dimanche 14 avril 2013

Do logos de Heráclito ao logos joanino



De Heráclito a João
Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Logos, no grego 'palavra', foi entendido pelo filósofo grego Heráclito de Éfeso, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)].

Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural inteligente ou racional, o Logos. Considerou o Logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, ditos por ele, antropomorficamente, guerra e paz (ou discórdia e concórdia). Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo.

Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível.

Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.

Mas, exatamente por ser razão e palavra, Logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre Logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações sofísticas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, o pensamento de Sócrates e Platão vai formular explicitamente a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a substância ou essência, fundamento de toda instabilidade acidental da existência aparente.

O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir do pensamento de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, assim, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza expressamente esta transformação quando afirma em sua obra que "O que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?" A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.

O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o Logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o Logos. Assim, o Logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.

A importância do logos

Dentre as inúmeras transformações que surgem com a pólis, a mais importante é a extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.

A palavra deixa de ser o termo ritual e passa a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que irá definir o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética é compreendida como a arte real da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passam a ser submetidas à arte da oratória e as decisões são as conclusões dos debates. A política se torna a arte do domínio da linguagem.  Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamenta na publicidade das manifestações sociais; se distinguem os interesses comuns dos privados, consolidam-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.

Porém, esse desenvolvimento traz uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos de uma cultura, levamos os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos estão expostos a interpretações diversas e a debates apaixonados. Já não era possível se impor só por prestígio pessoal ou religioso... Devia haver o convencimento pela dialética.

A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe em si a possibilidade de uma completa divulgação do conhecimento. Neste momento, a escrita tornara-se pública, não mais estando presente apenas no palácio – como no período micênico. Neste contexto, o saber pode tornar-se igualmente público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deverão ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.

A sabedoria e o logos

Com a consolidação da importância da palavra, o saber passa a ser um bem público. E a sabedoria, tão exaltada por filósofos como Platão, para o qual a sabedoria pertencia ao passado, ofereceu aos seus contemporâneos o amor à sabedoria, à filosofia. Assim, a sabedoria percorreu as veredas da linguagem, da palavra, do discurso, do logos, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Pode-se, em última instância, argumentar que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido, a sabedoria, mesclada à dialética.

Não foi sem resistência que esse percurso foi seguido. A popularização do saber, antes inacessível, foi questionada. Havia uma articulação para que os mitos que chegassem à praça publica e fossem objeto de exame, mas não deixassem de ser um mistério. A sua reformulação produziu um salto no desenvolvimento humano, mantendo seus reflexos até hoje.

Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propõe a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogos, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz. Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.

Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. 1 Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos irrompe enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.

Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que repousa em Jesus, o Cristo, acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filón de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.

Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arqué” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo a Deus, porque é pessoa divina, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.

Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e por isso não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1Coríntios 2.16].

Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo o ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

Notas

1. Enrique Dussel, “El Método de Pensar Latinoamericano: la Analéctica como Ruptura Teórica”, conferência proferida em novembro de 1972, in Introduccion a Una Filosofia de la Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977, pp. 117 a 138.

jeudi 11 avril 2013

A violência da globalização


Um texto datado, mas ainda interessante, no mínimo, para pensarmos tragédias como a situação palestina ou a miséria que clama na Coréia do Norte. Abs, JP.

A violência da globalização
Por Jean Baudrillard


Seria a globalização uma fatalidade? De alguma forma, todas as outras culturas que não a nossa escapavam à fatalidade da troca indiferente. Onde se situará o limiar crítico da passagem ao universal e, depois, ao mundial? Que vertigem será esta que impulsiona o mundo para a abstração da Idéia, e esta outra vertigem que incita à realização incondicional da Idéia?

Porque o universal era uma Idéia. Quando se realiza no mundial, ela se suicida enquanto Idéia, enquanto fim ideal. Como o humano se tornou a única instância de referência e a humanidade imanente a si mesma passou a ocupar o vazio deixado por Deus morto, o humano agora reina sozinho, mas já não tem motivação final. Não tendo mais inimigo, engendra-o do interior e secreta todos os tipos de metástases inumanas.

