A COSMOGONIA JUDAICA E O CONCEITO
ESPAÇO-TEMPO EM GÊNESIS UM
Jorge
Pinheiro, PhD
Aos olhos de Hitler e de seus
fiéis, conforme descreve Raphaël Draï [La
Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris,
Presses Universitaires de France, 1966, p.1], existia um perigoso pensamento
judaico, caracterizado por sua essência maléfica, inspiradora da física de
Einstein, da literatura de Kafka, da música de Schoenberg e da psicanálise de
Freud.
Deixando de lado os delírios
hitlerianos, podemos dizer que há um criativo pensamento judaico, que através
dos séculos soube combinar Torah e
conhecimento, ética e epistemologia. Nosso propósito é, numa primeira
aproximação, mostrar que os estudos judaicos dos conteúdos de Gênesis Um
produziram uma epistemologia que interliga o conceito espaço/tempo em Gênesis
Um com a teoria da relatividade. Essa dialética tem especial importância para a
teologia, já que a partir dela podemos entender melhor a literalidade poética de
Gênesis Um.
No começar Deus criando o fogoágua e a terra.
E a terra era lodo torvo e a treva sobre o rosto do abismo
E o sopro-Deus revoa sobre o rosto da água.
[Tradução de Augusto de
Campos in Bere’shith, A Cena da Origem,
SP, Perspectiva, 1988, p. 45].
O desafio maior para quem analisa
significações é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a
linguagem pode levar a uma solução oposta àquela se pretende. Considerar o
simbólico como abstrato e irrelevante é, em última instância, separar signo e
objeto. Assim quando um texto passa a ser apenas e somente um conjunto fechado
costumamos dizer que compreendemos o referido texto. Mas ao fazer isso, na
verdade, eliminamos a possibilidade de restaurar sua intenção original e de
ultrapassar a letra para captar o sentido primeiro de seu autor. Logicamente,
esse midrash tem como ponto de
partida, e exige como garantia, a compreensão do primeiro discurso.
Em novembro de 1942, o poeta e
crítico Ezra Pound afirmava que “o mistério profundo da vida é descobrir porque
os outros não compreendem aquilo que se escreve e diz. A coisa parece simples e
clara ao escritor, mas outros o tomam em sentido diferente. E se gastam anos
para saber porque e como” [Ezra Pound, Lettere
1907-1958, Milão, Feltrinelli Editore, 1980, p. 7].
Logicamente, como autor e
crítico, Pound falava de hermenêutica em seu sentido laico, que não implica na
inesgotabilidade do texto sagrado. Produto não inspirado, esse texto, fruto da
inteligência e arte de um homem, pode ser percorrido por outro homem em sua
totalidade, arrancando do discurso poético os elementos lógicos que lhe deram
constituição, interpretando-o com tal maestria e clareza quanto poderia fazê-lo
seu próprio autor. Mas mesmo assim, como alerta Pound, isso pode transformar-se
em tarefa de anos.
Interpretar o texto
bíblico, decifrá-lo, arrancar dele significações é um desafio que não se resume
a um homem ou a um curto período de anos. É nosso pressuposto que Gênesis Um
enquanto palavra/ordem do Deus criador apresenta mais conteúdos do que é
perceptível na leitura de toda uma geração. Aqui há uma dialeticidade que
permanecerá no equilíbrio de seus contrários, sem solução ou síntese enquanto
houver história: a revelação do que é perfeito dá-se através de um instrumento
imperfeito, a linguagem humana. Nossa necessidade histórica de interpretar
nasce daí, dessa inadequação entre significante e significado.
“A tarefa do intérprete
consiste, pois, na explicitação da mensagem divina, através do raciocínio bem
dirigido. As conclusões a que se chega nada acrescentam ao significado do
texto, pois já estavam contidas ali desde sempre; embora para ele sejam novas,
uma vez que diferem do que está escrito, em
si mesmas não o são, porque estavam gravadas no subsolo do texto que se
interpretou. Contudo, sendo a Bíblia obra de um ser infinito, as interpretações
jamais se esgotam. Cada novo corte no texto aprofunda o seu sentido, mas é
sempre possível avançar mais. Elas se sucedem através do tempo, porém, por mais
surpreendentes que pareçam, têm a garantia de se situarem no mesmo campo
inicial”. [Renato Mezan, Freud: A Trama
dos Conceitos, SP, Perspectiva, 1982, p. 342].
Exatamente, por isso, parto
do pressuposto de que a teologia judaica nos últimos mil e novecentos anos
apresenta uma hermenêutica bastante criativa do Gênesis Um. Essa hermenêutica
ou midrash não ficou restrita aos círculos rabínicos, mas fez parte da tradição
e da cultura do judaísmo através dos séculos. Escritores, artistas e cientistas
judeus utilizaram esses conhecimentos em seus campos de trabalho. Einstein
conhecia essas fontes, em parte desconhecidas para o mundo cristão, mas ricas e
cheias de significados para todo intelectual judeu. Por isso, esta releitura da
teoria do caos tem como roteiro a cosmogonia judaica e as idéias centrais da
teoria da relatividade.
