da população, mas agora com a presença dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, em especial a mídia informatizada, os ritmos e tempos se interpenetram.
 
Assim, ao analisar o pensamento político da religiosidade evangélica no Brasil, a partir dos profetas midiáticos, podemos dizer que se deu uma ofensiva contra os direitos civis, democráticos e seculares. Os profetas dessas denominações midiáticas adotaram o discurso da crise moral e lançaram as bases para a construção de um pensar político. Assim, formataram um projeto de defesa da hierarquia, com suas desigualdades sociais, que seriam inevitáveis e naturais. Tal postura política tem como modelo imagológico a  monarquia bíblica, expressa nos reinados de Davi e Salomão. Esta direita, diferente de tudo que até então se conhecia no Brasil, foi favorecida pelas oposições ao trabalhismo reformista, cresceu e virtualizou maciçamente sua presença. Normalmente, de forma apressada, chamamos tal movimento de fundamentalista.
 
A Reforma protestante desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame dos textos sagrados e o sacerdócio universal dos crentes. A partir desses conceitos de liberdade surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história ocidental. E, assim, surgiu a teologia reformada como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras.

A utilização da expressão fundamentalista para a religiosidade evangélica brasileira não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica.

Uma das questões que nos perguntamos quando pensamos a crescente força da religiosidade evangélica é se, de fato, esta religiosidade outorga sentido às massas urbanas. Consideramos que o brasileiro é pessoa potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade tende a se expressar em diferentes formas de religiosidades. E essas religiosidades nos grandes centros brasileiros ocupam um espaço privilegiado. Ora, se a espiritualidade é a dimensão da profundidade do ethos brasileiro, na urbanidade essa busca, por várias razões, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a comunidade evangélica cresceu 61,45% em dez anos (IBGE, 2012). Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade foi catalisada pelo maciço processo de evangelização dos últimos setenta anos.
 
A espiritualidade traduzida nas religiosidades das cidades brasileiras está presente em todas as ações do ethos brasileiro, na cultura, na educação, na ética e na política. Por isso, cada vez mais expoentes das comunidades se pronunciam publicamente sobre questões que antes pertenciam estritamente a esfera civil não-religiosa. 

Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano a religiosidade evangélica é, dialeticamente, fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com alguns exemplos. Durante a redemocratização brasileira, nos anos pós-ditadura militar, evangélicos e suas comunidades se dividiram enquanto forças reformistas de apoio aos governos trabalhistas e forças reativas que se ligaram aos governos de oposição ao trabalhismo. Assim, as religiosidades evangélicas são desagregadoras quando se mobilizam contra os direitos civis e o estado de direito. Mas agregam quando defendem a vida como direito humano. Com isso, constatamos que as religiosidades evangélicas podem ser uma coisa ou outra ou mesmo, enquanto comunidades, ambas. Essas são marcas da história evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos evangélicos. O certo é que evangélicos, em nome dos fundamentos e virtualidades das doutrinas de suas comunidades, confrontam a laicidade no Brasil.

Um Brasil ávido de fundamentos
 
O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país viviam em cidades. Hoje, 83% da população moram em cidades, portanto, oito em cada dez brasileiros vivem em núcleos urbanos. Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. 

Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações. Por outro lado, ocorreu uma tendência à desconcentração de atividades. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos.
 
A religiosidade evangélica montou a cavalo no processo de urbanização. A procura evangélica por fundamentos é uma mostra de que o fenômeno não traduz um movimento espontâneo, mas foi dirigido para a construção de raízes que lhe dessem estabilidade e permanência. 

As antigas instituções religiosas, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos. E tal processo não tem definições precisas e sólidas, as religiosidades evangélicas urbanas necessitam de um permanente olhar à frente. E nesse olhar à frente, vêem que as necessidades estruturais da sociedade e o descontentamento nem sempre claro das populações as levam a busca de fundamentos.
 
Ao acrescentarmos a variável urbanização ao evangelicalismo brasileiro, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas, e o movimento evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido, esperança e vida para essas massas. 

Os estudos publicados pelo IBGE mostram que em 1970 a população protestante/ evangélica tinha 4,8 milhões de fiéis, e que em 1980 passou a 7,9 milhões. Constatou que na década de 90, a velocidade de crescimento das comunidades protestantes e evangélicas foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Assim, em 1991 chegou a 13,7 milhões; em 2000 a 26 milhões. E em 2010, a 42,3 milhões, ou seja 22,2% dos brasileiros. Atualmente, o movimento como um todo caminha para ser um quarto da população.
 
Como vimos, uma das características da religiosidade evangélica é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada não como retorno às tradições históricas da Reforma, mas como leituras imagológicas do Antigo Terstamento. De tal forma, que o movimento evangélico hoje é expressão profunda da virtualidade.
 
Assim, expressões do fenômeno evangélico são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições, mas em especial do imaginário judaico-cristão. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização multicultural.
  
E deixamos a conversa

O desafio das religiosidades evangélicas consiste em não demonizar sua presença na política brasileira. 

Se os evangélicos consideram que a realidade é uma construção da fé e da oração, que remove montanhas, devemos reconhecer que a ética protestante, calvinista, cumpre um papel social importante. Ao proibir o consumo do álcool, de drogas, a prostituição e os jogos de azar, por exemplo, melhoram a situação familiar. Por outro lado, defendem a economia de livre mercado, que não é o inimigo, pois possibilita a escensão social. O inimigo é o império do mal e sua decadência moral. 

Podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura. Devemos, então, falar de conflitualidade endêmica da sociedade brasileira e, como consequência, dos dilemas presentes na relação política versus movimento evangélico. 
 
Temos que ver que a realidade se expressa de forma imagológica na política das religiosidades evangélicas. Isto faz com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelaçam e produzem mutações e novas qualidades no tempo político brasileiro.
 
Donde, o Apocalipse, tão caro à escatologia evangélica, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. E aqui me lembro de George Lucas, quando disse que sua inspiração para moldar a aliança rebelde na Guerra nas Estrelas foi a luta dos guerrilheiros vietcongues, ou seja, da Frente de Libertação Nacional do Vietnã. 

E Lucas disse: "Estamos lutando contra o maior império do mundo e somos apenas um monte de sementes de feno com chapéus de pele de cabra que nada sabem". Hoje, os evangélicos brasileiros se rebelaram contra o império do mal. Ou seja, as religiosidades evangélicas por sua virtualidade colocam desafios culturais – éticos e políticos – à laicidade brasileira. Isto porque o tempo evangélico deixou o corner e  traduz para seu público variáveis éticas, políticas e socias, que plasmam tempos de confronto com a sociedade laica e pluralista.
 
Essa rebelião caminha com a ascensão e presença marcante do movimento evangélico. Nesse sentido, resistem ao império do mal. Mas, não há porque demonizar as religiosidades evangélicas. 

É necessário sim buscar compreensões culturais e históricas que  levem as lideranças da sociedade civil a uma atualização do pensar a política no Brasil, reconhecendo que o país não está diante de nuvem passageira, mas de realidades que interagem profundamente com os desafios do estar brasileiro hoje.

mardi 24 janvier 2023

Mémoires d'un vieil athlète

A corrida como oração 
Jorge Pinheiro 

Hoje, 13 de agosto de 2016, eu corro. Na verdade, participo da Night run Rockn Roll Special Edition, 10K, na USP, às 20 horas. É bom contar que pratico esporte, com boa irregularidade, por causa de minhas viagens e mudanças de país, desde a adolescência. 

Naquela época, meu tio Walter, austríaco, que tinha sido atleta do Flamengo, me levou para fazer musculação. Foi simplesmente fantástico. E tive o prazer de treinar com alguns dos maiores pugilistas brasileiros. 

Depois, a musculação me levou ao caratê na Nihon Karate Kihokai, com o mestre Lirton e o ex-treinador da equipe japonesa de karatê ... imaginem, um sétimo dan. E ele subia nas paredes, literalmente. Mas numa luta onde fui sparing de um colega faixa preta, que estava treinando para um campeonato no Rio... eu era faixa marrom, mas no treino deixei passar um golpe e tive uma costela fraturada. Chato, muito chato. 

Não deixei a natação, que fui iniciado por minha mãe. E, logicamente o mergulho, algumas vezes com meu irmão Alex. E depois veio a capoeira e o boxe. 

Há alguns anos faço musculação e tenho uma treinadora muito boa. Quer dizer, terrível! 

Mas, a grande diferença neste momento vecchio, é a corrida. Hoje participo da minha terceira competição. Nas duas últimas completei a carreira e tive o prazer de colocar uma medalha no peito. 

Treinei no parque Güell, nas minhas férias, em Barcelona, correndo duas vezes por semana com um sol a pino, cerca de 35 graus, e agora numa São Paulo que terá hoje à noite uma temperatura de 17 graus. Foi uma semana ótima de treino puxado. 

Sinto-me adolescente, a participar de vestibular para a USP. Literalmente, nesta semana, embora tenha levada a cabo todas as minhas atividades de capelão e professor, a competição não saiu de minha mente. E cada detalhe: com que traje correrei, por causa do frio, que carbo repositor usarei durante a corrida – acabei optando por um que Deus criou, o caldo de cana -, como está meu velho tênis de corrida ... e como andam minhas unhas do pé. Afinal, se umazinha machucar vai ser muito ruim terminar com um dedo ensanguentado. 

Só para lembrar: Elias correu. Chovia. E o escuro da noite o cercou. Tinha que chegar a Jezreel, sua meta. Vecchio. Correu firme, pois a mão de Adonai o amparava. Energia e força fluíam pelo corpo. A vida tinha sentido. Ultrapassou a carruagem de Acabe e continuou a maratona. (1 Reis 18:46). 

Sou élder e sandek de jovens que iniciam seu desafio acadêmico, e neste momento vecchio, pensando em Elias e seu Adonai, a musculação como atletismo e a corrida como desafio dão alegria, sentido e me enchem da adrenalina por estar vivo e ir além. É isso. Bom dia! 
























samedi 21 janvier 2023

Le sermon sur la montagne

Alors que nous commençons à lire les premiers chapitres de l'Évangile de Matthieu, une question nous est posée : qu'est-ce que le sermon sur la montagne ? Nous allons réfléchir sur cette question ce matin.

Matthieu 5.3
Heureux les pauvres en esprit, car le Royaume des cieux est à eux !

