samedi 24 janvier 2015

Política i religió

Yoffe ShemTov

És Doctor postgrau en Ciències de la religió de la Universidade Metodista de São Paulo (2011) i la Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doctor en Ciències de la religió de la Universidade Metodista de São Paulo (2006), Màster en Ciències de la religió de la Universidade Metodista de São Paulo (2001) i llicenciat en teologia per la Baptista teològica College a São Paulo (2001). Professor a temps complet a São Paulo Bautista col legi teològica i periodista professional. Actes a l'àrea de Ciències de la religió, especialitzada en la relació entre política i religió; filosofia, teologia i cristianisme.


lundi 19 janvier 2015

O menino e o rifle

Fomos chamados à liberdade. O que significa isso? Bem, talvez falar de corvos, gaviões e passarinhos ajude...

O menino e o rifle
Jorge Pinheiro

Em 1965, Pier Paolo Pasolini, um dos gênios do cinema italiano, filmou Gaviões e passarinhos, história que vi como metáfora sobre liberdade e consciência política. Numa estrada vazia, um senhor (Totó) e seu filho (Ninetto Davoli) encontram um corvo que fala. O corvo os transforma em dois monges franciscanos e eles são obrigados a pregar para gaviões e passarinhos. O próprio Pasolini diria:

“Nunca criei um filme tão desarmado, frágil e delicado como esse. Ele não se parece com meus filmes anteriores e não se parece com nenhum outro filme... Seu surrealismo tem pouco a ver com o surrealismo histórico, mas fundamentalmente com o surrealismo das fábulas”.

O filme é uma parábola sobre a crise do socialismo, representada pelo corvo, na Itália dos anos 50. “Totó e Ninetto representam os italianos inocentes, que não se envolvem na história, que conquistam a primeira noção de consciência ao encontrar o marxismo no semblante do corvo”, afirmou Pasolini.

Ter vivido parte da infância em fazenda, no sul de Minas, foi um privilégio que marcou minha vida, não somente fornecendo memórias para a velhice, mas plasmando conteúdo que amo e defendo: a liberdade.

Talvez seja essa compreensão telúrica da liberdade, que fez de mim, já na alta maturidade, batista, e me permitiu construir uma ponte entre o pensamento liberal inglês e o socialismo religioso de Paul Tillich.

Voltemos à minha infância. Meu tio Ary tinha uma Winchester 44 na casa da fazenda. E eu olhava para aquela arma com respeito e paixão. Eu e milhares de pessoas mundo afora.

Os rifles Winchester 44, conhecidos como papo amarelo, foram populares no interior do Brasil e nos Estados Unidos: símbolo de uma época, como a pistola Colt e os cavalos quarto de milha.

Conta-se que Lampião, quando começou sua vida guerrilheira, usava uma Winchester 44, que os sertanejos chamavam de cruzeta. Segundo o historiador  Frederico Pernambucano de Mello:

Lampião tinha uma paixão pelo rifle cruzeta, não somente por ser arma de estréia, mas também por ter permitido criar um processo de aceleração de tiros. Ele conseguiu transformar a arma em um modelo automático. A transformação permitia que o rifle, quando usado, produzisse um clarão que, segundo os sertanejos, alumiava como um lampião.

A Winchester era mágica e eu amava ver meu tio usando-a contra alvos imóveis: latas velhas e garrafas. Mas, certa tarde, um gavião começou a piar e a fazer círculos no céu. O gavião, accipiter nisus, é uma ave de rapina pequena, de cauda comprida e vôo certeiro. Pia forte, assustando suas presas, geralmente pequenos pássaros e pintos soltos na pastagem.

E era isso mesmo que aquele gavião estava planejando: atacar os pintinhos que, juntos com a galinha, corriam de um lado para o outro, em pânico.

Meu tio pegou a Winchester, que reinava numa das paredes da sala, e me chamou. Fomos para a varanda e ele começou a seguir os círculos do gavião. Esperou. Quando o gavião mergulhou em direção aos pintos ele atirou.

E eu vi o gavião explodir em penas.

Onde nos leva a liberdade quando não temos consciência do que ela significa? A vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem.

Ao reconhecer a existência de uma situação-limite, de ameaça à vida e à existência, devemos entender que:

(1) não podemos virar as costas ao mundo; (2) aquilo que é eterno deve ser expresso em relação à situação presente; (3) a realidade da graça deve ser expressa com ousadia e risco; (4) e o poder transformador do Evangelho deve expressar uma fé não superficial, que vai à raiz.