Albert Einstein era judeu,
acreditava em Deus criador, mas não aceitava o conceito bíblico de Deus
pessoal. Foi um sionista militante durante toda sua vida, a ponto de em 1952
lhe ser oferecida a presidência de Israel. Não aceitou. Estava casado com a
física. “As equações são mais importantes para mim porque a política é feita
para o presente, ao passo que uma equação é algo para toda a eternidade”.
[Stephen W. Hawking, Uma Breve História
do Tempo, RJ, Rocco, 1988, pp. 240-241].
DO TZIMTZUM AO PROCESSIO DEI AD
EXTRA
Apesar de seus matizes, o
judaísmo mostrou uma coerência em relação à hermenêutica de Gênesis Um, a
defesa da criação ex nihilo. Assim, o recuo de Deus para permitir que surgisse
o vazio, o nada, e nele o universo finito, é desenvolvido na teoria da
contração, em hebraico tzimtzum. Essa
teoria formalizada pelo rabino Luria (1534-1572) é uma das concepções mais
surpreendentes do pensamento judaico. Isaac Luria, um dos maiores expoentes da
tradição mística no judaísmo, nasceu no Cairo, mas desenvolveu seu ministério
em Safed, na Palestina.
A expressão tzimtzum significa originariamente
concentração, mas acabou sendo entendida como retirada. Segundo Scholem, Luria
partiu de textos do Midrash, onde encontramos que Deus concentrou sua Shekiná,
sua presença divina, no Santo dos Santos, assim todo seu poder retraiu-se num
único ponto. É assim que surge a expressão tzimtzum.
[Exod Raba ao Êx 25:10, Lev. Raba ao Lv
23:24; Pessikta de Rab Kahana, Ed. Buber 20 a; Midrasch Schir Ha-Schidim, Ed. Griinhut (1899), f.
15b, citado por Gershom Scholem, A
Mística Judaica, SP, Perspectiva, 1972, p. 263].
"O que aconteceu antes do começo dos tempos para que houvesse um começo?" Até que Isaac Louria se interessasse por essa questão, o Deus das religiões só interessava desde que ele se manifestasse pelos homens. A Deus pré-criação não era uma preocupação nem um grande problema, de acordo com Charles Mopsik1.
"Como Deus criou o mundo? Como um homem que se concentra e contrai a respiração, para que o menor possa conter o maior. Assim, concentrou sua luz em uma mão, à sua medida, e o mundo ficou na escuridão, e nessa escuridão ele esculpiu as pedras e esculpiu a pedra ”, explica Isaac Louria2. Louria concebe assim a primeira manifestação de Deus. Nahmanide, um cabalista do século XIII, imaginou um movimento original de contração, mas até Louria, essa idéia nunca havia se tornado um conceito cosmológico fundamental, observa Gershom Scholem.
"A principal originalidade da hipótese lurânica é que o primeiro ato da divindade transcendente - o Ain Sof, o Infinito - não é" um ato de revelação e emanação, mas, pelo contrário, um ato de ocultação e restrição.
Esta tese parte da idéia de que a transcendência divina, o Ain Sof, não deixa espaço para a criação, porque não é possível imaginar que seja um domínio que ainda não esteja nele, pois esse domínio , então, contradiz o infinito de Ainn Sof. Conseqüentemente, a criação só é possível pela "retirada de Deus em si mesmo", ou seja, pelo tzimtzum pelo qual Deus contrai ou se concentra em si mesmo para permitir algo que não é o Ain Sof que existe.
Essa contração ou concentração cria o vazio, ou seja, o espaço dentro do qual o cosmos ocorre e é organizado aos poucos, desdobrando-se por toda uma série de mundos entrelaçados1. Parte da divindade é retirada, a fim de deixar espaço para o processo criativo do mundo, uma retirada que precede toda emanação, segundo Louria.
A tradição talmúdica já envolvia tzimtzum. Assim, de acordo com o Talmude, Deus contratou em si mesmo para encontrar acomodação em um único lugar, o Santo dos Santos no templo de Jerusalém. Mas Isaac Louria dá ao tzimtzum o significado oposto, observa Scholem: "Não se trata de concentrar o poder de Deus em um único local", mas de sua retirada de um local".
O lugar de onde Deus se retira consiste apenas de um "ponto", comparado ao seu infinito, mas esse ponto vazio, esse ponto espacial, inclui o mundo e todos os seus graus de existência, tanto espirituais quanto corporais, segundo Louria. É o espaço primordial, chamado tehiru, de Louria, um termo retirado do Zohar.
É a partir dessa concepção que o Ain Sof é esclarecido na teoria lurianiana. O Ain Sof, segundo Louria, inclui imediatamente dois aspectos fundamentais: o da misericórdia, o aspecto masculino, e o do Julgamento, o aspecto feminino. Ambos estão nele desde toda a eternidade. Mas um deles, o aspecto do julgamento (din), não tem uma localização adequada: é dissolvido como sal no oceano de pura misericórdia. O julgamento é imperceptível lá, "como grãos de poeira infinitesimal perdidos em um abismo de compaixão sem limites".
Primeiro movimento no Ain Sof, indo para a emanação e a criação dos mundos, esses minúsculos grãos de julgamento, dissolvidos a ponto de serem desprovidos de qualquer realidade adequada, esses grãos de julgamento são coletados e condensados.