Nous pensons normalement que le sermon sur la montagne est limité aux béatitudes, mais c’est l'introduction de cette Constitution, de cette Déclaration majeur de la bonne nouvelle de Jésus, le Messie.
Lorsque nous parlons de Sermon sur la montagne, notre attention se tourne vers ces trois chapitres (5, 6 et 7) de la bonne nouvelle présentée par l'évangéliste Matthieu. Nous pensons aux béatitudes présentées dans ce discours de Jésus, pensant qu'il propose le chemin du bonheur. Mais ce n'est pas tout à fait comme ça: si l'on se souvient que Jésus a prononcé le discours en araméen, il faut aller vers l'hébreu et la culture de l'époque, pour mieux comprendre ce qu'il a dit.
1. En marchant
Dans la culture juive, Jésus décrit ici la personne marchant sur le chemin qui mène au Royaume des Cieux. Pour cette raison, il répète ashréi, en hébreu - en marchant - plusieurs fois et Matthieu utilise l'expression makarius, en grec, que nous traduisons par bienheureux, heureux, béni. Expression qui, parmi les anciens Grecs, était utilisée en référence aux dieux. Et plus tard aux humains qui ont marché sur le chemin des dieux.
Ainsi, ce discours parle de la marche de celui qui est fidèle à Dieu. Ce sont des leçons pour notre voyage. Pour tous les jours de notre vie. Et dans ce voyage, les lois de l'amour entrent, y compris les ennemis.
Mais il y a quelque chose ici qui attire l'attention : Jésus se présente comme le nouveau Moïse en commentant la loi délivrée par le prophète fondateur de la religion d'Israël. Il commente la loi et présente de nouvelles lectures qui devraient guider ceux qui marchent sur le chemin qui mène au Royaume des Cieux.
Il y a une fascination pour le sermon sur la montagne. Augustin (354-430), évêque d'Hippone, que les catholiques appellent Saint Augustin, a vu ce sermon comme un résumé de l'Évangile. Et Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), l'un des plus grands prédicateurs français, considérait le Sermon sur la montagne comme le premier et le plus puissant discours de Jésus.
Quand nous lisons le sermon sur la montagne sans temps de réflexion et de prière, cela semble intrigant. Et plus que cela, cela semble radical, car comment pouvons-nous suivre le conseil d'aimer les ennemis, de ne pas juger, d'être parfaits comme notre Père céleste, d'entrer par la porte étroite qui mène à la vie. Ou encore, comment ne pas être perplexe face à l'hyperbole, quand Jésus dit de tendre l'autre joue quand on reçoit une gifle, ou de couper la main droite et de la jeter, ou de ne pas s'inquiéter pour demain?
Cependant, lorsque nous regardons lentement et dans la prière le Sermon sur la montagne, nous découvrons des trésors inattendus, car cette Constituition, cette Déclaration majeur du Royaume des Cieux doit être vécue à tout moment et dans toutes les situations culturelles et sociales de notre vie. En parlant sur la montagne, Jésus a dit que chaque personne possédant les qualités décrites sont humble d'esprit et pur de cœur, douce et miséricordieuse, elle pleure, elle a faim et soif de justice, elle est des artisans de paix, elle subit des blessures et des persécutions pour la justice et l'amour au Maître. Alors, marchant sur cette route qui mène au Royaume des Cieux, le chrétien est makarius, béni, heureux.
Il est très important de comprendre que Jésus ne présentait pas de théorie du bonheur humain. Comme Moïse, il a présenté un modèle de comportement pour la construction réelle du caractère du croyant, qui produit des bénédictions immédiates et futures.
Ainsi, comme nous l'avons dit, Jésus se présente comme législateur, un nouveau Moïse supérieur, promulguant une nouvelle loi, la loi de l'amour, qui est née de l'Esprit. Jésus condamne non seulement l'archaïsme de la législation rituelle, mais indique clairement qu'une nouvelle alliance est en train de naître. Ainsi, nous faisons face à un nouveau peuple. Cet Israélit spirituel aura un nouveau caractère, différent par essence des standards mondiaux.
Commentant les béatitudes, Augustin, l'évêque d'Hippone, a vu dans l'exposition de Jésus marches d’escalier, comme si nous grimpions vers la perfection. La première étape est l'humilité, la soumission à l'autorité divine et la deuxième étape, la douceur. Ces deux premières étapes placent le disciple, dans un esprit de piété, avant la connaissance de Dieu. C'est alors que, de là, il découvre les liens « auxquels les habitudes de la chair et des péchés soumettent ce monde ». Ainsi, pour Augustin, les troisième, quatrième et cinquième étapes sont liées à la lutte contre le siècle actuel et ses diktats. La sixième étape, au contraire, conduit le croyant, auparavant victorieux, à contempler le “ bien suprême, qui ne peut être vu que par une intelligence pure et sereine ». La septième étape est la sagesse, qui naît de la contemplation de la vérité, qui pacifie le chrétien et lui imprime la ressemblance avec Dieu. Et le dernier pas en arrière vers le premier, comme tous deux appellent le Royaume des Cieux, la perfection.
Bien que la vision augustinienne soit trop allégorique pour notre herméneutique baptiste, elle nous apporte la compréhension des pères de l'Église au sujet du Sermon sur la montagne.
D'après ce que nous avons vu jusqu'à présent, il est clair que le Sermon sur la montagne parle des qualités, des caractéristiques des disciples du Christ. Et le texte de Galates 5 : 22 et 23 résume la même préoccupation.
Mais le fruit de l'Esprit est : l'amour, la joie, la paix, la patience, la bonté, la bénignité, la fidélité, la douceur, la tempérance. Contre un tel, il n'y a pas de loi.
Il y a des femmes et des hommes qui ont lutté pour la paix. Ici je pense à remémoré un chrétien que je respecte beaucoup: Desmond Tutu (né le 7.10.1931 à Klerksdorp, en Afrique du Sud) un archevêque anglican sud-africain qui a reçu le prix Nobel de la paix en 1984. Auteur d'une théologie ubuntu de la réconciliation, il fut ensuite le président de la Commission de la vérité et de la réconciliation, chargée de faire la lumière sur les crimes et les exactions politiques commises, durant l'apartheid, au nom des gouvernements sud-africains, mais également les crimes et exactions commises au nom des mouvements de libération nationale.
C’est ça. L’apôtre Paul en son texte parle du fruit d'un arbre sain. Et il ne décrit qu'un seul fruit, car l'idée ici est celle d'une chaîne, qui n'existe que par des maillons entrelacés. Si un seul maillon est fragile, toute la chaîne sera fragile.
Ces neuf vertus peuvent être cataloguées dans (1) les habitudes mentales - l'amour, la joie, la paix - qui inspirent le disciple à aimer Dieu et les gens, génèrent une profonde joie du cœur, qu'aucune œuvre de la chair ne peut pas produire et créent un sentiment d'harmonie en ce qui concerne Dieu et les gens. (2) Les qualités sociales - la patience, la bonté, la bénignité - qui conduisent à la patience, face aux blessures et aux persécutions, donnent une bonne disposition envers les autres et conduisent à la bienfaisance active. (3) Principes généraux de conduite - la fidélité, la douceur, la tempérance -, qui traduisent des attitudes comportementales, c'est-à-dire être digne de confiance, ne pas défendre ses intérêts avec des ongles et des dents et avoir des désirs et des passions sous contrôle.
Revenant au Sermon sur la montagne, nous trouvons dans Matthieu 5 : 20, que si notre justice ne va pas au-delà de celle des scribes et des pharisiens, nous n'entrerons pas dans le Royaume des cieux.
Cette déclaration, qui est un ordre pour tous les disciples, réunit les deux textes étudiés dans une chaîne d'or. Et pourquoi Jésus présente-t-il les scribes et les pharisiens comme de mauvais exemples ?
Les scribes et les pharisiens ont vécu une religiosité formelle et apparente, sans réelle transformation de la vie, sans conversion. En ce sens, le chrétien doit dépasser cette norme, aller au-delà, changer d'essence, avoir un cœur de chair.
Selon John Stott (1921-2011), théologien et évangéliste anglais, la grandeur du Royaume n'est pas seulement évaluée par la justice conforme à la loi, car l'entrée dans le Royaume devient impossible s'il n'y a pas de comportement qui dépasse la loi elle-même.
En fait, l'apôtre Paul dans Galates 5 : 23 est radicalement clair, disant que contre les vertus exprimées dans le fruit de l'Esprit il n'y a pas de loi. Les scribes et les pharisiens ont dit que la loi contenait 248 commandements et 365 interdictions et ont convenu qu'il était impossible de tout faire. Comment alors dépasser les rabbins ? Simplement parce que nous ne sommes pas limités à la loi de Moïse, mais à la loi de l'Esprit. La justice chrétienne dépasse parce que c'est une justice qui naît du cœur régénéré, est interne et a pour source l'Esprit de Dieu qui habite en nous. C'est le fruit de l’Esprit.