Por isso, como na parábola de Pasolini, somos chamados a pregar para gaviões e passarinhos. Somos livres em Cristo: chamados a viver o desafio incondicional de realizar a verdade e fazer o bem.




samedi 17 janvier 2015

Olhos azuis

Memórias de Jorge Pinheiro, no início dos anos 1960, quando adolescente, em Copacabana.

Os olhos azuis de Jussara

“Já que (...) não posso infundir a fé no coração de ninguém, não posso, nem devo obrigar ou coagir ninguém a isso, pois Deus opera isso sozinho e vem habitar anteriormente no coração. Por isso, se deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela: nós certamente temos o ius verbi, mas não a executionem. Cabe-nos pregar a palavra, mas as conseqüências pertencem unicamente ao agrado de Deus”. Lutero, reformador do século 16.

Rua Santa Clara. Posto 4


O sol está de derreter asfalto. Dá para fritar ovos na avenida Atlântica. Tio Walter joga peteca com os amigos. E Lolita, minha jovem tia, de maiô cavado nas costas, lembra a personagem de Nabukov, ao menos na minha cabeça de adolescente.

-- Luís, passa Dagelle nas minhas costas.

Obediente, gosto dessa mistura do cheiro do bronzeador com a maresia, cumpro à risca, devagar, a ordem recebida.

Meus primos Marcus e Júlio, à beira d’água, fazem seus castelos de areia, que a arrebentação, feroz realidade, desfaz um a um. Como formigas insistem, gritam e dançam, quando uma onda maior alisa a areia.

Maria, minha mãe, fez para mim um calção que é uma bandeira. Pegou uma blusa estampada de rosas grandes e como costura muito bem fez um calção lindo, o mais colorido de toda a praia. Mas caiu bem.

E minha turma, uma gang atribulada, quase todos do Externato Duque de Caxias, elogiou. Minha namorada, Jussara, me agarrou pelo braço e saímos... Eu com ela, ela com o rebelde dela.

Jussara tem 14 anos, faz balé e mora na rua Serzedelo Correia. Eu tenho 16 e fui aluno de latim do professor Pompílio da Hora no Atheneu São Luís, no Catete. O velho Pompílio me adorava, eu era o melhor aluno de latim que ele tinha. Mas, certa vez, me expulsou da sala. E me fez sair pela janela, aos gritos:

-- Você não é digno de sair pela porta.

Pulei. E quando já estava fora, me fez voltar à sala, com um ensinamento estranho:

-- Não viva de tal maneira, que possam dizer para você: “Puxa, nunca imaginei que você fizesse isso”.

Pompílio, primeiro negro brasileiro a ser nomeado embaixador na África, dando lições de transgressão a seu pupilo.

Jussara me agarra pela cintura, rindo e apontando para o mar. A gang brinca de boto furando as ondas...

Morena de olhos azuis, ela não é bonita, é linda. Minha vida toda se resume nisso: futebol de areia todas as tardes depois das quatro, toda televisão que dá para ver, muito livro e Jussara para me levar ao cinema. E saímos na maior pinta. Eu de rancheira e camisa de ban-lon branca e ela de vestido de fustão rodado. Depois do cinema, comemos waffles ali na avenida Nossa Senhora de Copacabana. 

Os anos 60 começam a desabrochar. Lá em casa, Walter e Lolita deram adeus ao JK, um pouco preocupados com os ares que sopram. Tio Walter prefere o Lott, mas o povo vai de Jânio. O jeitão do magrela não me agrada. É o homem da caspa de talco, do sanduíche de mortadela e da Vila Maria, em São Paulo.

Toda minha família sempre foi juscelinista, até o tio Walter que é austríaco e veio para cá no meio da guerra. Magro, um metro e noventa, cabelos lisos e negros, foi atleta do Flamengo. Remava. Foi capataz de fazenda. Levou um tiro de um peão, na barriga. Casou-se com minha tia Iracema, que era estilista e dona de loja no centro. Depois da morte de Iracema veio Lolita, filha de mãe espanhola e pai italiano. Bailarina. É vinte anos mais nova que o Walter. E doze anos mais velha do que eu. É amiga, confidente, tia e, às vezes, mãe. Esta última função é a que menos gosto.