Esse grau zero de manifestação é equivalente à passagem do nada ao ser, observa Charles Mopsik: "criação ex nihilo (yéch méayin), aqui designa a lembrança do julgamento, seu surgimento ou manifestação".
O ser, dotado de julgamento, que emerge primordialmente do nada e que constituirá a estrutura dos mundos, está na fonte de todo rigor e toda severidade, para Louria. Essa emergência imediatamente leva a uma retirada do poder da misericórdia, que constitui as "massas de água" do oceano primitivo, a saber, o Ain Sof. Essa retirada do oceano da misericórdia dá lugar a quatro mundos sucessivos: o mundo da emanação, o mundo da criação, o mundo da formação, e finalmente o mundo da manufatura, ou seja, o mundo atual. Ao se retirar, Deus deixa como vestígios de ondas em uma praia, vestígios que Louria assimila aos reflexos da luz da misericórdia, uma espécie de resíduo de infinito luminoso em um universo limitado pelo poder restritivo do julgamento.
Infelizmente, as duas expressões,
concentração e retirada, que deveriam ser entendidas como complementares, já
que Deus se retira e então concentra a sua luz sobre este ponto, passa a
dividir os estudiosos em dois grandes grupos: os que defendem o tzimtzum como base para a doutrina da creatio ex nihilo e também para aqueles
que defendem a doutrina da emanação (em hebraico atsilu) ou processio Dei ad
extra.
Dessa maneira, o próprio Luria,
apesar de partir de uma expressão que naturalmente deve levar à creatio ex nihilo, torna-se o principal
expositor dentro da espiritualidade judaica do processio
Dei ad extra, que tem por base não um processo no tempo, mas uma estrutura
da realidade, enquanto emanação, criação, formação e ação. Assim, para esses
rabinos, níveis inferiores de realidade emanaram de níveis superiores que, por
sua vez, tiveram origem em Deus. Dentro dessa concepção há um midrash, a teoria
do vaso quebrado, que trabalha com a hipótese de que o mundo foi feito de
remanescentes de mundos anteriores, que Deus havia destruído. Uma conhecida
história rabínica explica esse processo como o desprender de uma chama de carvão
da roupa de Deus.
“No princípio (Gênesis 1:1), a
vontade do Rei começou a gravar signos na esfera superior. Do recesso mais
oculto, uma negra chama brotou do mistério do ein sof, o Infinito, como um novelinho de massa informe, como que
inserido no aro dessa esfera, nem branca nem preta, nem vermelha nem verde, de
nenhuma cor. Somente depois de distender-se como um fio, produziu ela cores
para luzir em si. Do âmago da chama, jorrou uma fonte da qual brotaram cores e
se espalharam sobre tudo embaixo, oculto na ocultação mais misteriosa do ein sof. Mal rompeu ela, inteiramente
irreconhecível, seu círculo de éter, sob o impacto da irrupção, um ponto
oculto, superno fulgiu da irrupção final. Aquém desse ponto está excluído todo
conhecimento e por isso ele é chamado reschit,
princípio, a primeira palavra do Todo”. [O Princípio, Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor), in J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, SP, Perspectiva,
1968, p. 605].
Apesar de sua riqueza teológica,
não estaríamos longe da verdade ao classificar a doutrina da emanação como um
panenteísmo, que define o mundo material como o desdobramento de Deus em
diferentes níveis. E porque o mundo existe dentro de Deus, os defensores do processio Dei ad extra consideram
necessário descobrir o que há de divino, ou seja, de misericórdia, nos fenômenos do cotidiano.
Se entendermos, porém, a teoria
do tzimtzum, como a relação dialética
de dois movimentos, o da retirada e o da concentração ficará mais fácil
aproveitar os estudos de Luria. O tzimtzum
explica o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o
universo finito. Como Deus é infinito, sem o tzimtzum não haveria o nada no qual pudesse produzir a estrutura
espaço/tempo de uma criação separada.
É interessante notar, que se por
um lado a dialética da autocontração e concentração divinas deu origem ao mundo
material, o choque entre o movimento restritivo e a transbordante misericórdia de Deus
criou também a possibilidade do mal. Nesse sentido, a cosmogonia judaica, vê a
criação em primeiro lugar como consciente autolimitação e na seqüência como
misericórdia e julgamento. E como julgamento é entendida a imposição de limites,
ele faz parte da misericórdia, que se expressa pela primeira vez como criação de
Deus. Em outras palavras: se o mal é uma probabilidade que surge da dialética
misericórdia divina e retração, o julgamento passa a ser inerente a tudo na criação, já
que todas as coisas estão determinadas enquanto limites.
A tradição do debate sobre
a creatio ex nihilo é antiga no
pensamento judaico. Na verdade, podemos dizer que começa a ser realizada no
segundo século. Por isso, não é de estranhar que encontremos reflexões
profundas sobre Gênesis Um nos séculos posteriores. Assim, em um dos textos
mais representativos do pensamento caraíta, movimento medieval de retorno à
letra da Escritura, considerado por muitos um protestantismo judeu de coloração
pietista, a “Explanação dos Mandamentos”, de Aha Nissi ben Noah de Bassorá, que
ensinou em Jerusalém na segunda metade do século IX, lemos:
“No primeiro dia, Deus
criou sete coisas: o céu, a terra, as trevas, a luz, a água, o abismo e o vento
(Gn.1:1-12). Primeiro criou tohu e bohu (a solidão e o caos), dos quais
surgiu a terra (Gn.1:1-2). Criou as trevas: ‘Ele formou a luz e criou as
trevas’ (Isaías 45:6). Criou o vento, conforme a palavra: ‘e criou o vento’.
