samedi 2 novembre 2013

Alves, o futebol e o estupro


Um texto, quiçá, politicamente na contra-mão, de um mestre do protestantismo. Coisa de gênio. JP.




Vontade de Eudokia: Na qual Deus deleita-se com prazer em realizar um fato e com desejo de ver alguma coisa feita. Esta vontade, embora não se relacione com o propósito de fazer algo, mas sim com o prazer de fazer algo, contudo corresponde àquilo que será realizado com certeza, tal como acontece com a vontade decretória (Sl.115:3; Is.44:28; Is.55:11).

Sobre o futebol e o estupro
Rubem Alves

Já contei do meu primo Nilo, aquele que morreu por causa de seu amor ao Botafogo: bebia para comemorar quando Botafogo ganhava, bebia para apagar a tristeza quando o Botafogo perdia. Mas, de repente, me veio uma situação para a qual não encontrei resposta: "E quando o Botafogo empatava, o que é que o Nilo fazia?".

Depois de muito meditar conclui que, quando o Botafogo empatava, o Nilo bebia dobrado, porque não existe coisa mais chata que jogo que termina empatado. Jogo empatado é feito transa não consumada, os dois na cama, uma coisa emocionante tem de acontecer, os dois se esfregam, o tempo todo, pelejando para ver se pinta alguma emoção, mas tudo é inútil pedindo desculpas ao outro, sem saber o que dizer e fazer. O jeito é beber...

A partida terminou empatada. Os dois times broxaram. Não adianta dizer que o espetáculo coreográfico foi maravilhoso, que os times exibiram técnica de rara beleza. Ninguém vai ao futebol para ver beleza. Beleza em futebol só é bonita quando o time da gente ganha. Futebol não é concerto. É pra sofrer e fazer sofrer: um espetáculo depravado, perverso, onde o orgasmo acontece sobre o sado-masoquismo. Ninguém assiste a um jogo de futebol pôr razões estéticas. O tesão do futebol se encontra, precisamente, na possibilidade de fazer o outro sofrer.

Pois o que é um gol? Um gol é um estupro. O prazer do gol é o prazer de ter estuprado o adversário, de ter metido a bola da gente no buraco dele contra a vontade dele. Uma partida de futebol é uma tentativa de estupro estilizada. Vai um time levando a bola, a bola tem de estar bem cheia, dura, vai o jogador ludibriando as tentativas de defesa, passando a bola no meio das pernas, o outro time faz tudo para evitar, fecha os buracos, todos lutando, não querem que a bola entre no lugar mais sagrado do seu time, aquele buraco guardado pelo goleiro, vem o chute potente, a bola vai, o goleiro se estira, inutilmente, a bola entra. Gol! O estupro aconteceu.

A torcida grita de prazer. É o orgasmo. E geme a torcida do estuprado: qualquer penetração violenta dói muito. Mas o prazer do estuprador está precisamente nisso: é o sofrimento do outro que lhe dá uma medida da sua potência. Nada mais broxante para o estuprador que encontrar uma vítima que não ofereça resistência, que se abra toda e até goste. A tentativa de estupro terminaria na hora. O estuprador ficaria broxa. O mesmo com o futebol. É a resistência ao estupro que dá ao estuprador a medida de sua macheza. Cada prazer de gol é prazer de um estupro bem sucedido.

Rubem Alves
nasceu em Boa Esperança, Minas Gerais, em 1933. Bacharel em Teologia — Seminário Presbiteriano de Campinas, SP. Mestre em Teologia — Union Theological Seminary, NY, USA, é doutor em Filosofia pelo Princeton Theological Seminary, NJ, USA. É, também, psicanalista pela Associação Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Foi professor junto à UNICAMP, adjunto e titular da Faculdade de Educação, livre-docente pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e Diretor da Assessoria de Relações Internacionais daquela Universidade. Publicou diversos livros, dentro os quais destacamos "O que é a Religião?", "Filosofia da Ciência", "Conversas com quem gosta de ensinar", "Ghandi: A política dos gestos poéticos", "A alegria de ensinar", além de vários livros infantis.

O texto acima foi publicado no jornal "Correio Popular", Campinas, edição de 18-06-1998. Colaboração de Ricardo A. Bacci.

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