Alguns anos depois da morte de meu pai, Walter e Lolita me adotaram. Os dois filhos, Marcus e Júlio, vieram mais tarde.

Hoje, tio Walter tem loja de moda, um Jaguar 53, usa tanga na praia, um escândalo que Lolita aprova, e joga religiosamente peteca com os amigos domingo de manhã aqui no Posto 4, em Copacabana.

-- No que você está pensando? Está tão calado – pergunta Jussara.

-- O azul dos teus olhos é mais bonito que o azulão besta do mar.

-- Bobo!

-- É verdade. Prefiro esse azul aqui àquele lá.

-- Bobo duas vezes. Aquele lá é maior. Olha, nem fim tem...

-- É, mais o teu eu posso levar comigo.

-- Só se eu deixar...

-- E você deixa?

-- Depende...

-- De que?

-- Ué, para onde?...

-- Quero o azul dos teus olhos como farol, que baila, na ilha, no meio do mar...


-- Puxa, então eu deixo.




vendredi 16 janvier 2015

Socialismo religioso e marxismo

Em tempos de eleição todos nos perguntamos: e o que o socialismo tem a ver com o cristianismo? É possível um socialismo religioso? No início do século passado um teólogo alemão também se fez esta pergunta. E para respondê-la voltamos a ele.

Socialismo Religioso e Marxismo
Paul Tillich e suas relações com o pensamento de Karl Marx
Jorge Pinheiro, PhD

As doutrinas de Marx e dos marxistas sempre foram discutidas com profundidade como parte da fundamentação teórica do socialismo religioso. Na maioria dos casos, como resultado disso, muitos religiosos rejeitaram o marxismo, enquanto outros o aceitaram parcialmente ou até mesmo transformaram essencialmente as doutrinas de Marx. Terá mudado esta situação? Teria aumentado a distancia entre o marxismo e o cristianismo? [Paul Tillich, A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, p. 267].

Para Paul Tillich, é importante que o olhar lançado nas profundezas não seja turvado, que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio e do nada de uma simples tecnificação do mundo. Assim, o espírito religioso estaria vivo no movimento socialista, enquanto vibração religiosa que circula através das comunidades. E essa santificação da vida cultural no socialismo, para o teólogo, é uma herança cristã, que lhe transmite coragem e vida.

Ao buscar as raízes antropológicas do socialismo, Tillich achou um aliado nos textos do jovem Marx, especialmente nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, publicados por J. P. Mayer e Siegfried Landshut, dois colaboradores do Neue Blätter für den Sozialismus, jornal socialista religioso co-editado por Tillich [Franklin Sherman, Tillich’s Social Thought: New Perspectives, Christian Century, 25/02/1976, pp. 168-172].

Assim, Tillich descobre o Marx humanista e profeta, que contrasta com o Marx da maturidade, voltado para a leitura econômica da realidade. Tillich, porém, resiste à tendência de lançar um contra o outro, afirmando que o Marx real deve ser visto no contexto de seu próprio desenvolvimento. 

Mas, há uma razão para se fazer a crítica teológica do marxismo, e esta é exatamente a impressionante analogia estrutural existente entre a interpretação profética e a interpretação marxiana da história.

Para Tillich, a resistência ao impacto da catástrofe histórica é tarefa profética, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança. Nesse contexto, o princípio profético envolve um julgamento e relaciona este julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto da existência. Nesse sentido, o espírito da profecia leva, sob o capitalismo, ao princípio protestante. O que fica óbvio, em situações-limite, que ameaçam a vida. A situação do proletariado não é algo opcional, que podemos considerar ou não. Em A Era Protestante [p. 194] diz que devemos nos perguntar, se “o socialismo não representa certo tipo religioso especial, originado no profetismo judaico que transcende o mundo dado e vive na expectativa de uma ‘nova terra’ — simbolizada na sociedade sem classes, numa época de justiça e paz”.

O princípio profético e o marxismo partem de interpretações capazes de ver sentido na história. Para essas duas leituras da realidade, a história vai na direção de um alvo, cuja realização dará sentido a todos os eventos vividos.

E se a história tem um fim, tem também um começo e um centro, onde o sentido da vida se torna visível e possibilita a tarefa de interpretação, tanto do profeta como do militante marxista. Assim, para o profetismo e para o marxismo, o conteúdo básico da história encontra-se na luta entre o bem e o mal.