2. La vie du disciple

Ainsi, nous pouvons dire que le caractère du chrétien exprimé dans le Sermon sur la montagne et dans Galates 5 : 22 et 23, traduit la vie du disciple depuis sa nouvelle naissance. Et, Jésus nous a appris que personne n'entrera pas dans le Royaume des Cieux s'il n'est pas né de l'Esprit.
Le but de cette Constitution de la bonne nouvelle du salut est de parler aux esprits et au cœur; marquer le chemin et alerter sur l'impasse lorsque le chrétien choisit d'entrer par la grande porte. Et donc, dans cette Constituition, nous sommes interpellés par la Parole de Jésus sur le mont. Et lorsque nous la recevons et la vivons avec foi, nous sommes transformés dans ce voyage de notre vie vers le Royaume des cieux.
Jésus nous a dit en Matthieu 7 : 21-23. Pas tous ceux qui me disent: Seigneur, Seigneur! il entrera dans le Royaume des cieux, mais celui qui fait la volonté de mon Père, qui est aux cieux. Beaucoup me diront ce jour-là: Seigneur, Seigneur, n'avons-nous pas prophétisé en ton nom? Et, en votre nom, nous n'expulsons pas les démons? et en votre nom n'avons-nous pas fait beaucoup de merveilles? Et alors je leur dirai ouvertement : je ne vous ai jamais connus; éloignez-vous de moi, vous qui pratiquez l'iniquité. 
La condition pour que nous soyons acceptés par Jésus est la vérité de ce qui est professé. Vivez ce qui est prêché. En ce sens, ce qui caractérise le disciple n'est pas l'extériorité de ses actions, si puissantes, expressives ou miraculeuses soient-elles, mais l'obéissance qui traduit une vie moralement féconde et authentique.
Regardons quelque chose d'important, la signification de la sanctification dans l'Ancien Testament, le Nouveau Testament et le développement de ce concept.
Bien que le commandement ait été clairement exprimé dans Lévitique 19 : 2, vous serez saints, parce que moi, le Seigneur votre Dieu, je suis saint. Le kaddish (sanctification) était et est pour les Juifs un cérémonial. Le kaddish a lieu à certains moments de la vie, lors de célébrations et de rituels. Ainsi, dans la cabalat sabat (entrée du sabbat), la sanctification se fait dans le culte familial, dans la nourriture casher, pure, dans les ustensiles utilisés par les prêtres, autrefois dans le temple, aujourd'hui dans les synagogues.
La sanctification chrétienne vient d'une autre perspective : nous sommes définis par Dieu comme des saints. Nous devons alors vivre ce que nous sommes déjà : séparés par Dieu pour le servir, le glorifier, le refléter devant le monde. Nous sommes des saints et nous devons sanctifier toute la réalité environnante avec notre vie sanctifiée et de plus en plus sanctifiante. Ce nouveau concept est clairement expliqué dans 1 Pierre, chapitre 1 : 13-25, mais la deuxième partie du verset 15, nous donne la clé de la réflexion chrétienne sur la sanctification : vous soyez aussi saints dans toute votre conduite.