Criou a água, pois com a criação da terra havia água. Criou o abismo, para que
a água tivesse uma profundidade e uma submersão. Criou a luz (Gn.1:3). Para a
criação do mundo foram necessárias quatro coisas: a ordem, o trabalho, a
determinação e a proclamação” [Nissi ben Noach, Explanação dos Mandamentos, in J. Guinsburg, op. cit., p.309].
Nesse texto aparentemente tão simples, encontramos dois conceitos muito
importantes: tohu e bohu fazem parte da criação e para que
haja criação é necessário ordem.
Outro grande teólogo judeu,
que fez oposição ao pensamento caraíta, foi Saadia Gaon (892-942). Influenciado
pela efervescente teologia do Islã e pelo pensamento helenístico clássico, Gaon
combateu a presença heterodoxa, de tendência maniqueísta, os remanescentes de
Filo e a crítica gnóstica. Seu texto sobre a doutrina da creatio ex nihilo é de uma profunda beleza, apesar de apresentar
imperfeições normais ao conhecimento da época, como, por exemplo, sua visão
geocêntrica. Mas, de forma brilhante enfrenta opositores bem parecidos aos que
encontramos hoje em dia.
“Aqueles que acreditam na eternidade do mundo
procuram provar a existência de algo que não tem começo nem fim. Por certo,
nunca depararam com uma coisa que percebessem, pelos sentidos, sem ser começo
nem fim, mas procuram estabelecer sua teoria por meio de postulados da razão.
Semelhantemente, os dualistas empenham-se em provar a coexistência de dois
princípios separados e opostos, cuja mistura fez que o mundo viesse a ser. Sem
dúvida, nunca testemunharam dois princípios separados e opostos, nem o pretenso
processo da mistura, mas tentaram suscitar argumentos derivados da razão pura
em favor de sua teoria. De maneira similar aqueles que acreditam numa matéria
eterna consideram-na como um hilo, isto
é, algo em que não há originalmente qualidade de quente ou frio, de úmido ou
seco, mas que se transforma por uma determinada força e assim produz aquelas
quatro qualidades. Indubitavelmente, seus sentidos nunca perceberam uma coisa
carente de todas essas quatro quantidades, nem jamais perceberam um processo de
transformação e a geração das quatro qualidades como é sugerido. (...) Assim
sendo, é claro que todos concordam em admitir alguma opinião concernente à
origem do mundo que não tem base na percepção sensorial”. [Saadia Gaon, Criação Ex-Nihilo in J. Guinsburg, op.
cit., p. 316].
Para sua defesa da criação ex-nihilo, Gaon trabalha com quatro
argumentos, três dos quais muito bem expostos: de finitude do universo,
estrutura e acidentalidade. “(...) continuou a afirmar que nosso Senhor,
louvado e enaltecido seja, informou-nos que todas as coisas foram criadas no
tempo, e que Ele as criou do nada (...). Ele nos comprovou essa verdade por
meio de sinais e milagres, e nós a aceitamos. Examino ainda mais nesta matéria
com o intuito de saber se ela podia ser comprovada por especulação como foi
comprovada por profecia. Achei que era este o caso por um certo número de
razões, da quais, devido à brevidade, selecionei as quatro seguintes: 1. A
primeira prova baseia-se no caráter finito do universo (...). 2. A segunda
prova é derivada da união de partes e da composição de segmentos. Vi que os
corpos consistem de partes combinadas e de segmentos ajustados entre si (...).
3. A terceira prova baseia-se na natureza dos acidentes. Verifiquei que nenhum
dos corpos são desprovidos de acidentes que os afetem direta ou indiretamente.
Animais, por exemplo, são gerados, crescem até que alcançam sua maturidade,
então, definham e se decompõem. Então eu disse a mim mesmo: Será que a terra
como um todo é livre destes acidentes? (...) 4. A quarta prova baseia-se na
natureza do tempo. Sei que o tempo é triplo: passado, presente, futuro. Embora
o presente seja menor do que qualquer instante, tomo o instante como se toma um
ponto e digo: Se um homem tentasse em seu pensamento ascender deste ponto no
tempo ao ponto mais elevado, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, porquanto o tempo é
agora admitido como infinito e é impossível ao pensamento penetrar no ponto
mais remoto daquilo que é infinito.” [Saadia Gaon, Quatro Argumentos para a Criação, idem, op. cit., pp. 317-320].
De todos os pensadores
judeus medievais, talvez o mais conhecido fora dos meios judaicos, seja o
talmudista francês Shlomo bar Itzhak, o rabi Rashi de Troyes (1040-1105).
Exegeta, Rashi apresenta uma tradução para o versículo um de Gênesis que leva
em conta estrutura e acidentalidade: “No princípio, ao criar Deus os céus e a
terra, a terra era vã...” E segundo seu midrash, o texto não está preocupado em mostrar a
ordem da criação, mas em afirmar o ato criador de Deus. Rashi mostra-se
preocupado com o sentido literal, mas define claramente sua hermenêutica: “Todo
texto se divide em muitos significados, mas, afinal nenhum texto está
destituído de seu sentido literal” [Herman Hailperin, Rashi and the Christian Scholars, Pittsburgh, University of
Pittsburgh Press, 1963].