Conquistas da modernidade e do progresso

Donde a violência do mundial - violência de um sistema que persegue qualquer forma de negatividade, de singularidade, inclusive a forma última de singularidade que é a própria morte - violência de uma sociedade em que estamos virtualmente proibidos de conflito, proibidos de morte - violência que, de certa maneira, põe fim à própria violência e que trabalha para instalar um mundo livre de qualquer ordem natural, seja a do corpo, a do sexo, a do nascimento ou a da morte.

Mais do que de violência, seria necessário falar de virulência. Trata-se de uma violência que é viral - que atua por contágio, por reação em cadeia, e destrói, pouco a pouco, todas as nossas imunidades e nossa capacidade de resistência.

Entretanto, nada está decidido, e a globalização não ganhou por antecipação. Diante desse poder homogeneizante e dissolvente, se vê, em toda parte, levantarem-se forças heterogêneas - não só diferentes, mas também antagônicas. Por trás das resistências cada vez mais intensas à globalização, sociais e políticas, é preciso ver mais do que uma rejeição arcaica: uma espécie de revisionismo dilacerante quanto às conquistas da modernidade e do “progresso”, de recusa não apenas da tecno-estrutura mundial, como também da estrutura mental de equivalência de todas as culturas.

Este ressurgimento assume aspectos violentos, anômalos, irracionais em relação a nosso pensamento esclarecido - formas coletivas étnicas, religiosas, lingüísticas - mas, igualmente, formas individuais de perturbação do caráter ou neuróticas. Seria um erro condenar esses sobressaltos como populistas, arcaicos ou mesmo terroristas. Tudo o que faz um acontecimento hoje o faz contra essa universalidade abstrata - inclusive o antagonismo do islamismo com os valores ocidentais (pelo fato de ser a mais veemente contestação desses valores, é que, hoje, o Islã é seu inimigo número um).

Vingança de culturas singulares

Quem poderia impedir o sucesso do sistema mundial? Certamente não o movimento antiglobalização, que só tem por objetivo frear a desregulamentação. Seu impacto político pode ser considerável, mas o impacto simbólico é nulo. Essa violência é também uma espécie de peripécia interna que o sistema pode superar sem perder o controle da situação.

O que pode impedir o êxito do sistema não são alternativas positivas, são singularidades. Ora, estas não são positivas nem negativas. Não são uma alternativa; são de outra ordem. Não obedecem mais a um juízo de valor nem a um princípio de realidade política. Podem, pois, ser o melhor ou o pior.

Não é possível, portanto, confederá-las numa ação histórica conjunta. Impedem o sucesso de todo pensamento único e dominante, mas não são um contra-pensamento único - elas inventam seu jogo e suas próprias regras do jogo.

As singularidades não são necessariamente violentas, e algumas são sutis, como as da língua, da arte, do corpo ou da cultura. Mas há algumas violentas - como a do terrorismo. É a que vinga todas as culturas singulares que pagaram com seu desaparecimento a instauração desse único poder mundial.

Despeito feroz entre culturas

Não se trata, portanto, de um “choque de civilizações”, mas de um confronto - quase antropológico - entre uma cultura universal indiferenciada e tudo o que, em qualquer área, conserva algo de uma alteridade irredutível.

Para o poder mundial, tão radical quanto a ortodoxia religiosa, todas as formas diferentes e singulares constituem heresias. Por esta razão, estão condenadas a entrar, querendo ou não, na ordem mundial ou a desaparecer. A missão do Ocidente (ou melhor, do ex-Ocidente, visto que há muito deixou de ter valores próprios) é submeter, por todos os meios, as múltiplas culturas à lei da equivalência.

