De Heráclito a João
Prof. Dr. Jorge Pinheiro
Logos, no grego 'palavra', foi
entendido pelo filósofo grego Heráclito de Éfeso, como o princípio supremo de
unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia
Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)].
Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as
coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma
lei natural inteligente ou racional, o Logos. Considerou o Logos dotado de dois princípios internos
contrários a operar, ditos por ele, antropomorficamente, guerra e paz (ou discórdia
e
concórdia).
Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção
da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo.
Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma
lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E
segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o
inteligível.
Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.
Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.
Mas, exatamente por ser razão e
palavra, Logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é
pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre Logos e
physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas
argumentações sofísticas, encontre-se melhor determinado o que se compreende
por verdade, o pensamento de Sócrates e Platão vai formular explicitamente a
questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a
si mesmo, a substância ou essência, fundamento de toda instabilidade acidental
da existência aparente.
O que em Heráclito se delimitava
como o encontro da harmonia passa a ser, a partir do pensamento de Sócrates e
Platão, uma procura: nasce, assim, a filosofia como um desejo de conhecimento.
Aristóteles caracteriza expressamente esta transformação quando afirma em sua
obra que "O que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente
procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o
ser?" A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática,
platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.
O conceito razão relaciona-se a
três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas
aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser.
Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de
existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento,
impossível de penetrar. Pari passo à essência, o Logos correlaciona
mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e
fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros
seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o Logos. Assim,
o Logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não
significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da
finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.
A importância do logos
Dentre as inúmeras transformações
que surgem com a pólis, a mais importante é a extraordinária preeminência da
palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.
A palavra deixa de ser o termo
ritual e passa a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou
melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que irá definir o orador vencedor
dos embates dialéticos (dialética é compreendida como a arte real da discussão:
as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral
passam a ser submetidas à arte da oratória e as decisões são as conclusões dos
debates. A política se torna a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates e das
discussões, a polis se fundamenta na publicidade das manifestações sociais; se
distinguem os interesses comuns dos privados, consolidam-se as práticas abertas
e o domínio público, a base social da estrutura.
Porém, esse desenvolvimento traz
uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos de uma
cultura, levamos os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos estão
expostos a interpretações diversas e a debates apaixonados. Já não era possível
se impor só por prestígio pessoal ou religioso... Devia haver o convencimento
pela dialética.
A palavra constituiu-se no
instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe em si a possibilidade
de uma completa divulgação do conhecimento. Neste momento, a escrita tornara-se
pública, não mais estando presente apenas no palácio – como no período
micênico. Neste contexto, o saber pode tornar-se igualmente público, deixando
de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as
idéias deverão ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.
A sabedoria e o logos
Com a consolidação da importância
da palavra, o saber passa a ser um bem público. E a sabedoria, tão exaltada por
filósofos como Platão, para o qual a sabedoria pertencia ao passado, ofereceu
aos seus contemporâneos o amor à sabedoria, à filosofia. Assim, a sabedoria percorreu
as veredas da linguagem, da palavra, do discurso, do logos, da dialética: este caminho
tornou-se característico da cultura grega. Pode-se, em última instância,
argumentar que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo
perdido, a sabedoria, mesclada à dialética.
Não foi sem resistência que esse
percurso foi seguido. A popularização do saber, antes inacessível, foi
questionada. Havia uma articulação para que os mitos que chegassem à praça
publica e fossem objeto de exame, mas não deixassem de ser um mistério. A sua
reformulação produziu um salto no desenvolvimento humano, mantendo seus
reflexos até hoje.
Na contemporaneidade
latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propõe a dialética analógica da alteridade, a
abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos
permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogos,
mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que
leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e
confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode
escutar sua voz. Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais
além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade,
isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como
ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de
estatuto, tornando-se ontologia negativa.
Em sua reflexão sobre a superação
das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma
que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E
se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da
descoberta de um mais-além do mundo. E como em grego aná significa mais além,
e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O
método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro,
porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de
história distinta, mas não diferente. 1 Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno,
embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos irrompe enquanto interpelante indo
mais além da compreensão, ele é análogo.
Essa interpretação de Dussel
repousa na compreensão do Logos joanino, que repousa em Jesus, o Cristo, acima
da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo,
e ainda da filosofia judaica expressa em Filón de Alexandria. Nesse sentido, se
antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na
tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos
joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a
utilize como ponte para falar à cultura de sua época.
Há ainda uma ponte com o
pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e
de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arqué” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o
Logos de João se apresenta como análogo. Análogo a Deus, porque é pessoa
divina, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.
Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um
primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo,
que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem
nova. Embora, este Logos eterno
se reflita através de nossos pensamentos e por isso não possa existir um ato do
pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e
1Coríntios 2.16].
Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há
sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo
assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que
a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.
Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça
do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso
pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao
destino e que sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.
Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é
saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar os
valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência.
A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a
existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo
extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter
intrínseco, sua liberdade.
É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento
humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade
só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira,
ao contrário do que pensavam os gregos, todo o ser humano possui uma
potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a
potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos
– mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.
Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos
num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais
profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar
colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos.
Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.
Notas
1.
Enrique
Dussel, “El Método de Pensar Latinoamericano: la Analéctica como Ruptura
Teórica”, conferência proferida em novembro de 1972, in Introduccion a
Una Filosofia de la
Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977, pp. 117 a 138.
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