A DIALÉTICA DA ESTRUTURA E
ACIDENTALIDADE
Dessa maneira, tanto para
expositores da creatio ex nihilo como
para os defensores do processio Dei ad
extra a intenção primeira de Gênesis-Um é apresentar Deus como criador, que
utiliza tohu e bohu como matéria prima para a formação do universo. E é a partir
dessa relação entre criação e revelação, que os estudiosos judeus entenderão a
redenção, já que o fim messiânico ou estágio final do mundo revelado significa
uma volta ao começo, uma nova criação.
“A Redenção deveria ser
conseguida não por um movimento tempestuoso na tentativa de apressar crises e
catástrofes históricas, mas antes pela remarcação do caminho que conduz aos primórdios
da Criação e da Revelação, ao ponto em que o processo do mundo (a história do
universo e de Deus) principiou-se a desenvolver-se dentro de um sistema de
leis. Aquele que conhecia a senda pela qual viera podia ter esperanças
eventualmente de poder retornar sobre seus passos”. [Gershom Scholem, A Mística Judaica, SP, Perspectiva,
1972, p. 248].
Assim, mais do que qualquer
intencionalidade em apresentar a cronologia da criação, Gênesis Um apresenta
uma ordem enquanto dialética da estrutura e acidentalidade. Esse processo é
interpretado por Scholem como “o primeiro ato, o ato do tzimtzum, no qual Deus determina e (...) limita a Si mesmo, é um
ato de julgamento que revela as raízes dessa qualidade em tudo o que existe.
Essas raízes do julgamento divino subsistem em mistura caótica com o resíduo da
luz divina que remanesceu, após a retirada ou retraimento original, dentro do
espaço primário da criação de Deus. Então um segundo raio de luz emanado da
essência do Ein-Sof traz ordem ao caos e põe o processo cósmico em movimento,
ao separar os elementos ocultos e moldá-los em nova forma” [Iossef ibn Tabul in Gershom Scholem, Kiriat Sefer, vol. XIX, pp. 197-199].
E dois escritos antigos nos
mostram que a doutrina da creatio ex
nihilo tem suas bases tanto no Tanach, como apócrifos intertestamentários.
Lemos em Isaías: “Assim diz Iahveh, teu redentor, aquele que te modelou desde o
ventre materno. Eu, Iahveh, é que fiz tudo, e sozinho estendi os céus e firmei
a terra. Com efeito, quem estava comigo?” (Is.44:24). E em II Macabeus 7:28:
“Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles
existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que
também o gênero humano surgiu da mesma forma”. Esta, aliás, é a primeira afirmação
explícita da criação ex nihilo.
A primeira vista, a
cosmogonia judaica define a centralidade de Gênesis-Um no ato criativo de Deus
apenas enquanto espacialidade. Seria uma busca do lugar, da centralidade
espacial. O que leva muitos a afirmarem que não há nenhum elemento
espaço-temporal em Gênesis. Mas, isso não é verdade. Em 1740, Anton Lazzaro
Moro, cristão novo, geólogo e exegeta italiano, desenvolveu uma sofisticada
defesa da hipótese espaço-temporal em Gênesis Um. Dizia ele que tudo que está
“envolto e fechado” precisa de um tempo para libertar-se e tornar-se evidente,
e que Deus, ao criar a natureza, colocou-se com administrador das leis criadas.
Daí conclui: “Quando a Escritura afirma que ‘Spiritus Dei ferebatur super aquas
(...)’ indica uma função que traz consigo sucessão de tempo” [Anton Lazzaro
Moro, De Crostacei e degli altri Corpi
Marini che si Truovano su Monti, 1740, in Paolo Rossi, A Ciência e a
Filosofia dos Modernos, São Paulo, Editora Unesp, 1992, p. 345].
Desenvolvendo sua tese espaço-temporal,
explica que toda a criação sofreu duas produções diferentes, que precisam ser
cuidadosamente separadas: “a primeira é a do nada pela mão imediata do criador;
a outra provém do seio das segundas causas acionadas pelo administrador da
natureza. A primeira produção é instantânea e é ato divino proporcionado pela
onipotência e eternidade de Deus; a segunda [produção] implica que o ato divino
seja adaptado às exigências da natureza que Deus estabeleceu em cada coisa”
[Idem, op. cit., p. 345]. A partir daí sua cosmogonia é surpreendente. Explica
que é Deus quem moveu circularmente “a celeste matéria de todo o planetário
vórtice”, obrigando essa matéria que formaria o Sol a colocar-se no lugar que
lhe era destinado. Constatando que seja qual for a velocidade que se queira
atribuir ao movimento diário do Sol e de seu vórtice, “isso não aconteceu num
só dia e em só vinte e quatro horas”.