Uma cultura que perdeu seus valores só pode se vingar nos valores das outras. Inclusive as guerras - como a do Afeganistão - visam primeiro, para além das estratégias políticas ou econômicas, a normalizar a barbárie, a obrigar todos os territórios a se alinharem. O objetivo é dominar toda e qualquer região refratária, colonizar e domesticar todos os espaços selvagens, tanto no espaço geográfico quanto no universo mental.

A instalação do sistema mundial resulta de um despeito feroz: o de uma cultura indiferente e de baixa definição em relação a culturas de alta definição; o dos sistemas desencantados, que perderam a intensidade, em relação a culturas de alta intensidade; o das sociedades dessacralizadas em relação a culturas ou formas sacrificiais.

Humilhação contra humilhação

Para tal sistema, qualquer forma refratária é virtualmente terrorista. É o caso ainda do Afeganistão. Que, num território, todas as permissões e liberdades “democráticas” - a música, a televisão, inclusive o rosto das mulheres - possam ser proibidas, e que um país possa tomar o contrapé total do que chamamos de civilização - qualquer que seja o princípio religioso invocado -, tudo isso é insuportável para o resto do mundo “livre”.

Não se considera que a modernidade possa ser renegada em sua pretensão universal. Que ela não seja vista como a evidência do bem e o ideal natural da espécie, que se conteste a universalidade de nossos costumes e de nossos valores - ainda que por algumas mentes imediatamente caracterizadas como fanáticas -, tudo isso é um crime em relação à visão do pensamento único e do horizonte consensual do Ocidente.

Esse confronto só pode ser compreendido à luz da obrigação simbólica. Para compreender o ódio do resto do mundo em relação ao Ocidente, é preciso inverter todas as perspectivas. Não se trata do ódio daqueles de quem se tirou tudo e aos quais nada se retribuiu mas, sim, do ódio daqueles a quem tudo se deu sem que eles pudessem retribuir. Não é, portanto, o ódio da espoliação e da exploração, é o ódio da humilhação.

E é a este que responde o terrorismo do 11 de setembro: humilhação contra humilhação. O pior para a potência mundial não é ser agredida ou destruída, é ser humilhada. E a potência foi humilhada pelo 11 de setembro, porque os terroristas lhe infligiram, então, alguma coisa que ela não pode retribuir. Todas as represálias são apenas um aparelho
de coação física, ao passo que ela foi desfeita simbolicamente.

A guerra responde à agressão, mas não ao desafio. O desafio só pode ser aceito humilhando o outro em resposta (mas, de modo algum, esmagando-o sob bombas, nem trancando-o como cães em Guantânamo).

Saturação da existência

A base de qualquer dominação é a ausência de contrapartida - sempre segundo a regra fundamental. O dom unilateral é um ato de poder. E o “império do bem”, a violência do bem, consiste exatamente em dar - sem contrapartida possível. Consiste em ocupar a posição de Deus. Ou do Senhor, que deixa a vida ao escravo em troca de seu trabalho (mas o trabalho não é uma contrapartida simbólica; portanto, as únicas respostas, afinal, são a revolta e a morte). Deus, pelo menos, dava espaço para o sacrifício.

Na ordem tradicional, sempre existe a possibilidade retribuir - a Deus, à natureza ou a qualquer outra instância, sob a forma do sacrifício. É o que garante o equilíbrio simbólico dos seres e das coisas. Não temos, hoje, mais ninguém a quem retribuir, a quem restituir a dívida simbólica - e é essa a maldição de nossa cultura.

Não que nela seja impossível o dom e, sim, que nela o contra-dom é impossível, visto que todas as vias sacrificiais foram neutralizadas e desmontadas (resta apenas uma paródia de sacrifício, visível em todas as formas atuais da condição de vítima).

Estamos, desse modo, na situação implacável de receber, receber sempre, não mais de Deus ou da natureza, mas através de um dispositivo técnico de troca generalizada e de gratificação geral. Tudo nos é virtualmente dado e, queiramos ou não, temos direito a tudo. Estamos na situação de escravos aos quais se deixou a vida e que estão ligados por uma dívida insolúvel.