3. Un exemple

Mais, nous pouvons dire que toute sainteté vient de l’Esprit de Dieu, toute sainteté procède de Dieu. Tous nous, les saints sont les saints de Dieu, les frères de Jésus, les frères en sainteté de notre Seigneur Jésus Christ même. C’est vrai : toute sainteté vient de Dieu, qui en est la source éternelle.
Un exemple pour nous tous. Polycarpe né vers l’anné 70 et mort soit en 155 ou 167, était un disciple direct de l'apôtre Jean et second évêque de Smyrne, aujourd'hui Izmir en Turquie. Un récit de la tradition nous raconte:
À l'entrée de ce saint vieillard dans l'amphithéâtre, tous les chrétiens présents entendirent une voix mystérieuse qui lui disait : 
-- Courage, Polycarpe, combats en homme de cœur ! 
Le proconsul lui demanda : Es-tu Polycarpe ? 
-- Oui, je le suis. 
-- Aie pitié de tes cheveux blancs, maudis le Christ, et tu seras libre. 
-- Il y a quatre-vingt-six ans que je Le sers et Il ne m'a fait que du bien; comment pourrais-je Le maudire ? Il est mon Créateur, mon Roi et mon Sauveur. 
-- Sais-tu que j'ai des lions et des ours tout prêts à te dévorer ? 
-- Fais-les venir ! 
-- Puisque tu te moques des bêtes féroces, je te ferai brûler. 
-- Je ne crains que le feu qui brûle les impies et ne s'éteint jamais. Fais venir tes bêtes, allume le feu, je suis prêt à tout.
De toutes parts, dans l'amphithéâtre, la foule sanguinaire s'écrie : 
-- Il est digne de mort. Polycarpe aux lions ! 
Mais les combats des bêtes féroces étaient achevés ; on arrêta qu'il serait brûlé vif. Comme les bourreaux se préparaient à l'attacher sur le bûcher, il leur dit : 
-- C'est inutile, laissez-moi libre, le Ciel m'aidera. 
Le saint lève les yeux au Ciel et prie. Tout à coup la flamme l'environne et s'élève par-dessus sa tête, mais sans lui faire aucun mal, pendant qu'un parfum délicieux embaume les spectateurs. À cette vue, les bourreaux lui percent le cœur avec une épée. 
Ainsi, nous pouvons dire que le Sermon sur la Montagne constitue un tout qui vise à nous sanctifier au cours de notre cheminement vers le Royaume des Cieux. Et ainsi, étonnés comme les auditeurs de Jésus, sur la montagne, dans Matthieu 7 : 28-29, nous lisons :
Et il arriva que, alors que Jésus terminait son discours, la foule s'émerveillait de sa doctrine, parce qu'il enseignait avec autorité et non comme les scribes.
Tel est le défi posé par Jésus, nous sommes appelés à marcher et à vivre en chrétiens!


Effroyables Jardins est un film français réalisé par Jean Becker, sorti en 2003. Il est adapté du roman éponyme de Michel Quint publié en 2000. Années 1950. Jacques, un instituteur, exerce également sur son temps libre la profession de clown. Tous les ans, ce dernier joue dans la ville où il vivait durant l'occupation allemande. Lucien, son fils, ne comprend pas pourquoi son père, instituteur sérieux, se ridiculise ainsi.

Ce film illustre bien le sermon que nous venons de lire. Nous sommes ensemble, Pr. Jorge Pinheiro.

jeudi 19 janvier 2023

Il n'y a aucune condamnation

L'apôtre Paul nous explique en détache ce que signifie la liberté du chrétien. Voyons voir Romain 8.1-5 

  

«  Il n'y a donc maintenant aucune condamnation pour ceux qui sont en Jésus Christ. En effet, la loi de l'esprit de vie en Jésus Christ m'a affranchi de la loi du péché et de la mort. Car-chose impossible à la loi, parce que la chair la rendait sans force, Dieu a condamné le péché dans la chair, en envoyant, à cause du péché, son propre Fils dans une chair semblable à celle du péché, et cela afin que la justice de la loi fût accomplie en nous, qui marchons, non selon la chair, mais selon l’esprit. Ceux, en effet, qui vivent selon la chair, s'affectionnent aux choses de la chair, tandis que ceux qui vivent selon l'esprit s'affectionnent aux choses de l’esprit « .