A formação do Sol, assim como a
produção dos planetas, afirma Moro, “comprova que aqueles seis dias não foram
de medida igual aos dias modernos, mas que foram espaços de tempo de duração
muito mais longa, ou seja, de uma duração proporcional à atividade das causas
segundas e à exigência dos efeitos produzidos; espaços esses que foram chamados
dias, conforme o costume freqüentemente usado nas Escrituras de exprimir com o
nome de dias certos espaços de tempo longos e indeterminados” [Idem, op. cit.,
p. 347]. É interessante ver como a física do século vinte, principalmente
aquela que sofreu influências dessa mesma cosmogonia, traduziu para uma nova
linguagem antigos conceitos.
É verdade, que desde Aristóteles
a ciência avaliou equivocadamente o conceito tempo, considerando-o absoluto,
sem relação imediata e causal com o espaço. Pensou um tempo sem ambigüidades,
achando que se fosse medido corretamente, entre dois espaços ou eventos, o
intervalo de mensuração seria sempre igual. Durante séculos, inclusive para
Newton, o tempo foi independente do espaço. Mas, em 1905, Einstein tornou
pública uma nova teoria de espaço, tempo e movimento, que ele chamou de
relatividade especial. Comprovada em experiências de laboratório, essa teoria,
aceita pela grande maioria dos físicos atuais, levanta algumas hipóteses
simplesmente impressionantes, como a equivalência da massa e da energia, a elasticidade
do espaço e do tempo e a criação e destruição da matéria. Dez anos depois, na
seqüência da teoria anterior, Einstein publica a sua teoria da relatividade
geral, com novas e surpreendentes previsões: a curvatura do espaço e do tempo,
a possibilidade de que o universo seja finito, mas ilimitado e a possibilidade
de o espaço e o tempo se esmagarem, deixando de existir.
”(...) estas considerações levou-nos a
conceber teoricamente o universo real como um espaço curvo, de curvatura
variável no espaço e no tempo, de acordo com a densidade de distribuição da
matéria, susceptível porém, quando considerada em larga escala, de ser tomado
como um espaço esférico. Esta concepção tem, pelo menos, a vantagem de ser
logicamente irrepreensível, e de ser aquela que melhor se cinge ao ponto da
teoria da relatividade geral”. [Albert Einstein, Considerações Cosmológicas sobre a Teoria da Relatividade, in O
Princípio da Relatividade, H. A Lorentz,
A. Einstein, H. Minkowski, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1958, pp.
239-240].
E ao criticar a teoria do tempo
absoluto, Einstein vai mostrar que à medida que o deslocamento de um objeto se
aproxima da velocidade da luz, sua massa aumenta mais rapidamente, de forma que
gasta mais energia para aumentar sua velocidade. Por isso, muito possivelmente
nunca possa atingir a velocidade da luz, pois deixaria de ter massa intrínseca.
O importante dessa teoria é ter modificado a compreensão de tempo e de espaço.
Antes, considerava-se que a velocidade da luz era a distância que ela percorre,
dividida pelo tempo que leva para fazer isso. Agora, compreendemos que a
velocidade pode ser a mesma, mas não a distância percorrida. A partir da teoria
da relatividade, o conceito de simultaneidade, ou seja, da existência de um
mesmo momento em dois lugares diferentes, deixou de ter qualquer significado em
termos de universo.
O TEMPO ENQUANTO NÃO-DETERMINAÇÃO
Em linguagem da física da
relatividade o tempo gasto é a velocidade da luz multiplicada pela distância
que a luz percorreu. Temos então várias medidas de tempo, ou seja, medições
diferentes entre dois eventos ou espaços. Gênesis nos apresenta este conceito
de tempo com <oy que aparece como
não-determinação-quando em Gn 3:5; não-determinação-período em Gn.1:14,16,18;
não-determinação-época em Gn 2:4. Deixamos de ter, então, dois conceitos
separados e absolutos: o tempo e o espaço, para termos um, o espaço-tempo. Ora,
um evento é algo que acontece num determinado ponto do espaço e logicamente num
tempo também determinado. Só que não há separação entre essas duas unidades.
Uma das premissas da teoria da relatividade, conforme expõe Stephen Hawking [Uma breve História do Tempo, RJ, Rocco,
1988, pp. 35-60], é que o tempo corre mais lentamente perto de um corpo
volumoso. Assim, na Terra, para tomarmos um exemplo que nos interessa, o tempo
é mais lento que em outros planetas ou luas de menor massa. Isto porque existe
uma relação entre energia da luz e sua freqüência. Quanto maior a energia,
maior a sua freqüência.
Dessa maneira, à medida que a luz
percorre verticalmente o campo gravitacional da Terra perde energia e sua
freqüência diminui. Em outras palavras, espaço e tempo são quantidades
dinâmicas. Quando um corpo se move no universo afeta a curva do espaço-tempo e,
por sua vez, a curva do espaço-tempo afeta a forma como os corpos se movem e as
forças atuam. Só que, e esse conceito é importantíssimo para a relatividade
geral, não há como falar de espaço-tempo fora dos limites do universo. Essa
premissa é interessante, pois descarta a idéia de um universo imutável, que
sempre existiu, para trabalhar com a possibilidade de um universo que teve
início, é plástico e encontra-se em expansão.