Tudo isso pode funcionar durante muito tempo graças à inserção na troca e na ordem econômica mas, num dado momento, a regra fundamental a vence, e a essa transferência positiva corresponde, inevitavelmente, uma contratransferência negativa, uma ab-reação violenta a essa vida cativa, a essa existência protegida, a essa saturação da existência. Tal reversão assume a forma de uma violência aberta (o terrorismo faz parte dela), ou da negação impotente, característica de nossa modernidade, do ódio de si e do remorso - todos paixões negativas que são a forma degradada do contra-dom impossível.

Veredicto e condenação da sociedade

Aquilo que detestamos em nós, o obscuro objeto de nosso ressentimento, é esse excesso de realidade, esse excesso de poder e de conforto, essa disponibilidade universal, essa realização definitiva - o destino que, no fundo, o “grande inquisidor” reserva às massas domesticadas em Dostoievski. Ora, é exatamente isso que os terroristas criticam em nossa cultura - donde a repercussão que o terrorismo encontra e o fascínio que exerce.

Tanto quanto no desespero dos humilhados e dos ofendidos, o terrorismo se baseia, por exemplo, no desespero invisível dos privilegiados da globalização, em nossa própria submissão a uma tecnologia integral, a uma realidade virtual esmagadora, a um domínio das redes e dos programas que traça, talvez, o perfil involutivo da espécie inteira, da espécie humana tornada “mundial” (a supremacia da espécie humana sobre o resto do planeta não seria à imagem da supremacia do Ocidente sobre o resto do mundo?). E esse desespero invisível - o nosso - é irremediável, pois decorre da realização de todos os desejos.

Se o terrorismo decorre, pois, desse excesso de realidade e de seu prazo impossível, dessa profusão sem contrapartida e dessa resolução forçada dos conflitos, então a ilusão de extirpá-lo como um mal objetivo é total, dado que, sendo como é, em seu absurdo e em seu contra-senso, ele é o veredicto e a condenação que esta sociedade emite em relação a si mesma.

Tradução: Iraci D. Poleti
Jean Baudrillard é filósofo, autor, dentre outros livros, de “La Guerre du Golfe n’a pas eu Lieu” (1991), “Le Crime Parfait” (1994) e “L’Esprit du Terrorisme” (2002), todos editados pela Galilée. Este texto foi extraído de seu novo ensaio, “Power Inferno” (ed. Galilée, Paris, 94 páginas).

mardi 9 avril 2013

ABORTO



Você deve ver o depoimento da jovem ex-diretora da clínica de abortos, mas assistir também o filme, antigo, mas forte e verdadeiro, já postado. Todos devem ver, debater e pensar sobre esta questão ética e humana, sem importar credo ou situação social. JP.

Documentário sobre o Aborto - Grito Silencioso

Você deve assistir o filme, antigo, mas forte e verdadeiro e ver também o depoimento da jovem ex-diretora da clínica de abortos. Todos devem ver, debater e pensar sobre esta questão ética e humana, sem importar credo ou situação social. JP.