 

Dans la lettre de l'apôtre Paul aux romains, nous avons deux blocs de textes: un plus grand, qui est tout le chapitre huit, et dont le thème est la vie sous la loi de l'esprit; et un bloc plus petit (de 1 à 5) qui traite spécifiquement de la vie émancipée par cette loi de l'esprit. 

 

Ces deux blocs nous donnent la ligne de pensée de l'apôtre Paul: la vie émancipée; la vie pleine d'espoir et la vie exaltée. De cette manière, Paul retrace le cours de la vie, dans lequel la grâce triomphe de l'effort humain, et le juste expérimente la libération de l'aliénation.

 

En analysant notre justification par le Dieu éternel, il montre que la libération de l'être humain repose fondamentalement sur la foi, qui est le positionnement, venant de la grâce de Jésus. Cette miséricorde du Dieu éternel ne dépend pas de la loi, car les êtres humains, dans leur nature pécheresse, ne peuvent pas répondre efficacement aux exigences de la loi, qui exprime la sainteté du Dieu éternel. Ainsi, la grâce vient du Christ, qui, dans son amour et son sacrifice, pardonne les péchés des humains. La liberté de la vie chrétienne ne dépend pas de la personne elle-même, ni de ce qu'elle peut faire, mais de ce que le Dieu éternel a déjà fait pour lui.

  

L'amour du Dieu unique a été révélé en Jésus, le Messie, à travers ses enseignements, ses œuvres et sa mort sur la croix. Lorsque nous grandissons dans la grâce et dans la connaissance de Jésus, le Seigneur, nous revêtons son caractère et lui ressemblons. Le caractère de Jésus se révèle en nous à travers les vertus qui donnent le ton de notre communion avec les frères et sœurs de la communauté de foi.

 

Notre communion avec les gens, dans la communauté de foi, se fait par la miséricorde, qui est une relation affective et prudente avec les frères et les personnes blessées et abattues. Quand Jésus a vu la foule, il a été très désolé pour ces gens parce qu'ils étaient affligés et abandonnés, comme des brebis sans berger. 

 

C'est pourquoi nous sommes appelés à la bonté, prêts à faire le bien sans regarder à qui. Nous sommes appelés à l'humilité, dans une attitude serviable. Nous sommes appelés à la douceur, dans une relation sans contrainte pour changer les gens. Nous sommes appelés à souffrir longtemps, avec la volonté d'être tolérants face à la faiblesse des gens. Nous sommes appelés au pardon, car nous sommes pardonnés par le Dieu éternel lorsque nous pardonnons. Et nous sommes appelés à la paix, résultat de la pratique de l'amour, du pardon et de la gentillesse. 

 

C'est ainsi que la communauté de foi montre au monde que la réconciliation et la paix peuvent être réalisées en Jésus. Les décisions prises avec justice et amour construisent une paix qui dépasse la compréhension humaine, même dans les situations de conflit.

 

Nous, créés à l'image et à la ressemblance du Dieu unique, sommes appelés à vivre l'expérience chrétienne comme communauté de foi. Nous pouvons jouir, comme nous sommes égaux, des bénédictions de cette communauté dans les célébrations de notre église. Nous sommes appelés à vivre dans le corps de Jésus pour rejoindre Béziers, la France et le monde.

 

Par conséquent, il n'y a plus de condamnation pour ceux qui sont en Jésus. La loi de l'esprit de vie en Jésus, le Christ, vous a libéré du péché et de la mort. C'est impossible pour l'effort humain, car il est affaibli par l'éloignement du Dieu éternel. Mais ce Dieu unique a envoyé son fils dans une humanité semblable à la nôtre, condamné l'aliénation, le détachement et les mauvaises cibles. Pour que sa justice s'accomplisse en nous qui vivons selon l'esprit. En effet, ceux qui vivent selon l'esprit désirent les choses qui sont de l’esprit.


mercredi 11 janvier 2023

Estados Unidos da América: uma herança

Numa leitura escatológica milenarista, Harriet Stowe considerava que a escravidão não era apenas um pecado do Sul, mas que a culpa era nacional e, por isso, o juízo seria nacional. 


No livro, A cabana do pai Tomás, atacava a consciência nacional escravista na esperança de que uma purificação da alma dos Estados Unidos livrasse o corpo político da vingança divina. 


É interessante que o argumento de Wilberforce na Inglaterra, exposto em suas campanhas, sobre a inviolabilidade do conceito de que todos os homens são iguais, foi usado por Abraham Lincoln no ato de 1863, que aboliu a escravidão nos Estados Unidos. 


Lincoln, cujo mandato se desenrolou em meio à Guerra de Secessão, compartilhava a visão de Wilberforce de que era uma imoralidade possuir outro ser humano e citava o inglês em seus discursos. Com a guerra, veio a vitória do norte e a abolição da escravatura. Finda a escravidão, a discussão sobre a industrialização, os danos humanos, misérias e exclusão que produziam entraram na ordem do dia. Surgiram assim os “protestantes públicos” que, ao contrário dos “privatistas”, falavam de cristianismo social, evangelho social, serviço social.


Expoentes desse pensamento foram Washington Gladden, pastor congregacional de Ohio, o escritor Charles Sheldon, que produziu uma obra até hoje famosa, Em Seus Passos Que Faria Jesus? e o pastor batista Walter Rauschenbusch. 