Ora, o que Gênesis está mostrando
é que o universo teve um início, que a criação não é um mito. “Não há nenhum
paralelo bíblico aos mitos pagãos que relatam a morte de deuses mais velhos (ou
poderes demoníacos) pelos mais jovens; não se acham presentes nos tempos
primevos quaisquer outros deuses. As batalhas de Iahveh com monstros primevos,
aos quais é feita ocasionalmente alusão poética, não são lutas entre deuses
pelo domínio do mundo. As batalhas de Iahveh com Raabe, o dragão, Leviatã, no
mar, a serpente veloz, etc., não são esclarecidas pela referência ao mito da
derrota de Tiamat por Marduc e sua subsequente tomada do poder supremo”.
[Yehezkel Kaufmann, A Religião de Israel, São Paulo, Perspectiva, 1989].
Assim, para a teoria da
relatividade o universo tem começo como singularidade, que ficou conhecida como
Big Bang e deverá ter um final também singular, o colapso total ou Big Crunch.
Mesmo sem querer forçar, o Big Crunch nos leva ao texto de Pedro: “Ora, os céus
e a terra estão reservados pela mesma palavra ao fogo (...) O dia do Senhor
chegará como ladrão e então os céus se desfarão com estrondo, os elementos,
devorados pelas chamas se dissolverão e a terra, juntamente com suas obras,
será consumida” (II Pedro 3.7 e 10). Só que, como o espaço-tempo é finito, mas
sem limites, o Big Crunch poderia levar a uma concentração de energia tal, que
muito possivelmente possibilitaria a formação de um novo universo. E essa
formulação nos leva a outro texto bíblico: “Vi então um céu novo e uma nova
terra, pois o primeiro céu e a primeira terra se foram (...)” Apocalipse 21.1.
“De forma semelhante, se o
universo explodisse novamente, deveria haver um outro estado de densidade
infinita no futuro, o Big Crunch, que seria o fim do tempo. Mesmo que o
universo como um todo não entrasse novamente em colapso, haveria singularidades
em algumas regiões determinadas, que explodiriam para formar buracos negros.
Essas singularidades seriam o fim do tempo para quem ali caísse. Na grande
explosão e demais singularidades todas as leis são inoperantes. Então, Deus
ainda teria tido completa liberdade para escolher o que aconteceu e como o universo
começou”. [Stephen Hawking,
op. cit., p. 236].
Ora, como a expansão do universo
implica em perda de temperatura, que é uma medida de energia, quando o universo
dobra de tamanho, sua temperatura cai pela metade. Assim, quando Deus cria o
universo, supõe-se que tinha tamanho zero e temperatura infinitamente quente.
Mas à medida que se expande, a temperatura cai. Isso explica porque o universo
é tão uniforme, e parece igual mesmo nos mais diferentes pontos do espaço. Uma
das consequências, caso consideremos o fiat
divino como o Big Bang, é que a partir da grande explosão não houve tempo de a
luz se deslocar por ilimitadas distâncias. É por isso que Gênesis apresenta em
primeiro lugar tohu e bohu, as trevas e o abismo, e só no
versículo três o surgimento da luz.
É interessante ver que uma das
possibilidades que alguns físicos baralham, um pouco a contragosto, é a de que
Deus escolheu a configuração inicial do universo por razões que não temos
condições de compreender. Consideram
que os acontecimentos do surgimento do universo não se deram de forma
arbitrária, mas refletem um ordem comum. Hawking, como não é teólogo, opta por
uma variável que chama limitação caótica ou escolha ao acaso. Dentro desse
ponto de vista, o universo primordial surgiu como caos. Ora a segunda lei da
termodinâmica mostra que há essa tendência no universo, e que a ordem e o
equilíbrio, ou seja, a vida, que é a forma mais organizada da matéria, surge
como oposição a este caos.
“Einstein uma vez formulou
a pergunta: ‘Que nível de escolha Deus teria tido ao construir o universo?’ Se
a proposta do não limite for correta, ele não teve qualquer liberdade para
escolher as condições iniciais. Teria tido, ainda naturalmente, a liberdade de
escolher as leis a que o universo obedece. Isto, entretanto, pode não ter sido
um grau assim tão elevado de escolha. Pode ter sido apenas uma, ou um pequeno
número de teorias completas unificadas, tal como a teoria do filamento
heterótico, que são autoconsistentes e permitem a existência de estruturas tão
complexas quanto os seres humanos, que podem investigar as leis do universo e
fazer perguntas acerca da natureza de Deus”. [Stephen Hawking, op. cit., p. 237].
“Toda variação de entropia
no interior de um sistema termodinâmico pode ser decomposta em dois tipos de
contribuição: a entrada exterior de entropia, que mede as trocas com o meio e
cujo sinal depende da natureza dessas trocas, e a produção de entropia, que
mede os processos irreversíveis no interior do sistema. É essa produção de
entropia que o segundo princípio define como positiva ou nula”. [Ilya Prigogine
e Isabelle Stengers, Entre o Tempo e a
Eternidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 53].