dimanche 7 avril 2013

O Dia do Senhor


hwhy-Mwy

O dia do Senhor

O hoje, o kairós e o escatológico

Jorge Pinheiro


Há uma expressão no Antigo Testamento que têm sido motivo de análise e discussão por exegetas e especialistas: O Dia do Senhor. Esta expressão, que muitas vezes é tomada apenas em seu sentido escatológico, futuro, faz parte do linguajar teológico e pastoral. Por isso, queremos aqui refletir sobre ela e ver como nos apresenta uma abrangência que não se limita ao seu conteúdo escatológico.
Assim, teremos um objetivo em nossa análise: focalizar a expressão hebraica “yom Iaveh”,  Dia do Senhor, enquanto conceito teológico presente em textos do Antigo Testamento. Vamos partir do texto de Joel 2.1-3, que nos serve de referência, e procurar compreender os sentidos teológicos implícitos na expressão, conforme se encontram nos textos de Isaías 2.5, Isaías 58.13-14 e Joel 1.15 e em seus correlatos gregos no Novo Testamento: João 4.21-23, Gálatas 4.4 e 2 Pedro 3.7.
Como instrumental teórico, ou seja, como hermenêutica, utilizaremos uma (1) leitura trinitária dos textos: como e onde se expressam as Pessoas de Deus no dia do Senhor; (2) uma exegese dos conceitos nos idiomas originais numa análise comparativa com os os textos de Qumran. E uma (3) leitura contextualizada, levando em conta a história da vida cotidiana do povo judeu no tempo de Jesus.
E vamos delimitação o nosso tema, a fim de alcançar maior profundidade na análise. A análise estará circunscrita ao objeto de pesquisa, Dia do Senhor, descrito anteriormente. Por isso, não analisaremos em profundidade, nem vamos expor questões teológicas presentes nas expressões Ruach, Massiah e Iaveh, embora tais expressões apareçam no desenvolvimento de nosso estudo.

TOCAI a buzina em Sião, e clamai em alta voz no monte da minha santidade. Perturbem-se todos os moradores da terra, porque o dia do Senhor vem, ele está perto; Dia de trevas e de tristeza; dia de nuvens e de trevas espessas, como a alva espalhada sobre os montes, povo grande e poderoso, qual desde o tempo antigo nunca houve, nem depois dele haverá pelos anos adiante, de geração em geração. Diante dele um fogo consome, e atrás dele uma chama abrasa; a terra diante dele é como o jardim do Éden, mas atrás dele um desolado deserto; sim, nada lhe escapará”. Joel 2.1-3. 

Introdução

Mwy
yom é um conceito da teologia hebraica, relativo a tempo, presente no Antigo Testamento. Yom não deve ser entendido apenas como uma palavra, mas como conceito que dependendo do contexto em que é utilizado pode significar um instante, um momento especial ou um longo ou distante período de tempo. Mas, geralmente, é traduzido por dia, ano, tempo.

Assim, pode expressar o período de iluminação natural, em contraste com o período de escuridão. O dia é formado por oposto que se complementam, o período da tarde (ereb, tarde ou layla, noite) e da manhã formam uma unidade de 24 horas. Quando este dia luz ou dia tarde e manhã se refere ao dia hoje dizemos em hebraico mwyh hayom.

É importante dizer que o yom de luz no mundo hebraico não era medido em horas, mas de acordo com os fenômenos naturais e as atividades cotidianas. As duas refeições do dia, eram balizadoras das atividades do dia luz. E o dia ereb, tarde, ou dia layla, noite, eram divididos pelas três vigílias. Mas, além desse dia dual, havia o dia ano, e nesses casos o conceito vem no plural. Mas dia podia ser também um período indeterminado de tempo.

A palavra dia em português deriva do latim vulgar, dies, e de forma genérica significa o tempo em que a Terra está clara, ou seja, o intervalo entre uma noite e outra. Mas significa também a medida de tempo que nosso planeta ou qualquer corpo celeste leva para descrever uma volta em torno de seu eixo de rotação.

Temos, assim, em português, os dias ou os tempos quotidianos, o dia-a-dia. Os dias litúrgicos cristãos, que ao contrário dos primeiros são separados, escolhidos para a realização de alguma coisa especial. Podemos dizer, por exemplo, que o dia de ano-bom é o primeiro dia do ano, o 1º de janeiro; que o dia de Reis é 6 de janeiro, comemoração católica da adoração do Menino Jesus pelos Reis Magos (Baltasar, Melchior e Gaspar). Mas temos, ainda, um dia sem data, um dia de juízo, de julgamento final, de clamor, confusão e desgraça.  