 

Rauschenbusch (1861-1918) era de origem alemã. Levantou a questão do evangelho social, a partir de uma leitura que combinava a responsabilidade social como o socialismo utópico. Defendeu uma democracia econômica e política e propôs uma atuação através dos sindicatos. 

 

“Nossa economia política tem sido por muito tempo o oráculo de um deus falso. Ensinaram-nos a ver as questões econômicas do ponto da vista dos bens e não do homem. Disseram-nos como a riqueza é produzida e dividida e consumida pelo homem, e não como a vida e o desenvolvimento do homem podem melhorar e serem promovidos pela riqueza material. É significativo que a discussão do consumo da riqueza esteja negligenciada na economia política, contudo a questão humana é a mais importante de todas. A teologia deve ser cristocêntrica, mas a economia política deve tornar-se antropocêntrica. O homem é cristianizado quando põe Deus acima de si próprio, a economia política será cristianizada quando colocar o homem acima da riqueza. É isso que uma economia política socialista faz”, afirmou em Christianity and the social crisis. 

 

No mesmo livro, dizia que “nada dará a classe trabalhadora uma compreensão real de seu status de classe e de seu objetivo final do que a luta permanente para conquistar suas reivindicações mínimas e para eliminar as pressões reacionárias contra seus sindicatos. Nós partimos do princípio de que uma organização fraternal da sociedade não terá força se for apoiada apenas por idealistas. Ela (a organização fraternal da sociedade) necessita da sustentação firme da classe trabalhadora, cujo futuro econômico depende do sucesso desse ideal. A classe trabalhadora industrial é, consciente ou inconscientemente, a força para a realização desse princípio. Assim, aqueles que desejam a vitória, desde um ponto de vista religioso, terão que fazer uma aliança com a classe trabalhadora. Mas o princípio protestante da liberdade religiosa e o princípio democrático da liberdade política levam à vitória através da aliança da classe média, que também deseja a conquista do poder, com a classe trabalhadora; dessa maneira, o novo princípio cristão, que busca uma organização fraternal da sociedade, deve aliar-se para a conquista que ambos querem”.

 

Acho que estou em boa companhia, principalmente quando me lembro de Martin Luther King Jr., pastor e um dos maiores ativistas da causa social em todos os tempos.



vendredi 6 janvier 2023

Gramsci e Tillich

Gramsci e Tillich, mestres de fronteira
Jorge Pinheiro, PhD

 “A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”.

Quando pensamos no Brasil e, por extensão, na América Latina, nos vemos obrigados a pensar a teologia social como alavanca para transformações que confrontem as estruturas de classe que mantêm o status quo deste capitalismo neo-liberal, gerador de excluídos de bens e direitos. Dessa maneira, entendemos a teologia social como geradora de ações culturais, políticas e sociais, desencadeadas pela comunidade de fé consciente e crítica, com vistas à transformação radical, a fim de produzir mudanças estruturais no regime e construir uma nova ordem social tanto brasileira, como latino-americana. A teologia social tem, dessa maneira, como parceira organizações não-eclesiásticas, partidos e organismos de classe de trabalhadores e solidários. E tais ações fazem desta teologia social práxis que leva o cristianismo para além da comunidade de fé, que a faz confrontar desigualdades, exploração e miséria. Tal teologia social terá de confrontar e enfrentar, assim, a oposição dos inimigos da justiça, paz e alegria do povo. 

Por isso, este diálogo entre Antonio Gramsci (1891-1937, o mais importante pensador marxista italiano) e Paul Tillich (1886-1965, o mais importante teólogo alemão do século 20) ganha importância. E nos possibilita caminhar para a teologia social que, levando em conta as assimetrias, mas também as aproximações do pensar político dos dois pensadores, apresenta novas propostas de uma existência social e libertária.  

Gramsci e Tillich têm muito em comum. Ambos foram militantes políticos e fundamentaram parte de suas concepções em Karl Marx. Por isso, consideramos importante ver que aproximações e assimetrias existem em suas elaborações teóricas. Cristianismo, democracia e vida são temas que atravessam seus estudos, e que aqui vamos confrontar. Desejamos, dessa maneira, acrescentar elementos novos numa discussão cada vez mais acirrada: ainda é possível a construção de regimes que favoreçam a plenitude do sentido da vida?

Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também como fruto da instalação de governos nacionalistas no continente, a partir dos anos 1980, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras e latino-americanas, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes.

Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se nesse contexto de garimpagem do marxismo de fronteira, dito não-ortodoxo. Aqui, nos interessa pensar Gramsci em correlação com um filósofo, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento social de Tillich foi durante muito tempo desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou de socialismo religioso.

Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que a busca pelo sentido pleno de vida, que ele vai chamar de socialismo, traduz um anseio que brota da consciência crítica, transformadora, num mundo autônomo e racional. Assim, tal substância profética, ou seja, a consciência crítica e transformadora, se exprime na práxis e, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial. 

Como a linguagem tillichiana é teofilosófica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões profético e profecia? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, da paz e da alegria, que dariam conteúdo, seriam a essência da religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, movimento profético é práxis de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade e à autonomia. Mas, para Tillich, justiça, paz e alegria, ou seja, socialismo, implica em correlação permanente e necessária entre consciência crítica e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do stalinismo, como daquelas correntes que veem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia. É essa preocupação de Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita esse diálogo crítico com Gramsci.  