As forças do mal são identificadas como injustiça, mas podem ser derrotadas.

Esta interpretação cria nos dois casos certa atmosfera escatológica, visível na tensão da expectativa e no direcionamento para o futuro, coisa que falta completamente em todos os tipos de religião sacramental e mística. O profetismo e o marxismo atacam a ordem vigente da sociedade e a piedade pessoal como expressões do mal universal num período específico [A Era Protestante, p. 268].

Ora, há um desafio ético, apaixonado, como afirma Tillich, das formas concretas de injustiça, que levanta um protesto, o punho ameaçador, contra aqueles que são responsáveis por este estado de coisas. Assim, o espírito profético e o marxismo colocam os grupos governantes sob o julgamento da história e proclamam a destruição desses grupos.

Tanto o profetismo como o marxismo acreditam que a transição do atual estágio da história em direção a uma época de plena realização se dará através de uma série de eventos catastróficos, que culminará com o estabelecimento de um reino de paz e justiça.

Dessa maneira, o espírito profético e o marxismo são portadores do destino histórico da humanidade e agem como instrumento desse destino por meio de atos livres, já que a liberdade não contradiz o destino histórico. 

A analogia estrutural entre o espírito profético e o marxismo não se limita à interpretação histórica, mas se estendem à própria doutrina do homem. É uma semelhança, inclusive, que vai além de uma cosmovisão profética do homem, que se apresenta como doutrina cristã do homem.

O homem, para o marxismo, não é o que deveria ser, sua existência real contradiz seu ser essencial.

Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 escreve: "quanto mais produz o operário com seu trabalho, mais o mundo objetivo, estranho que ele cria em torno de si, torna-se poderoso, mais ele empobrece, mais pobre torna-se seu mundo interior e menos ele possui de seu". Ao partir de sua preocupação central, o estudo da economia política de seu tempo, Marx diz que "a miséria do operário está em razão inversa do poder e da grandeza de sua produção". Mais produz, maior é a sua miséria.

Assim, a produção não faz apenas do homem mercadoria, a mercadoria humana, o homem sob forma de mercadoria, mas o faz também ser espiritual e fisicamente desumanizado... Se o desenvolvimento das forças produtivas ao mesmo tempo em que desenvolve as possibilidades humanas cria a reprodução da desumanidade, evidenciam-se os limites antropológicos e existenciais de tal desenvolvimento, já que toda relação social não se dará apenas através de uma elevação espiritual, mas de movimentos de deixam em aberto as possibilidades para a própria destruição do humano.

A idéia da queda está presente no marxismo. Já que se o homem não caiu de um estado de bondade original, caiu de um estado de inocência primária. Alienou-se de si mesmo, de sua humanidade. Transformou-se em objeto, instrumento de lucro e quantidade de força de trabalho.

Para o cristianismo, como sabemos, o ser humano alienou-se de seu destino divino, perdeu a dignidade de seu ser, separou-se de seus semelhantes, por causa do orgulho, da desesperança, do poder.

O cristianismo e o marxismo concordam que é inviável determinar a existência humana de cima para baixo, por isso a existência histórica é determinante na construção da antropologia.

Mas a analogia entre cristianismo e marxismo vai mais longe ainda. Vêem o homem como ser social, e que por isso o bem e o mal praticados não estão separados de sua existência social.

O indivíduo não escapa dessa situação. Faz parte do mundo caído, não importando se a queda se expressa em termos religiosos ou sociológicos. Tem a possibilidade de fazer parte do novo mundo, não importando se o concebemos em termos de transformação supra-histórica ou infra-histórica [A Era Protestante, p. 269].

Dessa maneira, a idéia de verdade tanto no cristianismo como no marxismo vai além da separação entre teoria e prática. Ou seja, a verdade para ser conhecida deve ser feita. Vive-se a verdade.

Sem a transformação da realidade não se conhece a realidade. Donde a capacidade de conhecimento depende da situação de conhecimento em que se está. E apoiando-se no apóstolo Paulo, Tillich explica que só o “homem espiritual” consegue julgar todas as coisas, da mesma maneira aquele que participa da luta do “grupo eleito” contra a sociedade de classe consegue entender o verdadeiro caráter do ser.