I.          Dia luz, dia tarde e manhã

Dia de adoração e serviço


Então, em nossa análise, vamos começar por este dia luz, dia novo que começa a cada entardecer. Dia de tarde e manhã. Conforme nos diz Isaías, 2.5:

Venha, ó descendência de Jacó, andemos na luz do SENHOR! O Dia do SENHOR”.

Mas, se formmos ao Novo Testamento vemos uma idéia correlata em João 4.21-23:

Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem (oti ercetai wra), em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem

No texto de Lucas, Jesus fala com a samaritana que chegaria uma wra, e usa a palavra grega que deu a expressão hora em português (que podemos traduzir também por tempo ou mesmo dia) em que Deus exigiria de nós adorá-lo no Espírito e não mais segundo as tradições, fossem elas samaritanas ou judaicas.

E para falar dessa hora luz, desse dia luz, devemos entender como o Espírito de Deus se faz presente nele e atua em nossas vidas. Por isso, vamos ver rapidamente como hebreus e cristãos viam a ação do Espírito.

A expressão hebraica ruach e seu correlato grego pneuma significam literalmente vento ou sopro. Normalmente traduzimos esses termos, quer do hebraico ou do grego, por “espírito” ou por Espírito” com letra maiúscula. Quando optamos pela tradução “espírito” queremos nos referir ao espírito humano ou a um espírito, que pode ser um demônio ou um anjo. Optamos pela tradução “Espírito”, quando o texto se refere ao Espírito Santo ou Espírito de Deus. Assim, em 2Tesssalonicenses 2:8 significa sopro (“a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua boca”). E em Eclesiastes 8:8 indica o princípio essencial da vida, nosso fôlego de vida. Mas, ao nascermos de novo, através da aceitação pela fé do sacrifício de Jesus na cruz do calvário, o Espírito Santo passa a habitar em nós, como explica Paulo em 1Coríntios 3. Em Romanos 1:4, 2Coríntios 3:17 e 1Pedro 3:18 a expressão grega pneuma nos remete à uma das Pessoas da Trindade, ao Espírito Santo de Deus.

O Espírito Santo nos manuscritos encontrados em Qumran, que faziam parte da biblioteca dos essênios, piedosa comunidade judaica que vivia no deserto na época de Jesus, aparece de forma explícita como Pessoa trinitária.[1] Por isso, podemos dizer que nos textos de Qumran encontramos elementos conceituais da doutrina do Espírito Santo.[2] E é interessante ver que um manuscrito ao falar da promessa da autoridade profética, restauradora da justiça, apresentada na figura do Messias, diz que “O Espírito Santo desceu sobre o seu Messias”. 2Q 287 (3.13). “Céu e terra pertencerão ao meu Messias (...) e tudo o que neles há. Ele não se afastará dos mandamentos dos santos (linha 6) e o seu Espírito estará sobre os humildes e os crentes serão fortalecidos por seu poder”. 4Q 521 (fragmento 1, coluna 2).[3] E a Regra da Comunidade afirma que: “Ele purificará a carne de todas as obras ímpias pelo Espírito Santo e aspergirá sobre ela o Espírito de verdade como água de purificação”(IQS 4.21).[4]

Estamos, dessa maneira, diante de um dia onde se deve andar na luz do Espírito da verdade. É o dia tarde e manhã que, sucessivamente, Deus cria para nós: é dia de adoração. Este é um dia particular, me envolve como pessoa, mas é cotidiano, são todas as horas do dia, todos os dias. Mas deve ser comunitário, porque implica em reunião, porque é assim que se adora e se  serve no Espírito da verdade. É por excelência o dia da igreja.

II.        Dia kairós

Dia de salvação e proclamação


Quando falamos de kairós falamos plenitude, falamos de máxima extensão, brilho e glória. Plenitude é tempo de beleza, é um momento de graça onde a possibilidade humana se torna cheia da força divina. Mas este kairós é diferente de todos os tempos anteriores e futuros, pois aponta para a possibilidade de liberdade e salvação. E a esperança que o kairós gera é maior que a simples ilusão humana, pois esta esperança tem o próprio Cristo por fundamento, já que aqui a graça gera a plenitude. Assim, o kairós é o dia da plenitude, de grande magnitude e beleza. É um dia especial de irrupção da liberdade e da salvação. É um dia diferente, é particular, marca as nossas vidas e não se repete. É o dia do Senhor Jesus.