“(...) as leis científicas
não distinguem entre as direções para frente e para trás do tempo. Entretanto,
há pelo menos três setas de tempo que distinguem o passado do futuro, que são a
seta termodinâmica, direção do tempo em que a desordem aumenta; a seta
psicológica, direção do tempo na qual se recorda o passado e não o futuro; e a
seta cosmológica, direção do tempo em que o universo se expande mais do que se
contrai. Demonstrei que a seta psicológica é essencialmente a mesma que a
termodinâmica, de modo que ambas sempre apontam para a mesma direção. A
proposta do não limite para o universo prevê a existência de uma seta
termodinâmica do tempo bem definida, porque o universo deve começar num estado
plano e ordenado. E a razão por que se observa esta seta termodinâmica se
adequar à cosmologia é que os seres inteligentes só podem existir na fase de expansão”.
[Stephen Hawking, idem, op.
cit., pp. 210, 211].
Coerente com sua visão de
que Deus não joga dados com o universo, Einstein dará um feroz combate às teses
de acausalidade na mecânica quântica, defendidas pelas escolas de Copenhagem e
Gottingen. “Não posso suportar a idéia de que um elétron exposto a um raio de
luz possa, por sua própria e livre iniciativa, escolher o momento e a direção
segundo o qual deve saltar. Se isso for verdade, preferia ser sapateiro ou até
empregado de uma casa de jogos em vez de ser físico”. Citado por Franco
Selleri, Paradoxos e realidade,
Ensaios sobre os Fundamentos da Microfísica, Lisboa, Fragmentos, 1990, p. 41.
Em 1944, voltaria à carga: “Nem sequer o grande sucesso inicial da teoria dos
quanta consegue convencer-me de que na base de tudo esteja o indeterminismo,
embora saiba bem que os colegas mais jovens considerem esta atitude como um
efeito de esclerose. Um dia saber-se-á qual destas duas atitudes instintivas
terá sido a atitude correta”. [Ibidem, op. cit. p. 59].
Guardadas as devidas
proporções, Agostinho, pai e mestre da igreja cristã, também considera que o
caos transcende o tempo. “E, por isso, o Espírito, Mestre do vosso servo,
quando recorda que no princípio criaste o céu e a terra, cala-se perante o
tempo. Fica em silêncio perante os dias. O céu dos céus, criado por Vós no
princípio, é, por assim dizer, uma criatura intelectual, que apesar de não ser
coeterna convosco, ó Trindade, participa, contudo, da vossa eternidade. (...)
Sem movimento nenhum desde que foi criada, permanece sempre unida a Vós,
ultrapassando por isso todas as volúveis vicissitudes do tempo. Porém, este
caos, esta terra invisível e informe não foi numerada entre os dias. Onde não
há nenhuma forma nem nenhuma ordem, nada vem e nada passa; e onde nada passa,
não pode haver dias nem sucessão de espaços de tempo” [Santo Agostinho, Confissões, XII, 9, SP, Abril, 1973, pp.
264, 265].
O bispo de Hipona faz claramente
uma separação, não somente neste texto, entre os céus dos céus, uma dimensão
além dos limites da ciência, e “o nosso céu e a nossa terra” (universo), que
segundo ele é terra. Para ele é totalmente compreensível que essa terra fosse
“invisível e informe”, pois estava reduzida a um abismo sem luz, exatamente
porque não tinha forma. Diríamos hoje, não há espaço-tempo. E, de maneira
brilhante, tenta uma definição, apesar de alertar para suas limitações: “certo
nada, que é e não é”. Interessante, Nissi ben Noach diria praticamente a mesma
coisa.
“O conceito de tempo não
tem significado antes do começo do universo. O que foi apontado pela primeira
vez por Agostinho, quando indagou: O que Deus fazia antes de criar o universo?”
[Stephen Hawking, op. cit, p. 27].
Conhecemos as três principais
teorias cristãs sobre a criação: tudo é criação original, teoria da brecha e
teoria do caos. A partir do que vimos, gostaria de fazer alguns acréscimos à
teoria do caos:
1. O versículo primeiro de Gênesis-Um está fora do
espaço-tempo. Nesse sentido refere-se à dimensão divina do céu dos céus
conforme explicita Agostinho. A criação do espaço-tempo começa com o próprio
caos, que não deve ser entendido como negação ou pura ausência, mas como
entropia. É ex-nihilo enquanto universo-espaço-temporal que surge, mas não
enquanto realidade de Deus, que repousa naqueles quatro conceitos enumerados
por Noach: determinação, proclamação, trabalho e ordem.
2. O tempo não pode ser medido, pois não é
cronológico, é o tempo da ordem/organicidade de Deus, ou se quisermos kairoV, ou. Isso é explicável porque não há
um tempo, mas diversos tempos. A criação implica na expansão do espaço-tempo.
Assim o espaço-tempo de Gênesis 1:3 é totalmente diferente do espaço-tempo de
Gênesis 1:12. Yom em Gênesis-Um só
pode ser entendido enquanto kairoV.
3. Toda discussão que tente uma polaridade entre evolução
teísta ou criação de seis dias de vinte e quatro horas não procede. Isto porque
o espaço-tempo entre os seis dias não são iguais e porque não há evolução, uma
teoria do progresso aplicada à natureza. Há criação e expansão da massa, o que
na Bíblia traduz-se em criação e sustentação. “És tu, Iahveh, que és o único!
Fizeste os céus, os céus dos céus, e todo o seu exército, a terra e tudo o que
ela contém, os mares e tudo o que eles encerram. A tudo isso és tu que dás
vida, e o exército dos céus diante de ti se prostra”. (Neemias 9.6).
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