Assim, com a deformação da existência histórica, praticamente em todas as esferas, torna-se muito difícil a percepção da condição humana e do próprio ser, por isso a presença da igreja e do proletariado na luta é o lugar onde a verdade tem mais condições de ser aceita e vivida.

O auto-engano e a produção de ideologias surge como inevitáveis em nossas sociedades carentes de sentido, a não ser naqueles pequenos grupos que enfrentam suprema angústia, desespero e falta de sentido. A verdade então aparece e pode ser vivida, porque os véus ideológicos foram rasgados.

Mas, alerta Tillich,

a verdade pode se transformar num instrumento de orgulho religioso ou de vontade de poder político. Em tudo isso o cristianismo e o marxismo estão juntos em oposição ao otimismo pelagiano ou de harmonia em relação à natureza humana [A Era Protestante, p. 269].

As diferenças com o marxismo


Segundo Tillich, não podemos ver o marxismo como se fosse uma coisa do passado, quando aceitamos o espírito profético enquanto socialistas religiosos.

O socialismo religioso, se quiser continuar a ter sentido não pode se transformar numa justificativa ideológica das atuais democracias, nem num idealismo progressivo ou num sistema de harmonia autônoma. O socialismo religioso dentro do espírito do profetismo e com os métodos do marxismo é capaz de entender e transcender o mundo atual [A Era Protestante, p. 274].

Mas até que ponto a metodologia marxista e uma hipotética conquista do poder político poderia dar sentido à vida? Na verdade, por ser marxista, tal metodologia não entende que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano. Por isso, o alerta de Tillich, sobre as diferenças entre espírito profético e marxismo, cresce em importância e deve ser ressaltado.

“O socialismo religioso sempre entendeu que as forças demoníacas da injustiça, do orgulho e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica (...).O socialismo religioso acredita que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as meras estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano.” [A Era Protestante, op. cit., p. 271].

Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do homem na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista”. [Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São Paulo, ASTE, 1999, p. 193].

Por isso, considera que a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida.

Assim, para o socialismo religioso, proposto por Paul Tillich, o momento decisivo da história não é o surgimento do proletariado, mas o aparecimento do novo sentido da vida na automanifestação divina.

Em artigo publicado no Die Tat, Monatsschrift für die Zukunft deutscher Kultur, em 1922, e republicado em 1948 em inglês com o título de Kairós I em Main Works/ Hauptwerke, IV, Tillich diz: “Sob todos os aspectos, o socialismo religioso quer aprofundar a crítica, trazer à tona as questões últimas e decisivas; ele se faz mais radical e mais revolucionário que o socialismo, porque vê a krisis do ponto de vista do incondicionado.” [Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l´Université Laval, Paris, Genebra, Québec, 1992, p. 159].

Essa diferença tem extrema importância, mas de nenhuma maneira – pensa o teólogo -- impede a inclusão de elementos básicos da doutrina marxiana da história e do homem no cristianismo profético.

Tillich afirmou, em junho de 1949, não duvidar de que as concepções básicas do socialismo religioso fossem válidas, pois apontavam para o modo político e cultural de vida pela qual a Europa poderia ser reconstruída. Mas não estava seguro de que a adoção dos princípios do socialismo religioso fosse de fato uma possibilidade num futuro próximo [Além do Socialismo Religioso, artigo publicado no Christian Century em 15/06/1949].

Para ele, em vez de um kairós criativo, via um vazio que só poderia ser feito criativo se rejeitasse todos os tipos de soluções prematuras, e não se afundasse na esperança nula do sagrado. Esta visão levou a uma diminuição de sua participação em atividades políticas. Na verdade, sua frustração se deveu à impossibilidade de influenciar no pós-guerra na tentativa de produzir uma abertura entre Leste e Oeste, que possibilitasse a unificação da Alemanha. 

Além disso, o repúdio às liberdades civis e aos direitos humanos nos países comunistas desiludiu quase todos seus companheiros que sonharam com a possibilidade do socialismo religioso.

O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social”. [Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, p. 200].

E tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade, pressagiando uma era de escuridão [Além do Socialismo Religioso, artigo citado].

Assim, Tillich alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista, de o socialismo transformar-se em totalitarismo, já que não aceitava a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que os socialistas religiosos defendiam.

Por isso, só podemos falar de socialismo religioso quando entendemos que para Paul Tillich socialismo religioso é aquele em que a religião traduz a defesa do significado profundo das raízes do ser humano.