Se desviares o teu pé do sábado e de fazer a tua vontade no meu santo dia, e se chamares ao sabado deleitoso, e santo dia do Senhor, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, nem pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falar as tuas próprias palavras. Então te deleitarás no Senhor, e te farei cavalgar sobre as alturas da terra, e te sustentarei com a herança de teu pai Jacó; porque a boca do Senhor o disse”. Isaías 58.13-14.

No Antigo Testamento, o dia kairós era simbolizado pelo sábado, que traduzia a idéia de regeneração da vida e, por isso, de liberdade e salvação. Com o tempo, os hebreus perderam esse sentido maior do sábado e passaram a ver nele apenas um aspecto, o da separação e santificação, que sem dúvida está presente.

No Novo Testamento, o dia kairós ressurge com toda sua força simbólica na Pessoa de Jesus, que encarna na plenitude dos tempos, na época certa de liberdade e salvação.

Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”. Gálatas 4.4.

Por isso, ele traz a plenitude da salvação para nossas vidas através de um dia especial: o dia de nossa conversão. Esse dia acontece apenas uma vez em nossas vidas. Ele é definitivo e faz com que nossas vidas se dividam em antes de depois dele.

João testificou dele, e clamou, dizendo: Este era aquele de quem eu dizia: O que vem depois de mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu. E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça”. João 1.15-16.

Por isso, o dia kairós é um dia particular, pessoal, de encontro com o Salvador. É o dia do Cristo: é único, é transformador. Produz regeneração que se projeta na eternidade. Esse é o meu dia, da particularidade da minha salvação. Eu sei o que ele significa. É cheio de beleza, graça e força. E por isso eu testemunho sobre ele.

III.       Dia escatológico

Dia de juízo e justiça


Mas há um dia escatológico, de consumação do tempo e da história, quando os seres humanos que não aceitaram a alforria e a salvação pelo kairós do Cristo estarão sob a justiça e juízo do Deus eterno. Este é o grande e  terrível dia do Deus Pai, que abre um tempo novo, o yom eterno. 

O Deus eterno é Deus do tempo e da história. Isso significa que é Deus quem atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela. Essa meta pode ser compreendida de várias maneiras, como vitória sobre os poderes demoníacos, bem-aventurança, chegada do reino de Deus e, mais além da história, criação de novos céus e nova terra, ou seja, de uma realidade nova e superior.

Ah! aquele dia! porque o dia do Senhor (hwhy Mwy yom Iaveh) está perto, e virá como uma assolação do Todo-poderoso”. Joel 1.15.

A rainha do meio-dia (uma referência de Jesus à rainha de Sabá) se levantará no dia do juízo com esta geração, e a condenará; porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. E eis que está aqui quem é mais do que Salomão”. Mateus 12.42.

No profetismo antigo muitos eram os símbolos para expressar a esperança escatológica e o Dia do Senhor era talvez o de maior impacto. No profetismo vétero-testamentário a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais e as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, pois o sofrimento do Filho da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais arrependidas. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma. Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo.

Mas os céus e a terra que agora existem, pela mesma palavra se reservam como tesouro. e se guardam para o fogo, até o dia do juízo, e da perdição dos homens ímpios”. 2 Pedro 3.7.

Nós evangélicos comprometidos com as missões mundiais vivemos a promessa desse dia quando fazemos missões, pois elas têm um caráter universal e visa criar uma consciência humana em Cristo. Esse tempo do Deus Pai alcança plenitude na história, porque a história aponta para o reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço.