De Gramsci podemos dizer que recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos, ao falar de estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre o cristianismo, o intelectual e a democracia.

Marx partiu do fato de que o 
Partindo de uma leitura do contexto europeu medieval, Gramsci estudou o papel dos intelectuais católicos: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em política à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do pensamento divergente que ameaça a unidade da Igreja. Mas, na qualidade de orgânico, o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, o catolicismo integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. O catolicismo, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e cristianismo católico, e entre cristianismo católico e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica.

Dessa maneira, as análises de Gramsci rompem com a tradição marxiana, já que a ideologia, mas do que falsa consciência é entendida como elemento cognitivo, concepção de mundo que brota da vida social. Para ele, como concepção de mundo, o cristianismo não seria alienante, mas deve ser entendido como ideologia presente na história. Exemplo disso foi o catolicismo, que possuía valor positivo, era orgânico, e construiu vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças.
 
E se Gramsci se mantém marxiano no que se refere à crítica da transcendência e, por extensão, da natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. Gramsci prepara, assim, o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e Lévi-Strauss e seu "animal simbólico".

Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê o movimento de massas em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que gera a massa orgânica, com dupla ação: de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite. 

Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos dinâmicos das massas estão presentes nos movimentos religiosos do jovem cristianismo, no movimento político da migração dos povos, no movimento religioso da Reforma, no movimento anabatista e no movimento solidário. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, estão presentes em diferentes esferas da cultura, mas sempre como movimentos de liberdade: as massas dinâmicas são parteiras de escravos, de povos, de trabalhadores.

Por isso, segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como algo que já se esgotou, se nos propomos a fazer a crítica consciente e transformadora, pois a justiça não é justificativa ideológica das democracias, nem idealismo progressivo ou sistema de harmonia autônoma. A busca incondicional da justiça dentro do espírito da crítica profética e com os métodos do marxismo transcende o mundo. Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Só se a busca incondicional da justiça levar em conta que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano.

O teólogo da vida deve entender que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. Precisa compreender que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. Por isso, explica Tillich, como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista. 

Por isso, a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. De todas as maneiras, para Tillich e para Gramsci há uma busca comum de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Ou como diz Gramsci, se a política entre intelectuais e povo, dirigentes e dirigidos, governantes e governados, é dada por adesão orgânica, onde a paixão torna-se compreensão e saber, é então que a política se faz representação. E aí se produz o intercâmbio de elementos entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes. E é aí onde se realiza a vida social. Cria-se então o bloco histórico.

Para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em política às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. 

A partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionado pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico.

Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular.

Numa leitura cristã protestante, Tillich considerou a busca pelo sentido pleno de vida produto do desenvolvimento econômico e espiritual, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci. Assim, a busca pelo sentido pleno de vida surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendida a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias modernas de justiça. 

Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas, e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcada por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht. de dezembro de 1931, expõe seu conceito de Estado ampliado: 

“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercidas através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)”.

Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores.

Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política.

Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de Estado ampliado. O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política mais sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade.

O sentido de progresso civilizatório que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de estatolatria, considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo. 

Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política, estado-coerção, a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante, burocracia executiva e policial-militar; e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais: meios de comunicação e de massa. 

E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futuros. Isto só seria possível no início da década de 1950. É exatamente através dos meios de comunicação da alta modernidade, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo as ideologias da classe hegemônica vigente. 

Assim, o Estado é a sociedade política gramsciana. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após seu desenvolvimento histórico que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção. 

O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado. 

Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido pelo tecido hegemônico que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação. 

Assim, a luta pela construção de uma sociedade plena de sentido de vida, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma, o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao sentido pleno de vida será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de sociedade regulada. 

Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o estado-coerção será substituído pelo estado-ético. E esta figura remanescente do estado-coerção, torna mais factível o modelo social voltado para a democracia de bens e direitos e menos utópico em política ao que planejara Marx.
 
Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais possibilitariam o sentido pleno de vida. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxiano? 

Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do estado se dará pela absorção deste pelo estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no estado ampliado e, por isso, não se pode falar de extinção do estado, mas de uma reorganização do estado onde um de seus componentes, está atrofiado por disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso.

Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política. 
correção, ou seja, da democracia. 

Tal compreensão da realidade ocidental no pós-guerra levou Tillich a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como a sua reflexão sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização da vida social plena de sentido, diante do visível abandono dos direitos civis e humanos, assim como a descoberta da existência de Gulags nos países comunistas, se desiludiu. Ou como publicou mais tarde – veja, Paul Tillich, Teologia protestante nos séculos dezenove e vinte:

“O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social”.

Tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade. Assim, alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista de que, em nome da busca pelo sentido pleno de vida, sociedades mergulhassem no totalitarismo, já que não aceitavam a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas-religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental, ao dizer que novos centros de poder podem aparecer levando à separação ou à transformação radical do todo. Isto porque o poder inicia sempre uma nova luta, e o período de determinado império mundial será tão limitado quanto foi o período de paz”. 

E afirmou que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o Reino, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. Assim, falar de teologia da existência significa entender que a busca pela incondicionalidade da justiça e, por extensão, da paz e alegria, traduz a defesa do sentido último do significado profundo das raízes do humano e que, no mundo contemporâneo, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à existência, deve levantar-se como voz profética de um mundo novo.