No protestantismo temos outros símbolos de esperança escatológica de igual força e trancendência, como os apocalípticos da revelação joanina. De todas as maneiras, o Dia do Senhor, quer nos símbolos vétero-testamentários, quer na revelação apocalíptica neo-testamentária, traduz a idéia de que o círculo trágico do espaço será superado e que a história teve um princípio e terá um fim. E isso tem um significado especial para nós, já que o apóstolo Paulo também fala de “nova criatura”.

Com o Dia do Senhor o monoteísmo profético se apresenta como monoteísmo da justiça, porque os falsos deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca-se inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade de poder das comunidades submetidas a esses deuses espaciais não pode fazer justiça diante da vontade de poder de outras comunidades submetidas a outros deuses espaciais. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro de uma nação e para as próprias nações. O politeísmo, que é a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula a universalidade implícita na idéia de justiça. Este é um clamor do Dia do Senhor presente no monoteísmo profético.

Mas a ameaça profética do Dia do Senhor também pende sobre joio que se esconde em meio ao povo eleito, de ser rechaçado por o Eterno, por causa da injustiça. A tragédia e a injustiça são próprias dos falsos deuses do espaço, mas a realização histórica e a justiça o são do Pai eterno que atua no tempo para criar um dia eterno.[5] Por isso, o dia escatológico é um dia universal. Terrível para aqueles que rechaçaram a plenitude da graça e o viver no Espírito.

Considerações finais

 

A idéia do kairós nasce da relação com o eterno. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante, mas o dia kairós não pode existir num estado de eternidade no tempo. O dia kairós traduz a idéia de que o Deus eterno é, em sua essência, aquele que faz a revolução no tempo sem, contudo, fixar-se nele.

Assim, a realização plena do dia de hoje, como do kairós, se encontra além do tempo. Toda transformação exige uma compreensão do momento vivido, que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Toda transformação deve projetar-se na eternidade, deve entender que há na suave presença do Espírito, hoje, em nossas vidas, uma complementaridade entre este kairós de alforria e salvação e a eternidade que se abre com o fim dos tempos.

É a partir dessa compreensão do que significa o Espírito no tempo presente, que voltamos ao kairós, construído enquanto necessidade e responsabilidade que não podem ser adiadas ou recusadas. Kairós significa tempo concluído e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a irrupção da eternidade no tempo. O kairós não é um momento qualquer, não é uma parte do curso temporal: é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do nosso destino.

Considerar um momento de nossa vida como kairós, considerar o tempo do Cristo como uma decisão inadiável e inevitável é considerá-lo enquanto tempo que reúne o hoje da adoração no Espírito da verdade com o tempo do Pai eterno, lá onde tempo e história deixam de existir. Essas raízes do dia do Senhor mantêm entre si uma relação trinitária, que é mais do que simples justaposição. Por isso, o Dia do Senhor é tempo do Espírito, de adoração e serviço, é tempo do Cristo, de salvação e proclamação, é tempo do Pai eterno, de juízo e justiça.



[1]Conforme Escrito de Damasco; Regra da Seita caverna 1; 4 Q 414 (textos da caverna 4, segundo versão de R.H. Eisenmann e M. Wise, The Dead Sea Scrolls Uncovered, 1992); e Rolo da Guerra, caverna 1. A Regra da Seita 4: 21-22 diz: “Ele derramará sobre eles o Espírito da Vida como água purificadora para a purificação de todos os males”. Klaus Berger, op. cit., p. 69.
[2]Em 4 Q 521, fragmento 1, coluna 2, linha 6, o texto afirma, depois de nomear o Messias: “E o seu Espírito vai parar sobre os humildes, e ele restabelecerá os fiéis com seu poder”. Klaus Berger, Qumran e Jesus, op. cit., p. 105.
[3]Klaus Berger, idem, op. cit., pp. 90-92, 96-97.
[4] M. Burrows, More Ligth on the Dead Sea Scrolls,  Londres, Secker & Warburg, 1958, p. 60.
[5] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 40-42. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954.